Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3555/22.5T8VLG-A.1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE
QUIRÓGRAFO DA OBRIGAÇÃO
RELAÇÃO SUBJACENTE
Nº do Documento: RP202403213555/22.5T8VLG-A.1
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O cheque desprovido de exequibilidade enquanto título cambiário, poderá, não obstante, continuar a ter natureza de título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, no âmbito das relações imediatas, para execução da correspondente obrigação subjacente, desde que no requerimento inicial executivo o exequente invoque a correspondente relação causal.
II - A alínea c) do n.º 1 do artigo 703º impõe – sem qualquer distinção – a quem quer prevalecer-se do título, invocado como mero quirógrafo da obrigação, o ónus de alegação dos factos constitutivos da relação subjacente que dele não constem.
III - Se o título, enquanto mero quirógrafo, couber no âmbito do artigo 458.º do Código Civil, o credor está dispensado da prova dos factos constitutivos que alegou, sendo antes o devedor que terá de provar que não está validamente vinculado à obrigação causal que deles resultaria; se, pelo contrário, o título invocado não for subsumível ao disposto naquele artigo, é sobre o credor que passará a recair o ónus de provar, nos termos gerais, a factualidade constitutiva da relação subjacente que ele próprio invocou.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3555/22.5T8VLG-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução de Valongo – Juiz 1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

Por apenso à execução que AA instaurou contra BB, veio este deduzir oposição à execução mediante embargos de executado e oposição à penhora.

Invoca a inexigibilidade e inexequibilidade do título dado à execução por inexistência de relação subjacente, pelas razões descritas na petição inicial.

Alega ainda que nunca pediu dinheiro ao exequente, nunca dele recebeu dinheiro, e nunca com ele celebrou qualquer negócio jurídico, referindo que nunca emitiu ou entregou qualquer cheque ao exequente, que nunca o interpelou para proceder a qualquer pagamento.

Com fundamento em que o exequente alegou no requerimento executivo factos cuja falsidade não desconhecia, fazendo um uso reprovável do processo, pede a condenação do mesmo, por litigância de má fé, em multa e indemnização não inferior a €500,00, além do pagamento das despesas que o embargante teve de suportar, nomeadamente com honorários.

Contestou o embargado, referindo haver, por diversas vezes, emprestado quantias monetárias ao pai do embargante, CC, para este fazer face a despesas que tinha com estabelecimento comercial, do qual o mesmo, juntamente com o embargante, eram gerentes de facto, sendo este gerente de direito.

Alega que no dia 26.12.2017 o pai do embargante entregou ao embargado o cheque objecto de execução e que o embargante conhece o embargado, sabendo que o pai recorria a empréstimos junto daquele já que não acesso ao crédito bancário, tendo o próprio embargante chegado a fazer acordo com o embargado para extinção da execução que correu termos, com o n.º 2231/18.8T8PRT, pelo Juízo de Execução do Porto, Juiz 7.

Pede, a final, que, julgados improcedentes os embargos, prossiga a acção executiva.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que jugou procedentes os embargos, determinando a extinção da execução.

Inconformado com tal sentença, dela interpôs o embargado recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“1. Extinta a obrigação cartular incorporada em título de crédito (cheque), o mesmo mantém a sua natureza de título executivo, desde que os fatos constitutivos essenciais da relação causal subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.

2. A atribuição de força executiva aos títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos da obrigação, justifica-se por razões de segurança do tráfego jurídico e de se favorecer a sua utilização como meios de pagamento nas transações comerciais.

3. Os títulos de crédito prescritos podem ser usados como quirógrafos da relação causal subjacente à sua emissão e beneficiar da presunção de causa consagrada no n.º 1 do artigo 458º do Código Civil, quando, não indicando a causa, traduzam atos de reconhecimento de um débito ou de promessa unilateral de prestação.

4. A emissão de um cheque não se limita a traduzir uma ordem de pagamento a um banco a favor de um terceiro, constituindo, também, o reconhecimento de uma obrigação pecuniária em relação ao portador.

5. O exequente que propõe acção executiva fundada em quirógrafo da obrigação causal subjacente à emissão do cheque tem o ónus de alegar no requerimento executivo os factos essenciais, constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, cabendo ao executado o acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo artigo 458º do CC, que consagra uma inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental, passando o devedor a ter de provar a falta da causa da obrigação inscrita no título ou alegada no requerimento inicial para ver os embargos proceder e a execução extinta.

6. O executado não fez prova de que nada devia ao exequente, pelo que o tribunal a quo ao decidir como decidiu violou no disposto no artigo 458º do CC.

Nestes temos e nos demais de direito, deve este recurso ser julgado procedente, com a consequente revogação da sentença recorrida”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar a questão da exequibilidade do cheque dado à execução/exigibilidade da dívida exequenda.

III . FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Considerou o tribunal de primeira instância provados os seguintes factos:

1 – O embargado é portador do cheque n.º ...75, no valor de € 8.900,00 sacado sobre conta titulada pelo embargante no Banco 1..., S.A. com o n.º ...01 com data de 2017/12/26.

2 – O cheque atrás referido foi entregue ao embargado pelo pai do embargante, CC, mostrando-se assinado por aquele e preenchido por este, pelo menos na parte respeitante ao valor (em numerário e extenso), local de emissão e data.

3 - O referido cheque foi apresentado tendo sido devolvido em 02/01/2018 com a menção “Ch. Dev. Furto Apresentado fora de Prazo”.

4 – O embargado emprestou diversas quantias monetárias ao pai do embargante[1] destinadas, designadamente, ao pagamento de fornecedores da sociedade A..., S.A., de que o executado é administrador, tendo o cheque dos autos sido entregue por aquele em virtude de tais empréstimos.

5 – O embargado nunca entregou qualquer quantia monetária ao executado, nem celebrou com o mesmo qualquer negócio.

6 – O executado não sabia que o cheque dos autos tinha sido entregue ao exequente.

7 – O executado só conhece o exequente em virtude das ações judiciais que o mesmo deduziu contra si.

8 – Em 25 de Janeiro de 2018 o exequente deduziu contra o executado uma acção executiva dando à execução o cheque n.º ...01 no valor de € 8.900,00 sacado sobre conta titulada pelo embargante Banco 1..., S.A. com o n.º ...01 com data de 2017/11/26, devolvido na compensação em 11/12/2017 com a menção “falta ou insuf. de provisão”.

9 – Em 14 de Setembro de 2018 a referida acção executiva foi extinta ao abrigo do disposto no artigo 806.º do CPC e em virtude da comunicação ao Sr. AE de um acordo de pagamento da quantia exequenda nos termos do qual o executado se confessou devedor da quantia de € 12.200,00, valor que incluía a totalidade das despesas e honorários devidos ao Agente de Execução, e que se comprometeu a pagar até ao dia 31 de Dezembro de 2018.

10 – Em 27 de Fevereiro de 2020 o aqui exequente declarou no processo atrás referido que desistia do pedido.

11 – Em 25 de Maio de 2019 o aqui exequente requereu a insolvência do aqui executado, que deu origem ao Processo n.º 1853/19.4T8STS do Juízo de Comércio de S.to Tirso, alegando o incumprimento do acordo atrás referido.

12 – Em 18 de Julho de 2019 o exequente apresentou no processo atrás referido declaração de desistência da instância, que foi homologada por sentença proferida em 8 de Agosto de 2019, no qual vem referido não ter sido apresentada contestação.

13 – Em 17 de Janeiro de 2020 o exequente apresentou novo pedido de insolvência contra o executado, que deu origem ao processo n.º 331/20.3T8STS do Juízo de Comércio de Santo Triso, Juiz 2 tendo, por requerimento apresentado no referido processo em 26 de Fevereiro de 2020, declarado que desistia da instância e, face à oposição do requerido, declarou desistir do pedido por requerimento que dirigiu ao referido processo em 27 de Fevereiro de 2020.

14 – Em 29 de Dezembro de 2017 o embargante solicitou no Balcão do Banco 1... em ... o “impedimento de todos os cheques ativos” da conta n.º ...01, por “motivo de furto”.

15 – Em virtude de queixa apresentada pelo aqui exequente contra o executado e seu pai, correu contra ambos o processo crime n.º 989/18.3/9VCD do Juízo Local de Gondomar, Juiz 2, pela prática de um crime de falsificação de documento.

16 – O executado e o seu pai foram absolvidos da prática do referido crime por não se ter provado que o executado sabia que o seu pai tinha entregue o cheque em causa nos referidos autos (n.º ...74 da conta ...01) ao aqui exequente em 30 de Outubro de 2017, que a declaração dando conta do seu furto em data posterior à entrega não correspondia à verdade e que ambos actuaram em conjugação de esforços visando que o referido cheque não fosse pago.

17 – Em 19 de Março de 2018 B..., Lda., C..., Lda., D..., Lda. e AA interpuseram uma acção declarativa de condenação contar a A..., S.A. reclamando o pagamento das quantias de € 31.060,06, € 11.039,78, € 9.000,00 e € 30.192,52, alegando em síntese, que o referido AA, por si e em representação das sociedades AA, fez pagamentos a diversos fornecedores da R., por indicação desta e que a mesma se comprometeu a devolver.

18 – A referida acção foi julgada parcialmente procedente em primeira instância sendo a R. condenada a pagar à 1.ª A a quantia de € 8.500,00, à segunda A. a quantia de € 5.039,78 e ao aqui embargado a quantia de € 11.484,23.

19 - A A..., S.A. interpôs recurso da referida decisão, tendo sido, por acordão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto absolvida de todos os pedidos.

III.2. E considerou não provados os seguintes factos:

- Que o cheque dado à execução tenha sido entregue ao exequente para reembolso dos empréstimos efectuados por si à Sociedade A..., S.A.;

- Que o executado sabia que a importância titulada no cheque era para abatimento da dívida da empresa;

- Que o executado, em conluio com o pai, e após entregarem este cheque ao exequente, comunicaram, falsamente, ao banco que o cheque havia sido furtado;

- que em finais de 2017 uma carrinha da qual o executado é proprietário foi furtada.

- que dentro dessa carrinha estava um livro de cheques do executado e que alguns deles encontravam-se por si assinados.

- que a A..., S.A. nunca recebeu qualquer empréstimo do exequente nem pagou a fornecedores com dinheiro emprestado por este.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

A acção executiva funda-se necessariamente num título do qual depende a exequibilidade da obrigação exequenda.
Como prescreve o n.º 5 do artigo 10.º do Código de Processo Civil, “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determina o fim e os limites da acção executiva”.
Esclarece Lebre de Freitas[2]: “para que possa ter lugar a realização coactiva duma prestação devida (ou do seu equivalente), há que satisfazer dois tipos de condição, dos quais depende a exequibilidade do direito à prestação:
a) O dever de prestar deve constar dum título: o título executivo. Trata-se dum pressuposto de carácter formal, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito (…), na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da acção executiva.
b) A prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida (…). Certeza, exigibilidade e liquidez são pressupostos de carácter material que intrinsecamente condicionam a exequibilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coactiva da pretensão”.
O artigo 703.º da lei processual civil elenca, de forma taxativa, os títulos executivos que podem servir de base à execução, neles se incluindo - alínea c) do n.º 1 - “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.
À execução a que o executado se opôs deu o exequente como título o cheque n.º ...75, no valor de €8.900,00, sacado sobre conta titulada por aquele, datado de 26.12.2017.

O cheque em causa, que foi entregue ao embargado por CC, pai do embargante, assinado por este e preenchido pelo referido CC, pelo menos na parte respeitante ao valor (em numerário e extenso), local de emissão e data, foi apresentado a pagamento, tendo sido devolvido em 02/01/2018 com a menção “Ch. Dev. Furto Apresentado fora de Prazo”.
O artigo 40.º da Lei Uniforme sobre Cheques reconhece ao portador do cheque a faculdade de exercício do direito de acção contra o sacador, ou outros obrigados, se o referido título de crédito for apresentado a pagamento dentro de 8 dias, contados da data nele inscrita como data de emissão, e o mesmo não for pago, sendo a recusa de pagamento verificada por uma das formas legalmente previstas no referido normativo.
Ainda de acordo com a aludida disposição legal, o portador do cheque pode exercer os seus direitos de acção contra os endossantes, sacador e co-obrigados, desde que o título em causa, apresentado em tempo útil, não seja pago e a recusa de pagamento verificada por uma destas formas:
- Por um acto formal (protesto);
- Por uma declaração do sacado, datada e escrita sobre o cheque, com indicação da data em que o mesmo foi apresentado a pagamento;
- Por uma declaração datada de uma câmara de compensação da qual conste que o cheque foi apresentado em tempo útil e não foi pago.
Quer o protesto, quer a declaração equivalente devem ter lugar antes de expirado o prazo para a apresentação do cheque, conforme determina o artigo 41.º da LULL.
E de acordo com o artigo 52.º do mesmo diploma legal, “toda a acção do portador contra os endossantes, contra o sacador ou contra os demais co-obrigados prescreve decorridos que sejam seis meses, contados do termo do prazo de apresentação”.
Como se afirma no acórdão da Relação do Porto de 23.09.2010[3], “os cheques são documentos (particulares) que envolvem a constituição de uma obrigação (cambiária) de pagamento de quantia determinada (arts. 28º, 32º, 47º, 75º e 77º da LULL e 12º, 18º, 27º e 44º da LUC). Portanto, nenhuma dúvida se vem suscitando quanto à exequibilidade dos cheques, enquanto se pretende exercer o direito cambiário ou exigir do demandado a obrigação (de qualquer montante) incorporada nesse documento, autónoma, abstracta e literal.
(…) As reticências colocam-se quando a esses documentos abstractos falta algum requisito (de forma) que implique a perda da acção cambiária, como acontece se o cheque não foi apresentado a pagamento ou foi apresentado extemporaneamente (arts. 29º e 40º da LUC) ou se prescreve o direito incorporado por decurso do prazo de seis meses após data do cheque sem exercício do direito, nos termos do artigo 52º da mesma Lei.
Como determina esse artigo 29º, o cheque deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias e só nessa situação tem o portador direito de acção, baseada no cheque, contra os obrigados – isto é, se o cheque tiver sido apresentado a “pagamento em tempo útil”, nos termos dos artigos 29º e 31º da mencionada Lei)”.
Deve, pois, o cheque ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias, conforme previsto no artigo 29.º da citada Lei, e ainda dentro desse prazo deve efectuar-se a certificação da falta de pagamento, quer através do protesto, quer através da declaração equivalente. A falta de certificação atempada da recusa de pagamento, que constitui requisito objectivo da exequibilidade do cheque enquanto título cambiário, implica para o portador do mesmo a perda do direito de acção cambiária[4].
Incumpridas estas formalidades de apresentação do cheque e de verificação de recusa de pagamento, e/ou decorrido o prazo fixado no mencionado artigo 52.º, prescrita a acção cambiária, importa indagar se o cheque pode ainda valer como título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil.
A resposta a tal questão não tem sido equacionada de forma inteiramente convergente pela jurisprudência.
No caso de a obrigação cambiária se achar prescrita e/ou de faltar ao cheque requisito objectivo da sua exequibilidade enquanto título de crédito, por incumprimento das formalidades exigidas pelos artigos 40.º e 41.º da LULL, não se vê razão para afastar a exequibilidade do cheque, agora enquanto documento particular assinado pelo devedor.
Já assim era nos termos do artigo 46º, n.º 1, c) do anterior Código de Processo Civil, tendo a reforma processual civil de 1995 promovido o alargamento dos títulos executivos, como se extrai do preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12/12, quando refere “que se optou pela ampliação significativa do elenco de títulos executivos, conferindo-se força executiva aos documentos particulares assinados pelo devedor que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinável em face do título, da obrigação de entrega de quaisquer coisas móveis ou de prestação de facto determinado”.
E assim continua à luz do actual artigo 703.º, n.º 1.
O facto do cheque, face ao complexo normativo da LUC, não poder valer como título de crédito/executivo não obsta que possa valer como documento particular assinado pelo devedor, circunstância em que não já não está em causa a obrigação cambiária, mas sim a obrigação causal ou subjacente[5].
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2010[6] descreve deste modo as diferentes perspectivas jurídicas pelas quais pode ser encarada a exequibilidade do cheque enquanto título de crédito:
A) Em primeiro lugar, podem os mesmos surgir na execução como verdadeiros e próprios títulos de crédito, sendo invocados pelo exequente como modo de demonstração da respectiva relação cambiária, literal e abstracta, que constitui verdadeira causa de pedir da acção executiva – sendo, para tal, obviamente necessário que se mostrem integralmente respeitados todos os pressupostos e condições de que a respectiva lei uniforme faz depender o exercício dos direitos que confere ao seu titular ou portador legítimo.
Nesta situação, o título executivo é uma peculiar categoria de documentos particulares, regidos por uma disciplina específica, decorrente da sua especial segurança formal e fiabilidade, e a «causa petendi» da acção executiva é a relação creditória neles incorporada, com as suas características próprias, em larga medida decorrentes da literalidade e abstracção das obrigações cartulares por eles documentadas.
B) Em segundo lugar – e não se verificando algum dos requisitos ou condições imperativamente previstos na respectiva LU para o exercício do direito e acção conferido ao titular ou portador legítimo do título – pode valer tal título de crédito como mero quirógrafo ou documento particular, assinado pelo devedor, que contenha ou implique o reconhecimento da obrigação causal subjacente – desde logo, como declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida, sem indicação da respectiva causa, submetida à disciplina jurídica contida no art. 458º do CC, ou seja, implicando a dispensa de o credor provar a relação fundamental, desde que não sujeita a específicas formalidades legais, cuja existência se presume até prova em contrário.
Nesta peculiar situação, a presunção de existência da relação fundamental, decorrente do regime estabelecido no referido art. 458º, implica a dispensa de o credor exequente invocar os respectivos factos constitutivos, recaindo naturalmente sobre o executado o ónus de ilidir ou afastar tal presunção no âmbito da oposição à execução que deduza. Ou seja: valendo o título ou documento particular invocado pelo exequente como declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida, a execução está em condições de prosseguir mesmo que a relação subjacente não conste do documento que corporiza essa declaração unilateral, nem seja explicitamente afirmada, nos seus factos constitutivos, pelo exequente no requerimento executivo – implicando a presunção legal, afirmada pelo referido art. 458 º, que compete ao executado pôr em causa tal presunção, demonstrando a inexistência ou invalidade do débito aparentemente confessado ou reconhecido pela declaração unilateral invocada pelo credor/exequente.
C) Em terceiro lugar, podem valer os títulos de crédito que não obedeçam integralmente aos requisitos impostos pela respectiva LU como quirógrafos da relação causal subjacente à respectiva emissão, desde que os factos constitutivos desta resultem do próprio título ou sejam articulados pelo exequente no respectivo requerimento executivo, revelando plenamente a verdadeira «causa petendi» da execução e propiciando ao executado efectiva e plena possibilidade de sobre tal matéria exercer o contraditório: como é evidente, esta terceira perspectiva funcionará nos casos em que a declaração de vontade consubstanciada no título de crédito não puder valer como declaração unilateral de reconhecimento do débito subjacente à respectiva emissão, não beneficiando, consequentemente, da presunção afirmada pelo art. 458º do CC – o que naturalmente implicará para o exequente o ónus de invocar e demonstrar os factos constitutivos da relação fundamental que constitui a verdadeira causa de pedir da execução.
Neste caso, o documento assinado pelo devedor constitui quirógrafo de uma obrigação causal cujos elementos constitutivos essenciais têm de ser processualmente adquiridos, em complemento do título executivo, por iniciativa tempestiva e processualmente adequada do próprio exequente, sendo articulados no requerimento executivo sempre que não resultem do próprio título; é, aliás, neste tipo de situações que ressalta, com maior evidência, a diferenciação e autonomia entre os conceitos de título executivo e de causa de pedir da acção executiva, sendo o primeiro integrado por um documento particular, assinado pelo devedor, que - embora não contenha um expresso e directo reconhecimento da dívida exequenda - indicia a existência de uma relação obrigacional que o vincula no confronto do exequente; e a segunda consubstanciada pela própria relação obrigacional que, não resultando, em termos auto-suficientes, daquele título, é introduzida no processo através de um verdadeiro articulado, complementar do documento em que execução se funda”.
Como salienta o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2010, “ao contrário das letras e livranças, que contêm uma promessa de pagamento de determinada quantia pecuniária, a natureza do cheque não importa propriamente um acto de reconhecimento, directo e expresso, de uma dívida do executado no confronto do exequente, mas antes uma ordem de pagamento, dirigida a um banqueiro, em benefício do potencial credor da mobilização de fundos decorrente da emissão e entrada em circulação do cheque; implicam estas considerações que o titular do cheque, desprovido dos requisitos da LU, não beneficiará da presunção contida no art. 458º do CC, apenas convocável quanto àquelas declarações confessórias que, pela sua natureza, importem um reconhecimento unilateral, expresso e directo, de uma dívida no confronto do exequente[7].
Deste modo, ainda que o cheque não possa valer como título cambiário, literal e abstracto, por inobservância dos imperativos para o efeito determinados na LUC, e ainda que se entenda que ele não comporta o reconhecimento de uma dívida, nada obsta que, no domínio das relações imediatas, o mesmo seja invocável como quirógrafo, documentando uma relação causal, não subordinada a uma forma especial, que justifique a ordem de pagamento nele expressa emitida pelo executado a favor do exequente, desde que no requerimento executivo tenha sido invocada essa relação subjacente, omissa no cheque, que a sua estrutura e fisionomia não consentem.
Vem-se, assim, cada vez mais consolidando o entendimento, que constitui já corrente jurisprudencial largamente maioritária do Supremo Tribunal de Justiça, de que o cheque desprovido de exequibilidade enquanto título cambiário poderá não obstante continuar a ter natureza de título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, no âmbito das relações imediatas, para execução da correspondente obrigação subjacente, desde que no requerimento inicial executivo o exequente invoque a correspondente relação causal[8].
De acordo com o disposto no artigo 458.º do Código Civil, “Se alguém, por simples declaração unilateral prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”.
Com base no referido preceito, vem a doutrina e a jurisprudência entendendo que, nas execuções fundadas em títulos de crédito, designadamente cheques, prescritos, em que a obrigação cambiária se extinguiu e que, por isso, o seu portador não pode acionar o sacador/aceitante com base na mera relação cambiária, devendo antes  invocar a relação jurídica subjacente à sua emissão, a subscrição dos referidos títulos faz presumir a existência de uma relação causal subjacente na medida em que neles se contém a constituição ou confissão/reconhecimento unilateral de uma dívida.
A lei admite, com efeito, que através de um acto unilateral se efectue a promessa de uma prestação ou o reconhecimento da dívida sem que o devedor indique o fim jurídico que o leva a obrigar-se, presumindo-se e existência e a validade da relação fundamental. Mas trata-se de uma simples presunção cuja prova em contrário produzirá as consequências próprias da falta de licitude ou da imoralidade da causa dos negócios jurídicos. Trata-se de negócios causais apenas se dando uma inversão do ónus da prova. Dispensa este preceito a prova, mas não a alegação dos factos essenciais, na causa de pedir.
Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.05.2014[9], “Os títulos de crédito, desprovidos dos requisitos que permitiriam a aplicação do regime de abstracção substantiva previsto na respectiva LU, podem ser usados como quirógrafos da relação causal subjacente à respectiva emissão – beneficiando do regime de presunção de causa afirmado pelo art. 458º do CC quando, atenta a sua natureza material, se consubstanciarem em actos de reconhecimento de um débito ou de promessa unilateral de prestação, sem indicação da respectiva causa”. Adianta o mesmo acórdão: “Porém, a parte que quer prevalecer-se do título – letra – invocado como quirógrafo da obrigação causal subjacente à sua emissão tem o ónus de alegar, na petição inicial ou no requerimento executivo, os factos essenciais constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, desprovido de valor nos termos da respectiva LU, identificando adequadamente essa relação subjacente, de modo a possibilitar, em termos proporcionais, ao demandado/executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art. 458º do CC”.
E prossegue: “no actual CPC, apesar de drástica limitação do elenco dos títulos executivos não judiciais - deixando, em regra, de revestir as características da exequibilidade os meros documentos particulares, assinados pelo devedor, que não sejam títulos de crédito, - a alínea c) do nº1 do art. 703º manteve e explicitou a precedente orientação jurisprudencial maioritária, consagrando expressamente que valem como títulos executivos os títulos de crédito, que, embora desprovidos dos requisitos legais para incorporarem uma obrigação cartular, literal e abstracta, podem valer como meros quirógrafos da obrigação exequenda, desde que os factos constitutivos da relação subjacente, se não constarem do próprio documento, sejam alegados no requerimento executivo”.
 A alínea c) do n.º 1 do artigo 703º impõe – sem qualquer distinção – a quem quer prevalecer-se do título, invocado como mero quirógrafo da obrigação, o ónus de alegação dos factos constitutivos da relação subjacente que dele não constem. A distinção entre os títulos que são subsumíveis ao regime de dispensa de prova constante do artigo 458.º do Código Civil e os que nele não podem enquadrar-se (por não se consubstanciarem num acto unilateral de reconhecimento de dívida ou na promessa de uma prestação) operará apenas no domínio da prova de tais factos: se o título couber no âmbito do referido normativo, o credor está dispensado da prova dos factos constitutivos que alegou, sendo antes o devedor que terá de provar que não está validamente vinculado à obrigação causal que deles resultaria; se, pelo contrário, o título invocado não for subsumível ao disposto naquele artigo 458.º, é sobre o credor que passará a recair o ónus de provar, nos termos gerais, a factualidade constitutiva da relação subjacente que ele próprio invocou.
É certo que a simples emissão de um cheque não pressupõe necessariamente a constituição ou reconhecimento de uma obrigação pecuniária do sacador em relação ao beneficiário do mesmo. A emissão do cheque comporta uma ordem de pagamento dirigida à entidade bancária.
Mas quando o cheque contém a identificação do beneficiário da ordem de pagamento é de presumir, por referência a critérios de normalidade e às regras da experiência comum, que o mesmo contém, pelo menos implícito, o reconhecimento de uma dívida, pois esta é, lógica e cronologicamente, prévia à ordem de pagamento transmitida pelo cheque à entidade bancária sacada, e, por regra, ninguém emite uma ordem nesses termos se não existe uma causa justificativa a fundamentá-la.
De facto, por regra, a ordem de pagamento escrita no cheque, pressupõe o reconhecimento de uma dívida.
 Como evoca o já mencionado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2010, “na realidade do comércio jurídico, a ordem de mobilização de fundos contida no cheque implicará normalmente, ao menos de forma tácita, a admissão da existência de um débito causal perante o respectivo titular, a saldar precisamente através da sua apresentação a pagamento; ou seja, embora a subscrição do cheque não contenha uma expressamente verbalizada confissão de dívida ou promessa de pagamento do sacador ao exequente, constitui um facto que, com toda a probabilidade, revela a existência e admissão pelo devedor de uma obrigação causal subjacente à respectiva emissão, delineada, nos seus elementos constitutivos essenciais, pelo credor no requerimento executivo”.
Retira-se do acórdão da Relação do Porto de 18.12.2018[10]: “não reunindo o título de crédito os requisitos previstos na lei ou estando o mesmo prescrito, este apenas pode valer como título executivo, enquanto quirógrafo da obrigação, desde que tenha sido emitido pelo executado em consequência de qualquer negócio (relação fundamental) por ele celebrado com o exequente, ou seja, desde que tenha subjacente um relacionamento tendo como sujeitos o credor originário e o devedor originário, para execução da relação fundamental. Daí que, não podendo o cheque prescrito valer como título cambiário, o mesmo só valerá como quirógrafo da obrigação no âmbito das relações imediatas (já que só nessas circunstâncias existe um reconhecimento direto de obrigações pecuniárias pelo devedor a favor do credor) e já não no âmbito das relações mediatas, em resultado, designadamente, do seu endosso”.
No caso em apreço, resultou demonstrado, por um lado, que o cheque exequendo, prescrito enquanto título cambiário, não foi entregue pelo executado/embargante ao portador do mesmo – exequente/embargado. Resultou, de resto, comprovado que o executado nem sequer sabia que o cheque tinha sido entregue ao exequente.
Para além disso, também se demonstrou que o embargado nunca celebrou com o embargante qualquer negócio, e do qual pudesse emergir qualquer dívida, designadamente titulada pelo cheque dado à execução. Apurou-se, antes, que o embargado emprestou diversas quantias monetárias ao pai do embargante destinadas, designadamente, ao pagamento de fornecedores da sociedade A..., S.A., de que o executado é administrador, tendo o cheque dos autos sido entregue por aquele em virtude de tais empréstimos, nunca tendo o embargado entregue qualquer quantia monetária ao executado.
Logrou, desta forma, o embargante provar que, não tendo assumido para com o embargado qualquer obrigação, não reconheceu perante o mesmo qualquer dívida, desconhecendo mesmo que o cheque por si assinado fora entregue ao exequente.
Consequentemente, teriam de proceder os embargos de executado nos termos decididos pela sentença recorrida, que não merece qualquer censura.
Improcede, como tal, o recurso.


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Síntese conclusiva:

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, julgando improcedente a apelação, em confirmar a sentença recorrida.

Custas – pelo apelante: artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Notifique.

Porto, 21.03.2024
Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.
Judite Pires
Ernesto Nascimento
Paulo Dias da Silva
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[1] A referência, no texto da sentença, a exequente constitui lapso manifesto, que aqui se deixa corrigido.
[2] “A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., pág. 29.
[3] Processo  nº 3430/06.0TBVLG-A-P1, www.dgis.pt.
[4] Cfr., entre outros, Acórdãos da Relação do Porto de 31.01.2011e de 22.02.2011, processos nºs 960/08.3TBLMG-A.P1 e 5659/08.8TBVFR-B.P1, da Relação de Coimbra de 31.10.2006 e de 24.04.2012, processos nºs 820704.7TBCVL-A.C1 e 169/10.6TBCSC-B.C1, respectivamente, todos em www.dgsi.pt.  
[5] Neste sentido, entre outros, cfr. acórdãos da Relação de Coimbra de 21.11.2006, 13.04.2010, 15.03.2011, 13.09.2011, respectivamente, processos nºs 495/05.6TBILH-A.C1, 843/06.1TBPMS-A.C1, 1359/08.7TBMGR-A.C1, 936/10.0TJCBR-A.C1, www.dgsi.pt.
[6] Processo nº 172/08.6TBGRD-A.S1, www.dgsi.pt.
[7] Em idêntico sentido, cfr. acórdão da Relação de Coimbra de 21.11.2006, processo nº 495/05.6TBILH-A.C1, www.dgsi.pt
[8] Cfr., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2014 (Cons. Garcia Calejo), de 5.07.2018 (Cons. Sousa Lameira), de 12.12.2023 (Cons. Nelson Carneiro)
[9] Processo n.º 303/2002.P1.S1, www.dgsi.pt.
[10] Processo n.º 261/18.9T8MAI-A.P1, www.dgsi.pt.