Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
636/22.9T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: FALTA DE CITAÇÃO
LITISCONSÓRCIO VOLUNTÁRIO
CLÁUSULA PENAL
REDUÇÃO DA CLÁUSULA PENAL
Nº do Documento: RP20240408636/22.9T8AMT.P1
Data do Acordão: 04/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A falta de citação integra a nulidade prevista no art. 187º a) do CPC, a qual, não se mostrando sanada, é de conhecimento oficioso do tribunal e este pode ocorrer em qualquer estado do processo;
II – Estando em causa na ação uma situação de litisconsórcio voluntário, rege sobre tal situação processual o art. 190º b) do CPC, do qual decorre que nos autos “nada se anula” e que o autor apenas pode requerer a citação do réu em falta se o processo não estiver na altura de ser designado dia para a audiência final;
III – Não ocorrendo já esta última situação e que, tratando-se de litisconsórcio voluntário, cada litigante conserva uma posição de independência face aos demais compartes, a falta de citação de um não condiciona o andamento do processo quanto aos restantes, havendo a sentença que apreciar somente a situação jurídica daqueles que foram citados;
IV – Ainda que , como forma de liquidação prévia do dano, a cláusula penal dispense o recurso às normas estabelecidas para efeito do cálculo da indemnização e signifique que o devedor fica obrigado ao ressarcimento do dano fixado antecipadamente e negocialmente através daquela, para o efeito de se ponderar da sua redução não se pode deixar, de alguma forma, de ter em conta o quantum do dano efetivamente verificado, pois só um manifesto excesso de pena em relação a esse valor justifica a redução equitativa;
V – Referindo-se a cláusula ao inadimplemento, o tribunal não deverá fixar a pena abaixo do prejuízo sofrido pelo credor, pois a sua redução para além do limite do dano real esvazia a cláusula penal de todo o seu sentido útil;
VI – Tendo a cláusula penal sido acordada no pressuposto de um normal decurso do contrato e, assim, não pensada para casos em que o incumprimento se pudesse ficar a dever a motivo não imputável ao devedor e por este não controlável, como é o caso de encerramento de estabelecimento apenas ocorrido por causa do encerramento forçado da restauração para debelar a pandemia causada pelo vírus da Covid-19, este facto não pode deixar de ser valorado como motivo superveniente ao negócio a ponderar para o efeito da sua redução.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº636/22.9T8AMT.P1
(Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Amarante)



Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha
2º Adjunto: Maria de Fátima Almeida Andrade

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

A..., Lda.” intentou ação declarativa comum contra “B... Unipessoal, Lda.” e AA, pedindo a condenação solidária destas a pagar-lhe uma indemnização por incumprimento contratual no valor de 11.342,40 euros e o preço de fornecimentos no valor de 149,14 euros, ambas as quantias acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos, e ainda a condenação da primeira ré a devolver-lhe uma máquina de café 2 grupos, um moinho de café, uma máquina de lavar Jolly e um depurador de 8 litros.

Alegou para tal, em síntese, o seguinte:

- dedica-se à comercialização dos cafés e sucedâneos da marca ...;

- entre Janeiro de 2015 e Março de 2020, a primeira ré explorou o estabelecimento comercial denominado “B...” sito na Rua ..., ..., em ...;

- em 28 de Janeiro de 2015, ela e a primeira ré celebraram um contrato de fornecimento de café e publicidade da marca ..., que a ré AA subscreveu na qualidade de fiadora e principal pagadora;

- em cumprimento do nº2 da cláusula primeira do contrato, cedeu à primeira ré, em regime de comodato, duas máquinas de café 2 grupos, 2 moinhos de café, 1 máquina de lavar Jolly e 2 depuradores 8 litros, no valor de € 2.787,36 euros;

- de acordo com o disposto no nº1 da cláusula primeira, e como contrapartida das exclusividade e publicidade da marca ..., entregou à primeira ré a quantia de 7.000 euros a título de desconto especial antecipado;

- nos termos do nº1 da cláusula segunda, a primeira ré estava obrigada a consumir no seu estabelecimento comercial exclusivamente café marca ..., Lote Platinum, nas quantidades mensais de 25 kg, pelo prazo necessário ao consumo ininterrupto de 1.200 kg;

- em Abril 2020, a primeira ré deixou de consumir café da marca ..., Lote Platinum, e de comprar café à autora, tendo encerrado o estabelecimento sem qualquer pré-aviso, e também não pagou a última remessa de mercadorias que recebeu, de café e açúcar, no valor de €149,14 euros;

- nessa sequência, através de carta registada com aviso de receção que enviou à primeira ré em 12 de abril de 2021, resolveu o contrato em apreço;

- nos termos do nº3 da cláusula sexta do contrato foi estabelecida uma cláusula penal em caso de resolução do contrato por incumprimento, pelo que deve a primeira ré indemnizá-la no montante de 16,32 euros por cada quilo de café que faltou para o cumprimento integral do contrato;

- a primeira ré apenas comprou 505 kg de café;

- conforme disposto no nº4 da cláusula sexta, a primeira ré estava obrigada a restituir-lhe os bens comodatados no prazo de 10 dias contados da data da resolução.

Foi expedida carta registada com aviso de receção para citação da ré “B... Unipessoal, Lda.” em 12/5/2022 que veio a ser devolvida ao tribunal em 17/5/2022 com a menção “mudou-se”. Foi depois expedida nova carta registada com aviso de receção para citação daquela mesma ré em 17/5/2022 que veio a ser devolvida ao tribunal em 20/5/2022 com aquela mesma menção.

Depois da devolução destas cartas para citação daquela ré, nada no processo foi requerido nem ordenado no sentido da efetivação da sua citação – quer por via da sua citação pessoal por agente de execução, quer por via da sua citação edital, como previsto, respetivamente, nos arts. 231º e 236º do CPC.

A segunda ré, citada pessoalmente, deduziu contestação, na qual, em síntese, defende que a quantia de € 11 342,40 pedida pela autora a título de indemnização por incumprimento contratual – com base no número 3 da cláusula sexta do contrato e que configura, segundo defende, uma verdadeira cláusula penal – se afigura excessiva e desproporcionada face ao prejuízo sofrido por aquela.

Nesta linha, refere que a primeira ré constituía um estabelecimento de restauração de pequenas dimensões, que ela é uma pessoa singular também de condições modestas e que se encontra atualmente desempregada, que a autora, por sua vez, é uma sociedade comercial por quotas de grandes dimensões, com um capital social que ascende à quantia de € 2 500 000 (dois milhões e quinhentos mil euros), e daí que o prejuízo resultante para si seria sempre desproporcionadamente superior ao benefício obtido pela autora. Referiu ainda que não teve, nem tem, qualquer responsabilidade no incumprimento contratual verificado e que o incumprimento definitivo por parte da primeira ré apenas se verificou com o encerramento do estabelecimento, note-se, numa altura em que se decretou o encerramento de grande parte dos comércios do país em virtude do surto de Covid-19, inesperado, imprevisível e que constituiu um rude golpe para a restauração, sector de atividade fortemente prejudicado. Terminou a invocar o disposto no art. 812º do C. Civil e, considerando a referida cláusula manifestamente excessiva pelos motivos que expôs, defendeu, com base naquela norma, a fixação da indemnização num montante equitativo, mas em montante nunca superior a € 2 500,00.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador e despachos de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

Em consequência da recensão supra, julgo a acção parcialmente procedente, por provada e, nessa conformidade:

a) Condeno as rés a pagar solidariamente à autora uma indemnização por incumprimento contratual, no valor de € 2.780 euros (dois mil setecentos e oitenta euros);

b) Condeno as rés a pagar solidariamente à autora o valor dos fornecimentos em dívida, na quantia de € 149,14 euros;

c) Condeno as rés a pagar solidariamente juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias referidas em a) e b) desde a data da citação e até integral pagamento;

d) Condeno a 1.ª ré a devolver à autora, uma máquina de café 2 grupos, um moinho de café, uma máquina de lavar Jolly e um depurador de 8 litros.

e) Absolvo as rés do restante pedido.

Custas por autora e rés, na proporção do decaimento, sem prejuízo da dispensa de elaboração da conta e do benefício de apoio judiciário concedido à 2.ª ré.

De tal sentença veio a autora interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“A) Entende a recorrente que do elenco dos factos provados deveria constar o seguinte facto, que ficou provado e que consta alegado no artigo 21º. da petição inicial “A A. enviou à segunda Ré, carta registada com aviso de recepção em 21 de Abril de 2021 solicitando o pagamento da indemnização e dívida de fornecimentos.

B) Tal facto, resulta provado, além de outros documentos, pela carta enviada à Recorrida AA e que foi junta à p.i. como doc. 6 (segundo consta da sentença “carta de interpelação da fiadora “).

C) O presente recurso pretende uma apreciação sobre a forma como a Senhora Drª. Juiz, perante a matéria de facto apurada, interpretou, modificou e aplicou a cláusula penal estabelecida pelas partes, pois apesar de na fundamentação de Direito da douta sentença se poder ler “não é nitidamente desproporcionada em relação aos danos a ressarcir” e “ que não resulta para o predisponente uma vantagem injustificada “, acabou por decidir “ Todavia, apesar da referida cláusula não se revelar excessiva, em si, no caso concreto, afigura-se-nos que a aplicação da referida cláusula penal, se revelaria excessiva, tendo em conta os factos apurados em 5 a 7 dos factos provados”.

D) Os factos provados 5 e 6 reportam-se à fiadora no contrato, ora Recorrida, sendo irrelevante, no entender da Recorrente, para a matéria em discussão nos autos, se a segunda ré nunca explorou o estabelecimento ( facto 6 ) ou se deixou de lá trabalhar, já que a mesma foi demandada na qualidade de fiadora.

E) Ora, o nº. 2 do artº.627º do Código Civil estipula “A obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor “, o que significa que a fiança se determina pela obrigação do devedor principal, ou seja, é acessória da dívida principal. Portanto, a fiança fica subordinada e acompanha a obrigação afiançada.

F) Quanto ao principal devedor, Primeira Ré, na acção, resultou que “apenas cessou a compra de café devido ao encerramento forçado da restauração para debelar a pandemia causada pelo vírus da Covid-19” (facto provado 7).

G) Mas nada ficou provado sobre a sua situação patrimonial.

H) O Tribunal reduziu o montante resultante o valor da cláusula penal, que não considera excessiva, de € 16,32 para € 4,00, ou seja para um quarto do valor fixado no contrato a esse título, condenado as Rés a pagar uma indemnização no valor de € 2.780,00 que não corresponde sequer ao ressarcimento do interesse contratual negativo.

I)É que até o retorno do investimento efectuado correspondente a 695 quilos não consumidos, nos levaria a um montante de € 5.671,20 (695 quilos X € 8,16).

J) É pacifico o entendimento, trazendo à colação os ensinamentos de Calvão da Silva, citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.06.2018: “A intervenção judicial do controlo do montante da pena não pode ser sistemática, antes deve ser excecional e em condições e limites apertados de modo a não arruinar o legítimo e salutar valor coercitivo da cláusula penal e nunca perdendo de vista o seu carácter a forfait.

H) A decisiva condição legal da intervenção do tribunal é, por conseguinte, a presença, ao tempo da sentença, de uma cláusula manifestamente excessiva, - não basta uma cláusula excessiva, cuja pena seja superior ao dano -, de uma cláusula cujo montante desmesurado e desproporcional ao dano seja de excesso manifesto e evidente, numa palavra de excesso extraordinário, enorme, que salte aos olhos, tendo, portanto, uma desproporção evidente, patente, substancial e extraordinária, entre o dano causado e a pena estipulada, mas já não a ausência de dano em si.”

L) O único facto que resultou da matéria de facto provada é que o estabelecimento explorado pela Primeira Ré, fechou devido ao encerramento forçado da restauração provocado pelo vírus Covid 19, embora não tenham ficado provados quaisquer circunstâncias quanto a esse encerramento, nem sequer, o motivo pelo qual a actividade não foi retomada, como aconteceu com tantos outros estabelecimentos de restauração.

M) Entende a recorrente, que a ser operada uma redução, no valor da cláusula penal, tendo em conta a matéria de facto apurada e o regime da redução da cláusula penal, não obstante o estabelecimento ter encerrado, na data em que encerrou, nunca deverá ser reduzido para um valor inferior a dois terços do previsto no contrato, ou seja, para o valor de € 10,88 por cada quilograma não consumido, resultando a indemnização a pagar no valor de € 7.561 euro (€ 10,88 X 695 quilos).

N) Tendo em conta as interpelações efectuadas a 12 de Abril de 2021, os juros de mora deverão ser contabilizados desde a referida data, sendo a sentença igualmente corrigida, quanto a este segmento.

O) Resulta assim claramente houve uma redução da cláusula penal que não obedeceu aos requisitos do artº. 812º. do Código Civil, pelo que houve igualmente uma violação do estipulado nos artigos 810º, 811º e 812º. do Código Civil.

P) Da mesma forma resulta clara a violação do nº. 2 do artº. 627º do Código Civil, quanto à acessoriedade do regime da fiança e ainda dos artigos 804º e 805 do Código Civil.”

A ré AA apresentou contra-alegações, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do disposto no art. 657º nº4 do CPC.

Considerando o objeto do recurso delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC) e o conhecimento oficioso de determinadas questões, são as seguintes, por ordem lógica, as questões a tratar:

a) – da nulidade de falta de citação da ré “B... Unipessoal, Lda.”;

b) – da alteração à matéria de facto da decisão recorrida propugnada pela autora;

c) – apurar da eventual repercussão da reapreciação da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso, ou, independentemente de tal repercussão, se a decisão recorrida deve ser alterada, sendo nesta sede de apurar da redução da cláusula penal e dos termos da contabilização de juros de mora.


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II – Fundamentação

Vamos ao tratamento da questão enunciada sob a alínea a).

Como se deu conta no relatório desta peça, foram expedidas cartas registadas para citação da ré “B... Unipessoal, Lda.”, as mesmas vieram devolvidas e, depois da devolução de tais cartas para citação daquela ré, nada no processo foi requerido nem ordenado no sentido da efetivação da sua citação quer através de agente de execução quer por via da sua citação edital, como previsto, respetivamente, nos arts. 231º e 236º do CPC, ex vi do art. 246º nº1.

Por outro lado, não tendo aquela ré intervindo por si nos autos, neles deduzindo qualquer oposição ou constituindo mandatário, cumpriria ao tribunal verificar, como se prevê no art. 566º do CPC, se a citação foi feita com as formalidades legais e ordenar a sua repetição se verificasse irregularidades na mesma.

Porém, como se referiu, nada nesse sentido foi feito, e antes se prosseguiu no processo até ao julgamento e prolação da sentença final, na qual inclusivamente se proferiu condenação contra a mesma.  

Perante a devolução das cartas para citação da ré e por nada na sequência disso se ter ordenado no sentido de se enveredar pela sua citação através de agente de execução ou até, em fase posterior, pela sua citação edital, é de concluir que aquela ré não chegou a ter conhecimento da sua citação para a ação e nada se apurou no sentido de que a mesma tenha contribuído para tal, do que decorre a sua falta de citação por via da previsão da alínea e) do nº1 do art. 188º do CPC.

A falta de citação de tal ré integra a nulidade prevista no art. 187º a) do CPC, a qual, não se mostrando sanada (pela intervenção da ré nos autos – art. 189º do CPC), é de conhecimento oficioso do tribunal e este pode ocorrer em qualquer estado do processo, como se prevê nos arts. 196º e 200º nº1 do CPC.

Estando na ação em causa uma situação de litisconsórcio voluntário (foram demandadas a devedora e a sua fiadora, sendo que a lei – art. 641º nº1 do C. Civil – autoriza a demanda conjunta ou separada de qualquer delas), rege sobre a situação processual em análise o art. 190º b) do CPC, do qual decorre que nos autos “nada se anula” e que a autora apenas poderia requerer a citação em falta se o processo não estivesse na altura de ser designado dia para a audiência final, o que, no caso vertente, já não ocorre.

Ora, como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa no seu “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 3ª Edição, Almedina 2022, página 253, em anotação 3 ao art. 190º, “Tratando-se de litisconsórcio voluntário, visto que cada litigante conserva uma posição de independência face aos demais compartes, a falta de citação de um dos interessados não condiciona o andamento do processo quanto aos restantes, havendo a sentença que apreciar somente a situação jurídica daqueles que foram citados” (sublinhado nosso).

Nesta decorrência, e como nos parece óbvio, a ré “B... Unipessoal, Lda.”, por causa da sua falta de citação, não podia ter sido objeto de condenação na sentença proferida nos autos.

Como tal, é de dar sem efeito tal condenação.

Passemos para a segunda questão enunciada.

A recorrente, defendendo que o alegou no artigo 21º da sua petição inicial e que a sua prova resulta do documento nº6 que juntou com a sua petição inicial, pretende que seja aditado ao elenco de factos provados da sentença recorrida um item com o seguinte conteúdo “A A. enviou à segunda Ré, carta registada com aviso de receção em 21 de Abril de 2021 solicitando o pagamento da indemnização e dívida de fornecimentos.” (motivação e conclusões A e B do recurso).

Mas não lhe pode ser reconhecida razão.

Ressalvando o (tanto quanto nos parece) lapso evidente de escrita quanto ao dia daquele mês, pois a carta que consubstancia o documento referido pela recorrente é de 12 e não de 21 de abril, desde já se faz notar que, ao contrário do referido pela recorrente, aquela matéria factual não está assim alegada no artigo 21º da petição nem em qualquer seu outro ponto.

No artigo 21º da petição inicial, e bem diferentemente do que é o conteúdo do item factual que pretende aditar, a autora alegou: “A A. já interpelou diversas vezes as Rés, por carta e pessoalmente através dos seus representantes comerciais, para procederem ao pagamento da indemnização e da dívida de fornecimentos (doc. 6)”.

Como se vê, alega-se em relação a ambas as rés a sua interpelação por “diversas vezes”, sem especificação de data, e, não obstante ali se referir expressamente o doc. 6 junto, verifica-se que este integra a carta enviada pela autora à ré AA, datada de 12 de abril de 2021, e que no texto desta se faz menção ao envio a tal ré de “cópia da carta enviada à cliente” em que se procedeu à resolução do contrato, mas não consta de tal documento aquela própria carta.

Ora, além de ser de referir que, como se sabe, os documentos são elementos probatórios do alegado (servem para a sua prova ou não prova) mas não são, por si só, fonte de matéria fáctica não alegada, há que, por outro lado, fazer notar que aquele artigo da petição mostra-se impugnado pela ré AA no artigo 2º da sua contestação e do próprio expediente junto pela autora decorre que a carta em causa não foi sequer recebida pela mesma, pois a autora junta com a mesma o respetivo envelope e aviso de receção a ela devolvidos.

Como tal, improcede a pretendida alteração à matéria de facto.

Passemos às questões enunciadas sob a alínea c).

É a seguinte a factualidade a ter em conta [integrada pela constante da sentença recorrida, já que, como se viu, improcedeu a única alteração à mesma requerida pela recorrente; corrigem-se alguns pontos da mesma em obediência ao contrato referido nos autos e atribui-se numeração seguida a todos os seus pontos (em vez da dicotomia da sua identificação por letras e números perfilhada na sentença recorrida, por referência aos factos já considerados assentes aquando do despacho saneador e aos decorrentes do julgamento), o que se faz ao abrigo da competência de conformação da matéria de facto também atribuída à Relação pelos arts. 663º nº2 e 607º nº4 do CPC]:

Factos provados:

1 – A autora “A..., Lda.” dedica-se à comercialização dos cafés e sucedâneos da marca ..., tendo um capital social de € 2 500 000 euros.

2 – Entre janeiro de 2015 e março de 2020, a 1.ª ré “B... Unipessoal, Lda.” explorou o estabelecimento comercial denominado “B...” sito na Rua ..., ..., em ....

3 – Em 28 de Janeiro de 2015, a autora e a 1.ª ré outorgaram um contrato de fornecimento de café e publicidade da marca ..., que a 2.ª ré AA subscreveu na qualidade de fiadora e principal pagadora.

4 – Nos termos daquele contrato, a autora cedeu à 1.ª ré, em comodato, 2 máquinas de café 2 grupos, 2 moinhos de café, 1 máquina de lavar Jolly e 2 depuradores 8 litros, no valor de € 2.787,36 euros.

5 – A 1.ª ré comprometeu-se a consumir no seu estabelecimento comercial exclusivamente café marca ..., Lote Platinum, nas quantidades mensais de 25 kg, pelo prazo necessário ao consumo ininterrupto de 1.200 kg.

6 – A autora enviou à 1.ª ré uma carta registada com aviso de receção, em 12 de abril de 2021, comunicando que resolvia o contrato por incumprimento da 1.ª ré.

7 – Ficou naquele contrato clausulado, sob o nº3 da cláusula sexta, que em caso de resolução do contrato por incumprimento da 1.ª ré esta ficará obrigada a indemnizar a autora no valor de € 16,32 euros por cada quilo de café que faltar para o consumo de 1.200 kg acordado.

8 – E ficou também clausulado que, em caso de resolução, a 1.ª ré ficava obrigada a restituir os bens cedidos no prazo de dez dias contados da respetiva data.

9 – A autora, em contrapartida da exclusividade e publicidade da marca ..., entregou à 1.ª ré a quantia de € 7.000 euros, a título de desconto especial antecipado;

10 – Em abril 2020, a 1.ª ré deixou de consumir café da marca ..., Lote Platinum, e de comprar café à autora, tendo encerrado o estabelecimento;

11 – A 1.ª ré não pagou a última remessa de mercadorias que recebeu, café e açúcar, no valor de €149,14 euros;

12 – A 1.ª ré, no total, adquiriu 505 kg de café;

13 – A 2.ª ré está desempregada;

14 – Nunca explorou o estabelecimento;

15 – A 1.ª ré apenas cessou a compra de café devido ao encerramento forçado da restauração para debelar a pandemia causada pelo vírus da Covid-19.

[Não foram referidos quaisquer factos não provados]


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A cláusula do contrato referida sob o nº7 do elenco de factualidade provada (ali constante sob o nº3 da cláusula sexta), configura, como ambas as partes aceitam, uma cláusula penal, conforme previsão do art. 810º nº1 do C. Civil.

Efetivamente, definindo-se tal tipo de cláusula como sendo uma estipulação negocial que integra “uma forma de fixação antecipada e convencional do quantum respondeatur, em caso de inadimplemento (cláusula penal compensatória) ou de mora (cláusula penal moratória) do devedor”[1], é de reconhecer que aquela cláusula, na qual se prevê a forma de cálculo da indemnização devida em caso de incumprimento originador de resolução do contrato, se acondiciona perfeitamente àquela definição, sendo por isso uma cláusula penal compensatória.

A autora, na sequência da resolução contratual ocorrida (nº6 dos factos provados) e porque por via dela a ré “B... Unipessoal, Lda.” apenas veio a comprar-lhe 505 dos 1200 kg de café que se tinha obrigado a comprar, deduziu, com base naquela cláusula, pedido indemnizatório no montante de 11.342,40 euros, correspondente aos 695 kg de café a si não adquirido multiplicados pela quantia de 16,32 euros por quilo ali prevista.

Na sentença recorrida, decidiu-se reduzir aquele montante indemnizatório de 16,32 euros por quilo de café para 4 euros e, nessa sequência, veio a fixar-se a indemnização em 2.780 euros (695 x 4 = 2780), decisão esta de que, como se vê do recurso, a recorrente discorda.

Apuremos então da redução de tal cláusula e se é de manter ou alterar o decidido.

Nos termos do art. 812º nº1 do C. Civil, “A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente”.

Como forma de liquidação prévia do dano, a cláusula penal dispensa o recurso às normas estabelecidas para efeito do cálculo da indemnização[2], o que, como ensina João Calvão da Silva[3]significa que o devedor, vinculado à cláusula penal, não será obrigado ao ressarcimento do dano que efectivamente cause ao credor com o seu incumprimento ou incumprimento não pontual, mas ao ressarcimento do dano fixado antecipadamente e negocialmente através daquela, sempre que não tenha sido pactuada a ressarcibilidade do dano excedente (art. 811º, nº2)”.

Não obstante estas características a si inerentes, para o efeito de se ponderar da redução da cláusula penal com base na norma supra referida não se pode deixar, de alguma forma, de ter em conta o quantum do dano efetivamente verificado, pois, como refere Ana Filipa Morais Antunes[4], citando Sousa Ribeiro, “só um manifesto excesso de pena em relação a esse valor justifica a redução equitativa”.

A recorrente contrapõe ao decidido na sentença recorrida o seguinte: houve da sua parte um investimento para a celebração do contrato no montante global de € 9.787,36 euros, proveniente da quantia de 7.000 euros por si entregue a título de desconto antecipado referida sob o nº9 dos factos provados e do  valor de 2.787,36 euros do equipamento referido sob o nº4 dos factos provados; a primeira ré obrigou-se a consumir 1200 kg de café (nº5 dos factos provados), do que decorre um seu investimento por cada quilo de café de 8,16 euros (9.787,36 € : 1200 kg = 8,16 € por kg); logo, aos 695 kg de café não adquiridos pela primeira ré corresponde um não retorno do investimento que efetuou no montante de 5.671,20 euros (695 kg x 8,16 € = 5.671,20).

Isto é, a autora contabiliza o seu prejuízo pelo incumprimento contratual em 5.671,20 euros.

Face aos dados dos autos, subscrevemos tal raciocínio.

Com base na cláusula penal convencionada e no valor por quilo de café nela referido, o montante indemnizatório seria de fixar na quantia de 11.342,40 euros pedida pela autora.

Porém, a sra. Juíza, como já se referiu, reduzindo o valor de quilo de café ali previsto para 4 euros, fixou a indemnização em 2.780 euros.

Este valor está bem abaixo do montante de prejuízo da autora e, por isso, não se pode aceitar. Efetivamente, referindo-se a cláusula ao inadimplemento, o tribunal, como refere António Pinto Monteiro[5], não deverá fixar a pena abaixo do prejuízo sofrido pelo credor, pois a sua redução para além do limite do dano real esvazia a cláusula penal de todo o seu sentido útil.

Considerando que na redução da cláusula penal são suscetíveis de ser ponderados vários fatores[6], há desde logo que ter em conta que a cláusula em apreço terá sido acordada pressupondo um normal decurso do contrato e, naturalmente, não terá sido pensada para casos em que o incumprimento – integrado, no caso, pela cessação da compra de café (nº10 dos factos provados) –, se pudesse ficar a dever a motivo não imputável à primeira ré e por esta não controlável, como ocorre na situação dos autos, em que o mesmo apenas ocorreu por causa do encerramento forçado da restauração para debelar a pandemia causada pelo vírus da Covid-19 (nº15 dos factos provados). Portanto, um incumprimento motivado por circunstância exterior à primeira ré e a esta imposta, que veio ocasionar a sua “impotência de cumprir”[7].

Assim, ainda que sejam irrelevantes para a apreciação da redução em análise os factos referentes à ré AA referidos sob os nºs 13 e 14 dos factos provados (de a mesma estar desempregada e nunca ter explorado o estabelecimento), pois esta apenas figura como fiadora no contrato e tais factos não são relativos ao negócio de fiança nem à relação entre a fiadora e a credora[8], já aquele facto motivador do incumprimento da primeira ré não pode deixar de ser valorado e, nessa linha, somos a concluir que a referida cláusula, considerando o seu funcionamento à luz do momento da sua aplicação[9] e pelo motivo superveniente ao negócio que se referiu, se afigura manifestamente excessiva. Efetivamente, sendo a sua medida determinada pelo que faltava cumprir – pelos quilos de café que faltava adquirir –, este cumprimento, tanto quanto se provou, ficou comprometido apenas pelo encerramento do estabelecimento ditado pela pandemia.

Refira-se, por outro lado, que a primeira ré encerrou o estabelecimento e deixou de comprar café à autora em abril de 2020 (nº10 dos factos provados) e que a autora apenas um ano depois veio a resolver o contrato (nº6 dos factos provados), do que decorre que deu tempo bem suficiente àquela ré para ponderar e/ou acautelar o incumprimento em que estava e algo fazer no entretanto para o minorar ou ultrapassar. No entanto, nada se apurou sobre uma qualquer conduta daquela ré para com a autora que depois daquele encerramento tenha tido lugar.

Tudo ponderado, e sem perder de vista o não esvaziamento do seu sentido útil, entendemos que é caso para a redução da cláusula penal em referência, embora não na expressão decidida na sentença recorrida e antes apenas para 2/3 do valor de 16,32 euros por quilo de café nela referido, ou seja para 10,88 euros, como aliás subsidiariamente aceite pela recorrente sob a conclusão M) do recurso [também no sentido da redução da cláusula penal por motivo de encerramento de estabelecimento motivado pela Covid-19, vide, por exemplo, o Acórdão desta mesma Relação de 14/12/2022, proferido no proc. nº299/21.9T8MAI-A.P2, disponível em www.dgsi.pt].

Assim, considerando tal valor, fixa-se a indemnização pelo incumprimento em 7.561 euros (€ 10,88 x 695 quilos).

Passemos agora aos termos da contabilização de juros de mora.

Como decorre da matéria de facto, não se apurou uma qualquer data concreta em que a ré AA tenha sido notificada da resolução do contrato ou tenha sido interpelada para pagamento à autora da indemnização contratual.

Como tal, os juros devidos sobre a quantia acima decidida, à taxa legal, contam-se desde a citação (arts. 805º nº1 e 806º nºs 1 e 2 do C. Civil).

As custas da ação e do recurso ficam a cargo da autora e da ré AA na proporção do respetivo decaimento (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário a esta última concedido.


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se no seguinte:

- em dar sem efeito a condenação da ré “B... Unipessoal, Lda.” decidida na sentença recorrida (em relação à sua condenação solidária sob as alíneas a), b) e c) do dispositivo final e em relação à sua condenação individual sob a alínea d) desse mesmo dispositivo);

- em, julgando parcialmente procedente o recurso, condenar a ré AA a pagar à autora a quantia de 7.561 euros a título de indemnização por incumprimento contratual;

- em manter a condenação apenas desta ré AA quanto ao mais decidido na sentença recorrida (quanto à quantia de 149,14 euros e quanto a juros de mora, respetivamente sob as alíneas b) e c) do dispositivo final).

 Custas da ação e do recurso pela autora e pela ré AA na proporção do respetivo decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário a esta última concedido.


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Porto 8-4-2024.
Mendes Coelho
Eugénia Cunha
Fátima Andrade

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[1] António Pinto Monteiro, “Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil”, Coimbra, 1985, pág. 137
[2] Neste sentido, António Pinto Monteiro, obra referida na nota 1, págs. 136 e 137
[3] “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, Coimbra, 1987, págs. 246 e 247.
[4] In “Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações”, Universidade Católica Editora, pág. 1174, anotação ao art. 812º.
[5] Obra referida na nota 1, págs. 142 e 143, na nota de rodapé número 306.
[6] No “Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações”, Universidade Católica Editora, pág. 1174, em anotação ao art. 812º, refere Ana Filipa Morais Antunes (aludindo a vários autores que ali identifica), designadamente: (i) a gravidade do incumprimento; (ii) o interesse das partes; (iii) as vantagens que, para o devedor, resultam do incumprimento; (iv) o interesse do credor na prestação; (v) o prejuízo efetivo do credor; (vi) a situação económica de ambas as partes; (vii) a boa o, António Pinto Monteiro, obra referida na nota 1, págs. 136 e 137
[3] “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, Coimbra, 1987, págs. 246 e 247.
[4] In “Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações”, Universidade Católica Editora, pág. 1174, anotação ao art. 812º.
[5] Obra referida na nota 1, págs. 142 e 143, na nota de rodapé número 306.
ou má fé das partes; (viii) a natureza e a finalidade do contrato; (ix) as circunstâncias em que foi negociado; (x) a finalidade prosseguida com a estipulação da cláusula penal.
[7] A expressão é utilizada pelo Professor Calvão da Silva na obra referida na anterior nota 3, a págs. 275, a propósito das circunstâncias a ponderar em sede de apreciação do carácter manifestamente excessivo da cláusula penal.  
[8] No sentido de serem os factos relativos ao negócio de fiança e à relação entre o fiador e o credor os que integram o âmbito dos meios próprios de defesa do fiador, vide “Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações”, Universidade Católica Editora, pág. 804, anotação V ao art. 637º da autoria de Evaristo Mendes.
[9] Neste sentido, vide autores e obra citada na nota 4 e mesma página ali referida (1174).