Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ISABEL PEIXOTO PEREIRA | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS COMUNS RELAÇÃO JURÍDICO-ADMINISTRATIVO | ||
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Nº do Documento: | RP2024121179534/24.2YIPRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 12/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | Compete à jurisdição administrativa conhecer de uma acção para pagamento/condenação em quantia pecuniária, na qual a autora, concessionária da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, em conformidade com determinado regulamento municipal, pede a condenação do réu no pagamento de quantias devidas pela utilização desses parques, a saber, taxas. (Da responsabilidade da Relatora) | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo 79534/24.2YIPRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível de ... - Juiz 3 Ação Esp.Cump.Obrig.DL269/98 (superior Alçada 1ªInstª)
Relatora: Isabel Peixoto Pereira 1º Adjunto: Álvaro Monteiro 2º Adjunto: Ernesto Nascimento
* Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto: I. A Autora A... SA veio pedir a condenação do Réu, AA, no pagamento da contraprestação devida pela utilização de múltiplos estacionamentos em parqueamentos de automóveis, delimitados e perfeitamente assinalados, cuja exploração está adjudicada à Requerente pela Câmara Municipal de Matosinhos por via de um contrato de concessão celebrado entre a A. e a edilidade. Foi julgada verificada a excepção dilatória da incompetência material do Juízo Local Cível de ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto e, em consequência, absolvido da instância o aqui R. É dessa decisão que vem interposto o presente recurso, pela Autora, que formula as seguintes conclusões: a) Vem o presente recurso apresentado contra o Douto Despacho A Quo, que decidiu julgar a incompetência material do Juízo Local Cível de ..., para cobrança dos créditos da Autora A... SA. b) No âmbito da sua atividade, a A. celebrou um contrato de concessão com a Câmara Municipal de Matosinhos, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina. c) No seguimento deste contrato de concessão, a A... adquiriu e instalou em vários locais da cidade de Matosinhos, dispendiosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático. d) Enquanto utilizador do veículo automóvel ..-TJ-.., o Réu estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a A. explora comercialmente na cidade de Matosinhos, sem, contudo, proceder ao pagamento dos tempos de utilização, num total em dívida de € 7822,00 que o Réu recusa pagar. e) Para cobrança deste valor, a Recorrente viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal. f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária. g) As ações intentadas pela A. contra os proprietários de veículos automóveis inadimplentes, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada. h) A recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, e sim com poderes de entidade privada, pelo que, e contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de direito privado, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade contratual por incumprimento do contrato. i) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto - em virtude de não nascer de negócio jurídico - assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações. j) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança. k) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição. l) Proposta tácita temporária da A., que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela A., concorda com os termos de utilização propostos pela A., amplamente publicitados no local. m) Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, a existência de uma relação jurídica administrativa. n) Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que «por via de regra confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração». o) O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação. p) Caso contrário, teríamos de entender como públicas quaisquer relações jurídicas, já que todo o interesse de regulação, é em si mesmo um interesse público e nessa medida, tudo seria público, até à mais ténue e simples regulamentação de relações entre particulares, desde que geradoras de direitos e obrigações suscetíveis de ser impostos coativamente. q) A A... SA., não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade. r) Nos termos do disposto no artigo 2º do DL 146/2014 de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas. s) Os montantes cobrados pela A... SA., não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos. t) Verificada a violação da obrigação contratual de pagamento do tempo de imobilização dos seus veículos, nos parqueamentos explorados pela A... SA., são os automobilistas posteriormente notificados para procederem ao pagamento omitido, sendo então cobrado o tempo máximo de utilização, por falta de referência concreta ao tempo efetivo de utilização. u) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária. v) A A..., ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou em substituição da autarquia, munida de poderes concessionados. w) Fundamental é que a Recorrente carece, em absoluto, de poderes de autoridade, fiscalização ou ordenação efetiva, apenas podendo registar os incumprimentos de pagamento e tentar recuperar judicialmente, sem acesso direto a um título executivo, os valores que tiverem sido sonegados, em violação da relação contratual de confiança, pelos utentes. x) Por tudo o que se alegou, mal andou o Tribunal “a quo” ao declarar-se incompetente em razão da matéria, pois, o Tribunal recorrido é o competente, motivo pelo qual foram violados, entre outros, os artigos 96º, al. a), 278º, Nr.1 al. a), 577º al. a) e 578º do CPC, quer o artigo 4º nr.1, al. e) do ETAF, quer ainda o artigo 40º da Lei 62/2013 de 26 de agosto Conclui pela revogação da decisão e substituição por outra que haja o tribunal comum como competente, determinando o regular prosseguimento dos autos. Respondeu o recorrido, concluindo nos seguintes termos: i.) A decisão recorrida não enferma de qualquer vício ou incorrecção antes tendo feito correcta aplicação do Direito. ii.) Sendo a autora concessionária de um serviço reconhecidamente de interesse público, actua, nessa qualidade, em “substituição” da autarquia com os poderes inerentes que lhe foram concessionados. iii.) Os contratos ou acordos tácitos que se concretizam sempre que os utentes utilizam para estacionamento os espaços públicos concessionados à autora, tanto esta como os referidos utentes estão submetidos às regras do Regulamento Municipal que disciplina aqueles estacionamentos, e só por isso tem a autora direito a cobrar as taxas de utilização fixadas no dito diploma. iv.) Contendo tal Regulamento normas de direito público, que estabelecem o regime substantivo de tais contratos ou acordos tácitos, a execução de tais contratos cai no âmbito do disposto no art. 4.º, al. f), do ETAF. v.) Sendo, por conseguinte, do foro administrativo a competência material para apreciar o litígio a que se refere os autos, nos termos do art.º 4º, al. f) ETAF, razão pela qual a douta decisão recorrida dever ser confirmada.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), é uma única a questão a tratar, A questão a avaliar nesta acção é de natureza essencialmente jurídica, relevando, em termos fácticos, o próprio conteúdo do primeiro articulado e os contornos do pedido e da causa de pedir aí desenhados. Ora, impõe-se desde logo avançar que intende a A. cobrar ao Réu um valor máximo diário pelos períodos de utilização de estacionamento não pago, em razão da exploração de parques de estacionamento ao abrigo de um contrato de concessão celebrado com a Câmara de Matosinhos, sendo esta quem define as regras dessa exploração. É que a exploração e concomitante cobrança pela A., respeitando a domínio público, é feita ao abrigo do disposto no contrato de concessão celebrado com a edilidade, sendo que bem assim as tarifas cobradas aos utentes são definidas por via do Regulamento Municipal das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos publicado em DR de 8 de março de 2016 – II Série (com sucessivas alterações). A questão a decidir foi já analisada com acerto, adequação técnica e coincidência de solução, pelo tribunal da Relação de Lisboa, nos Acórdãos de 20.10.2009 (6149/08.4YIPRT.L1-7) e 22.04.2010 (1950/09.4TBPDL.L1-2), ambos em http://www.dgsi.pt. Aqui se convoca, desde logo, o excerto daquele primeiro citado: «o contrato de concessão celebrado entre o Município (...) e a recorrente é um contrato de direito público, nos termos do qual o Município (...), munido de jus imperii, adjudicou àquela, a concessão, exploração, gestão e manutenção de quarenta e dois parquímetros na cidade (…). Sobre esta matéria, compete à Câmara deliberar no âmbito da organização e funcionamento dos seus serviços e no da gestão corrente, nos termos do art. 64.º n.º 1 alínea u) e n.º 6.º alínea a) da Lei n.º 169/99 de 18 de Setembro (Lei das Autarquias Locais), alterada pela Lei n.º 5-A/2002 de 11 de Janeiro. Considerando a causa de pedir nesta acção, o que está indubitavelmente em causa envolve a relação jurídica existente entre o Município (…) e a recorrente, na medida em que tem, na sua génese, a cobrança de uma taxa sancionatória diária pelo estacionamento não pago pelo recorrido. A este direito de cobrança arroga-se a recorrente, no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos pela concessão celebrada. Se bem que se possa alegar que a relação estabelecida entre a recorrente e um particular difere e dispõe de uma natureza diferente daquela existente entre a recorrente e a edilidade (…), a verdade é que os actos praticados pela recorrente não revestem a natureza de actos privados susceptíveis de serem desenvolvidos por um qualquer particular, mas, ao invés, revestem-se de natureza pública, na medida em que são praticados no exercício de um poder público, isto é, na realização de funções públicas no domínio de actos de gestão pública. Com efeito, o contrato de concessão outorgado entre a recorrente e o Município (…), rege-se pelo conteúdo das suas disposições e pelas disposições constantes do Regulamento de Estacionamento de Duração Limitada daquele Município, no qual se encontram previstos, designadamente, as taxas devidas pelo estacionamento, a possibilidade daquele Município, nos termos da lei geral, concessionar o estacionamento de duração limitada a empresa pública ou privada, bem como a fiscalização do regime previsto no aludido Regulamento e ainda as situações que configuram ilícitos de mera ordenação social e respectivas sanções. Por outro lado, e tendo em conta que no âmbito do contrato de concessão celebrado, a ora recorrente se vinculou expressamente ao cumprimento do aludido Regulamento de Estacionamento, recai sobre esta o ónus de conformar a sua actuação com o disposto naquele diploma e agir no âmbito dos poderes que o mesmo lhe confere, nomeadamente na sua relação com os terceiros particulares que usufruem do estacionamento concessionado e como tal passam a estar sujeitos às suas respectivas regras e condições. Assim, contrariamente ao que sucede no âmbito de relações contratuais entre particulares, as quais se regem pelo princípio da liberdade contratual e que dizem respeito a actividades de direito privado susceptíveis de ser desenvolvidas por particulares, no caso em apreço, a recorrente, na relação jurídica que estabelece com o recorrido, surge investida de prerrogativas próprias de um sujeito público, revestido de jus imperii, podendo cobrar-lhe uma taxa pelo estacionamento nas zonas concessionadas e aplicar-lhe as sanções especificamente previstas no Regulamento de Estacionamento de Duração Limitada e que consistem na aplicações de coimas (...). Temos, assim, que a acção se reporta a um litígio no âmbito de uma relação jurídica materialmente administrativa, submetida, por convenção das partes, a um regime substantivo de direito público, pelo que, nos termos da alínea f) do art. 4.º do E.T.A.F, são competentes para conhecer da acção os tribunais administrativos.» E, com referência já ao segundo Acórdão, «O que ocorre é que as relações contratuais estabelecidas entre o município, ou o concessionário, e os utentes do estacionamento de duração limitada tarifada, têm, (…) um regime substantivo parcialmente regulado por normas de direito administrativo que especificamente os têm em vista, a saber, as contidas no referido Regulamento, que dá execução ao Decreto-Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro. Estabelecendo tal regime, inclusive, infracções de natureza contra-ordenacional, com atribuição, para além de funções gerais de fiscalização do cumprimento do Regulamento, das funções de registo e notificação nessa matéria contra-ordenacional, à concessionária, que alegou actuá-los. Com o que se recai na previsão intermédia do art.º 4º, n.º 1, alínea f) do ETAF.» Temos estas considerações como perfeitamente cabíveis na situação decidenda. Confrontem-se já, nos termos do Regulamento citado, os meios coercivos e as interdições, como claras manifestações do poder do Estado, estabelecidos no quadro do ordenamento/regime do estacionamento de duração limitada, em cujo contexto a Apelante intervém e de cujo quadro nunca enjeitou aproveitar-se, como se vê, claramente, por exemplo do valor reclamado. Tem-se assim por simplificadora e enviesada a tentativa de estreitar e converter a relações tão só de direito privado a complexa relação constituída através da concessão. Sempre a «concessão» remete a dois domínios de intervenção: o externo, do concessionário e o interno e essencial, do concedente, já que se reconduz a uma autorização ou permissão de uma actividade “em vez de outrem”. Num tal contexto, o concessionário permanece obrigado pelos contornos e conteúdos do que lhe é atribuído. E, de entre estes, vários ultrapassam as meras intervenções privadas, reconduzindo-se: a interdições, ao exercício próprio de actividade sancionatória e à regulação unilateral e não negociada, antes exercida em nome da legitimidade democrática e de um poder de soberania de natureza executiva. Mais incontestável se patenteia o desequilíbrio, a natureza realmente não contratual da relação com o utente, na tese doutrinal da recorrente, que convoca uma actuação de facto geradora de uma relação que tem pouco de contratual e mais de mero enquadramento da realidade ou do evento consumado, que denomina de «relação contratual de facto». Nessa medida, o utente nem estabelece um contrato comum, sendo que antes usa o espaço de estacionamento com determinados efeitos jurídicos inerentes pré-estabelecidos em Regulamento Municipal, para mais quando a entidade cobra antes que um preço uma taxa, já que tem por detrás de si um conjunto de mecanismos e regras impositivas emanadas de um órgão da administração local e não um qualquer processo de formação da vontade negocial. Conclui-se, pois, que o objecto da presente acção se origina no quadro de uma relação jurídica materialmente administrativa, sem que a atribuição de faculdades de intervenção a empresa privada convole a relação para o domónio jus privatístico, já que o regime que regula os contornos da actividade cedida se submetem, manifestamente, a um estatuto substantivo de direito público. Estatui a alínea f) do n.º 1 do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção aplicável à presente acção – que é a emergente da Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro: «Artigo 4.º – Âmbito da jurisdição – 1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: […] f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público». Nesta norma se inserem as condições relativas ao pedido e à causa de pedir da presente acção. O uso ou benefício de aparcamento concessionado cujas prestações se pretende cobrar coercivamente é regulado por normas de direito público, regras que revelam a autoridade do Estado e a sua força reguladora e impositiva. Neste mesmo sentido decidiu já o Tribunal de Conflitos, por Acórdão de 25-11-2010, na base de dados da dgsi, com o seguinte Sumário: I -A competência material do tribunal afere-se pela relação jurídica controvertida, tal como é configurada na petição inicial. II - Nos termos do artigo 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, os tribunais administrativos são os competentes para o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. III - Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de interesse público legalmente definido. IV - Assim, compete à jurisdição administrativa conhecer de uma acção especial para cumprimento de obrigações emergentes de contrato, na qual a autora, concessionária da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, em conformidade com determinado regulamento municipal, pede a condenação da ré no pagamento de quantias, devidas pela utilização desses parques. Aqui nos remetemos, data venia, àquela decisão: «Conforme ensina o Prof. Manuel de Andrade, a competência do tribunal "afere-se pelo quid disputatum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum" (in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91). Por sua vez, o Tribunal dos Conflitos e a Secção de Contencioso Administrativo do STA têm reiteradamente afirmado que a competência em razão da matéria se afere em função dos termos em que a acção é proposta - cfr, a título de exemplo, os acórdãos do T. Conflitos de 91.01.31 (AD 361) e de 2007.05.17 (proc. n° 5107), e, os acórdãos do STA de 93.05.13 (proc. n° 31478), de 96.05.28 (proc. nº 39911), de 99.03.03 (proc. n° 40222), de 99.03.23 (proc. n° 43973), de 99.10.13 (proc. n° 44068) e de 2000.09.26 (proc. n° 46024). Neste caso, atentos os termos em que a acção é instaurada, julgamos ser de concluir que a competência para dela conhecer pertence aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente aos tribunais tributários. A Autora, B…, SA, na qualidade de concessionária, por força de vários contratos de concessão celebrados com a Câmara Municipal de Ponta Delgada para fornecimento, instalação e exploração de parquímetros colectivos, em zonas de estacionamento de duração limitada, na cidade de Ponta Delgada, pretende, através da acção, que a Ré, C… Lda, seja condenada a: Pagar-lhe a importância de 421,72 euros, acrescida de juros legais, correspondente aos montantes devidos pelo estacionamento de uma viatura da Ré em zona reservada para esse efeito, abrangida pela concessão. Funda este pedido no facto de a Ré não ter procedido, em várias datas, que indica, ao pagamento do tempo de utilização do lugar de estacionamento. Atentos os termos da própria petição e os documentos juntos com a mesma, estamos perante a utilização, assegurada pela Câmara, de um bem do domínio público (os lugares de estacionamento), mediante o pagamento de certa prestação. A prestação patrimonial correspondente ao uso de um bem como este constitui uma taxa, em conformidade com o disposto nos art°s 30, nº 2 e 4°, n° 2, da Lei Geral Tributária aprovada pelo DL n° 398/98, de 17.12. Essa taxa encontra-se prevista na alínea g) do art° 19º da Lei n° 42/98, de 06.08 (Lei da Finanças Locais), e, no que toca a situação concreta em análise, este expressamente contemplada nos artºs 24° e 25° do Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada[1] de Ponta Delgada, publicado no DR II série, de 2004.06.01, n° 128, apêndice 71/2004 (cfr. fls. 34 a 39 dos autos). Neste caso, não lhe e retirada essa natureza pelo facto de ser uma entidade privada - a Autora - que procede a respectiva cobrança. Tal cobrança só ocorre por força da referida concessão de fornecimento, instalação e exploração de vários parquímetros na cidade de Ponta Delgada, sendo que a Câmara não deixa de recolher a receita nos seus cofres, ainda que parte (cfr. fls. 25 e 26 dos autos). A questão que aqui este em causa tem, assim, natureza fiscal, na medida em que, segundo uma tese ampliativa, a mais seguida na jurisprudência (em oposição a uma tese restritiva), para decidir o litigio há que fazer a interpretação e aplicação de normas de direito fiscal sobre matéria respeitante ao exercício da função tributária da Administração Pública Cfr., a este propósito, Cons. Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, 2006, I volume, p. 220 e 221, onde são citados vários arestos da Secção de CA deste STA nesse sentido. E há, então, que acrescentar que, subjacente ao litígio, há uma relação jurídica tributária, entre a Câmara e a Ré (muito embora aquela não intervenha na acção), atenta a definição contida no art° 1°, n° 2, da Lei Geral Tributária, nos termos da qual consideram-se relações juridico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas. Os Tribunais competentes para conhecer da acção, são, assim, em nosso entender, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente, os tribunais tributários, face ao disposto no art° 1°, n° 1, do ETAF. (…) A competência dos tribunais comuns tem natureza residual, no sentido em que, nos termos constitucionais e legais Cfr. Artigo 211º («1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais»), da Constituição da República Portuguesa, e art. 66 («São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outras ordem jurisdicional»), do Código de Processo Civil. Em termos idênticos a este último preceito dispõe o art. 18, nº 1, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais., se estende a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais (G. Canotilho/V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. rev., 812). Aos tribunais administrativos, por sua vez, cabe, segundo o preceito constitucional e legal, apreciar os processos «que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas» Cfr. Artigo 212º («… 3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais»), da Constituição da República Portuguesa; e artigo 1º («1. Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais»), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.. E, na falta de clarificação legislativa sobre o conceito de relação jurídica administrativa, deverá esta ser entendida no sentido tradicional de relação jurídica de direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração. Assim, temos que os tribunais administrativos serão competentes para dirimir os litígios surgidos no âmbito das relações jurídicas públicas, devendo como tal considerar-se «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» [J.C.Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., 57/58]. E importa notar, ainda, que, para efeito da determinação da competência material do tribunal, deve atender-se à relação jurídica, tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respectivos fundamentos (causa de pedir) Neste sentido, veja-se, p. ex. o acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 9.6.10 (Pº 05/10), e a demais jurisprudência e a doutrina, nele citadas.» No caso sujeito, em causa a concessão pelo Município de Matosinhos à A., para exploração, gestão e manutenção de parques de estacionamento naquela cidade, nos termos previstos no Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada já citado… Ora, por via da concessão, ficou a A. obrigada, perante a concedente, a assegurar o funcionamento dos referidos parques de estacionamento em conformidade com o referido Regulamento, cabendo-lhe, em consequência, exigir o pagamento das “taxas”, nele previstas (cfr. artigo 4º do Regulamento) e fiscalizar essa utilização pelos interessados, como naquele igualmente se prevê (16º, última parte do regulamento), sendo certo que vem reclamado o valor integrante da taxa sancionatória prevista no artigo 19º do mesmo Regulamento. Assim, é de concluir que, por via da concessão, a A. recorrente foi investida de um poder público, para a realização de um interesse público, legalmente definido como sendo o de solucionar o estacionamento no perímetro urbano da cidade de Matosinhos. Donde o conflito a que respeitam os presentes autos respeita a uma relação jurídica administrativa, segundo o conceito dela acima indicado, cabendo a respectiva apreciação e decisão aos tribunais administrativos, conforme o citado art. 1, do ETAF.
III. Pelo exposto, julga-se a apelação da Autora totalmente improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida. Custas pela Recorrente.
Porto, 11 de Dezembro de 2024 Isabel Peixoto Pereira Álvaro Monteiro Ernesto Nascimento
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