Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
875/24.8PDVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA ÂNGELA REGUENGO DA LUZ
Descritores: DADOS RECOLHIDOS POR GPS
INTERVENÇÃO DO JUIZ
Nº do Documento: RP20250430875/24.8PDVNG-A.P1
Data do Acordão: 04/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Com o GPS “os dados de localização existem porque o veículo está equipado com um sistema localizador de origem (ou mandado instalar pelo seu proprietário) visando acautelar a prontidão de socorro urgente e eficiente em caso de acidente e que, por isso mesmo, permitirá (pelo menos em tese) conhecer o paradeiro do mesmo.
II - Consequentemente, tais dados - à semelhança de outros armazenados nos equipamentos de segurança e ajuda ao condutor, como por exemplo a Via Verde - poderão ser obtidos pelo próprio ofendido, no âmbito dos direitos que lhe assistem enquanto dono da viatura, sem necessidade de prévia autorização judicial. É ele o titular dos dados não lhe podendo ser negado o direito de acesso.
(…)
III - Porém a intervenção do juiz é exigível sempre que esteja em causa a junção a um processo penal de dados recolhidos por um GPS instalado em veículo pelo respetivo proprietário, entregues por este a pedido da Polícia Judiciária para fins de investigação criminal. “Não havendo intervenção do juiz, retira-se a possibilidade de ponderação judicial da proporcionalidade da restrição do direito fundamental previsto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, de onde resulta a violação do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental, porquanto inexiste o mecanismo processual destinado a tornar o juízo de proporcionalidade atuante, bem como processualmente efetivo e consequente.».
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 875/24.8PDVNG-A.P1




Acórdão deliberado em conferência na 1.ª secção do Tribunal da Relação do Porto


I - RELATÓRIO

No âmbito do inquérito supra referenciado, a correr termos pela ... do DIAP de Vila Nova de Gaia, dos Serviços do Ministério Público da Procuradoria da República da Comarca do Porto, por factos que, abstractamente considerados, poderão integrar o crime de furto qualificado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. a), do Cód. Penal, relativamente ao veículo automóvel, Peugeot, modelo ..., com a matrícula ..-ZZ-.., pertencente à empresa “A..., Lda.”, o Ministério Público requereu ao Juiz de Instrução Criminal respectivo que se ordenasse a notificação do operador de telecomunicações Vodafone para fornecer a geolocalização do cartão ...99, desde o dia 09/12/2024, 20:00 horas, às autoridades policiais para apreensão imediata do veículo, nos termos do art. º178 n. º1, 2, 3, 5 e 6 do C.P.Penal.

Por despacho datado de 17/02/2025, tal pretensão foi indeferida por entender o juiz de instrução que o pretendido teria que ser requerido ao abrigo da Lei n. º32/2008 de 17/07

Inconformado com o decidido o Ministério Público interpôs recurso cuja motivação finaliza com as seguintes conclusões (transcrição):

“..(…). 1) O M°P° promoveu ao MM° Juiz que ordenasse à operadora de telecomunicações Vodafone que fornecesse a geolocalização do veiculo com matricula ..-ZZ-.. (furtado), cujo GPS se encontra associado ao numero ...99, porquanto a referida operadora recusa fornecer tal dado ao ofendido, alegando o "sigilo" que lhe é imposto pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados;

2) O MM° Juiz indeferiu tal promoção, com o fundamento que, pretendendo o M°P° o fornecimento da localização celular do número de telemóvel, desde o dia 09/12/2024 até à presente data, deve esse pedido seguir o regime processual previsto na Lei 32/2008, algo que não se mostra demonstrado nos presentes autos ter sucedido.

3) É pois deste despacho, de fls. 15, que o M°P° interpõe recurso, com os seguintes fundamentos;

a) Os dados de localização, inseridos no âmbito de tráfego, são os dados tratados numa rede de comunicações eletrónicas que indicam a posição geográfica do equipamento terminal de um assistente ou de qualquer utilizador de um serviço de comunicações eletrônicas acessíveis ao publico. Mas só cabem dentro dos dados de localização, os autênticos dados de comunicação ou de trafego, isto é, aqueles que se reportam a comunicações efetivamente realizadas ou tentadas/falhadas entre pessoas;

b) Ora, o regime estabelecido pela Lei 32/2008, que fundamentou o despacho de indeferimento agora sob censura aplica-se à obtenção de dados correspondentes a comunicações já ocorridas e que se encontram preservados ou conservados, o que não está em causa nos presentes autos;

c) O que está em causa nos presentes autos é a possível localização de um veículo furtado, através de um mecanismo ligado a um telemôvel, pertencente a urna operadora de telecomunicações móvel, que recusa fornecer esse dado ao seu cliente, com o pretexto, que sendo um dado de trafego, nos termos do RGPD, sô fornecerá esses dados a pedido de Autoridade Judiciária (Juiz).

d) Pelo que, as regras da Lei que fundamentou o despacho sob censura não se aplicam, mas antes o disposto no art.º 187 n°1 e n°4 do CPP;

e) Que o MM° Juiz violou ao não deferir a pretensão do M°P°;

f) Assim, deve tal despacho ser revogado e ordenada a sua substituição no sentido de ordenar à VODAFONE que forneça para os autos os dados pretendidos, imprescindíveis à investigação.

Pois, assim, se fará Justiça!”

O M.mo JIC determinou os actos que deviam instruir o apenso de recurso e ordenou a subida dos autos a este Tribunal ad quem.

Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.

Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.


***

II – FUNDAMENTAÇÃO

Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [v., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, BMJ n.º 458, pág. 98].

Assim, no caso em apreço, a única questão suscitada é a de saber qual o regime jurídico ao abrigo do qual deve ser formulada a solicitação de acesso ao sistema de GPS instalado no veículo furtado por força de contrato celebrado entre uma entidade privada (Vodafone) e o ofendido (proprietário do veículo furtado), o mesmo é dizer – da verificação dos requisitos para a solicitação à operadora competente dos eventos de rede referentes ao sistema GPS de modo a localizar uma viatura furtada.


***

O Ministério Público, em sede do requerimento alvo do teor do despacho recorrido, havia sustentado a sua pretensão nos seguintes termos (transcrição).

Localização através da tecnologia GPS (Global Positioning System)

Entre as 19:20 horas do dia 9/12/2024 e as 8:00 horas do dia 10/12/2024, desconhecidos e por meio não concretamente apurado, apropriaram-se do veículo da marca “PEUGEOT”, modelo ..., com a matrícula ..-ZZ-.. e n.º chassis ...30, no valor de 20.000 Euros, bem como dos bens existentes no seu interior (os cabos de carregamento do veículo, uma carteira de cor azul em pele de marca Emidio Tucci, no valor aproximado de 30 (trinta) Euros, um Cartão de Cidadão, um Cartão de Débito e um Cartão de Crédito, ambos do Banco Montepio, um Par de óculos de marca Mont Blanc no valor de 190 Euros, propriedade de AA e ainda mochila de cor cinza com um computador portátil de marca HP e respetivos componentes, um capacete e calçado de proteção, da propriedade da Empresa denominada A...), que se encontrava aparcado na Rua ..., ..., em ..., ..., incorrendo na prática de um crime de furto qualificado previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 202.º, al. a) e 204.º, n.º 1, al. a) e b) do Código Penal, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.

O participante desconhece quem praticou os factos participados, não foram colhidos vestígios com valor identificativo, não são conhecidas testemunhas dos factos, não foi possível a recolha de imagens de videovigilância e o veículo continua desaparecido, mas possui sistema de localização de veículos, associado ao cartão da Vodafone ...99 (conforme aditamento n.º 2 – RC ...74 de 15/01/2025), podendo-se, só por tal via, localizar-se, apreender-se e restituir-se o veículo ao seu proprietário.

Acresce que, quem se encontrar na posse do referido veículo, atenta a sua origem ilícita, será ou o agente do crime de furto qualificado ou do crime de recetação, sendo como tal suspeito, a individualizar (pessoa concreta, passível de individualização).

Estão verificados os pressupostos para a obtenção de dados de localização celular, nomeadamente, estão preordenadas à perseguição dos chamados crimes do catálogo [artigo 187.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal], existe suspeita da prática do crime e tal meio de obtenção de prova respeita, in casu, o princípio de subsidiariedade (não há outro meio eficaz, menos gravoso, para alcançar o resultado probatório em vista), reveste grande interesse para a descoberta da verdade e para a prova e está circunscrita ao tempo em causa e ao(s) suspeito(s) em causa (detentor do veículo).

Nessa conformidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 187.º, n.º 1, a), 189.º, n.º 2 e 269.º, nº 1, e) do Código de Processo Penal e ainda dos artigos 18.º, n.º 1, al. b), n.º 2 e 3 da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, promove-se que se ordene a notificação do operador de telecomunicações VODAFONE para, fornecer a geolocalização do cartão ...99, desde 9/12/2024, 20:00 horas, às autoridades policiais para a apreensão imediata do veículo da marca veículo da marca “PEUGEOT”, modelo ..., com a matrícula ..-ZZ-.. e n.º chassis ...30, nos termos do artigo 178.º, n.º 1, 2, 3, 5 e 6 do Código de Processo Penal.

Para o efeito, remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal.(…)”.


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3. Por seu turno, o teor da decisão recorrida é o seguinte:

“Ressalvado o devido respeito por diferente opinião, aquilo que parece ser objectivo do Ministério Público é o fornecimento da localização celular do número de telemóvel indicado na promoção que antecede, desde o dia 09/12/2024 até à presente data.

Afigura-se, assim, a este Tribunal de Instrução Criminal que o peticionado pelo Ministério Público deve seguir o regime processual previsto na Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, algo que não se mostra demonstrado nos presentes autos ter sucedido.

Assim sendo, e pelo menos por agora, vai indeferido o promovido pelo Ministério Público.(…).”


*

Apreciação do objecto do recurso.

Tendo presentes, quer a pretensão deduzida pelo Ministério Público no seu requerimento alvo da decisão recorrida, assim como subsequentes conclusões do recurso, verificamos que nestas últimas o Ministério Público defende que o regime estabelecido pela Lei 32/2008 que fundamentou o despacho recorrido de indeferimento aplica-se tão somente às comunicações já ocorridas e que se encontram preservados ou conservados, o que não está em causa nestes autos. Porque o que se pretendia com o requerimento alvo do despacho recorrido era a localização do veículo furtado através do mecanismo de GPS no mesmo existente dada a recusa da operadora Vodafone a fornecer esse dado de tráfego (de localização) ao proprietário do veículo e seu cliente, alegando que, tratando-se de uma violação do sigilo, carece de autorização judicial.

Entende o Ministério Público que, perante a recusa da operadora de fornecer os dados ao seu próprio cliente (sendo certo que foi contratada por este para lhe fornecer tais dados, entre outros), e porque não se coloca aqui qualquer questão de privacidade pois é aquele proprietário que pretende o acesso a tais dados para os fornecer aos autos, o regime jurídico atendível é o invocado no seu requerimento alvo do despacho recorrido.

Cumpre assim apreciar a seguinte questão:

a de saber qual o regime jurídico ao abrigo do qual deve ser formulada a solicitação de acesso ao sistema de GPS instalado no veículo furtado por força de contrato celebrado entre uma entidade privada (Vodafone) e o ofendido (proprietário do veículo furtado), o mesmo é dizer - verificação dos requisitos para a solicitação à operadora competente dos eventos de rede referentes ao sistema GPS de modo a localizar uma viatura furtada.

Para tanto importa chamar à colação os preceitos legais do Código de Processo Penal à luz dos quais o Ministério Público solicitou autorização judicial para aceder aos dados de geolocalização acessíveis através do sistema GPS instalado no próprio veículo furtado ao abrigo de um contrato de natureza civil e particular (sublinhados da autoria da ora relatora):

Artigo 187.º

Admissibilidade

1 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:

a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;

b) Relativos ao tráfico de estupefacientes;

c) De detenção de arma proibida e de tráfico de armas;

d) De contrabando;

e) De injúria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através de telefone;

f) De ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo; ou

g) De evasão, quando o arguido haja sido condenado por algum dos crimes previstos nas alíneas anteriores.

2 - A autorização a que alude o número anterior pode ser solicitada ao juiz dos lugares onde eventualmente se puder efectivar a conversação ou comunicação telefónica ou da sede da entidade competente para a investigação criminal, tratando-se dos seguintes crimes:

a) Terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada;

b) Sequestro, rapto e tomada de reféns;

c) Contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título iii do livro ii do Código Penal e previstos na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário;

d) Contra a segurança do Estado previstos no capítulo i do título v do livro ii do Código Penal;

e) Falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda prevista nos artigos 262.º, 264.º, na parte em que remete para o artigo 262.º, e 267.º, na parte em que remete para os artigos 262.º e 264.º do Código Penal, bem como contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento e uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, previstos no artigo 3.º-A e no n.º 3 do artigo 3.º-B da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro;

f) Abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.

3 - Nos casos previstos no número anterior, a autorização é levada, no prazo máximo de setenta e duas horas, ao conhecimento do juiz do processo, a quem cabe praticar os actos jurisdicionais subsequentes.

4 - A intercepção e a gravação previstas nos números anteriores só podem ser autorizadas, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, contra:

a) Suspeito ou arguido;

b) Pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou

c) Vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido.

5 - É proibida a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objecto ou elemento de crime.

6 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações são autorizadas pelo prazo máximo de três meses, renovável por períodos sujeitos ao mesmo limite, desde que se verifiquem os respectivos requisitos de admissibilidade.

7 - Sem prejuízo do disposto no artigo 248.º, a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar, se tiver resultado de intercepção de meio de comunicação utilizado por pessoa referida no n.º 4 e na medida em que for indispensável à prova de crime previsto no n.º 1.

8 - Nos casos previstos no número anterior, os suportes técnicos das conversações ou comunicações e os despachos que fundamentaram as respectivas intercepções são juntos, mediante despacho do juiz, ao processo em que devam ser usados como meio de prova, sendo extraídas, se necessário, cópias para o efeito.

Artigo 189.º

Extensão

1 - O disposto nos artigos 187.º e 188.º é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes.

2 - A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo.

Artigo 18.º da Lei 109/2009 de 15/09

Intercepção de comunicações

1 - É admissível o recurso à intercepção de comunicações em processos relativos a crimes:

a) Previstos na presente lei; ou

b) Cometidos por meio de um sistema informático ou em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico, quando tais crimes se encontrem previstos no artigo 187.º do Código de Processo Penal.

2 - A intercepção e o registo de transmissões de dados informáticos só podem ser autorizados durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público.

3 - A intercepção pode destinar-se ao registo de dados relativos ao conteúdo das comunicações ou visar apenas a recolha e registo de dados de tráfego, devendo o despacho referido no número anterior especificar o respectivo âmbito, de acordo com as necessidades concretas da investigação.

4 - Em tudo o que não for contrariado pelo presente artigo, à intercepção e registo de transmissões de dados informáticos é aplicável o regime da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas constante dos artigos 187.º, 188.º e 190.º do Código de Processo Penal.

Tendo em mente tal quadro legislativo, importa relembrar que a obtenção de dados das tecnologias GPS (Global Positioning System) ou “eCall” [instrumento introduzido nos veículos automóveis com base no Regulamento EU 2015/758 e que, com base nas coordenadas de GPS, sabe precisamente onde se encontram as vítimas que precisam de auxílio em caso de acidente ou emergência médica], - sistemas que permitem determinar a localização geográfica do objecto/veículo onde são colocados, com um elevado grau de precisão – ainda não se encontra directamente reguladas no nosso ordenamento jurídico processual penal e têm sido alvo de controvérsia doutrinária e jurisprudencial (nomeadamente no quadro laboral quando colocado nas frotas dos veículos das empresas). Tal problemática tem encontrado respostas diversas, entendendo uns que trata-se de um método de obtenção de prova atípico, abrangido pelo art. 125º, do Código de Processo Penal, e sujeito ao regime legal da localização celular prevista pelo art. 189.º n.º 2, do mesmo diploma legal ou, em determinadas circunstâncias ao regime da prova documental.

Neste sentido o entendeu Duarte Rodrigues Nunes em “A admissibilidade da obtenção, diretamente pelas autoridades, de dados de localização por meio de sistema GPS à luz do Direito processual penal português”, in Julgar, n.º 32, pp. 97 e ss. Concluiu então este autor “que tal meio de obtenção de prova é admissível, como meio de obtenção de prova atípico, à luz do art. 125.º do CPP. Porém, de jure condito, considerámos que, por igualdade de razão face ao regime da obtenção de dados de localização celular diretamente pelas autoridades, este meio de obtenção de prova está sujeito ao regime das escutas telefónicas, embora levando-se em conta aquilo que possa resultar da circunstância de o art. 189.º, n.º 2, do CPP não operar uma remissão para a totalidade do regime do art. 187.º3. E concluímos, ainda, que, de jure condendo, pela pouca danosidade deste meio de obtenção de prova e justificando-se a sua previsão e regulamentação específicas, deveria ser adotado um regime muito similar ao do art. 14.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro.

Posteriormente à publicação da obra referenciada este mesmo autor chama a atenção para a posição assumida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no Acórdão de 8 de maio de 2018[1], Ben Faiza c. França (de 8 de maio de 2018)6, na parte em que versou sobre a obtenção de dados de localização por sistema GPS pelas autoridades (mediante a colocação de um recetor de GPS no veículo do arguido), considerou que ocorreu uma violação do art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem[2] num caso em que os Tribunais franceses haviam admitido a obtenção, em tempo real, de dados de localização por sistema GPS como meio de obtenção de prova atípico. Porém, conclui ainda assim que “O entendimento plasmado no Acórdão Ben Faiza c. França não obsta a que, tal como entendemos no estudo referido em 3, se considere que a obtenção de dados de localização em tempo real, diretamente pelas autoridades, através de sistema GPS é admissível, de jure condito, no Direito português, nos termos do art. 125.º do CPP, como meio de obtenção de prova atípico, sendo-lhe aplicável, por analogia, o disposto no art. 189.º, n.º 2, do CPP.”

Temos como certo é que o acesso aos dados transmitidos por um localizador instalado na viatura de um suspeito/arguido implica um grau de intromissão na respectiva privacidade, sendo tal acesso apenas legitimado após prévia autorização do juiz competente, de harmonia com a previsão normativa citada[3]. Neste sentido citamos o Acórdão do STJ de 24/10/2014, Proc. n.º 780/10.5PRT.S1-5ª Secção[disponível in www.dgsi.pt], segundo o qual “É em função desse secretismo que o uso do GPS representa uma intromissão na vida privada, em consequência do que, à face da falada norma do nº 3 do artº 126º do CPP, as provas obtidas mediante a sua utilização só não são nulas e de valoração proibida se esse meio de obtenção da prova estiver previsto na lei.

E está.

Nos termos do artº 187º do CPP, a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas é admissível, para além do mais que aqui não importa, se forem autorizadas por «despacho fundamentado do juiz de instrução», e «houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter».

Por sua vez o artº 189º, nº 1, estende o regime implementado no art. º187 acima citado às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer outro meio técnico diferente do telefone, designadamente ao «correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática (…) e à intercepção das comunicações entre presentes».

E no seu o nº 2 estipula que: «A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no nº 1 do artigo 187º e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo».

Bruno de Carvalho Pereira, na sua tese “O SISTEMA DE GEOLOCALIZAÇÃO GPS NO PROCESSO PENAL PORTUGUÊS Visão integradora ou atípica no quadro dos meios de obtenção de prova[4], clarifica as diferenças técnicas dos dois sistemas – GPS e localização celular - do seguinte modo: “A localização celular é obtida através de um sistema de antenas de transmissão de ondas rádio designadas por BTS (Base Transceiver System) que disponibilizam canais de onda, para que o tráfego comunicacional se possa fazer, sendo essa comutação assegurada e gerida por uma BSC (Base Station Controller) à qual estão alocadas várias BTS´s. Ora, cada uma das BTS´s dispõe de uma área de cobertura que poderá ser omnidireccional (cobrindo um raio de 360.º graus) ou sectorizada (normalmente em 3 (120.º) ou 4 sectores (90.º) de forma a permitir um fornecimento mais limpo do canal de onda dependente do posicionamento do transmissor móvel)… As BTS´s, de acordo com a disponibilidade de banda e a intensidade do sinal (dependente das condições ambientais que poderão atrasar o sinal) emitido pela MS (Mobile Station – telemóvel), procedem à cedência do canal, reencaminhando o sinal à BSC, que tratará de estabelecer a ponte com a BSC responsável pela BTS onde se encontra o receptor da chamada. As BTS funcionam numa lógica de mosaico, com áreas de cobertura parcialmente sobrepostas - vide figura 2 - para facilitar o processo de transferência de sinal, em caso de sobrelotação do canal ou deficiência no sinal, podendo ter um raio maior ou menor face tipologia de área que cobrem – urbana (50 – 300mts) ou rural (pode ir até aos 20 km) (Pratas, 2009, p.10).

O processo de localização resume-se ao fornecimento do CGI (Cell Global Identity), que é, basicamente, o código identificativo da antena que captou o sinal da MS, normalmente a que está mais próxima daquele, e que nos permite obter a localização da mesma através dum software apropriado, já com codificações individualizadas para cada antena, ou então, numa forma mais prosaica, fornecendo as coordenadas de latitude e longitude da antena para depois serem inseridas num mapa (e.g Google maps). Ora, a única localização exacta (denominada por Cell-id) que temos corresponde à antena de telecomunicações que nos dará uma área, mais ou menos, extensa conforme o raio de cobertura da antena – urbana ou rural – e o tipo de antena captadora – omnidireccional ou sectorizada. A título exemplificativo, se a antena fornecedora do sinal for uma antena omni-direccional, que irradia o mesmo sinal em todas as direcções do raio de cobertura, e se esta estiver a cobrir uma zona rural com imaginemos 10 km de raio, a MS poderá localizar-se numa área de 314 km2 (presumindo a regularidade dum círculo perfeito – Área = π * r2) correspondente à totalidade da área de cobertura. A diferença (significativa) das antenas sectorizadas é, como o próprio nome indica, delimitar a área de cobertura da antena, sendo tanto menor conforme a proximidade entre antenas. É por isso que na melhor das hipóteses, a variação da precisão pode variar, em absoluto, entre “100mts e 20km” segundo Broering (2010, p. 28) e, em média, “243-248mts para locais urbanos e 755-785mts para áreas rurais” segundo Cordeiro (2009, p. 7). Esta variação pode ser encurtada se o sistema de BTS estiver provido de um equipamento de cálculo algorítmico, o AoA (Angle of Arrival) que permite às mesmas fazerem um cálculo estimativo do ângulo daquela à MS, ou o ToA (Time of Arrival) que permite fazer uma estimativa de distância entre aquela e a MS111, através do tempo de resposta a um impulso da BTS, visando ambas uma redução substancial da área provável onde a MS se encontra. Este cálculo, será tanto mais preciso quanto o número de BTS envolvidas no processo e a desobstrução do feixe de emparelhamento. Limitador será sempre o número de BTS, cujas áreas de cobertura abarquem o sinal da MS, raramente em maior número que 3 e mais comum em áreas urbanas onde a malha de antenas é mais condensada (Broering, 2010)…. O único problema neste sistema é a determinação estimada do ângulo ou do tempo entre a BTS e a MS que poderá, como já vimos, por circunstâncias exógenas ao sistema, perturbar o cálculo, aumentando a margem de erro que se reflectirá, necessariamente, na precisão do cálculo.

(…)

Por sua vez o GPS (Global Positioning System) constitui um sistema tecnologicamente mais evoluído, concebido unicamente para cálculo da distância dos receptores GPS na terra, permitindo aferições de localização muito mais rigorosas fidedignas. O teorema de cálculo é, exactamente, o mesmo que já explicitámos para as antenas BTS. A grande diferença está no relógio atómico dos satélites, que consegue cálculos de distância, com uma margem de erro mínima, pela sua capacidade de acerto temporal feita ao milissegundo – conhecido como tempo GPS - assegurada por uma permanente comunicação bilateral com estações terrestres espalhadas por todo o globo. Ademais, a rotação orbital, permite, normalmente, que os receptores terrestres tenham uma média de 3/4 satélites disponíveis, com os quais podem emparelhar, podendo em algumas zonas chegar aos 13 (Broering, 2010). Sendo o cálculo da distância quase exacto, o resultado do cruzamento trigonométrico ou triangulação, irá permitir obter um resultado, igualmente, próximo do real, sendo até possível obter dados sobre a altitude se o cálculo envolver, no mínimo, dados de 4 satélites.(…) No fim, importa reter apenas que o grau de precisão média se situa nos 2.5-6mts, podendo, com melhoramentos nos sistemas de correcção e com o aumento de estações de leitura e calibração pelo globo, chegar a pouco mais de um metro.

Existe uma outra grande diferença que se refere ao provider do serviço e que poderá dificultar mais o acesso remoto à informação. Enquanto que a obtenção de dados sobre a localização celular é feita junto das operadoras nacionais, que nos termos da Lei 32/2008, art. 5.º n.º 2, conserva apenas dados e elementos inerentes a comunicações realizadas, pese embora detenha a capacidade de detectar MS bastando que estas emitam sinal rádio113, i.e., que estejam ligados ou em função stand-by, designados por muitos como dados não autênticos da comunicação114 (Andrade, 2009; Andrade in Pratas, 2009), não pressupondo um acto de «comunicação» entre pessoas mas sim entre máquinas. Ora, no caso do GPS115, sendo aquele monopolizado pelos EUA, será difícil proceder a uma «intercepção»116 do sinal, se não existir uma cedência desses dados por parte do provider, restando apenas a possibilidade de aceder a eles por via indirecta, ou seja, através do canal de telecomunicações no caso dos telemóveis, acedendo ocultamente ao conteúdo do mesmo e criando um espelho através da instalação de uma aplicação oculta que nos irá fornecendo a informação sobre a localização GPS do aparelho. A dificuldade, e, ao mesmo tempo, a perigosidade desta acção é delimitar o acesso apenas à informação pretendida, deixando sem mácula toda a restante informação contida no telemóvel (dados de tráfego, dados de conteúdo in live e armazenados na memória). Já no que toca a GPS´s instalados em viaturas, apenas será possível fazer isto caso o mesmo seja um sistema hibrido que esteja ao mesmo tempo conectado à rede de telecomunicações, de outro modo é tecnicamente impossível. Face ao que apreendemos, dúvidas não restam que a localização feita por GPS é mais insidiosa que a localização celular como a conhecemos face à rigorosidade e qualidade da informação que permite obter.(…)”

Partindo dos conceitos ora clarificados, justifica-se adoptar uma interpretação extensiva que permita considerar que aquela mesma disposição legal abrange os dados de localização de um alvo obtidos por GPS (sistema de localização com recurso a satélites) dada a similitude de alcance dos dois meios de obtenção da prova (e apesar da eficácia do GPS ser manifestamente superior), isto é, a localização celular (recorre à localização por estação base, a estação base da operadora calcula a distância até um telemóvel para determinar a localização do telemóvel) e o GPS. Tal preceito deverá abarcar qualquer método científico e tecnológico que permita a geolocalização, entendendo-se esta como o conceito geral de localizar algo ou alguém no mapa terrestre, utilizando diferentes tecnologias, incluindo o GPS.

Porém, como já anteriormente foi salientado, no caso dos autos o acesso aos dados transmitidos realiza-se, não através de um localizador instalado na viatura de um suspeito/arguido mas através de um localizador instalado no veículo furtado com o consentimento do seu proprietário e no quadro de um contrato de prestação de serviços, entre os quais, a localização do mesmo em tempo real.

No caso concreto, os dados a que pretende aceder-se não resultam de qualquer prévia actividade de investigação nem por esta são originados. Os dados de localização existem porque o veículo está equipado com um sistema localizador de origem (ou mandado instalar pelo seu proprietário) visando acautelar a prontidão de socorro urgente e eficiente em caso de acidente e que, por isso mesmo, permitirá conhecer o paradeiro do mesmo.

E assim sendo, tais dados - à semelhança de outros armazenados nos equipamentos de segurança e ajuda ao condutor, como por exemplo a Via Verde - poderão ser obtidos pelo próprio ofendido, no âmbito dos direitos que lhe assistem enquanto dono da viatura, sem necessidade de prévia autorização judicial. É ele o titular dos dados não lhe podendo ser negado o direito de acesso. O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 18 de Maio de 2022 (Pº 171/21.2GGCBR-A.C1) salientou que: «A Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, refere-se ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas, regulando o tratamento e a conservação desses dados, no contexto das relações estabelecidas entre as empresas fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas e os seus clientes.Este diploma de 2004, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas, versa sobre a regulamentação de serviços de comunicações e visa acautelar a protecção de dados dos clientes, afastando expressamente do seu âmbito de aplicação a prevenção, investigação e repressão de infracções penais, as quais são definidas em legislação especial, tal como estatui o seu artigo 1.º, n.ºs 4 e 5:«4. As excepções à aplicação da presente lei que se mostrem estritamente necessárias para a protecção de actividades relacionadas com a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado e a prevenção, investigação e repressão de infracçõespenais são definidas em legislação especial.

5. Nas situações previstas no número anterior, as empresas que oferecem serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público devem estabelecer procedimentos internos que permitam responder aos pedidos de acesso a dados pessoais dos utilizadores apresentados pelas autoridades judiciárias competentes, em conformidade com a referida legislação especial».

Citamos, a este propósito, o Acórdão n.º 506/2024, da 1ª Secção do Tribunal Constitucional, de 28/06/2024[5], no qual se decidiu, entre o mais e no que ao caso interessa:

a) Não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 125.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que é permitido valorar os dados recolhidos por um GPS instalado em veículo pelo respectivo proprietário, entregues por este a pedido da Polícia Judiciária para fins de investigação criminal;

b) (…)

c) Julgar inconstitucional a norma contida no artigo 125.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a junção a um processo penal de dados recolhidos por um GPS instalado em veículo pelo respetivo proprietário, entregues por este a pedido da Polícia Judiciária para fins de investigação criminal, não carece de validação por um juiz, por violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

A jurisprudência referida sustentou-se, além do mais, nos argumentos seguintes: (transcrição)

«Para a apreciação da questão de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 125.º do CPP, quando interpretada no sentido de que é permitido valorar os dados recolhidos por um GPS instalado em veículo pelo respetivo proprietário, entregues por este a pedido da Polícia Judiciária para fins de investigação criminal, importa, pois, saber se é de aceitar a primeira das referidas teses, já que entre a segunda e a terceira se encontrará a resposta para a outra norma objeto do recurso.

No caso, importa recordar que, nos termos da norma em apreço, a prova em causa não é gerada no âmbito de uma investigação, nem por impulso do órgão de polícia criminal. Trata-se de dados recolhidos por um GPS instalado em veículo pelo respetivo proprietário (ou seja, não pela pessoa investigada), entregues por este (voluntariamente) a pedido da Polícia Judiciária para fins de investigação criminal.

Assim, está fora de causa a necessidade de autorização prévia, já que os dados não se relacionaram, inicialmente, com uma investigação criminal, pré-existindo licitamente no âmbito de relações jurídico-privadas (no caso, gerados por um aparelho de GPS instalado por uma empresa de aluguer de automóveis nos seus veículos). O problema não se coloca, nestes casos, aquando da produção da prova, mas sim a partir do momento da sua junção ao processo penal.

(…)

Importa sublinhar, antes de mais, que não está em causa – nem no enunciado da norma sub judice, nem no caso a ela subjacente – a utilização de um veículo do próprio arguido, mas sim de um que consabidamente pertencia a terceiro, pelo que, ao contrário do que sucederia naquele caso (e do que sucede, designadamente, nos casos de localização celular a partir do telemóvel usado pela pessoa sob investigação), não se aproveita um mecanismo que segue intensamente os percursos de vida do arguido, permitindo formar padrões de deslocação duradouros, reveladores de preferências, hábitos e características pessoais da pessoa visada. A localização que aproveita a interação do suspeito ou arguido com meios de transporte de terceiros (transportes públicos, veículos de aluguer ou veículos emprestados) não é suscetível, pela sua natureza precária, de devassar intensamente a privacidade desses sujeitos, para além de que se fará, em grande medida, no espaço público ou quase público. Também não está em causa um seguimento ativamente prosseguido pela investigação criminal, nem o mesmo ocorre em tempo real – trata-se apenas de aproveitar dados que já existiam e continuariam a existir independentemente da investigação criminal, pois decorreram do normal exercício do direito de propriedade, num quadro referenciável como respeitante a “regulações do dono”

(cfr.Pedro Múrias, “Regulações do Dono. Uma Fonte de Obrigações”in ttps://muriasjuridico.weebly.com/uploads/1/4/6/1/146133835/pm-2002-reguls do_dono.pdf )[6].

Com efeito, é o dono do veículo que voluntariamente instala o localizador, para uso no âmbito das suas relações de direito privado.

(…)

Mostra-se claro, em consequência, que devemos distinguir duas realidades que reclamam um enquadramentos legal e jurídico-constitucional não integralmente coincidentes: a colocação, pelas autoridades de investigação, de aparelhos GPS em veículos, ativamente intrusiva na privacidade dos visados, ela própria criando, de um modo oculto e com caráter inovador face ao status quo anterior, as condições de facto que permitirão gerar os dados – uma atividade não expressamente prevista no CPP, mas que uma parte da doutrina aceita ter cobertura legal por analogia com o regime da localização celular; e ii) a mera obtenção de dados de localização que pré-existiam licitamente fora do processo penal e não foram gerados com finalidade probatória nesse âmbito penal, que é consideravelmente menos intrusiva (já que a investigação penal não interferiu sequer com a produção dos dados) e pode reconduzir-se a meios de obtenção de prova já legalmente previstos, como sejam a prova documental e a obtenção de dados informáticos nos termos da Lei do Cibercrime – cfr. Tiago Caiado Milheiro, em nota ao artigo 189.º do CPP, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo II, 3.ª edição, Coimbra, 2021, p. 840:

“[…]

A ‘verdadeira’ individualização dos dados de localização prende-se com a sua obtenção sem conexão com a realização de conversações e comunicações. Apenas para efeito de apurar a posição geográfica de uma pessoa (ou objeto). Já não relacionados com o sigilo de comunicações e não sendo por este tutelado (art. 34.º/4 CRP), mas comprimindo outros direitos fundamentais (destarte vida privada, autodeterminação informacional, direito a be alone, proteção de dados pessoais – art. 35.º/4 CRP) e que consoante o nível de restrição poderão ter tratamento idêntico. Situação também distinta são dados de localização que não são acedidos em tempo real, nem são transmitidos por fornecedores de serviço ou recolhidos por mecanismos utilizados pelas autoridades de investigação com esse desiderato e que resultam da análise de documentos ou de outra prova (v.g. pesquisa do histórico de localização de telemóvel ou do GPS, informação documental de circulação assente no uso de identificadores da via verde ou dispositivos eletrónicos instalados nos veículos para pagamento de portagens, análise de passaportes, vídeos de vigilância, bilhetes de avião, de comboio, de entrada num estádio; ou seja, toda a prova que demonstra a localização num determinado momento, mas que não é logrado por um meio especialmente direcionado para esse efeito situando-se a sua admissibilidade probatória no domínio do meio de prova em causa, nomeadamente documental).

[…]”.(…)” (fim de transcrição)

Ora, in casu, o Digno Recorrente pretende, na verdade, o acesso ao GPS do veículo da vítima, acesso, diga-se, já autorizado e pretendido por esta última e que lhe foi recusado pela operadora Vodafone, para alcançar a localização de tal veículo.

Deste modo, é por demais evidente que a diligência pretendida não tem o necessário enquadramento legal por não ser possível aferir se visaria alguma das pessoas contempladas no preceito invocado, já que os autores do furto do veículo são, de momento, incertos, por desconhecidos. E não se diga que a situação se enquadra no n.º4 do art.º187 dado que é evidente o consentimento da vitima para a utilização de tais dados pressupõe o conhecimento da identidade do alvo/suspeito, sendo a identidade deste um pressuposto da necessidade de uma intervenção por parte do Estado.

Isto é, o enquadramento legal que resulta dos artigos e preceitos citados em que o Ministério Público assenta a sua pretensão para aceder aos dados GPS assenta na circunstância de tais dados terem sido obtidos através de um meio oculto e com o suspeito identificado.

Neste sentido encontramos o teor do Acórdão do STJ de 24/10/2014, Proc. n.º 780/10.5PRT.S1-5ª Secção: “É em função desse secretismo que o uso do GPS representa uma intromissão na vida privada, em consequência do que, à face da falada norma do nº 3 do artº 126º do CPP, as provas obtidas mediante a sua utilização só não são nulas e de valoração proibida se esse meio de obtenção da prova estiver previsto na lei.

E está.

Nos termos do artº 187º do CPP, a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas é admissível, para além do mais que aqui não importa, se forem autorizadas por «despacho fundamentado do juiz de instrução», e «houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter».

O artº 189º, nº 1, estende esse regime às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer outro meio técnico diferente do telefone, designadamente ao «correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática (…) e à intercepção das comunicações entre presentes».

Por sua vez, o nº 2 do artº 189º estabelece: «A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no nº 1 do artigo 187º e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo».

A disposição não fala nos dados de localização de um alvo obtidos por GPS, mas deve fazer-se dela uma interpretação extensiva, de modo a abranger esses dados. De facto, o artº 189º traduz o propósito do legislador de regular, além do mais, a localização de alvos por meios electrónicos, referindo um desses tipos de localização, a celular. Dada a similitude de alcance dos dois meios de obtenção da prova, as razões que levaram a prever a localização celular aplicam-se ao GPS. Até porque, como se informa no acórdão do Tribunal Constitucional nº 486/2009, acolhendo ensinamentos de Rui de Sá (Sistemas e Redes de Telecomunicações, 2007), a tecnologia GPS, com a sua recente incorporação nos equipamentos móveis, já se encontra presente na localização celular, permitindo-lhe atingir «um grau de precisão muito elevado em matéria de determinação da posição geográfica».

Donde a conclusão de que nesta matéria a letra da lei ficou aquém do seu espírito. Da própria razão de ser da lei resulta que o legislador, querendo referir-se a um género – meios electrónicos de localização geográfica de um alvo – mencionou apenas uma espécie desse género. Dizendo a letra da lei menos do que se pretendia, há que alargar o texto legal fazendo-o corresponder ao seu espírito.

O uso de aparelho de GPS para obter a localização geográfica, em tempo real, de um alvo é aceite por Benjamim Silva Rodrigues, desde que autorizado por despacho do juiz de instrução e tenha lugar na investigação de casos de média ou grande criminalidade, não pela via aqui seguida, mas com apelo às disposições dos artºs 18º, nºs 2 e 3, 32º, nº 4, e 202º, nºs 1 e 2, da Constituição (ob. cit., página 93).

Cabendo, desta forma, os dados obtidos por meio de GPS no âmbito de previsão do nº 2 do artº 189º, o seu uso tinha de ser autorizado por despacho do juiz de instrução, como aí se estabelece”.- v., também em sentido idêntico, Tiago Caiado Milheiro, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, Almedina, 2ª Ed., pág. 824 e segs., §§ 27 a 30.(…)”

E é a expressa menção a UM ALVO que permite o deslindar da questão recursiva.

Deslindar esse claramente alcançado e esclarecido no âmbito do Acórdão da Relação do Porto de …., relatado por Deolinda…..[7]:“Na verdade, os dados a que pretende aceder-se não resultam de qualquer prévia actividade de investigação nem por esta são originados. Os dados de localização existem porque o veículo está equipado com um sistema localizador de origem (ou mandado instalar pelo seu proprietário) visando acautelar a prontidão de socorro urgente e eficiente em caso de acidente e que, por isso mesmo, permitirá (pelo menos em tese[3]) conhecer o paradeiro do mesmo.

Consequentemente, tais dados - à semelhança de outros armazenados nos equipamentos de segurança e ajuda ao condutor, como por exemplo a Via Verde - poderão ser obtidos pelo próprio ofendido, no âmbito dos direitos que lhe assistem enquanto dono da viatura, sem necessidade de prévia autorização judicial. É ele o titular dos dados não lhe podendo ser negado o direito de acesso.

Todavia, ainda que directamente tais dados não contendam com a vida privada de outrem, o certo é que tais elementos de prova associados a outros que daí possam vir a desenvolver-se poderão potenciar o conhecimento da identidade de utilizadores do veículo – eventualmente até 3ºs de boa-fé - e de determinados actos da sua vida com a consequente lesão de direitos fundamentais, pelo que a diligência nunca será totalmente inócua.

E citando o Acórdão constitucional a que já acima aludimos, o mesmo Acórdão da Relação do Porto retira daquele que:

“Apesar de, através do meio de prova em causa, não ser atingido o núcleo mais íntimo da esfera da vida privada, ainda assim o grau de intensidade da afetação pode ser muito variável, conforme a maior ou menor quantidade de dados disponíveis junto do terceiro e do período a que dizem respeito. Esta variabilidade, associada à falta de um quadro legal específico que regule a prova através de dados de localização contidos em aparelhos GPS, coloca especiais exigências de controlo de proporcionalidade da concreta restrição do direito consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, face aos fins visados (com ponderação, designadamente, sobre a gravidade do crime, as alternativas e correspondente grau de necessidade probatória, a quantidade e qualidade dos dados apreendidos), que só a um terceiro rigorosamente imparcial, e não o dominus da investigação, pode assegurar – diverge-se, pois, da decisão recorrida, quando ali se afirma que o meio de prova em causa “não pode ser visto como uma intromissão na vida privada de quem vai [no] veículo”. Não se afigura que seja especialmente relevante a circunstância, assinalada na decisão recorrida, de o sistema GPS ser “um aparelho surdo e cego no sentido de que não transmite a identificação do condutor e dos passageiros, nem as suas conversas ou os seus movimentos, apenas informa do local onde o veículo circula ou aparca”. Sendo em si mesma verdadeira esta afirmação, a verdade é que não só essa identificação é frequente através do cruzamento com outros dados, como, por regra, a utilidade dos dados de localização por GPS está, precisamente, associada à possibilidade de realizar tal cruzamento de dados. Por outras palavras, embora aquele sistema não identifique o condutor, a sua principal utilidade revela-se quando, através de outros dados, ele acaba por ser determinado. Assim, não pode olhar-se para a potencialidade lesiva deste meio de prova sem considerar que a sua utilização radica, as mais das vezes, na prévia determinação da pessoa associada aos dados e visada pela investigação. Se é verdade que, em certos casos, a obtenção de dados de localização por GPS pode servir apenas como “meio coadjuvante do seguimento clássico” (nas palavras do acórdão recorrido – que talvez digam mais respeito à colocação de aparelho para seguimento, e não tanto à obtenção posterior de dados), outros haverá em que, pela quantidade de dados adquiridos, a interferência com a privacidade é mais intensa – ora, o presente recurso é normativo, pelo que interessa atentar na potencialidade da norma objeto do recurso. Deste modo, não obstante as diferenças face à apreensão de comunicações, não pode perder-se de vista que continua a estar em causa a potencial afetação de direitos fundamentais, em grau variável e só determinável in concreto, o que constitui o terreno por excelência da imperativa atuação do juiz, ele que tem “[…] nos termos da CRP, uma competência exclusiva e não delegável de garantia de direitos fundamentais no âmbito do processo criminal (à luz do artigo 32.º, n.º 4, do CPP), pelo que a lei apenas pode dispensar a sua intervenção em casos excecionais devidamente delimitados e justificados. Por outras palavras, tal dispensa é constitucionalmente admissível apenas em situações pontuais e definidas com rigor, em que não constitua um meio excessivo para prosseguir interesses particularmente relevantes de investigação criminal. Será o caso, por exemplo, de atuações preventivas ou cautelares, em que haja particular urgência ou perigo na demora no que toca à conservação de elementos probatórios, e desde que se assegure uma posterior validação judicial da atuação das autoridades competentes”.

Tanto basta para concluir pela exigência de intervenção do juiz sempre que esteja em causa a junção a um processo penal de dados recolhidos por um GPS instalado em veículo pelo respetivo proprietário, entregues por este a pedido da Polícia Judiciária para fins de investigação criminal. Não havendo intervenção do juiz, retira-se a possibilidade de ponderação judicial da proporcionalidade da restrição do direito fundamental previsto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, de onde resulta a violação do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental, porquanto inexiste o mecanismo processual destinado a tornar o juízo de proporcionalidade atuante, bem como processualmente efetivo e consequente.».

Conclui, por fim o citado Acórdao do TRP:

“Dos elementos fornecidos pelos autos constata-se que os dados que se pretendem obter não dependem de prévia autorização do juiz de instrução criminal nem a situação se enquadra na previsão dos art. 187º, n.ºs 1 e 4, ex vi do art. 189º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, por ser impossível, por ora, determinar as pessoas visadas (ainda que indirectamente) pela diligência e se estas integram alguma das qualidades prevista no elenco legal, pressuposto essencial e intransponível para o seu deferimento.

Consequentemente, nenhuma censura merece a decisão recorrida, carecendo de fundamento a impugnação apresentada.”

Podemos assim concluir que, não obstante a operadora dos dados de localização não carecer de autorização prévia do Juiz de Instrução para disponibilizar os mesmos ao seu cliente, certo é que a sua posterior junção ao processo penal e a sua utilização carece, indiscutivelmente, de validação por parte daquele magistrado judicial na medida em que apenas tem legitimidade para aferir da potencial afetação de direitos fundamentais que o recurso a tal meio de obtenção de prova poderá, em concreto, implicar.

Donde decorre que, apesar do fundamento do Juiz de Instrução Criminal para o indeferimento da pretensão do Ministério Público basear-se no recurso a um regime legal inaplicável à pretensão daquele[8], pois que o que se pretendia era alcançar uma localização em tempo real, ainda assim o teor do despacho recorrido não carece de revogação no que toca ao indeferimento que do mesmo resulta, quer porque:

- por um lado, a intervenção do JIC foi solicitada previamente à obtenção daqueles dados e não para validação da sua junção aos autos; note-se que, o que se extrai do já acima expendido, o proprietário do veículo e contratante do serviço de GPS não carece de qualquer autorização judicial para que a operadora lhe disponibilize os mesmos;

- por outro lado, a situação dos autos não se enquadra na previsão dos art. 187º, n.ºs 1 e 4, ex vi do art. 189º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, por ser impossível, por ora, determinar as pessoas visadas (ainda que indirectamente) pela diligência e se estas integram alguma das qualidades prevista no elenco legal.


***


III - DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes desta ... Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso.

Sem tributação atenta a isenção do recorrente - art. 522º, do Cód. Proc. Penal.

Notifique.

[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, n.º 2, do CPP[5]]

Porto, 30/4/2025

(data e assinaturas electrónicas no topo do documento).


Maria Ângela Reguengo da Luz
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico

____________________________________
[1] https://hudoc.echr.coe.int.
[2] Artigo este com a seguinte redacção: Direito ao respeito pela vida privada e familiar
1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.
[3] Abrangendo o conceito de localização “celular” todos os outros meios que permitam a localização e/ou monotorização de um veículo através da tecnologia de GPS; esta recorre a um sistema de posicionamento geográfico que informa as coordenadas de determinado lugar na terra, permitindo comparar a informação/localização detectada com um mapa e neste registando a sua posição.
[4] Disponível in ulfd132671_tese.pdf;
[5] Disponível in tribunalconstitucional.pt;
[6] Na mesma obra o autor define “As regulações do dono mais simples são a proibição e a autorização. O dono tem o poder de proibir a actuação de terceiros sobre o seu bem (…). Mas, se o ponto de partida é a ilicitude de qualquer intervenção, teria sentido prever na lei o acto jurídico de autorização, que torna lícitas tais intervenções. Dir-se-ia que a validade da autorização resulta da autonomia privada, mas a autonomia que assim se exerce é uma autonomia qualificada pela titularidade do direito de propriedade, e não a autonomia negocial de um sujeito indiferenciado. Qualquer pessoa pode determinar que, para si,33 no que lhe diz respeito, a actuação sobre certa coisa valha como lícita, mas só o dono pode tornar objectivamente lícita essa mesma actuação.34
Apesar do silêncio legal, ninguém tentará refutar que a autorização dada pelo dono ou, em especial, pelo proprietário torna lícito o gozo, o aproveitamento do bem por terceiros.
[7] https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/214b9a996927e94180258c0b0053665a?OpenDocument;
[8] Fundamento esse impróprio uma vez que o regime previsto na Lei 32/2008 de 17/07 apenas se aplica à obtenção de dados correspondentes a comunicações já ocorridas e que se encontram preservados ou conservados – cfr. Acórdão do TRC de 12/10/2022 disponível in www.dgsi.pt; igualmente, do teor do  acórdão do STJ datado de 18 de Maio de 2022 (Pº 618/16.0SMPRT-B.S1) retira-se o seguinte: «Perante a diversidade de meios de prova vêm a doutrina e a jurisprudência assinalando que, em termos de unidade do sistema jurídico, se impõe a necessidade de harmonização entre os regimes dos artigos 187º e 189º do CPP e o regime da Lei n.º 32/2008, de 17/7, donde resulta que o daquele se aplica à interceção de comunicações, obtida em tempo real, a decorrer, e interceção da comunicação entre presentes, enquanto o desta tem como âmbito de aplicação a obtenção de dados que concernem a comunicações relativas ao passado, ou seja, conservadas ou armazenadas em arquivo, como se extrai até do consagrado no seu artigo 1º, n.º 1. (…) Por isso, seja conversação ou comunicação e o que lhe é conexo, necessariamente, a fonte telefónica ou informática, caberá nas normas dos artigos 187º e 189º do CPP. Já se o que interessa são comunicações passadas, localizadas no tempo e no espaço, chama-se à colação a Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho».