Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
127/20.2IDAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 8/2012
DE 24-10
CONDIÇÃO PARA SUSPENSÃO DA PENA
O ART. 14.º DO REGIME GERAL DAS INFRAÇÕES TRIBUTÁRIAS
ENQUANTO LEI ESPECIAL
DERROGA A LEI GERAL INSCRITA NOS ARTS. 50.º E 51º DO CÓDIGO PENAL
Nº do Documento: RP20250710127/20.2IDAVR.P1
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Jurisprudência Nacional:
Sumário: I - A jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012, de 24-10, respeita ao crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105.º, n.º 1, do RGIT, e tem como pressuposto essencial a punição do referido ilícito penal, em alternativa, com pena de prisão ou com pena de multa.
II - Esta jurisprudência aplica-se, assim, directamente ao tipo legal em causa, e, aceita-se, indirectamente a outros crimes fiscais puníveis, em alternativa, com uma pena de prisão ou de multa.
III - Excluídas estão as situações, como a dos autos, em que o crime fiscal é punido apenas com pena de prisão, e onde não cabem os juízos de razoabilidade subjacentes ao referido AUJ.
IV - Decorre directamente do mencionado AUJ o entendimento de que o art. 14.º, n.º 1, do RGIT condiciona, obrigatoriamente, a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento ao Estado da prestação tributária em causa e do montante dos benefícios indevidamente obtidos e legais acréscimos.
V - O art. 14. do RGIT, enquanto lei especial, derroga a lei geral inscrita nos arts. 50.º e 51.º do CPenal.
VI - Estando os arguidos condenados pela prática de crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.º e 104.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do RGIT, a suspensão da execução das penas de prisão fixadas aos mesmos deve ficar condicionada ao pagamento à Autoridade Tributária, no período da suspensão, do montante correspondente aos benefícios indevidos obtidos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 127/20.2IDAVR.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Criminal de ... – ...

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório


No âmbito do Processo Comum Singular n.º 127/20.2IDAVR, a correr termos no Juízo Local Criminal de ..., ..., por sentença de 19-12-2024, foi decidido, entre o mais e para o que aqui importa:
«A) No que concerne à parte criminal:
(…)
3. No que concerne ao arguido AA
3.1. Condeno o arguido AA pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 103.º e artigo 104.º, n.º 2, al. a) e nº 3, do RGIT, na pena de três anos de prisão;
3.2. Suspendo a execução da pena referida em 3.1., por igual período, sujeita a regime de prova, o qual deverá assentar no reforço da consciencialização da importância da fiabilidade dos documentos e do pagamento das prestações tributárias devidas ao Estado e bem assim de colaborar com os Técnicos de reinserção Social, designadamente, recebendo-os e comunicando alterações de morada e de contactos.
3.3. Condeno o arguido no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 2 UC.
3.4. Mantém-se a medida de coação aplicada (termo de identidade e residência) até à extinção da pena.
4. No que concerne ao arguido BB
4.1. Absolvo o arguido BB da prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104.º, n.º 3, do RGIT.
4.2. Condeno o arguido pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 103.º e artigo 104.º, n.º 2, al. a), do RGIT, na pena de dois anos e seis meses de prisão,
4.3. Suspendo a execução da pena referida em 4.2, por igual período, sujeita a regime de prova, o qual deverá assentar no reforço da consciencialização da importância da fiabilidade dos documentos e do pagamento das prestações tributárias devidas ao Estado e bem assim de colaborar com os Técnicos de reinserção Social, designadamente, recebendo-os e comunicando alterações de morada e de contactos.
4.4. Condeno o arguido no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 2 UC.
4.5. Mantém-se a medida de coação aplicada (termo de identidade e residência) até à extinção da pena.
5. No que concerne ao arguido CC
5.1. Absolvo o arguido CC da prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104.º, n.º 3, do RGIT.
5.2. Condeno o arguido pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 103.º e 104.º, n.º 2, al. a), do RGIT, na pena de dois anos de prisão;
5.3. Suspendo a execução da pena referida em 2, por igual período, sujeita a regime de prova, o qual deverá assentar no reforço da consciencialização da importância da fiabilidade dos documentos e do pagamento das prestações tributárias devidas ao Estado e bem assim de colaborar com os Técnicos de reinserção Social, designadamente, recebendo-os e comunicando alterações de morada e de contactos.
5.4. Condeno o arguido no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 2 UC.
5.5. Mantém-se a medida de coação aplicada (termo de identidade e residência) até à extinção da pena.
(…)
B) No que concerne à perda de vantagens:
7. Nos termos do disposto no 110.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, condeno os arguidos A..., Unipessoal, Lda. e AA a pagar ao Estado o montante de quatrocentos e sessenta e cinco mil oitocentos e sessenta euros e sessenta e sete cêntimos, a título de perda de vantagem.
8. Absolvo os demais arguidos do pedido
C) No que concerne à parte civil:
9. Julgo procedente o pedido de indemnização cível formulado e, em consequência, condeno os demandados A..., Unipessoal, Lda. e legal representante, AA, a pagar ao Estado, a quantia de quatrocentos e sessenta e cinco mil oitocentos e sessenta euros e sessenta e sete cêntimos, valor a que acresce juros vincendos, até efetivo e integral pagamento.
10. Custas pelos demandados.

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11. Julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização cível formulado e, em consequência, condeno o demandado BB a pagar ao Estado, a quantia de cento e quarenta e cinco mil novecentos e quarenta e sete euros e sessenta e oito cêntimos, valor a que acresce juros vincendos, até efetivo e integral pagamento.
12. Do demais vai absolvido.
13. Custas pelo demandado e demandante, na proporção do decaimento, sem prejuízo da isenção de custas.
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14. Julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização cível formulado e, em consequência, condeno o demandado CC a pagar ao Estado, a quantia de cento e doze mil setecentos e setenta e nove euros e vinte e cinco cêntimos, valor a que acresce juros vincendos, até efetivo e integral pagamento.
15. Do demais vai absolvido.
16. Custas pelo demandado e demandante, na proporção do decaimento, sem prejuízo da isenção de custas.
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17. Os arguidos CC, BB, AA e A..., Unipessoal, Lda. são solidariamente responsáveis pelo pagamento das mencionadas quantias até ao limite da responsabilidade definido relativamente a cada arguido (CC até ao montante de cento e doze mil setecentos e setenta e nove euros e vinte e cinco cêntimos, BB até ao montante de cento e quarenta e cinco mil novecentos e quarenta e sete euros e sessenta e oito cêntimos).»

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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso desta decisão, solicitando a sua parcial revogação e o condicionamento da suspensão da execução das penas de prisão aplicadas aos arguidos AA, BB e CC ao pagamento do valor dos benefícios indevidos obtidos por cada um, aduzindo em apoio dessa posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«I. O Tribunal “a quo” condenou os arguidos AA, BB e CC pela prática do crime de fraude fiscal qualificada em penas de prisão suspensas na sua execução (3 anos, 2 anos e 6 meses e 2 anos, respetivamente, por igual período);
II. Porém, não condicionou essa suspensão ao pagamento do valor total dos benefícios indevidos que as condutas dos arguidos causaram à Autoridade Tributária – cf. art.º 14º, n.º 1 do RGIT;
III. Segundo o AUJ do STJ n.º 8/2012, de 24 de Outubro, caso não seja possível efetuar um juízo de prognose favorável para o cumprimento da condição obrigatoriamente prevista no art.º 14º, n.º 1 do RGIT, o Tribunal tem de afastar a aplicação da pena de prisão suspensa e equacionar outra;
IV. No caso em apreço, se o Tribunal considerou que os arguidos não tinham condições económicas para efetuar o pagamento das vantagens indevidas obtidas, à luz do referido AUJ, tinha de aplicar uma pena de prisão efetiva aos arguidos AA e BB (porque a medida da pena não permite a sua substituição) mas também ao arguido CC (considerando os seus antecedentes criminais, a natureza do crime em causa e os valores elevados do prejuízo causado ao Estado) e não manter a opção de uma pena de prisão suspensa sem aplicação da condição legalmente exigida no art.º 14º do RGIT;
V. Caso assim não se entenda, o Tribunal “a quo” ao ter optado por suspender a execução da pena de prisão, deveria a mesma ficar obrigatoriamente condicionada ao pagamento pelos arguidos à Autoridade Tributária da totalidade das vantagens indevidas acrescida de uma condição mínima e acessória ao referido pagamento integral\total, ou seja, o pagamento mensal mínimo de 100,00€ para os arguidos BB (por conta do valor de 89.135,78€) e AA (por conta do valor de 465.860,67€) e de 50,00€ para o arguido CC (por conta do valor de 112.779,25€) durante o período da suspensão de execução das penas de prisão aplicadas, comprovando documentalmente nos autos tais pagamentos mensais – cf. art.ºs 13º e 14 do RGIT, art.ºs 40º, 50º e 70º do C.P. e art.º 18º, n.º 2 da C.R.P.;
VI. A sentença recorrida violou o AUJ do STJ n.º 8/2012, de 24 de Outubro e o disposto no artigo 14º, n.º 1 do RGIT.»

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Os arguidos recorridos responderam ao recurso, considerando que o mesmo não merece provimento e que a decisão recorrida deve ser mantida, sintetizando dois deles a sua argumentação nas seguintes conclusões (transcrição):

Arguido AA
«A) Quando se pondera a suspensão da execução de uma pena de prisão não são considerações de culpa que interferem nessa decisão mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da prisão, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto em análise, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.
B) Como ensina Figueiredo Dias, citado na Sentença recorrida (…) “o que está em causa no instituto da suspensão da execução da pena não é qualquer “certeza”, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser conseguida. O tribunal deve correr o risco “prudencial (fundado e calculado) sobre a manutenção do agente em liberdade. Existindo, porém, razões sérias para pôr em causa a capacidade do agente de não repetir crimes se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada” (…).
C) Neste juízo de prognose há que ter em conta a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias desse mesmo facto.
D) No caso em apreço, não tendo o arguido AA, à data da prática dos factos, antecedentes criminais, é possível fazer um juízo de prognose favorável.
E) Não tendo arguido condições económicas que lhe permitam pagar ao Estado a prestação tributária e demais acréscimos da lei (o rendimento mensal de € 400,00 que aufere nem sequer é suficiente para assegurar a sua sobrevivência com o mínimo de dignidade), tal não é obstáculo a que se lhe possa aplicar o instituto da suspensão da pena de prisão.
F) O entendimento de que a suspensão da execução da pena de prisão só pode ser aplicada quando for possível fazer-se um juízo de prognose sobre a razoabilidade de o arguido poder pagar o que é devido ao Estado, isto é, só é legalmente possível aplicar-se a suspensão da execução da pena de prisão quando se concluir que o arguido tem uma situação financeira que lhe permite pagar ao Estado o que a este é devido, viola o disposto no artº 13º da Constituição da República Portuguesa.
G) Condenar o arguido numa pena de prisão, cuja suspensão da sua execução fica sujeita a uma condição impossível, é vedado por lei.
H) Ao invés do que defende o recorrente, a opção pela suspensão da execução da pena de prisão não está sujeita a um juízo de prognose de razoabilidade do pagamento da prestação tributária e demais acréscimos legais por parte do condenado ao Estado, mas sim da verificação dos pressupostos da lei penal, concretamente os fixados no artº 50º do CP, pelo que,
I) Assim tendo decidido, é entendimento do recorrido que na douta Sentença recorrida foi feita correta aplicação da lei aos factos, devendo, pois, ser mantida.»

Arguido BB
«a. O douto Acórdão Uniformizador 8/2012 é aplicável somente ao crime nele previsto – abuso de confiança fiscal, previsto e punido no artigo 105.º do R.G.I.T- não sendo aplicável à situação sub judice.
b. Caso assim se não entenda,o que não se concede e apenas se coloca como mera questão de racioncínio, sempre se diga que a douta sentença recorrida fez o juízo de prognose da razoabilidade de cumprimento do disposto no artigo 14.º do R.G.I.T., tendo em conta a concreta condição económica presente e futura do aqui recorrido, tendo concluído pela sua impossibilidade.
c. E sopesando tal disposição legal com o artigo 51.º, n.º2 do C. Penal, apliáel por força do artigo 3.º, alínea a) do R.G.I.T., interpretação que não é vedada pelo Acórdão Uniformizadorn.º8/2012, concluiu ser irrazoável exigir ao arguido, aqui recorrido, o pagamento da prestação tributária e acrescidos, posição que tem respaldo jurisprudencial e doutrinal e a sua adesão.
d. Afigura justa, adequada e proporcional a condenação do arguido, aqui recorrido, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 103.º e artigo 104.º, n.º 2, al. a), do RGIT, na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, sujeita a regime de prova, o qual deverá assentar no reforço da consciencialização da importância da fiabilidade dos documentos e do pagamento das prestações tributárias devidas ao Estado e bem assim de colaborar com os Técnicos de reinserção Social, designadamente, recebendo-os e comunicando alterações de morada e de contactos.
e. Deve ser julgado inconstitucional o artigo 14.º, n.º1 do R.G.I.T., interpretado no sentido de verificando-se todos os requisitos para aplicação da suspensão da pena de prisão concretamente aplicada mas sendo desfavorável o juízo de prognose feito pelo Tribunal quanto ao cumprimento pelo condenado da condição nele imposta de pagamento obrigatório pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, ser afastada a aplicação dessa mesma suspensão da pena de prisão e inerente obrigação do condenado cumprir a pena de prisão, por violação dos proncípios da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, n.º2 da C.R.P., da culpa, previsto nos artigos 1.º, 13.º e 27.º, n.º1 da C.R.P. e da reserva de juiz ínsito nos artigos 205.º e 206.º.
f. A sentença recorrida não merece assim censura, deve ser confirmada.»


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Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer onde subscreveu na íntegra a posição do recorrente, pugnando, por isso, pelo provimento do recurso.

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Cumpridas as notificações a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, não foram apresentadas respostas.

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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.

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II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].

A única questão que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso é a de saber se a suspensão da execução da pena de prisão fixada aos arguidos recorridos devia ter sido condicionada ao pagamento das vantagens que cada um deles obteve com a prática do crime, «acrescida de uma condição mínima e acessória ao referido pagamento integral\total, ou seja, o pagamento mensal mínimo de 100,00€ para os arguidos BB (por conta do valor de 89.135,78€) e AA (por conta do valor de 465.860,67€) e de 50,00€ para o arguido CC (por conta do valor de 112.779,25€) durante o período da suspensão de execução das penas de prisão aplicadas, comprovando documentalmente nos autos tais pagamentos mensais.»


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Para análise da questão que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados constantes da sentença recorrida (transcrição):


«A. Factos provados
Em sede de audiência de julgamento, provaram-se os seguintes factos:
A) Da acusação:
1.A sociedade A... Unipessoal, Lda., pessoa coletiva n.º ...79 trata-se de uma sociedade por quotas, com sede na Rua ..., ..., na freguesia ..., no concelho de ..., ... ..., cujo objeto social se traduz na compra e venda de cortiça, sua transformação e exportação de rolhas de cortiça, com capital social de cinco mil euros e obriga-se com a assinatura de um gerente.
2. Entre o dia 14 de julho de 2011 e o dia 31 de julho de 2018, AA foi gerente de facto e de direito da A... Unipessoal, Lda.
3. Após o dia 31 de julho de 2018, DD passou a ser gerente de direito da A... Unipessoal, Lda.
4. Enquanto tal, desde 14 de julho de 2011, incumbe a AA, a realização de todos os atos de direção da respetiva atividade comercial, representando a empresa, dispondo de todos os documentos bancários e contabilísticos, controlando as contas bancárias, emitindo e recebendo faturas e recibos, competindo-lhe também o cumprimento das obrigações contabilísticas e fiscais, nas quais se incluíam a liquidação e o pagamento de impostos.
5. A A... Unipessoal, Lda. possui o CAE Principal 16293-R3, encontrava-se enquadrada, em 2017, no regime mensal de IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado) e encontra-se enquadrada, desde 2018, no regime trimestral de IVA e, ainda, está no regime geral de tributação em sede de IRC (Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas)
6. Nos anos de 2017 e de 2018, AA decidiu que iria inscrever na contabilidade da A... Unipessoal, Lda. diversas faturas que não correspondiam a qualquer transação real, como se se tratassem dos comprovativos de pagamento do dinheiro relativo a essas transações, o que na realidade não sucedia, para, deste modo, beneficiar da dedução do IVA respetivo, como se o tivesse pago, o que, por não ter sido celebrado qualquer negócio, efetivamente não havia sucedido e, ainda, para incrementar os gastos da sociedade arguida, alterar a base tributável e reduzir o IRC a pagar,
7. Na sequência de tal plano, nos anos de 2017 e 2018, AA, enquanto representante da A... Unipessoal, Lda. e BB e CC, acordaram, entre si, que estes dois últimos arguidos iriam emitir ou permitir que emitissem faturas, como se se tratasse do comprovativo de recebimento, por eles, do dinheiro relativo a transações ou prestações de serviços, o que na realidade não sucedia, para que AA as introduzisse na contabilidade da sociedade A... Unipessoal, Lda. e, desse modo, beneficiasse da dedução do IVA aí inscrito, como se o tivesse pago e também incrementasse os gastos desta, com a consequente alteração da base tributável e a redução do montante de IRC, a pagar.
8. Em cumprimento deste plano, nos anos de 2017 e 2018, BB e CC, emitiram ou permitiram que emitissem em seu nome as seguintes faturas não correspondentes a qualquer transação real, com as datas e montantes que a seguir melhor se discriminam:

Fornecedor

 

Fatura

 

Data

 

Mercadoria

 

Base

Tributável

 

IVA

BB 51 Janeiro Cortiça €70.571,74 €16.231,50
BB 52 Fevereiro Cortiça €28.686,96 €6.598,00
BB 64 Março Cortiça €30.741,00 €7.070,43
BB 65 Março Cortiça €41.745,00 €9.601,35
BB 14 Maio Cortiça €54.962,61 €12.641,40
BB 95 Junho Cortiça €68.247,83 €15.697,00
BB 96 Junho Cortiça €86.050,00 €19.791,50
BB 99 Junho Cortiça €90.191,30 €20.744,00

BB 100 Julho Cortiça €61.508,70 €14.147,00
BB 97 Agosto Cortiça €39.500,00 €9.085,00
BB 98 Setembro Cortiça €62.350,00 €14.340,50
CC 23 Novembro Cortiça €112.108,70 €25.785,00
CC 25 Dezembro Cortiça €26.460,87 €6.086,00
CC 26 Dezembro Cortiça €28.875,00 €6.641,25
CC 24 Dezembro Cortiça €38.230,43 €8.793,00
Total 2017    €1.006.941,01 €231.527,43
CC 34 12/01/2018 Rolhas 45x24 raça

Aparas

€30.165,00 €6.938,00
CC 39 26/01/2018 Rolhas 45x24 raça

Aparas

€22.505,00 €5.175,00
CC 46 20/02/2018 Cortiça escolhida Rolhas 45x24 raça €50.778,00 €11.679,00
CC 54 01/03/2018 Cortiça escolhida e aparas €66.790,00 €15.362,00
CC 56 16/03/2018 Rolhas 45x24 raça

Rolhas 45x26 raça

€55.495,00 €12.764,00
CC 78 28/03/2018 Aparas e cortiça traçada €58.938,00 €13.556,00
Total 2018    €284.671,00 €65.475,00
Total 2017+2018    €1.291.612,01 €297.002,43


9. A sociedade A... Unipessoal, Lda. inseriu na sua contabilidade as faturas acima identificadas, como se se tratasse de dinheiro que tivesse efetivamente pago em troca das transações nelas descritas.
10. Além das faturas referidas em 8, a sociedade A... Unipessoal, Lda. inseriu na sua contabilidade, como se se tratasse de dinheiro que tivesse efetivamente pago em troca das transações nelas descritas, as seguintes faturas, com as datas e montantes que a seguir melhor se discriminam:

Fornecedor

 

Fatura

 

Data

 

Mercadoria

 

Base

Tributável

 

IVA

EE 129 Junho Cortiça €89.736,09 €20.556,50
FF 21 Outubro Cortiça €77.034,78 €17.718,00


11. Acontece, porém, que os negócios subjacentes à emissão das faturas referidas não ocorreram e, assim, não entregaram aqueles bens, nem a sociedade A... Unipessoal, Lda. pagou os montantes indicados nessas mesmas faturas.
12. Nenhum operador registado em sectores de atividade relacionados com a cortiça e seus derivados emitiu e comunicou faturas com destino à A... Unipessoal, Lda.
13. Não obstante, nas declarações periódicas de IVA do ano de 2017, submetidas pela A... Unipessoal, Lda., esta comunicou o valor de €231.357,15, relativo a compras de mercadorias, e o valor de €517,38, relativo a compras de outros bens e serviços.
14. No ano de 2018, também nenhum operador registado em sectores de atividade relacionados com a cortiça e seus derivados emitiu e comunicou faturas com destino à A... Unipessoal, Lda.
15. A sociedade arguida não tinha qualquer estrutura empresarial para exercer qualquer atividade do sector corticeiro, quer em termos de organização económico-financeira, quer de instalações, nunca teve empregados ao seu serviço, nunca pagou os valores relativos àquelas supostas compras, e nunca foi efetuado o transporte das mesmas.
16. Aliás, nos anos de 2017e 2018, a A... Unipessoal, Lda. não possuía viaturas com capacidade para transportar as mercadorias supra faturadas e no e-fatura apenas foi registada uma fatura relativa a serviços de transporte, emitida no dia 28 de setembro de 2018.

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BB

17. Entre 29 de Novembro de 2017 e 31 de dezembro de 2017, BB esteve registado para o exercício de “atividades de limpeza geral em edifícios”, a que corresponde o CAE 81210, tendo a sua atividade sido cessada oficiosamente, pelos Serviços de Inspeção Tributária, por não existir adequada estrutura empresarial suscetível do exercício dessa atividade, a qual não estava a ser desenvolvida nem havia intenção de a desenvolver.
18. BB entregou declarações de IVA, relativas à exploração de um café, em 2017, e declarou ter auferido rendimento de trabalho dependente em 2018.
19. Nos anos de 2017 e 2018, BB não era proprietário, nem arrendatário de bens imóveis, com exceção de um café, e não possuía maquinaria compatível com o exercício de qualquer atividade do sector corticeiro, e
20. Não era proprietário nem locatário de quaisquer veículos a motor com capacidade para transportar cortiça, aparas de cortiça e rolhas, tendo registado a seu favor a propriedade de apenas dois veículos ligeiros de passageiros com as matrículas ..-UG-.. e GZ-..-...
21. Entre o ano de 2016 e o ano de 2019, BB não submeteu quaisquer declarações mensais de remuneração a colaboradores.
22. Nos anos de 2016 e 2017, BB emitiu faturas, no valor global de €3.272.124,66, incluído o valor de IVA de €611.862,07.
23. Porém, BB nunca teve qualquer estrutura empresarial para exercer qualquer atividade do sector corticeiro, quer em termos de organização económico-financeira, quer de instalações, nunca teve empregados ao seu serviço, nunca recebeu o valor relativo àquelas supostas compras da A... Unipessoal, Lda. e nunca foi efetuado o transporte das mesmas.
24. BB emitiu faturas com numeração sequencial posterior e com data anterior e a caligrafia aposta nas faturas difere de utilizador para utilizador.
25. No âmbito do processo n.º ... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, ... – JL Criminal – ..., por sentença de 20/12/2021, transitada em julgado a 01/02/2022, BB foi condenado pela prática do crime de fraude fiscal qualificada na pena de prisão de 1 ano e 4 meses suspensa na sua execução por igual período, subordinada à obrigação de pagar à Administração Tributária, a quantia de seis mil euros.
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CC

26. Entre 07 de Dezembro de 2017 e 09 de julho de 2018, CC esteve registado para o exercício da atividade de “indústria de preparação da cortiça”, a que corresponde o CAE 16293, tendo sido cessado de forma oficiosa, por não existir adequada estrutura empresarial suscetível do exercício dessa atividade, a qual não estava a ser desenvolvida nem havia intenção de a desenvolver.
27. Entre 2016 e 2019, CC não realizou qualquer declaração de IVA, nem de IRS, e o seu domicilio fiscal é uma casa de habitação.
28. CC nunca teve qualquer estrutura empresarial para exercer qualquer atividade do sector corticeiro, quer em termos de organização económico-financeira, quer de instalações e quer de viaturas capazes de transportar cortiça, aparas de cortiça ou rolhas, nunca teve empregados ao seu serviço, nunca recebeu o valor relativo àquelas supostas compras da A... Unipessoal, Lda. e nunca foi efetuado o transporte das mesmas.
29. No ano de 2017, CC não comunicou a emissão de faturas à sociedade arguida nem a qualquer outra pessoa e foram comunicadas por operadores não enquadrados no sector da cortiça, nem dos transportes, faturas, no valor total de €1.091,97.
30. CC emitiu faturas com numeração sequencial posterior e com data anterior e a caligrafia aposta nas faturas difere de utilizador para utilizador, e
31. No dia 19 de dezembro de 2017, a Tipografia B... Unipessoal, Lda. faturou os serviços de impressão de um livro de faturas e de um livro de guias de remessa, a CC, e este emitiu faturas n.º 23, a 15/11/2017, n.º 24, a 08/12/2017, n.º 25, a 14/12/2017 e n.º 26, a 19/12/2017.

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EE
32. EE iniciou e cessou a atividade de “extração de cortiça, resina e apanha de outros florestais” no mesmo dia 09 de maio de 2017.
33. EE nunca teve qualquer estrutura empresarial para exercer qualquer atividade do sector corticeiro, quer em termos de organização económico-financeira, quer de instalações e quer de viaturas capazes de transportar cortiça, aparas de cortiça ou rolhas, nunca teve empregados ao seu serviço, nunca recebeu o valor relativo àquelas supostas compras da A... Unipessoal, Lda. e nunca foi efetuado o transporte das mesmas.
34. No ano de 2017, EE não comunicou a emissão de faturas à sociedade arguida nem a qualquer outra pessoa e foram comunicadas por operadores não enquadrados no sector da cortiça, nem dos transportes, faturas, no valor total de €657,13.
35. A fatura n.º 129, com destino à A... Unipessoal, Lda., não foi impressa pela tipografia aposta na mesma, a C..., Lda. e apresenta arranjo gráfico daquele que é utilizado por esta tipografia.
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FF
36. FF esteve registado para a atividade de “comércio por grosso de cortiça em bruto”, entre 17 de outubro de 2017 e 31 de dezembro de 2018, data esta, em que foi cessado.
37. Nos anos de 2017 e 2018, não apresentou declarações de IVA, nem de IRS.
38. FF nunca teve qualquer estrutura empresarial para exercer qualquer atividade do sector corticeiro, quer em termos de organização económico-financeira, quer de instalações e quer de viaturas capazes de transportar cortiça, aparas de cortiça ou rolhas, nunca teve empregados ao seu serviço, nunca recebeu o valor relativo àquelas supostas compras da A... Unipessoal, Lda. e nunca foi efetuado o transporte das mesmas.
39. Nos anos de 2017 e 2018, nenhum operador do sector corticeiro declarou ter vendido cortiça, aparas de cortiça ou rolhas a FF, nem este comunicou a emissão de faturas à sociedade arguida nem a qualquer outra pessoa.
40. A tipografia “D... Unipessoal Lda.”, cujo timbre consta da fatura nº 21, não foi impressa por essa sociedade e apresenta arranjo gráfico diferente daquele que é utilizado por essa tipografia.
**

41. Entre 08 de Janeiro de 2018 e 28 de Dezembro de 2018, na conta bancária com o IBAN  ...23, sedeada no Banco 1..., de que a sociedade arguida é titular, não se encontram refletidos os débitos correspondentes aos montantes constantes das faturas supra indicadas e os créditos existentes são seguidos de imediato de levantamentos em numerário, através de cheques de caixa ou de levantamentos em terminais de ATM, sendo o valor sobrante destinado a fazer face aos encargos com a Segurança Social relacionados com os rendimentos declarados como pagos ao gerente.
42. Os montantes constantes das faturas supra indicadas não foram creditados nas contas bancárias tituladas por BB, CC, EE e FF.
43. Por força dos atos acima descritos, a sociedade A... Unipessoal, Lda. obteve, nos períodos tributários dos anos de 2017 e do 1.º trimestre de 2018 que a seguir se indicam as seguintes vantagens patrimoniais relativas ao IVA, imposto indevidamente deduzido e que nunca foi pago, no total de €297.002,43:

Período Tributário IVA Indevidamente Deduzido
Janeiro de 2017 €16.231,50
Fevereiro de 2017 €6.598,00
Março de 2017 €16.671,78
Maio de 2017 €12.641,40
Junho de 2017 €76.789,00
Julho de 2017 €14.147,00
Agosto de 2017 €9.085,00
Setembro de 2017 €14.340,50
Outubro de 2017 €17.718,00
Novembro de 2017 €25.785,00
Dezembro de 2017 €21.520,25
Total de 2017 €231.527,43
1.º trimestre de 2018 €65.475,00
Total 2017+ 2018 €297.002,43


44. Pela contabilização indevida das faturas suprarreferidas, verificou-se um incremento dos gastos no exercício de 2017, no exato montante da base tributável das faturas, do que resultou o IRC em falta nos cofres do Estado no montante de €225.670,81, nos seguintes termos:

 

Descrição

 

Valor

Apuramento

Lucro Tributável (LT)

Corrigido

(1) Prejuízo fiscal declarado €992,97
(2) Acréscimo gastos faturas falsas €1.006.6411,01
(3) Lucro tributável corrigido €1.005.648,04

Dano

Patrimonial

(4) =€15.000 x 17% €2.550,00
(5) = [(3) - €15.000] x 21% €208.036,09
(6) = 1,5% x (3) €15.084,72
(7) = (4) + (5) + (6) €225.670,81

Nota: (4) = coleta aplicável aos primeiros €15.000,00 de LT; (5) = coleta aplicável ao LT excedente; (6) = derrama municipal


45. Os arguidos apropriaram-se da quantia global de €465.860,67 (= €297.002,43+ €225.670,81) que integraram no seu património, sem terem qualquer direito à mesma, causando prejuízo patrimonial de igual montante para o Estado Português.
46. Os arguidos tinham consciência que todas as faturas suprarreferidas, titulavam transações inexistentes, e como tal simuladas, mais sabendo que as faturas não haviam sido impressas pelas tipografias B... Unipessoal, Lda., C..., Lda. e Tipografia D... Unipessoal Lda. e que, por isso, também se tratavam de faturas forjadas.
47. Mais sabiam os arguidos que ao introduzir aquelas faturas na contabilidade da A... Unipessoal, Lda., iriam incrementar os respetivos gastos e, após, alterar os factos constantes das declarações de IRC e que serviriam de base à determinação da matéria coletável, de modo a obter benefícios fiscais e patrimoniais indevidos, defraudando a Fazenda Nacional no valor global de €225.670,81, a título de IRC do exercício de 2017.
48. Os arguidos sabiam que, em sede de IVA, o apuramento do montante de imposto devido em cada período é efetuado pela dedução ao imposto liquidado do imposto suportado no pagamento das aquisições, isto é, que o operador económico pode deduzir em cada período o IVA que consta mencionado nas faturas de aquisição de bens e serviços, sendo o imposto a entregar ao Estado o que resulta da diferença entre o IVA liquidado nas faturas de venda e o IVA mencionado nas faturas de aquisição de bens e serviços.
49. Os arguidos sabiam, ainda, que se AA apresentasse e lançasse na contabilidade da A... Unipessoal, Lda. aquelas faturas, documentando o pagamento de valores que na realidade não tinham sido suportados, como efetivamente fez, faziam com que, tratando-se de montantes superiores ao IVA que essa sociedade tinha recebido em transações que efetuou, pela diferença anulariam o valor que tinha recebido a título de IVA e que devia entregar ao Estado ou mesmo excedendo-o e, deste modo, não teriam de entregar esse valor, ainda recebendo em caso de excesso, sabendo todos que assim agindo AA, induziam em erro a Administração Fiscal e, assim, à custa do Estado e da comunidade contribuinte, recebiam vantagens patrimoniais e benefícios fiscais indevidos, no valor global de €297.002,43, pela dedução indevida do referido imposto, ocasionando dessa forma uma diminuição das receitas tributárias do Estado em igual medida.
50. Não obstante, os arguidos quiseram agir da forma supra descrita, em conjugação de esforços e de vontades, pretendendo utilizar faturas forjadas, do modo como utilizaram, com o intuito concretizado de se apoderaram de valores patrimoniais a que sabiam não ter qualquer direito, causando prejuízo de igual montante ao Estado português,
51. Pretendendo BB, CC emitir ou permitir que fossem emitidas as referidas faturas não correspondentes a transações reais entregando-as a AA que, por si e enquanto representante da A... Unipessoal, Lda., as utilizou, lançando-as na contabilidade desta sociedade arguida para, deste modo,
52. Incrementarem os seus gastos e alterar os factos constantes da declaração de IRC do ano de 2017 e que serviriam de base à determinação da matéria coletável, a fim de obterem benefícios fiscais e patrimoniais, no montante global de €225.670,81,
53. E, introduzirem aquelas faturas também nas declarações periódicas de IVA dos anos do ano de 2017 e do 1.º trimestre de 2018, com o objetivo de obterem benefícios fiscais e patrimoniais indevidos, por a A... Unipessoal, Lda. ter deixado de entregar nos cofres do Estado o montante de €297.002,43, a título de IVA, que deveria pagar,
54. E, ainda, a apropriarem-se do valor global de €465.860,67, a que não tinham qualquer direito, causando prejuízo de igual montante ao Estado português,
55. De tudo o que os arguidos tinham consciência, quiseram e lograram concretizar.
56. Os arguidos agiram sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que toda a descrita conduta lhes estava legalmente vedada.

*

B) Mais se provou relativamente à arguida A..., Unipessoal, Lda.:

56. Do seu certificado de registo criminal consta a seguinte condenação: por decisão transitada em julgado em 2024/05/06, a arguida foi condenada pela prática, em 2018/01/, de um crime de fraude fiscal na pena de 960 dias de multa à razão diária de 10€ (processo nº ...).
*

C) Mais se provou relativamente ao arguido DD:

57. Do seu certificado de registo criminal nada consta.
*

D) Mais se provou relativamente ao arguido AA:

58. AA iniciou no ramo de indústria de rolhas e cortiça através de empresa de familiares, onde trabalhava em períodos de férias escolares e mais tarde enquanto comercial, vindo a criar a sua própria empresa neste mesmo ramo de atividade em 1990.
Alcançou uma situação laboral e económica desafogada, vindo a sofrer as consequências das dificuldades sentidas no ramo da cortiça, encerrando empresas e criando outras, designadamente até ao ano de 2023: Empresa E..., SA; Empresa A..., Lda.; Empresa F....
AA desde agosto de 2019 e até junho de 2023 foi sócio maioritário (90%) juntamente com GG na “E..., SA.”. De então para cá, dedica-se à venda de automóveis usados e colabora com empresários do ramo da cortiça na compra e venda de rolhas, de onde vem retirando proventos que necessita para o seu sustento e da sua família. Aufere cerca de 400€ mensais. A 22/09/2024 requereu a pensão de velhice, contando que a mesma lhe venha a ser atribuída brevemente, no montante de 545€ mensais. O cônjuge não dispõe de rendimentos próprios.
Embora estando divorciado, vive desde o início do matrimónio com a ex-mulher e com a filha de ambos, maior de idade, no piso inferior de habitação pertencente à mãe da ex-mulher.
A filha contribui nas despesas domésticas regulares, orçadas em cerca de 250€ (consumos domésticos cerca de 150€ e medicação do arguido, cerca de 100€).
AA tem problemas de saúde ao nível ao nível cardíaco (em 2016 terá sido operado ao coração).
Ostenta, no momento atual, um padrão vivencial aparentemente modesto.
59. Do seu certificado de registo criminal constam as seguintes condenações:
59.1. por decisão transitada em julgado em 2023/02/23, o arguido foi condenado pela prática, em 2013, de um crime de fraude fiscal na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução, por igual período, com obrigação de o arguido, nesse mesmo lapso temporal, entregar ao Estado a quantia global de 186.262,83 e respetivos acréscimos legais, devendo o arguido comprovar mensalmente nos autos a entrega de, pelo menos, 300€ (processo nº ...).
Por decisão de 2024/06/14 foi substituída a obrigação de entrega mensal de 300€ pela obrigação de prestar 300 horas de trabalho a favor da comunidade.
59.2. por decisão transitada em julgado em 2024/05/06, o arguido foi condenado pela prática, em 2018/01/, de um crime de fraude fiscal na pena de cinco anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a deveres (processo nº ...).
*

E) Mais se provou relativamente ao arguido BB:

60. À data dos factos, BB repartia o seu tempo entre a casa dos pais/ morada indicada nos autos e a casa da sua namorada à data.
Em termos habitacionais, BB continua a indicar a morada dos seus pais. O arguido tem pernoitado num escritório (sede da sua empresa de limpeza), bem como, em casa da sua atual namorada.
BB tem três filhos (com 24, 13 e 12 anos de idade) mantendo contacto com os mesmos.
BB tem o 6.º ano de escolaridade.
Profissionalmente, BB é gerente da empresa de limpeza que constituiu em julho de 2023 com a sua ex-companheira designada de “G...”, com atividade principal no âmbito de limpeza geral em edifícios.
O percurso profissional de BB desenvolveu-se sobretudo na área da restauração com a exploração de cafés, estabelecimentos que teve de forma sucedânea nas localidades de ..., ..., ... e ....
À data dos factos descritos no atual processo, em 2017 e 2018, BB dedicava-se à exploração um café denominado “H....” em ....
Atualmente aufere 540,00€, beneficiando de ajudas de custo (subsidio de refeição, telemóvel, combustível) no valor de cerca de 300,00€. Paga pensão de alimentos aos filhos menores de idade no valor de 204,00€.
BB sofreu um acidente vascular cerebral em março/abril de 2023, tendo ficado vários meses sem trabalhar. Neste momento, está em acompanhamento em consulta de medicina geral e familiar, com medicação para a hipertensão e para evitar a formação de trombos (efeito anti trombótico).
BB tem um quotidiano organizado em função da sua atividade laboral, sem atividade lúdica com caracter estruturado, estando aos fins de semana com os seus filhos de menor de idade.
61. Do seu certificado de registo criminal constam as seguintes condenações:
61.1. por decisão transitada em julgado em 2006/09/15, o arguido foi condenado pela prática, em 1997, de um crime de fraude fiscal na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução, por igual período, com obrigação de o arguido, nesse mesmo lapso temporal, entregar a quantia global de 7.500€, sendo metade para o Estado e metade para as irmãs passionistas. A pena foi declarada extinta (processo nº ...).
61.2. por sentença transitada em julgado em 17.07.2006, o arguido foi condenado pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, na pena única de 140 dias de multa à razão diária de 3€. A pena foi declarada extinta (processo nº ...).
61.3. por sentença transitada em julgado em 06.12.2006, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 200 dias de multa à razão diária de 3€. A pena foi declarada extinta (processo nº ....
61.4. por sentença transitada em julgado em 02.05.2007, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 4 meses de prisão substituída por 120 dias de multa à razão diária de 4€. A pena foi declarada extinta (processo nº ...).
61.5. por sentença transitada em julgado em 06.05.2008, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 9 meses e 15 dias de prisão suspensa na sua execução por 1 ano. A pena foi declarada extinta em 2011/02/14 (processo nº ...).
61.6. Por sentença transitada em julgado em 2016/01/27, o arguido foi condenado pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, na pena única de 230 dias de multa à razão diária de 5,50€. A pena foi declarada extinta (processo nº ...).
61.7. por sentença transitada em julgado em 2018/04/06, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 meses de prisão suspensa na sua execução com regime de prova. A pena foi declarada extinta (processo nº ...).
61.8. por decisão transitada em julgado em 2022/02/01, o arguido foi condenado pela prática, em 2017/09/, de um crime de fraude fiscal na pena de 1 anos e 4 meses de prisão suspensa na sua execução, por 5 anos, com regime de prova e obrigação de o arguido, nesse mesmo lapso temporal, entregar a quantia de 6.000€ ao Estado (processo nº ...).
61.9. por decisão transitada em julgado em 2024/02/26, o arguido foi condenado pela prática, em 2017/09/, de 2 crimes de fraude fiscal na pena única de 2 anos e 2 meses de prisão suspensa na sua execução, por 3 anos, com obrigação de o arguido, nesse mesmo lapso temporal, entregar a quantia de 32.950,38€ ao Estado (processo nº ...).
62. Em 31-10-2023, na sessão nº 143 da audiência de julgamento, no âmbito do processo nº ... foi proferido acórdão transitado em julgado relativamente a BB e não transitado relativamente à A..., do qual consta:
72.BB
1. Um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelos arts. 103º e 104º, n.º2, al. a) e n.º3 do RGIT (NUIPC... - A..., UNIPESSOAL, LDA);
2. Um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelos arts. 103º e 104º, n.º2, al. a) e n.º 3 do RGIT (... - I..., LDA)
(…)
Factos Provados:
(…)
327. BB, com o NIF ...18, coletou-se para o exercício da atividade Ag. Do comércio por grosso madeira e materiais de construção, a que corresponde o CAE 46130, com início de atividade a 28/09/2009 e em 01 de junho de 2016, efetuou nova alteração, acrescentando a atividade de fabricação de rolhas de cortiça, a que corresponde o CAE 16294, estando também coletado para o exercício de outras atividades desde 02/01/2008, atividades que cessou a 29/11/2017.
328. Ficou enquadrado em sede de IVA no regime normal de tributação trimestral e em sede de IRS no regime simplificado.
329. Teve domicílio fiscal na Rua ..., ..., ..., ....
330. Esta arguido não desenvolveu qualquer atividade empresarial, nomeadamente a inerente à emissão das faturas abaixo descritas, porquanto e, além do mais:
a. Nunca teve instalações, equipamentos, viaturas ou funcionários afetos à atividade empresarial;
b. As faturas emitidas em seu nome com a numeração 5, 6 e 7 e as guias com a numeração 006 e 007 foram contabilizadas pelos arguidos e utilizadores abaixo identificados com data anterior à do levantamento na respetiva gráfica;
c. As guias de remessa que documentam as alegadas vendas são omissas quanto à sede do destinatário / local de descarga, hora em que foi iniciado o transporte.
331. BB coletou-se para o exercício desta atividade, requisitou livros de faturas e respetivos documentos (guias, recibos), assinou e preencheu tais faturas e documentos associados, ou entregou-os a terceiros ou aos arguidos e utilizadores abaixo identificados, para que preenchessem em seu nome, sabendo que não correspondiam a qualquer transação real por si efetuada.
332. BB sabia que tais documentos iriam ser contabilizados pelos arguidos e utilizadores abaixo identificados, permitindo-lhes a dedução indevida das quantias neles descritas e que dessa utilização poderiam advir vantagens patrimoniais para esses utilizadores de valor superior a €15.000,00 por cada declaração de IVA ou de rendimentos que apresentassem.
333. Fê-lo a troco de recompensas pecuniárias pagas pelos arguidos e utilizadores abaixo identificados, assentes no pagamento de quantias não concretamente apuradas.
(…)
1137. Para tanto, [A..., LDA] entabulou negociações com os arguidos abaixo identificados, a quem deu a conhecer o seu objetivo criminoso, solicitando-lhes a necessária colaboração na emissão de faturas que pretendia inscrever na contabilidade daquela sociedade, os quais anuíram à proposta, nos termos do acordo e com o propósito supra descrito:
a. HH, em nome individual;
b. II, representante da sociedade J... Unipessoal, Lda;
c. JJ, em nome individual;
d. BB, em nome individual;
e. Pessoa cuja identidade se desconhece, em representação da atividade exercida por KK em nome individual;
1138. Assim determinados, HH, em nome individual, II, representante da sociedade J... Unipessoal, Lda, JJ, em nome individual, BB, em nome individual, e pessoa cuja identidade se desconhece, em representação da atividade exercida por KK em nome individual, emitiram ou permitiram que emitissem em seu nome, preencheram ou permitiram que preenchessem em seu nome, as seguintes faturas para a sociedade arguida A..., Lda, que entregaram ou permitiram que chegassem à posse de AA:

EMITENTEFACTURADATAIVAFls.
BB3919/12/2016€13.984,00Fls.228
BB4030/12/2016€1.150,00Fls.229


1139. Tais faturas são falsas, pois que não correspondem a qualquer transação real efetuada entre os arguidos e respetivas sociedades.
1140. Na posse de tais faturas, AA integrou-as na contabilidade da sociedade A..., Lda contabilizando-as nos respetivos períodos e apresentando as declarações fiscais de IVA com base nas mesmas.
1141. Dessa utilização, esta sociedade obteve vantagens patrimoniais ilegítimas em sede de IVA, com a dedução indevida nas respetivas declarações nos seguintes valores:
1202. Para tanto abordou os seguintes arguidos, a quem deu a conhecer o seu objetivo criminoso, solicitando-lhes a necessária colaboração na emissão de faturas que pretendia inscrever na contabilidade daquela sociedade, os quais acederam em o fazer, nos termos do acordo e com o propósito supra descrito: (…) e. BB, em nome individual.
1203. Assim, HH, em nome individual, LL, em nome individual, MM, em nome individual, JJ, em nome individual e BB, em nome individual, emitiram, preencheram, mandaram preencher ou permitiram que fossem preenchidas em seu nome, as seguintes faturas para a sociedade I..., Lda que entregaram em mão ou permitiram que chegassem à posse de NN:

EMITENTEFACTURADATAIVAFls.
BB507/10/2016€3.686,90Fls.

723

BB625/10/2016€3.565,00Fls.

725

BB704/11/2016€3.677,70Fls.

727

BB822/11/2016€3.489,68Fls.

729

BB906/12/2016€3.397,10Fls. 731


Do direito

O arguido BB foi pronunciado pela prática de dois crimes de fraude fiscal qualificada.
Ficou demonstrado que o arguido, emitiu para as sociedades A... e I..., faturas não correspondentes a transações ou prestações de serviços reais (faturas falsas), as quais foram contabilizadas para efeitos de IVA e IRC (2016.12).
Mostram-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de fraude fiscal, p. e p. arts. 103º, e 104º, nº 2, alínea a), do RGIT (e não pelo nº 3 como vinha pronunciado), relativamente à atuação do arguido BB.

Medida concreta da pena

Empresas Utilizadoras
A...
I...
- BB:
- pelo crime cometido como emitente da A..., Lda.: 1 ano e 7 meses;
- pelo crime cometido como emitente da I..., Lda.: 1 ano e 8 meses.

cúmulo jurídico das penas:
BB, na pena única de 2 anos e 2 meses, suspensa na respetiva execução por três anos, subordinada ao pagamento da quantia de €32.950,38 (trinta e dois mil, novecentos e cinquenta euros e trinta e oito cêntimos) à Fazenda Nacional (devendo o pagamento da apontada quantia ser efetuado em duas prestações: metade da quantia quando se atingir metade do prazo de suspensão; a outra metade da quantia no termo do prazo de suspensão).

*


F) Mais se provou relativamente ao arguido CC:

63. No período a que reportam os factos pelos quais vem acusado, CC integrava o agregado familiar de origem, composto unicamente pela progenitora, à data septuagenária, viúva e pensionista.
Laboralmente, estava em situação de desemprego. Habilitado com o 1º ciclo do ensino básico, a sua ultima colocação laboral regular foi em empresa de rebobinagem, onde exerceu funções até 2015/2016.
Neste contexto, passou a beneficiar do respetivo subsidio de desemprego durante cerca de um ano, findo o qual foi-lhe atribuído o rendimento social de inserção que complementava com trabalhos na construção civil, em regime informal.
O seu percurso vivencial foi negativamente condicionado pelos consumos abusivos de substâncias etílicas, iniciados em idade precoce, mas que se foram agudizando e que estiveram na origem dos sucessivos confrontos com o Sistema de Administração da Justiça Penal, com início em 2014, e consequentes condenações em penas não privativas de liberdade com intervenção destes serviços.
Nesse âmbito, foi encaminhado para acompanhamento na Associação de Alcoólicos em Recuperação de ... – ...” e para consulta de alcoologia no Centro Hospitalar de ....
CC esteve recluído entre maio/2019 e abril/2020, por revogação de pena de prisão na habitação aplicada em condenações por crimes estradais, nomeadamente condução de veículo em estado de embriaguez, tendo sido libertado ao abrigo da lei 9/2020 (regime excecional de flexibilização da execução das penas e medidas, no âmbito da pandemia por COVID – 19). Tinha ainda a cumprir a pena de 1 ano e 10 meses de prisão, aplicada no processo nº ... que lhe foi perdoado ao abrigo do mesmo diploma legal.
No campo afetivo/relacional, CC estabeleceu duas relações afetivas, das quais tem quatro filhos, embora não mantenha contacto com nenhum. Há cerca de 4 anos iniciou nova relação com a atual companheira, passando o casal a coabitar na residência da mesma, sendo este o enquadramento familiar/habitacional que apresentava à data da atual reclusão. A progenitora faleceu há cerca de 2 anos.
Mantinha situação de desemprego de longa duração, com atribuição do rendimento social de inserção, no valor de 230€. Tinha despesas domésticas mensais na ordem dos 400€.
CC assume a problemática do alcoolismo como relevante no seu percurso de vida. Mantinha o acompanhamento no ...”, embora com períodos de recaída e outros de evolução.
Quer no meio social de origem, quer no da atual companheira, o arguido é associado aos contactos com o Sistema de Administração da Justiça Penal e ao alcoolismo, mas sem indicadores de rejeição porquanto sempre apresentou uma interação social ajustada. Exibia um quotidiano ocioso, passando grande parte do tempo no café de um dos coarguidos, BB.
O projeto de vida de CC passa por voltar à coabitação com a sua companheira, de quem beneficia de apoio.
CC deu entrada no Estabelecimento Prisional ... (E.P.....) a 14/05/2024, à ordem do processo nº ... do Juízo Local Criminal de ... – Juiz 1, no qual foi condenado na pena de 1 ano de prisão pela autoria dos crimes de desobediência e condução sem habilitação legal.
No Estabelecimento Prisional ..., o condenado não tem ocupação, embora já tenha solicitado, e tem apresentado um comportamento ajustado. Beneficia ainda de acompanhamento em consultas de psiquiatria e psicologia.
CC recebe visitas da sua companheira e da irmã.
64. Do seu certificado de registo criminal constam as seguintes condenações:
64.1. por sentença transitada em julgado em 2015/12/02, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 70 dias de multa à razão diária de 6€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses. A pena foi declarada extinta (processo nº ...).
64.2. por sentença transitada em julgado em 2017/06/19, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 4 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 15 meses. Foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão e cumpriu 4 meses de prisão em regime de permanência na habitação. A pena foi declarada extinta (processo nº ...).
64.3. por sentença transitada em julgado em 2017/09/11, o arguido foi condenado pela prática de um crime de desobediência, na pena de 60 dias de multa à razão diária de 5€. A pena foi declarada extinta (processo nº ...).
64.4. por sentença transitada em julgado em 2018/06/20, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 6 meses de prisão em regime de permanência na habitação e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 17 meses. A pena foi declarada extinta (processo nº ...).
64.5. por sentença transitada em julgado em 2018/09/26, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez e um crime de violação de proibições, na pena de 80 dias de multa à razão diária de 5€ e na pena de 7 meses de prisão em regime de permanência na habitação e na medida de segurança de cassação do título de condução e interdição da concessão de novo título pelo período de 20 meses. A pena foi declarada extinta (processo nº ...).
No âmbito deste processo foi realizado cúmulo jurídico da pena com as penas aplicadas nos processos nº ... e ..., tendo sido condenado na pena de 110 dias de multa à razão diária de 6€ e na pena de 13 meses de prisão em regime de permanência na habitação e na pena acessória e proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 2 anos.
64.6. por sentença transitada em julgado em 2019/09/20, o arguido foi condenado pela prática de um crime de desobediência, um crime de condução em estado de embriaguez e um crime de violação de proibições, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão efetiva e na pena acessória e proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 2 anos e 4 meses. Por despacho de 2019/05/23 foi concedida liberdade condicional e por despacho de 2020/04/11 foi concedida liberdade definitiva. A pena foi declarada extinta (processo nº ...).
64.7. por sentença transitada em julgado em 2024/03/11, o arguido foi condenado pela prática de um crime de desobediência, um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão efetiva (processo nº ...).
G) Mais se provou relativamente ao arguido EE
65. Do seu certificado de registo criminal nada consta.
***


B. Factos não provados

Com relevo para a decisão da causa nada mais resultou provado, designadamente:
a) Na data referida em 3, DD passou a ser ainda gerente de facto.
b) A partir de 31 de Julho de 2018, incumbe a DD, a realização de todos os atos de direção da respetiva atividade comercial, representando a empresa perante os fornecedores e clientes, com quem efetuava contactos, dispondo de todos os documentos bancários e contabilísticos, controlando as contas bancárias, emitindo e recebendo faturas e recibos, competindo-lhe também o cumprimento das obrigações contabilísticas e fiscais, nas quais se incluíam a liquidação e o pagamento de impostos e atuou sabendo e querendo, nos termos descritos de 41 a 56.
c) A partir do dia 31 de julho de 2018, DD aderiu ao plano descrito em 6.
d) EE emitiu a fatura nº 29 e atuou nos termos descritos em 7 e 8.
e) EE atuou sabendo e querendo, nos termos descritos de 41 a 56.
*

f) O arguido BB não emitiu as faturas em causa nos presentes autos, a letra que as mesmas contêm não foi feita pelo seu punho.
g) As faturas em causa nos presentes autos não foram emitidas por terceiro, a mando, com a conivência, autorização ou permissão de BB, que também as não cedeu ou transmitiu, quer gratuita, quer onerosamente, a ninguém.
h) O arguido BB só soube da emissão das faturas quando foi confrontado pelos senhores inspetores tributários.
i) O arguido BB inicialmente não percebeu a notificação dos Senhores Inspetores Tributários para apresentação das referidas faturas e quando as procurava percebeu que as mesmas tinham sido subtraídas, por terceiro, e sem o seu consentimento, do sítio onde haviam sido depositadas.»

*

Vejamos, então.

Segundo o recorrente[2], o Tribunal a quo, na determinação da pena dos arguidos recorridos, «entendeu que não era possível fazer um juízo de prognose favorável de que os arguidos pudessem pagar as quantias indevidamente obtidas durante o prazo da suspensão da execução da pena de prisão.

Em consequência, a afastou a aplicação da lei especial – art.º 14º do RGIT – e aplicou a lei geral – art.ºs 50º e 53º do C.P.

Porém, com o devido respeito por opinião contrária, não é essa a interpretação que resulta do texto do referido AUJ do STJ.»

E acrescenta, «[h]á uma corrente na Jurisprudência que sustenta que a doutrina do citado AUJ não tem aplicação neste caso porque o crime de fraude fiscal só admite pena de prisão e não é possível cogitar a aplicação de uma pena de multa. Porém, temos alguma dificuldade em compreender essa posição quando em causa está a aplicação e interpretação do art.º 14º do RGIT que é transversal a todos os crimes tributários nas situações em que se equaciona ou não a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão, sendo que a alternatividade das penas (multa ou prisão) não altera o sentido da posição assumida pelo STJ em jurisprudência fixada.»

Independentemente desta divergência jurisprudência, mas assumindo a aplicação ao caso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para uniformização de jurisprudência n.º 8/2012, de 24-10, a que alude, considera o recorrente que tal aresto «não diz que em caso de não existir um juízo de prognose favorável ao pagamento da condição não se aplica o art.º 14º do RGIT, mas apenas enuncia que se tal acontecer o Juiz tem de afastar a aplicação da pena de prisão suspensa e optar pela aplicação de outra, pois o «o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio».

O AUJ não diz que o art.º 14º do RGIT pode ser derrogado e aplicar-se apenas as normas do Código Penal. O AUJ também não substituiu o termo “sempre” do preceito legal previsto no art.º 14º, n.º 1 do RGIT por “casuisticamente”, ou seja, só quando se concluísse que o arguido podia pagar a prestação tributária é que podia ser aplicada a condição e, por isso, o art.º 14º do RGIT. Esta linha de pensamento, na nossa modesta opinião, não está plasmada no AUJ.

Aliás, no texto do AUJ faz-se inclusivamente alusão à circunstância do Tribunal Constitucional por diversas vezes ter sido chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade do art.º 14º do RGIT e sempre o considerou constitucional, independentemente do arguido ter ou não condições económicas para proceder ao pagamento das vantagens indevidas.

Face ao exposto, o Tribunal “a quo” proferiu uma decisão contrária à jurisprudência fixada no AUJ.


***

Caso não se perfilhe a posição acima destacada, subsidiariamente se dirá que o art.º 14º do RGIT é uma lei especial em face às normas dos art.ºs 51º a 54º do C.P.

E, dispõe o art.º 14º do RGIT que: “1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”.

Por conseguinte, tendo o Tribunal “a quo” optado pela suspensão de execução da pena de prisão, deveria a mesma ficar obrigatoriamente condicionada ao pagamento pelos arguidos da totalidade das seguintes vantagens indevidas:

1. O arguido BB do valor de 89.135,78€ à Autoridade Tributária;

2. O arguido AA do valor de 465.860,67€ à Autoridade Tributária;

3. O arguido CC do valor de 112.779,25€ à Autoridade Tributária.»

Conclui, entendendo que «esta solução preconizada permite uma concordância prática das normas que regem a suspensão de execução da pena de prisão e condições a ela obrigatoriamente vinculadas e que permitem salvaguardar as necessidades de prevenção geral e especial, seguindo critérios de proporcionalidade no momento em que é determinada a pena e também durante a sua execução – cf. art.ºs 13º e 14 do RGIT, art.ºs 40º, 50º e 70º do C.P. e art.º 18º, n.º 2 da C.R.P.

De facto, esta posição apresenta as seguintes vantagens: não viola o art.º 14º do RGIT porque fixa o montante global e não o derroga em absoluto quando se trata de uma norma especial; dá aso ao entendimento constitucional de que ao arguido poderá vir melhor fortuna para satisfazer o prejuízo que causou ao Estado (o que não é possível se esse valor global não fosse aplicado na sentença de início ou fosse reduzido); fixa uma condição acessória exigindo por parte do arguido um esforço mínimo em reparar o dano causado ao erário público; confere plena eficácia a todas as finalidades da pena; mantém uma sã convivência entre os princípios constitucionais em rota de colisão (princípios da dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, legalidade e separação de poderes) e protela para momento final a avaliação culposa ou não do cumprimento das condições impostas.»

Desde já adiantamos que assiste razão ao recorrente, não porque se entenda que a jurisprudência do AUJ que o recorrente invocou é directa ou indirectamente aplicável ao caso concreto, mas porque a leitura que faz da relação entre a lei especial – art. 14.º do RGIT – e a lei geral – arts. 50.º e 51.º do CPPenal – é a que merece o nosso acolhimento.

A sentença recorrida, debruçando-se sobre esta questão, fez a seguinte análise (transcrição):
«Da suspensão da execução da pena de prisão
Atendendo às penas aplicada, importa decidir se a mesma deve ser ou não suspensa na sua execução.
A suspensão da pena de execução tem os seus pressupostos regulados no artigo 50.º do Código Penal.
Como é sabido, não são considerações de culpa que interferem na decisão que ora se pondera, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da prisão, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto em análise, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.
Por outro lado, é conveniente esclarecer que o que está em causa no instituto da suspensão da execução da pena não é qualquer “certeza”, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser conseguida. O tribunal deve correr o risco “prudencial” (fundado e calculado) sobre a manutenção do agente em liberdade. Existindo, porém, razões sérias para pôr em causa a capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pág. 345).
No referido juízo de prognose há que ter em conta a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias deste mesmo facto.

*

No caso sub judice, entendemos que atendendo à concreta factualidade provada, designadamente, relativamente ao arguido AA a ausência de antecedentes criminais à data da prática dos factos (como se explicou supra, as condenações registadas no certificado de registo criminal são posteriores à data da prática dos factos sub judice); relativamente ao arguido BB à antiguidade do antecedente criminal pela prática do crime de fraude fiscal (a decisão transitou em julgado em 2006), sendo os demais antecedentes criminais por crime diverso (exploração ilícita de jogo e condução sem habilitação legal) e relativamente ao arguido CC a ausência de antecedentes criminais pela prática de crime idêntico (são verdadeiros antecedentes criminais as condenações referidas em 64.1. pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, 64.2. pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, 64.3., pela prática de crime de desobediência, em pena de multa), conjugada com o tempo decorrido desde a prática dos factos (os factos sub judice ocorreram há seis anos), entendemos que é possível fazer um juízo de prognose favorável.
Sob a epígrafe Suspensão da execução da pena de prisão dispõe o artigo 14.º do RGIT:
1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado,
mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.
(…) [suprimiu-se texto que correspondia a repetição]
O Acórdão do STJ n.º 8/2012, de 24 de Outubro, fixa, por seu turno, jurisprudência nos seguintes termos: “No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia”.
A jurisprudência deste AUJ deverá ser aplicada também ao crime de fraude fiscal.
O montante a pagar ao Estado é elevado: o total de 89.135,78€ relativamente ao arguido BB, o total de 112.779,25€ relativamente ao arguido CC (sendo que aqui apenas computamos o valor da prestação tributária devida, desconsiderando o valor das declarações mensais inferiores a 15.000€ - sendo que estas constituindo facto ilícito, ou seja responsabilidade extracontratual ou aquiliana, apesar de não determinarem a condenação, serão devidas em sede de pedido de indemnização civil – veja-se a este propósito o acórdão de Uniformização da Jurisprudência nº 7/99, publicado no DR 179/99 SÉRIE I-A, de 1999-08-03) e o total de 465.860,67€ relativamente ao arguido AA.
Até numa situação de vida financeira desafogada seria difícil pagar as quantias em causa no prazo da suspensão. Ainda que suspendêssemos a execução das penas de prisão por cinco anos, o arguido BB teria de pagar mensalmente 1.485,59€, o arguido CC teria de pagar mensalmente 1.879,65€ e o arguido AA teria de pagar mensalmente 7.764,34€.
Ora, o arguido BB aufere 540,00€, beneficiando de ajudas de custo (subsidio de refeição, telemóvel, combustível) no valor de cerca de 300,00€ e paga pensão de alimentos aos filhos menores de idade no valor de 204,00€. O arguido CC está em situação de desemprego desde 2016 (e atualmente está preso pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez).
O arguido AA aufere cerca de 400€ mensais. São valores manifestamente insuficientes para assegurar a sua sobrevivência com um mínimo de dignidade.
Assim, não é possível fazer um juízo de prognose favorável de que os arguidos possam pagar a quantia durante a suspensão da execução da pena.
Resta concluir que não é possível realizar um juízo de prognose de razoabilidade da satisfação dessa condição legal por parte dos condenados, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura.
Pelo que, seguindo a jurisprudência do mencionado aresto não pode ser a suspensão da execução da pena de prisão condicionada ao pagamento previsto no artigo 14.º, nº 1, do RGIT.
*

Não obstante, tendo em atenção o que se expôs supra deve a pena de prisão ser suspensa na sua execução, desde que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, nos termos do disposto no artigo 50.º e 53º do Código Penal.
Assim, a suspensão da pena de prisão aplicada é acompanhada de regime de prova, nos termos do disposto no artigo 53.º, nº 3, do Código Penal devendo assentar o plano individual de readaptação social dos arguidos no reforço da consciencialização da importância da fiabilidade dos documentos e do pagamento das prestações tributárias devidas ao Estado e bem assim de colaborar com os Técnicos de reinserção Social, designadamente, recebendo-os e comunicando
alterações de morada e de contactos.
Deste modo, decide-se suspender a execução das penas de prisão aplicadas aos arguidos por igual período, sujeitas a regime de prova.»

Discordamos totalmente desta análise.

Nos termos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para uniformização de jurisprudência n.º 8/2012, de 24-10, «[n]o processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia».

Decorre do disposto no art. 445.º, n.º 3, do CPPenal que a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.

A jurisprudência fixada em causa respeita ao crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105.º, n.º 1, do RGIT e tem como pressuposto essencial a punição do referido ilícito penal, em alternativa, com pena de prisão ou com pena de multa.

Esta jurisprudência aplica-se, assim, directamente ao tipo legal em causa, e, aceita-se, indirectamente a outros crimes fiscais puníveis, em alternativa, com uma pena de prisão ou de multa.

Excluídas estão as situações, como a dos autos, em que o crime fiscal é punido apenas com pena de prisão, e onde não cabem os juízos de razoabilidade subjacentes ao referido AUJ.

Acresce que, salvo o devido respeito, contrariamente a algumas leituras que do mesmo se fazem, o AUJ que vimos referindo sublinha, como se deixou assinalado a negrito, que o art. 14.º, n.º 1, condiciona, obrigatoriamente, a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos.

No caso concreto deparamo-nos com a condenação dos recorridos pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 103.º e artigo 104.º, n.º 2, al. a), e ainda n.º 3 quanto a um deles, ambos do RGIT.

Tais crimes são punidos, quanto às pessoas singulares, exclusivamente com pena de prisão.

Perde, pois, sentido a pretendida aplicação da jurisprudência fixada invocada ao caso concreto, pressuposto primeiro da decisão recorrida e do recorrente.

Acompanhamos, neste tópico, a orientação jurisprudencial indicada pelo recorrente contra a sua própria posição, a saber, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto[3] de 27-06-2018, relatado por Jorge Langweg no âmbito do proc. n.º 312/16.1IDAVR.P1[4], e de 13-09-2023, relatado por Liliana de Páris Dias no âmbito do Proc. n.º 2111/21.0T9VFR.P1[5], e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22-10-2024, relatado por Fernando Chaves no âmbito do Proc. n.º 5/16.0IDBRG.G1[6].

No mais, isto é, quanto ao entendimento de que o disposto no art. 14.º, n.º 1, do RGIT implica a obrigatoriedade de condicionar a suspensão da execução da pena de prisão pena à condição de pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos e do montante dos benefícios indevidamente obtidos e de que, sendo lei especial, derroga a lei geral inscrita nos arts. 50.º e 51.º do CPenal, acompanhamos o entendimento do recorrente e a solução apresentada.

A este propósito salienta-se ainda o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 20-03-2024, relatado por Lígia Trovão no âmbito do Proc. n.º 31/22.0T9VFR.P1[7], e subscrito pela aqui relatora na qualidade de adjunta, e em cujo sumário se sintetiza o seguinte entendimento:
«I – O art. 14º do RGIT é lei especial relativamente às normas dos arts. 51º a 54º do Cód. Penal, que prevê uma especial e única modalidade de suspensão da execução da pena de prisão para os crimes fiscais (artºs 1º, 3 e 10 RGIT)
II – O RGIT recusou a possibilidade de a pena suspensa ser «singela» - isto é, sem condições / deveres / injunções / obrigações / proibições / regras de conduta e prescreveu no art 14º nº 1 do RGIT que a pena de substituição «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» fosse «… sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, dos montantes dos benefícios indevidamente obtidos …»
III - O AUJ do STJ nº 8/2012 de 12 de setembro de 2012 publicado no D.R. 1ª Série, nº 206, de 24/10/2012, veio dar um contributo para a interpretação do disposto no art. 14º do RGIT nas situações em que o tribunal, em face da opção entre a alternativa punitiva da pena de multa ou da pena de prisão, se decidiu pela aplicação da pena de prisão (e, restando-lhe ainda decidir sobre a sua modalidade) equacionar a aplicação da pena substitutiva da suspensão da execução da pena de prisão, para o que deverá dispor das informações sobre as condições pessoais, económicas e financeiras do condenado (mas não com o objetivo de apurar se ele tem, ou não, capacidade económica para pagar as quantias que ficaram por entregar ao Estado, seu titular, e legais acréscimos).
IV - O AUJ do STJ nº 8/2012 de 12 de setembro de 2012, ao estabelecer a necessidade do «juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura» não se está a referir à capacidade económica de o condenado ter ou não de pagar ao Estado a prestação tributária em dívida e acréscimos legais, já que por força do disposto no nº 1 do art. 14º do RGIT essa suspensão da execução da pena é sempre/obrigatoriamente condicionada ao pagamento da totalidade da quantia em dívida e legais acréscimos à margem da condição económica pessoal do arguido/responsável tributário, sem possibilidade de qualquer graduação ou de uma qualquer redução, mas antes a querer significar que, como se diz no texto do AUJ nº 8/2012, “a margem de liberdade do julgador situa-se no justo ponto e momento em que pode optar pela substituição, mas para o fazer tem de estar na posse do pleno das informações possíveis, de modo a bem fundamentar a opção. Feita a escolha, a adoção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é impor a subordinação ao pagamento. Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha de pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio, não foi tida então em consideração e tomada como boa solução. Por último, o julgador sempre terá uma palavra a dizer sobre o prazo de pagamento, para mais no âmbito de uma norma especial”.
V – É, por isso, manifestamente ilegal, a formulação pelo arguido, condenado como autor material de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. pelos arts. 107º ex vi do art. 105º nº 1 do RGIT, de qualquer pedido de redução, para montante inferior ao das quantias em dívida à Segurança Social e legais acréscimos, como condicionante da suspensão da execução da pena de prisão aplicada na sentença, por reporte aos seus rendimentos mensais e encargos familiares, por contrariar abertamente o texto da norma especial do nº 1 do art. 14º do RGIT que condiciona essa suspensão ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais (…)”

Este foi também o entendimento que esta Relação do Porto assumiu no âmbito do Proc. n.º ... a que se alude no ponto 62. dos factos provados, onde são arguidos alguns dos aqui arguidos, sintetizando-se no respectivo sumário o entendimento de que «[a] suspensão da execução da pena de prisão decretada ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias terá sempre que ficar condicionada ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos; não se trata de uma possibilidade, mas sim de uma obrigatoriedade imposta pelo legislador».

Com efeito, por acórdão de 09-04-2025, proferido em recurso no âmbito do apontado processo[8], e no qual a aqui relatora participou como adjunta, foi exposta a seguinte posição maioritária:
«Vem o arguido e recorrente OO alegar que a condição da suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado (o pagamento da quantia de €136.271,51 à Fazenda Nacional no prazo de cinco anos), é, face à sua situação económica e financeira (não aufere rendimentos regulares e efetua apenas trabalhos esporádicos como trolha), irrazoável, contra o que dispõe o artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal. Invoca o teor do acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012 e alega que, à luz desse teor, o acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, por não analisar esta questão. Invoca o princípio da dignidade humana consignado no artigo 1.º da Constituição.
Vejamos.
Este arguido e recorrente foi condenado, pela prática, em coautoria, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º e 104.º, n.º 2, do R.G.I.T., pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na respetiva execução por cinco anos, subordinada ao pagamento da quantia de €136.271,51 à Fazenda Nacional (devendo o pagamento da apontada quantia ser efetuado em duas prestações: metade da quantia quando se atingir metade do prazo de suspensão; a outra metade da quantia no termo do prazo de suspensão).
Quanto a esta questão, afirma-se na fundamentação do acórdão recorrido o seguinte:
“(…) Por via do acórdão de uniformização de jurisprudência nº8/2012, publicado no Diário da República n.º 206/2012, Série I de 2012-10-24, veio o Supremo Tribunal de Justiça decidir que: “No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.” Sucede que a referida jurisprudência tem suscitado divergências na doutrina e na jurisprudência, entendendo uns que nas hipóteses em que se concluir que o condenado não tem meios suficientes para o pagamento devido ao Estado não deve ser condicionada a suspensão da pena a tal obrigação (neste sentido Ac. TRE de 13-07- 2017, p. 349/13.2TASSB.E1, Ac. TRL de 18.02.2016, p. 949/14.3IDLSB.L1-9, Ac. TRG de 25.02.2019, p. 64/15.2T9VNC.G1, in www.dgsi.pt) e outros que não sendo possível concluir pela viabilidade do pagamento por insuficiência de bens do condenado deve ser ponderada a impossibilidade da aplicação do instituto da suspensão da pena de prisão (neste sentido vide Ac. TRL de 05.06.2018, p. 3912/12.5T3SNT.L1-5, in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/8EE15F473D90B9D3802582C6002BBE95).
De realçar que o Tribunal Constitucional se tem pronunciado pela não inconstitucionalidade do art. 14º do RGIT na medida em que por via de tal normativo se condiciona obrigatoriamente a suspensão da execução da pena ao pagamento das quantias em dívida (vide inter alia, Acórdãos n.ºs 335/03, 376/03, 500/05, 543/06, 29/07, 61/07, 556/09, 587/09 e 237/11, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.) Por outro lado, cumpre assinalar que, de acordo com certa jurisprudência, se entende que aquele acórdão de fixação de jurisprudência em nenhum momento afirma, nem dele se pode extrair que, caso o arguido não tenha capacidade económica para pagar as quantias em dívida ao Estado, a pena de prisão deva ficar suspensa sem a condição imposta pelo art. 14º, nº 1, do RGIT, ou que esta condição deva limitar-se ao pagamento de quantia inferior à devida, dentro das possibilidades económicas do arguido (cfr. ac. TRL de 05.06.2018, p. 3912/12.5T3SNT.L1-5, in www.dgsi.pt). Diversamente, entende outra parte da jurisprudência ser possível suspender a pena de prisão sem condição de pagar as quantias em dívida ao Estado ou com a condição de pagar apenas parcialmente. Neste sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-02-2019, p. 64/15.2T9VNC.G1, in www.dgsi.pt, no qual se decidiu:
“I) Dispõe o artigo 14.º, n.º 1 do RGIT que: “A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”.
II) Porém, tal dispositivo legal deve ser interpretado conjugadamente com o artigo 51º, n.º 2, do Código Penal e dai que nos crimes tributários, tal como acontece com os restantes crimes, só deverá ser imposto o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão quando do juízo de prognose realizado resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida.
III) Em vez de se estabelecer uma correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão, a interpretação conjugada do citado art. 14 com o disposto no art. 51º,nº2, do C.Penal, de acordo com o qual “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”, permite que o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão só seja imposto quando do juízo de prognose realizado resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida.
IV) Tal dever de pagamento também não tem de ser na totalidade do devido, podendo ser objecto de graduação/redução.” Há ainda que entenda que o juízo de prognose de razoabilidade (acerca da plausibilidade da satisfação da condição de pagamento por parte do condenado) não se aplica no caso do respetivo crime ser punível somente com pena de prisão.
Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.04.2015, p. 290/07.8IDPRT-P1, in www.dgsi.pt, no qual se considerou que: “a necessidade do juízo de prognose a que se refere o AFJ só se verifica quando o crime tributário em questão é punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.) ou outra pena não privativa da liberdade (neste sentido, vd. Ac.R.Porto de 08.10.2014). Quer dizer, a doutrina deste acórdão não permite ultrapassar a obrigatoriedade da sujeição da suspensão de execução da pena de prisão ao pagamento das quantias devidas, nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T. Tal decorre, clara e inequivocamente, do próprio texto da parte dispositiva do acórdão e da sua fundamentação.” (…)
Partilhando do entendimento supra referido no sentido de que quando o crime em causa somente é punido com pena de prisão não há lugar ao juízo de prognose de razoabilidade sobre a capacidade do cumprimento da condição de pagamento pelo condenado, conclui-se que a pena de prisão deverá ser suspensa na sua execução sob condição de pagamento das quantias indevidamente obtidas através da actuação criminosa. Com efeito, a imposição desta condição de suspensão encontra-se subtraída ao critério do julgador, antes traduzindo uma opção de política legislativa que terá ponderado objectivos de interesse público imanentes ao pagamento dos impostos. Por outro lado, entende-se que falta de condicionamento da suspensão da pena a pagamento, além de ilegal, não satisfaria as finalidades da punição pela sua aptidão de criar um sentimento de impunidade quer da sociedade, quer do arguido por afinal, ainda que não disponha de meios económicos, efetivamente beneficiou da referida quantia.
(…)”
Considera, assim, o acórdão recorrido que a imposição de uma obrigação de pagamento como condição de suspensão da execução da pena de prisão, ao abrigo do disposto no referido artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, que à partida parecerá impossível ou inexigível, não viola os princípios da proporcionalidade e da culpa, pois o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão; sempre pode haver regresso de melhor fortuna; e a revogação da suspensão não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição (como decorre do artigo 55.º do Código Penal).
Mais recentemente veio o Tribunal Constitucional a pronunciar-se novamente sobre este tema, - cfr. ac. TC nº 546/2024, no processo nº 1132/2023 disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20240546.html, onde voltou a decidir: “Não julgar inconstitucional o artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05.06, interpretado no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão é sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária, independentemente da ponderação das circunstâncias do caso concreto”.
Para tanto, fundamentou esse Venerando Tribunal que, e transcreve-se:
“Ora, este Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar, em face de diversos casos, pela não inconstitucionalidade do artigo 14.º do RGIT. Desde logo, no Acórdão n.º 256/2003, em que o problema foi apreciado em face da jurisprudência constitucional sobre questões afins, o Tribunal Constitucional concluiu (cf. II – Fundamentação, n.º 10.8 e seguintes):
«(…) [P]odendo a realização dos fins do Estado – dependente do cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do artigo 51º, n.º 2, do Código Penal (supra, 10.6.), não têm necessariamente de assumir preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida. Dito de outro modo, o objectivo de interesse público que preside ao dever de pagamento dos impostos justifica um tratamento diferenciado face a outros deveres de carácter patrimonial e, como tal, uma concepção da suspensão da execução da pena como medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente (sobre a suspensão da execução da pena como medida que «permite cuidar ao mesmo tempo do delinquente e da vítima», veja-se Manso-Preto, “Algumas considerações sobre a suspensão condicional da pena”, in Textos, Centro de Estudos Judiciários, 1990-91, p. 173).
10.9. As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais, assume o interesse em arrecadar impostos.
Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o fazer.
Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido – pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente efectivamente estava impossibilitado de cumprir (supra, 10.5.) –, não altera, todavia, a conclusão a que se chegou.
Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a possibilidade de suspensão da execução da pena.
Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de cumprimento impossível.
Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora, nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei – bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito, indiferente.
Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.
A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever (cfr. artigo 51º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação.
Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14º do RGIT, a revogação é sempre uma possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (supra, 10.4.).
Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, e no artigo 14º do RGIT.»
Ora, este juízo é inteiramente transponível para o caso dos autos. Aliás, o recorrente não aduz qualquer argumento que motive a reapreciação desta posição, que foi reafirmada nos Acórdãos n.os 335/2003, 376/2003 e em diversas pronúncias posteriormente adotadas por este Tribunal (v., entre outros, os Acórdãos n.os 309/2006, 327/2008, 587/2009 e, mais recentemente, as Decisões Sumárias n.os 312/2011, 522/2012, 68/2015 e 606/2016).
[…]”.
13. Em síntese conclusiva, entende-se que estas duas interpretações normativas são constitucionalmente conformes, como se considerou nos dois acórdãos citados (e noutras decisões deste Tribunal aí mencionadas), pelos fundamentos aí constantes e para os quais, por se concordar com os mesmos e com as respetivas decisões finais, ora se remete, improcedendo este recurso na parte em que o seu objeto foi conhecido.”.
Ora, temos assim como perfeitamente ajustada e conforme ao pensamento Constitucional, sem qualquer violação do referido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, que a suspensão da execução da pena de prisão decretada ao abrigo do disposto no artigo 14º nº 1 do RGIT, terá sempre, que ficar condicionada ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos, e caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantias atá ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
Não se trata de uma possibilidade, mas sim de uma obrigatoriedade imposta pelo legislador.
Assim, nenhuma censura nos merece o acórdão recorrido nesta parte.»

Assim, embora por razões parcialmente distintas, chegamos à mesma solução do recorrente: a suspensão da execução das penas de prisão fixadas aos arguidos recorridos nestes autos deve ficar condicionada ao pagamento à Autoridade Tributária, no período da suspensão, do montante correspondente aos benefícios indevidos obtidos pelos mesmos[9], ou seja:

- O valor de € 89.135,78 quanto ao arguido BB;

- O valor de € 465.860,67 quanto a arguido AA; e

- O valor de € 112.779,25 quanto ao arguido CC.

De igual modo, mostra-se pertinente o pedido de recorrente de que seja «fixada uma condição mínima e acessória ao referido pagamento integral\total (cf. art.º 50º, n.ºs 2 e 3 do C.P.) [(…)] nos seguintes termos:

1. o arguido BB entregar à AT a quantia mínima de 100,00€ por mês durante o período da suspensão de execução da pena de prisão por conta do valor total (do benefício indevido), juntando aos autos esses comprovativos mensais (tendo em conta que: “Profissionalmente, BB é gerente da empresa de limpeza que constituiu em julho de 2023 com a sua ex-companheira designada de “G...”, com atividade principal no âmbito de limpeza geral em edifícios. (…) Atualmente aufere 540,00€, beneficiando de ajudas de custo (subsidio de refeição, telemóvel, combustível) no valor de cerca de 300,00€. Paga pensão de alimentos aos filhos menores de idade no valor de 204,00€.”);

2. o arguido AA entregar à AT a quantia mínima de 100,00€ por mês durante o período da suspensão da execução da pena de prisão por conta do valor total (do benefício indevido), juntando aos autos esses comprovativos mensais (tendo em conta que: “desde agosto de 2019 e até junho de 2023 foi sócio maioritário (90%) juntamente com GG na “E..., SA.”. De então para cá, dedica-se à venda de automóveis usados e colabora com empresários do ramo da cortiça na compra e venda de rolhas, de onde vem retirando proventos que necessita para o seu sustento e da sua família. Aufere cerca de 400€ mensais. A 22/09/2024 requereu a pensão de velhice, contando que mesma lhe venha a ser atribuída brevemente, no montante de 545€ mensais.

O cônjuge não dispõe de rendimentos próprios. Embora estando divorciado, vive desde o início do matrimónio com a ex-mulher e com a filha de ambos, maior de idade, no piso inferior de habitação pertencente à mãe da ex-mulher”);

3. o arguido CC entregar à AT a quantia mínima de 50,00€ por mês durante o período da suspensão da execução da pena de prisão por conta do valor total (do benefício indevido), juntando aos autos esses comprovativos mensais (tendo em conta que no estabelecimento prisional poderá exercer uma ocupação profissional com compensação monetária e a breve trecho será libertado e poderá exercer uma atividade profissional).»

Relativamente ao arguido CC acrescenta-se que já deverá estar em liberdade, considerando que já decorreu o período de um ano de prisão que se consignou no ponto 63 da matéria de facto provada (CC deu entrada no Estabelecimento Prisional ... (E.P.....) a 14/05/2024, à ordem do processo nº ... do Juízo Local Criminal de ... – Juiz 1, no qual foi condenado na pena de 1 ano de prisão pela autoria dos crimes de desobediência e condução sem habilitação legal).

Esta solução, como bem argumenta o recorrente, «permite uma concordância prática das normas que regem a suspensão de execução da pena de prisão e condições a ela obrigatoriamente vinculadas e que permitem salvaguardar as necessidades de prevenção geral e especial, seguindo critérios de proporcionalidade no momento em que é determinada a pena e também durante a sua execução – cf. art.ºs 13º e 14 do RGIT, art.ºs 40º, 50º e 70º do C.P. e art.º 18º, n.º 2 da C.R.P.

De facto, esta posição apresenta as seguintes vantagens: não viola o art.º 14º do RGIT porque fixa o montante global e não o derroga em absoluto quando se trata de uma norma especial; dá aso ao entendimento constitucional de que ao arguido poderá vir melhor fortuna para satisfazer o prejuízo que causou ao Estado (o que não é possível se esse valor global não fosse aplicado na sentença de início ou fosse reduzido); fixa uma condição acessória exigindo por parte do arguido um esforço mínimo em reparar o dano causado ao erário público; confere plena eficácia a todas as finalidades da pena; mantém uma sã convivência entre os princípios constitucionais em rota de colisão (princípios da dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, legalidade e separação de poderes) e protela para momento final a avaliação culposa ou não do cumprimento das condições impostas.»

Assim, em face do exposto, e sem necessidade de maior argumentação, deve ser concedido provimento ao recurso, não obstante a parcial divergência quanto aos fundamentos que subjazem a tal decisão.


*


III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder total provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, alterando a decisão recorrida:

a) - Suspende-se a execução da pena de 3 (três) anos de prisão fixada ao arguido AA por igual período, sujeita:

a1) - a regime de prova, o qual deverá assentar no reforço da consciencialização da importância da fiabilidade dos documentos e do pagamento das prestações tributárias devidas ao Estado e bem assim de colaborar com os Técnicos de reinserção Social, designadamente, recebendo-os e comunicando alterações de morada e de contactos;

a2) – à condição de pagar à Autoridade Tributária, durante o período da suspensão da execução da pena, o montante de € 465 860,67 (quatrocentos e sessenta e cinco mil oitocentos e sessenta euros e sessenta e sete cêntimos), devendo entregar mensalmente àquela entidade, pelo menos, a quantia de € 100 (cem euros) por conta do valor global da condição, a comprovar mensalmente por documento nos autos;

b) - Suspende-se a execução da pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão fixada ao arguido BB por igual período, sujeita:

b1) - a regime de prova, o qual deverá assentar no reforço da consciencialização da importância da fiabilidade dos documentos e do pagamento das prestações tributárias devidas ao Estado e bem assim de colaborar com os Técnicos de reinserção Social, designadamente, recebendo-os e comunicando alterações de morada e de contactos;

b2) – à condição de pagar à Autoridade Tributária, durante o período da suspensão da execução da pena, o montante de € 89 135,78 (oitenta e nove mil cento e trinta e cinco euros e setenta e oito cêntimos), devendo entregar mensalmente àquela entidade, pelo menos, a quantia de € 100 (cem euros) por conta do valor global da condição, a comprovar mensalmente por documento nos autos;

c) - Suspende-se a execução da pena de 2 (dois) anos de prisão fixada ao arguido CC por igual período, sujeita:

c1) - a regime de prova, o qual deverá assentar no reforço da consciencialização da importância da fiabilidade dos documentos e do pagamento das prestações tributárias devidas ao Estado e bem assim de colaborar com os Técnicos de reinserção Social, designadamente, recebendo-os e comunicando alterações de morada e de contactos;

c2) – à condição de pagar à Autoridade Tributária, durante o período da suspensão da execução da pena, o montante de € 112 779,25 (cento e doze mil setecentos e setenta e nove euros e vinte e cinco cêntimos), devendo entregar mensalmente àquela entidade, pelo menos, a quantia de € 50 (cinquenta euros) por conta do valor global da condição, a comprovar mensalmente por documento nos autos;

d) – No mais, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.

Sem tributação (art. 522.º, n.º 1, do CPPenal).

Notifique.

Porto, 10 de Julho de 2025

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)

Maria Joana Grácio

Pedro M. Menezes

Madalena Caldeira

_____________________________________________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Foram suprimidas as notas-de-rodapé por facilidade de exposição.
[3] Os primeiros acessíveis in www.dgsi.pt. e o último in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRG:2024:5.16.0IDBRG.G1.13.

[4] Em cujo sumário se afirma que «[o] acórdão de fixação de jurisprudência nº 8/2012 não é diretamente aplicável a casos de condenação por crime de fraude fiscal p. e p. pelos artigos 103º e 104º, nº2, als. a), do R.G.I.T.»

[5] Em cujo sumário se pode ler que «[a] necessidade do juízo de prognose a que se reporta o acórdão de uniformização de jurisprudência nº 8/2012 só se verifica quando o crime tributário em questão é punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução, nos termos do artigo 14º, nº 1, do RGIT) ou outra pena não privativa da liberdade. Esta jurisprudência, diretamente aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, do R.G.I.T. – crime punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução) ou pena de multa -, é também aplicável a outros crimes tributários puníveis com pena de prisão ou pena de multa.”».
[6] Aí se defendendo que «[a] necessidade do juízo de prognose a que se refere o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2012 não se verifica quando ao crime tributário corresponde apenas pena de prisão, como é o caso da fraude fiscal qualificada cometida por pessoas singulares.»
[7] Acessível in www.dgsi.pt.
[8] Neste TRP com o n.º 342/16.3IDAVR.P1, encontrando-se já publicado e acessível in www.dgsi.pt.
[9] Os valores que o recorrente indicou relativamente ao recorrido BB correspondem aos montantes obtidos com a prática do crime, desconsiderando o valor das declarações mensais inferiores a € 15 000.
Poderíamos questionar se os valores não devem coincidir com os fixados no pedido de indemnização civil, e, no fundo, se caberá ao Tribunal ad quem ultrapassar esse limite e ir além da pretensão apresentada, caso assim o entenda?

A resposta, embora não resulte de forma directa da lei, parece-nos que só pode ser negativa, pois só assim se assegura o adequado cumprimento da proibição da reformatio in pejus, que surge aqui não de forma directa mas ainda assim dentro do sentido da norma, já que o objecto do recurso foi limitado pelas conclusões da motivação onde surge clara a fixação concreta da condição de suspensão da execução das penas, medidas que o recorrente entende que salvaguardam e são suficientes para garantir o ius puniendi do Estado, devendo considerar-se que quanto ao demais que fica de fora desta delimitação recursiva há ocorrência de trânsito em julgado da decisão da 1.ª Instância, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso. Por outro lado, este entendimento é a única forma de garantir aos arguidos um julgamento justo e equitativo, tal como delimitado pelo Ministério Público para correcção do erro de direito que apresentou, por não serem confrontados com uma decisão surpresa do Tribunal de recurso perante a qual não se defenderam e não puderam argumentar.

É esta a posição que foi assumida no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-02-2011 (relatado por Paulo Barreto no âmbito do Proc. n.º 13/10.4S3LSB.L1-5, acessível in www.dgsi.pt), que aqui acolhemos e seguimos de perto, em cujo sumário se firmou o seguinte entendimento:

«I Se após condenação em pena de multa, o Ministério Público, em recurso, pede de forma expressa pena de prisão de cinco meses, suspensa na sua execução, o Tribunal da Relação não pode condenar em pena mais gravosa para o arguido;

II Nestes casos, de recurso interposto pelo Ministério Público, em que o recorrente concretiza de forma expressa a pena que pretende seja aplicada ao arguido, este tem a expectativa legítima de não ver a pena agravada para além do limite expressamente pedido pela entidade que representa a acusação, não sendo a solução contrária, de se admitir que o arguido possa ser surpreendido pelo Tribunal da Relação com pena mais gravosa do que a pedida pelo Ministério Púbico, compatível com um processo equitativo, entendido como um processo equilibrado, justo e leal;

III Tendo em conta estes três factores – (i) caso julgado parcial, (ii) violação da reformatio in pejus por via indirecta, (iii) expectativa legítima e confiança num processo leal (frustradas por decisões surpresa) – não pode o tribunal de recurso, num caso como o dos autos, ultrapassar o limite proposto pelo Ministério Público, e que constitui, afinal, o âmbito do recurso.»

Sobre a questão da proibição da reformatio in pejus, embora em contexto diverso, podem ver-se os acórdãos do STJ de 14-09-2011, relatado por Armindo Monteiro no âmbito do Proc. n.º 38/08.6TALRA.C1.S1 e de 13-07-2017, relatado por Maia Costa no âmbito do Proc. n.º 240/12.0PCSTB.S1, ambos acessíveis in www.dgsi.pt).