Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3922/18.9T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
LUGAR DE GARAGEM
AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO
Nº do Documento: RP202501273922/18.9T8GDM.P1
Data do Acordão: 01/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Decorre do art. 1415º do C. Civil que só pode existir propriedade horizontal sobre uma fração autónoma e que esta deverá ser constituída por parte específica do edifício com as características ali referidas.
II – O lugar de garagem/estacionamento aberto para os corredores de circulação automóvel da garagem coletiva do edifício constituído em propriedade horizontal onde se encontra preenche aquelas características.
III – A propriedade sobre tal lugar de garagem, ainda que integrado numa fração, é passível de, por o mesmo constituir uma parte que reúne as características previstas no art. 1415º do C. Civil, ser adquirida por usucapião nos termos previstos no art. 1417º nº1.
IV – Para que a renúncia a um direito se possa afirmar como efetiva, a mesma pressupõe, nos termos gerais, a consciência e a vontade de renunciar pelo sujeito renunciante; tal renúncia tem de se sustentar numa vontade qualificada, isto é, madura, livre, esclarecida e lícita, no plano da motivação, pois é necessário que a vontade do renunciante se oriente no sentido da produção daquele efeito, o qual é objeto de tutela do ordenamento jurídico porque justamente foi querido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº3922/18.9T8GDM.P1

(Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 2)

Relator: António Mendes Coelho

1º Adjunto: Miguel Fernando Baldaia Correia de Morais

2º Adjunto: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

“A..., Lda.” propôs ação declarativa comum contra AA, pedindo o seguinte:

a) Deve a R. reconhecer o direito de propriedade da A. sobre o lugar de estacionamento “…” marcado em planta como “...”, parte integrante da fração autónoma “J”;

b) Devem a R. cessar o uso e entregar o espaço de estacionamento na cave – lugar “…” que em planta corresponde ao lugar “X-27” devoluto de pessoas e bens;

c) Deve a R. abster-se de usar quaisquer espaços de estacionamento pertença da aqui A. sem que para tal esteja legitimada;

d) Deve a R. ser condenada a liquidar à A. o montante de € 1 500,00 referente à ocupação do espaço de estacionamento, tendo em conta o prazo de prescrição de cinco anos;

e) Deve a R. ser condenada a liquidar o montante de € 25,00 por mês até efetiva desocupação e entrega do espaço de estacionamento, acrescido de juros de mora à taxa legal.”

Alegou para tal, em síntese, o seguinte:

- é proprietária da fração autónoma designada pela letra J de prédio em propriedade horizontal sito na Rua ... nºs ... a ... e Rua ... nºs ... a ..., na união de freguesias ... e ..., concelho de Gondomar, a qual tem afetação comercial, e da qual fazem parte integrante, além do espeço destinado a comércio propriamente dito, 11 lugares de estacionamento na cave e ali demarcados, 12 espaços de arrumo no quarto andar e 14 espaços de arrumo no sétimo andar;

- os funcionários do seu departamento comercial vinham-se apercebendo, já há algum tempo, que os lugares de estacionamento de sua pertença na cave e cujo gozo não tinha sido por si cedido a qualquer pessoa eram ocupados de forma sistemática e contínua por veículos automóveis cujos proprietários desconheciam, pelo que encetou diligências no sentido de os identificar;

- obtida por si a informação sobre a propriedade dos veículos, foram por si enviadas missivas para os ocupantes daqueles lugares afirmando a sua propriedade de tais espaços, intimando-os para os desocuparem e disponibilizando-se para os arrendar;

- à ré foi enviada missiva daquele teor em 11 de outubro de 2018, que a mesma recebeu em 15 de outubro, e nessa sequência entrou em contacto consigo para formalizar contrato de arrendamento para o lugar marcado no local como “…” e que em planta corresponde ao lugar “…”, o qual vieram a celebrar em 1 de novembro de 2018 e para vigorar a partir de tal data;

- no dia 12 de novembro de 2018 recebeu uma missiva da ré envida por esta a 9 de novembro, na qual esta afirma que procede à “revogação da assinatura” daquele contrato e informa que continuará na posse daquele lugar de garagem, “o que acontece há cerca de 20 anos, ou seja, desde a celebração da escritura de compra e venda da fração”;

- a ré é ocupante ilegítima daquele espaço de estacionamento, o que lhe causa prejuízo; os espaços de estacionamento têm o valor arrendatício de € 25,00 mensais, valor esse reconhecido e aceite pela ré com a assinatura do contrato de arrendamento.

A ré apresentou contestação, na qual solicitou a apensação de ações, invocou a exceção de ilegitimidade ativa (por preterição de litisconsórcio necessário ativo com a Autoridade Tributária e Aduaneira) e de ilegitimidade passiva (por preterição de litisconsórcio necessário passivo com todos os condóminos da entrada ...) e impugnou a factualidade alegada pela autora no sentido da sua pretensão.

Naquela mesma peça, na sequência de ter alegado que adquiriu por compra e venda a sua fração em 23 de outubro de 2001 e também aquele lugar de garagem aos vendedores de tal fração – embora naquela altura o mesmo estivesse ainda em fase final de licenciamento por parte do construtor junto da Câmara Municipal ... –, que nessa data tomou posse de tal fração, que nessa data lhe foram entregues pelos vendedores as chaves de acesso às garagens, que sempre manteve na sua posse tais chaves e comando do portão, que sempre limpou e cuidou do seu lugar de garagem ao longo dos anos, que sempre pagou condomínio pelo seu uso, que todos estes atos foram por si praticados à luz do dia e com conhecimento de todos os condóminos, que sempre agiu na certeza de que com tais atos não violava direitos de quem quer que fosse e que era proprietária de tal lugar de garagem, deduziu reconvenção na qual, invocando a aquisição de tal lugar de garagem por usucapião, formulou os seguintes pedidos:

1. Ser declarado por sentença e A. reconvinda ser condenada a reconhecer que o lugar de garagem “…”, a que agora a A. apelida de “…”, existente na cave do prédio com entradas pelos n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... da Rua ... nºs ... a ... e ... em ... – Gondomar, não faz parte integrante da fracção “J”, inscrita na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., mas, ao invés, é propriedade da R. reconvintes por o haverem adquirido por usucapião.

Consequentemente:

2. Deve a A. ser condenada a proceder à rectificação da escritura de propriedade horizontal de acordo com a realidade da área construída e que faz parte integrante de todo o Edifício ..., devendo para tal proceder à convocação de todos os condóminos para o efeito;

3. Deve ser ordenado à Câmara Municipal ..., que com a maior brevidade possível, proceda às vistorias que muito bem entender, informando o Tribunal das diligencias que levar a efeito, para que se inicie o procedimento excepcional de regularização e legalização do referido prédio, ao abrigo REGIME JURÍDICO DA LEGALIZAÇÃO (D.L. nº 136/2014 ), tendo presente as ilegalidades e irregularidades existentes no referido Edifício ..., sito em ... – Gondomar.

4. Deve ser ordenado ao Serviço de Finanças de Gondomar, que proceda à retificação das áreas cobertas que na matriz se encontra averbadas àquele prédio, no que concerne às fracções “J” e “O”;

5. Deve ser ordenado à Conservatória do Registo Predial de Gondomar, que proceda à retificação da descrição do referido prédio, por forma a que seja dela eliminado as fracções (DK; DL; DM; DN; DO; DP; e DT; DJ) as primeiras seis com entrada pelo n.º ..., e as outras duas com entrada pelo n.º ..., todas na Rua ... em ... – Gondomar, por não existirem;

6. Deve a A. reconvinda ser condenada a pagar a R. reconvintes, a quantia de € 1.500,00, a título de indemnização por danos morais, acrescida dos juros de mora legais que se vencerem após a citação.

A autora apresentou réplica, nela pugnando pela não apensação de ações, pela improcedência das exceções invocadas e pela improcedência da reconvenção.

Por despacho de 3/6/2019, foi indeferida a apensação de ações.

Por despacho de 6/3/2020 (proferido em conclusão de 28/2/2020), foi fixado o valor da causa, considerando a ação e a reconvenção, em €446.217,47, e ordenou-se que, após trânsito, os autos fossem remetidos ao Juízo Central Cível do Porto.

De tal despacho veio a ser interposto recurso pela autora, tendo na sua sequência sido confirmada a respetiva decisão por acórdão deste Tribunal da Relação de 12/4/2021.

Teve lugar audiência prévia.

Na sua sequência, e após aquela, a 11/4/2022, foram proferidos os seguintes despachos:

- despacho a admitir a reconvenção quanto ao primeiro pedido nela deduzido e a não a admitir quanto aos segundo a sexto pedidos;

- despacho saneador, em sede do qual se julgaram improcedentes as exceções de ilegitimidade deduzidas pela ré e se decidiu não admitir o pedido descrito na alínea c) da petição inicial, dele se absolvendo a ré da instância;

- despacho a enunciar os factos não controvertidos ou não carecidos de prova, que se descriminam sob os pontos com os nºs 1 a 16, e os temas da prova, estando estes últimos enunciados sob dois pontos, com os nºs 20 e 21 e com a seguinte redação:

20 – Desde data anterior a 24 de julho de 1998, ininterruptamente, e até data não anterior a 23 de outubro de 2001, a declarante vendedora referida no ponto 8 – ou seus antepossuidores –, com exclusão de terceiros, aparcou a sua viatura no lugar de estacionamento designado por ... (ou ...), convicta de não ofender o direito de outrem e de ser sua dona, com conhecimento dos demais moradores do prédio.

21 – O espaço de estacionamento ... (ou ...) tem o valor locatício individual de € 25,00 mensais.”.

Tais despachos foram notificados às partes, não tendo, por qualquer delas, sido deduzida qualquer oposição em relação ao conteúdo dos mesmos.

Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

Pelo exposto e tudo ponderado, nos termos das disposições legais acima citadas, julgo a acção improcedente e procedente a reconvenção e, consequentemente, decido:

A- Absolver a ré, AA, dos pedidos contra si formulados pela autora, A... Lda.;

B- Condenara a autora/reconvinda, A... Lda., a reconhecer que a ré/reconvinte, AA, é dona e legítima possuidora, no “Edifício ...” do lugar de estacionamento designado por ... (ou ...), que é lugar de garagem que consta da planta da Câmara Municipal ... como lugar ....


*

Custas da acção e da reconvenção pela autora.

De tal sentença veio a autora interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Vem a Recorrente recorrer da douta sentença datada de 26/01/2024, referência citius n.º 447455397, proferida em primeira instância pelo Meritíssimo Juiz do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, quer quanto à matéria de facto (por entender que foram julgados menos acertadamente os factos j), q), t), u) e v) dados como provados), quer quanto à matéria de direito.

2. Quanto ao facto q) deve ser considerado não provado porque: (1) não é possível entender qual a concreta data em que o Tribunal pretende fazer retroagir o início da posse da Recorrida sobre o lugar de garagem ... (ou ...); (2) a Ré alega que não participou nas negociações anteriores ao negócio de compra e venda; (3) a testemunha BB nunca confirmou no seu depoimento que a anterior proprietária tinha mostrado à Ré o lugar de garagem ... (ou ...), aquando da negociação; (4) não foi produzida prova nos autos relativamente à posse do lugar de garagem pela anterior proprietária, ignorando-se quando é que entrou na posse do lugar de garagem, se acreditava ou não estar a ofender direito de terceiro, e se a sua posse era ou não do conhecimento dos restantes moradores.

3. Deve ser retirado do facto t) o segmento «pagando condomínio» e aditado o seguinte facto «A Autora efectuava o pagamento das quotas de condomínio e IMI respeitantes à fracção J, onde se inclui o lugar de garagem com a letra ... (ou ...) que integrava», porquanto:

- O Tribunal a quo não menciona o que foi dito pelas Testemunhas CC e BB e pela Ré quanto ao pagamento das quotas de condomínio devidas pela ocupação e uso do lugar de garagem ... (ou ...), não sendo possível compreender em que concretos factos funda a sua convicção.

- O legal representante da Ré afirma que era esta que efectuava o pagamento das quotas de condomínio e do IMI, ignorando-se a razão pela qual o Tribunal a quo não considerou este depoimento.

- A Testemunha CC limitou-se a afirmar que tal lhe fora dito pela Ré; a Ré nunca referiu que efetuou o pagamento de tais montantes; e a Testemunha BB desconhecia o pagamento dessas quotizações.

4. A Recorrente não se conforma com a redação dada aos factos j), t) e v) e entende que o facto u) deve ser retirado da factualidade dada como provada e com base nos seguintes fundamentos:

- Os factos j), t), v) e u) não têm respaldo na prova produzida e não são consonantes com a normalidade dos factos e com as regras da experiência comum;

- A Recorrida não ignorava – e reconhece inclusive no depoimento que prestou – que comprava apenas a fração habitacional “CS” por ser esse o único objeto da escritura pública de compra e venda datada de 23/10/2001 junta aos autos com a contestação como documento n.º 7.

- A Autora não ignorava, nem ignora, que existem dois condomínios: um que faz a gestão das frações habitacionais, e outro que faz a gestão das frações destinadas a comércio e dos lugares de garagem e dos arrumos que lhes pertencem.

- Autora não ignorava que a maioria dos lugares de garagem pertencem às frações destinadas a comércio e este facto era do conhecimento geral dos residentes do Edifício ....

- A Ré nunca diligenciou no sentido de perceber se era efetivamente proprietária do lugar de garagem que ocupa, como lhe era exigível, pois não se concebe que alguém se ache proprietário do mesmo sem pagar IMI e quotas de condomínio.

- A Recorrida, com a assinatura do contrato de arrendamento não habitacional com prazo certo reconheceu que não ignorava não ser proprietária do lugar de garagem … (ou …), pois, caso contrário, ter-se-ia recusado a assinar e não teria procurado a Autora para firmar tal negócio com a mesma.

- A Testemunha BB afirmou que se verificou uma ocupação ilícita dos espaços da Autora.

5. Com base nos fundamentos suprarreferidos, e que permitem apenas concluir que a Ré não ignorava não ser proprietária do lugar de garagem objecto dos presentes autos, a Recorrente pretende assim o aditamento de um facto (cuja redacção é a seguinte: «Desde 23 de Outubro de 2001 que a Ré ocupa ilicitamente o lugar de garagem designado pela letra ... (ou ...), porquanto não ignora não ser sua proprietária e nunca o ter adquirido, tendo vindo a actuar na convicção de que está a lesar do direito da Autora») e a alteração da redacção dos factos j), t) e v) nos seguintes termos:

● Facto j): «Desde 23 de Outubro de 2001, ininterruptamente, e até data não anterior a 24 de Julho de 2018, a ré aparca a sua viatura no lugar de estacionamento designado por ... (ou ...), com conhecimento dos demais moradores do prédio».

● Facto t): «A ré sempre limpou e cuidou do seu lugar de garagem ao longo dos anos, o que era do conhecimento de todos os condóminos e das pessoas das suas relações»;

● Facto v): «Naquele espaço, guarda o seu carro, abre e fecha a porta da garagem»

6. A Recorrente não se conforma com a douta decisão recorrida, que a condenou a reconhecer que a Ré, ora Recorrida, é dona e legítima possuidora do lugar de estacionamento designado por ... (ou ...), que faz parte da fração “J” do Edifício .... Não se conformando, ainda, com os fundamentos em que sustentou a sua decisão.

7. A Recorrida não logrou afastar a presunção de má-fé por a sua posse ser não tituladavide artigos 1258.º, 1259.º e 1258.º, todos do Código Civil. Desde logo porque nunca procurou saber se era a efetiva proprietária, nunca pagou as quotas de condomínio nem o IMI, confessou saber que existiam duas administrações de condomínio e reconheceu de forma inequívoca (com a celebração do contrato de arrendamento) que não era proprietária do lugar de garagem objeto dos presentes autos. Ademais, não é possível conceber que a Ré, sem culpa, se considerasse titular do direito de propriedade sobre o lugar de garagem ... (ou ...), quando sabia que a escritura de compra e venda que celebrou não contemplava tal lugar de garagem.

8. A Recorrida tinha todas as condições para conhecer o proprietário do lugar de garagem ... (ou ...) e saber que estava a lesar direito de terceiro, e tal só não aconteceu porque não teve o cuidado que seria esperado de uma pessoa diligente, atuação que a lei não protege (com o artigo 1260º do Código Civil).

9. A Recorrida não ignorava que estava a lesar o direito de propriedade da Recorrente e que o lugar de garagem nunca lhe pertenceu e, por isso, a sua posse é caracterizada como sendo não titulada e de má-fé. A aquisição do direito de propriedade sobre o lugar de garagem designado por ... (ou ...) estava, assim, dependente do decurso do prazo de 20 (vinte) anos nos termos do artigo 1296.º do Código Civil.

10. Pese embora não seja possível entender qual a concreta data em que o Tribunal a quo pretende fazer retroagir o início da posse da Recorrida sobre o lugar de garagem ... (ou ...), parece à Recorrente foi pretensão do mesmo fazê-la retroagir ao momento em a mesma foi adquirida pela anterior proprietária.

11. Para efeitos do início da contagem do prazo da usucapião apenas podemos considerar a data em que a Recorrida entrou na posse do lugar de garagem (dia 23/10/2001 - data em que celebrou o contrato de compra e venda), porquanto desconhecemos quando é que a anterior proprietária/antepossuidora tomou posse do lugar de garagem, e se a mesma ignorava ou não estar a lesar o direito de outrem, dado não ter sido efetuada qualquer prova.

12. O decurso do prazo da usucapião interrompeu-se no dia 24/07/2018 (data em que a Ré se arrogou proprietária do lugar de garagem objeto dos presentes autos), tendo decorrido 18 (dezoito) anos ao invés dos 20 (vinte) anos necessários à aquisição da propriedade do lugar de garagem ... (ou ...) pela Recorrente.

13. O início de uma relação possessória não teve lugar em 1998, nem em 1989/90 e não decorreram 20 (vinte) anos desde o início da posse da Ré, pelo que, smo, mal andou o Tribunal recorrido ao decidir nos termos da sentença ora posta em crise, impondo-se a sua substituição por douto acórdão que conclua pela tal improcedência total da reconvenção.

14. O lugar de garagem designado pelo n.º … (ou …) que integra a fração “J” não é passível de ser objeto de usucapião porque: (1) tal implica a divisão da fração “J” em duas novas frações autónomas - uma para o lugar de garagem ... (ou ...) e a outra para o remanescente da fração “J”; (2) a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal; e (3) o registo dessa modificação.

15. O lugar de garagem “...” (ou ...) só poderá autonomizar-se e constituir uma fração autónoma se estiverem verificados todos os requisitos legais para o efeito – artigo 1414º e 1415º do Código Civil, e normas urbanísticas aplicáveis ao caso em apreço.

16. Sucede que a Ré não alegou e não provou factos aptos a demonstrar que o lugar de garagem ... (ou ...) constitui uma unidade independente, distinta e isolada, com saída para uma parte comum do prédio ou para a via pública, ou seja, que podia constituir uma fração autónoma ao abrigo do disposto nos artigos 1414º e 1415º do CC. Por sua vez, a sentença recorrida também não refere que características permitiriam àquele lugar de garagem preencher tais requisitos legais.

17. No que respeita às normas urbanísticas, a Ré não alega, e por isso não prova, se o lugar de garagem “...” (ou ...) as cumpre na integralidade, estando apto a constituir uma fração autónoma e a requerer junto da entidade municipal competente a respetiva licença de utilização. E na sentença recorrida, o Tribunal a quo é completamente omisso quanto a esta matéria.

18. Desconhece-se se:

- O lugar de garagem “...” (ou ...) reúne todas as condições de segurança, salubridade e estética mais adequadas à sua finalidade e utilização artigo 15º do RGEU.

- O estado atual do lugar de garagem “...” (ou ...) garante a satisfação das exigências essenciais de resistência e estabilidade, de segurança na sua utilização, em caso de incêndio, de higiene, saúde, proteção do ruído, de economia de energia, de isolamento térmico, entre outras exigências técnicas que permitam a sua funcionalidade e durabilidade - artigo 17º do RGEU.

- São cumpridas as condições mínimas impostas pelo artigo 78º do RGEU.

- Estão reunidas todas as condições legais para a alteração da licença de utilização da fração “J”, uma vez que a sua constituição iria sofrer alterações artigo 4º, n.º 5 e artigo 62º, n.º 2 do RJUE.

- Estão reunidas as condições para o lugar de garagem “...” (ou ...) obter licença de utilização junto da Câmara Municipal ..., - artigo 4º, n.º 5, artigo 62º-A, artigo 63º, n.º 1, artigo 66º, n.º 1 todos do RJUE, e Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação (RMUE) do Município ....

- A divisão da fração “J” e a constituição de uma nova fração autónoma pelo lugar de garagem “...” (ou ...) cumpre as condições previstas no RMUE do Município ..., entre outros regulamentos municipais aplicáveis à situação em apreço.

O Tribunal a quo e a Ré não tiveram em as normas urbanísticas aplicáveis, com natureza imperativa, como se impunha, inexistindo qualquer ponderação acerca do (in)cumprimento das normas imperativas de direito do urbanismo e da possibilidade do lugar de garagem “...” (ou ...) poder ser considerada uma nova fração autónoma.

19. A divisão da fração “J” em duas novas frações autónomas, a consequente modificação do título constitutivo da propriedade horizontal e o seu registo, é legalmente inadmissível no caso em apreço porquanto: (1) o título do prédio em apreço não o autoriza expressamente; (2) não se provou ter existido uma assembleia de condóminos para deliberar sobre a divisão da fração autónoma “J” em duas novas frações autónomas, cuja proposta tenha sido aprovada sem oposição; (3) não foi junto aos autos documento emitido pela Câmara Municipal ... que ateste a legalidade de tal modificação; – vide artigos 1418º, 1419º, n.º 1 e 1422º-A, n.º 3, todos do Código Civil, artigo 2º, n.º 1, alínea b) do Código do Registo Predial e artigo 60º do Código do Notariado.

20. Não observadas as regras de definição de uma fração autónoma, de divisão de frações em novas frações autónomas e consequente modificação do título constitutivo de propriedade horizontal e seu registo.

21. Para além de se verificam no caso em apreço disposições legais em contrário e que impedem a usucapião (artigo 1287º do CC), a usucapião recai sobre um objeto legal e fisicamente impossível pelo sempre seria nula nos termos do disposto nos artigos 294º e 280º do CC ex vi artigo 295º do CC.

22. Atento o exposto, smo, mal andou o Tribunal recorrido ao decidir nos termos da sentença ora colocada em crise, impondo-se a sua substituição por douto acórdão que reconheça a propriedade da fração autónoma ... (ou ...) à Recorrente.”

A ré apresentou contra-alegações, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são as seguintes as questões a tratar:

a) – da impugnação da matéria de facto da decisão recorrida;

d) – do direito de propriedade sobre o lugar de garagem referido nos autos, apurando-se se é de o reconhecer como pertencente à autora e, nesse caso, apurar das quantias indemnizatórias por si peticionadas, ou se ocorreu a sua aquisição por usucapião por parte da ré/reconvinte.


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II – Fundamentação

Vamos à questão enunciada sob a alínea a).

A recorrente, com base na sua interpretação de depoimentos, cujos excertos indica por referência aos minutos da respetiva gravação e transcreve [declarações de parte da ré, depoimentos das testemunhas CC e BB e declarações de parte do legal representante da autora, DD], pretende a alteração do julgamento da matéria de facto efetuado pelo tribunal recorrido nos seguintes termos:

- defende que a alínea j) dos factos provados [cujo conteúdo é: “Desde 23 de Outubro de 2001, ininterruptamente, e até data não anterior a 24 de Julho de 2018, a ré, com exclusão de terceiros, aparca a sua viatura no lugar de estacionamento designado por ... (ou ...), convicta de não ofender o direito de outrem e de ser sua dona, com conhecimento dos demais moradores do prédio”] deve ser alterada e passar a ter a seguinte redação: “Desde 23 de Outubro de 2001, ininterruptamente, e até data não anterior a 24 de Julho de 2018, a ré aparca a sua viatura no lugar de estacionamento designado por ... (ou ...), com conhecimento dos demais moradores do prédio”;

- defende que a factualidade da alínea q) dos factos provados [cujo conteúdo é: “Desde data anterior a 24 de Julho de 1998, ininterruptamente, e até data não anterior a 23 de Outubro de 2001, a declarante vendedora acima referida, com exclusão de terceiros, aparcou a sua viatura no lugar de estacionamento designado por ... (ou ...), convicta de não ofender o direito de outrem e de ser sua dona, com conhecimento dos demais moradores do prédio”] deve ser considerada como não provada;

- defende que a alínea t) dos factos provados [cujo conteúdo é: “A ré sempre limpou e cuidou do seu lugar de garagem ao longo dos anos, pagando condomínio pelo seu uso, convencida de que estava a usar um bem de sua propriedade, o que era do conhecimento de todos os condóminos e das pessoas das suas relações”] deve ser alterada e passar a ter a seguinte redação: “A ré sempre limpou e cuidou do seu lugar de garagem ao longo dos anos, o que era do conhecimento de todos os condóminos e das pessoas das suas relações”;

- defende que a alínea u) dos factos provados [cujo conteúdo é: “Convencida de que tinha adquirido aquele lugar de garagem à vendedora, convencida de que não lesava direitos de quem quer que fosse”] deve ser retirada dos factos provados;

- defende que a alínea v) dos factos provados [cujo conteúdo é: “Naquele espaço, guarda o seu carro, abre e fecha a porta da garagem, como autêntica proprietária e na convicção de o é de facto”] deve ser alterada e passar a ter a seguinte redação: “Naquele espaço, guarda o seu carro, abre e fecha a porta da garagem”;

- defende que deve ser aditado aos factos provados um segmento com a seguinte redação: “A Autora efetuava o pagamento das quotas de condomínio e IMI respeitantes à fração J, onde se inclui o lugar de garagem com a letra ... (ou ...) que integrava”;

- defende ainda que deve ser aditado aos factos provados um segmento com a seguinte redação: “Desde 23 de Outubro de 2001 que a Ré ocupa ilicitamente o lugar de garagem designado pela letra X-... (ou ...), porquanto não ignora não ser sua proprietária e nunca o ter adquirido, tendo vindo a atuar na convicção de que está a lesar do direito da Autora”.

Cumpre notar que, nos termos do art. 607º nº5 do CPC, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (essa livre apreciação só não abrange as situações referidas na segunda parte de tal preceito), não se podendo esquecer que o tribunal, nos termos do art. 413º do CPC, “deve tomar em consideração todas as provas produzidas”.

Ou seja, a prova deve ser apreciada globalmente, sendo de evidenciar em sede de recurso o disposto no art. 662º nºs 1 e 2, alíneas a) e b), do CPC, de onde se conclui que a Relação “tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” (como refere António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, 2018, pág. 287).

De referir também que além da sua autonomia decisória relativamente à apreciação da matéria de facto nos termos que supra se referiu, a Relação não está limitada à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, devendo atender a todos quantos constem do processo, independentemente da sua proveniência (conforme refere aquele autor naquela mesma obra, a págs. 293).

Apreciemos então.

Comecemos pelas alíneas j), t), u) e v) dos factos provados.

A matéria da alínea j) – que no que se refere ao balizamento de datas ali mencionado decorre de matéria provada e não questionada no recurso, pois a data de 23 de outubro de 2001 é a da compra e venda pela qual a ré/reconvinte adquiriu a sua fração autónoma [alínea e) dos factos provados] e a data de 24 de julho de 2018 é aquela em que a autora procedeu à afixação dos anúncios a arrogar-se proprietária do lugar de garagem em discussão nos autos [alínea k) dos factos provados] –, assim como a matéria das alíneas t), u) e v), decorre do alegado nos artigos 189º, 190º, 191º, 199º, 200º, 201º, 203º, 204º, 205º, 206º e 207º da contestação, que são atinentes à reconvenção nela deduzida e nela bem identificada pela ré (sob a epígrafe “II) Da reconvenção”, que se inicia no artigo 189º e vai até final da peça).

A autora, na réplica que apresentou, alegou, quanto à reconvenção, que a ré teria que provar a posse que invocou e questiona o período de tempo da mesma necessário para a aquisição por usucapião, mas, como se vê designadamente dos artigos 36, 45, 46, 47, 49 a 52, 58 e 59 de tal peça, não impugnou os factos alegados naqueles artigos da contestação atinentes à reconvenção que se referiram, que integram os atos de posse que a ré diz ter por si praticado e os termos em que os praticou. Apenas impugnou a posse dos anteriores possuidores também alegada pela ré (vejam-se os artigos 199, parte final, e 213 da contestação/reconvenção), o que fez sob o artigo 60 da réplica (onde diz que “não conhece” os respetivos factos, o que equivale a impugnação por força do disposto no nº3 do art. 574º do CPC), e terá com certeza sido por isso que os temas da prova enunciados aquando do despacho saneador foram apenas os ali referidos sob os nºs 20 e 21 (acima transcritos no relatório deste acórdão).

Aquela não impugnação, como decorre dos arts. 587º nº1 e 574º nº2 do CPC, leva a uma admissão por acordo de tais factos. Tal admissão por acordo integra uma confissão ficta daqueles mesmos factos, os quais, por força dela, se têm como provados[1].

Por outro lado, estando aqueles factos admitidos por acordo, cabe na competência deste Tribunal fazer ressaltar essa conclusão e extrair dela a respetiva consequência, que é a de considerar, por força de tal admissão por acordo (integrante da confissão ficta que anteriormente se referiu), tal factualidade como provada, como decorre da conjugação dos arts. 663º nº2 e 607º nº4 do CPC (o primeiro manda aplicar ao acórdão deste tribunal de recurso o preceituado nos arts. 607º a 612º do CPC, sendo que no nº4 do art. 607º se prevê expressamente que o juiz toma em consideração, entre outros que ali se referem, “os factos que estão admitidos por acordo”).

Assim, improcede a pretensão probatória da recorrente quanto àquelas alíneas dos factos provados.

Averiguemos agora da pretensão da recorrente no sentido de ser aditado aos factos provados um segmento com a redação “A Autora efetuava o pagamento das quotas de condomínio e IMI respeitantes à fração J, onde se inclui o lugar de garagem com a letra ... (ou ...) que integrava”.

Desde logo, tal matéria não se mostra alegada em qualquer dos articulados.

Ora, a factualidade a ter em conta na ação, salvo os casos previstos nas alíneas do nº2 do art. 5º do CPC (e este segmento de factualidade não se integra em nenhum de tais casos), é a alegada nos articulados e não a referida nos depoimentos prestados em audiência de julgamento.

Os depoimentos (assim como os documentos que se juntam aos autos atinentes à factualidade em discussão) são elementos probatórios do alegado (servem para a sua prova ou não prova) mas não são, por si só, fonte de matéria nova.

A assim não se considerar, por este andar vertia-se na factualidade da sentença o que as testemunhas e/ou outros depoentes iam dizendo e não o alegado nos articulados, sendo que é com o que nestas peças processuais se diz que se conformam os fundamentos fácticos da ação e da defesa.

Por outro lado, além de aquela matéria não ter sido alegada em qualquer dos articulados da autora, a mesma, quanto ao pagamento de condomínio do lugar de garagem em discussão nos autos, mostra-se prejudicada pelo já dado como provado sob a alínea t) dos factos provados (na sequência da admissão por acordo anteriormente analisada).

Assim, improcede também esta pretensão probatória.

Apuremos da pretensão da recorrente no sentido de ser aditado aos factos provados um segmento com a redação “Desde 23 de Outubro de 2001 que a Ré ocupa ilicitamente o lugar de garagem designado pela letra ... (ou ...), porquanto não ignora não ser sua proprietária e nunca o ter adquirido, tendo vindo a atuar na convicção de que está a lesar do direito da Autora”.

Este segmento integra matéria conclusiva e de direito e, por isso, contrária à matéria estritamente factual que deve ser selecionada para a fundamentação de facto, que, como se sabe, abrange quer os factos provados quer os não provados, como explicitamente decorre do nº4 do art. 607º do CPC.

Efetivamente, aquele segmento poderá ser o resultado de uma conclusão interpretativa ou raciocínio a retirar ou a considerar pelo tribunal perante concretos factos provados e/ou não provados, mas já em sede de fundamentação de direito e não nesta sede puramente factual.

Como tal, e independentemente da análise de qualquer dos meios probatórios indicados pela recorrente, improcede também tal pretensão probatória.

Resta analisar a impugnação da factualidade da alínea q) dos factos provados, que a recorrente defende que deve ser dada como não provada.

Vejamos os depoimentos prestados quanto a tal matéria e com base no qual o tribunal motivou a sua convicção para dar como provada a factualidade de tal alínea.

A testemunha CC, de 48 anos de idade, cunhada da ré (casada com um seu irmão), disse que aquando das negociações para a compra da fração pela ré e marido acompanhou a ré na visita a tal fração, tendo referido que a ré foi morar para esta em agosto e que a escritura só foi feita algum tempo depois. A dona do apartamento (vendedora do mesmo à ré) mostrou a casa e o lugar de garagem, que identificou no local e onde tinha um carro estacionado, e disse que o mesmo era do andar. Ela própria (depoente) se deslocava ao lugar de garagem para ali ir buscar e levar o automóvel, pois o marido da ré, entretanto, faleceu, a ré não tem carta de condução e o filho dela ainda a andava a tirar.

A testemunha BB, de 69 anos de idade, vizinho da ré que mora no mesmo andar desta (3º) desde 1985 e que foi administrador de condomínio (da sua entrada no prédio) durante vários anos, disse que a ré já é a terceira pessoa a adquirir aquela fração. A fração por ela comprada tinha um lugar de garagem. As pessoas anteriores (cujos nomes não se lembra) já lá punham o carro. Era o falecido marido da ré quem conduzia o carro.

A ré, em declarações de parte, disse que foi viver (com o seu marido) para a fração em agosto mas só fez a escritura em outubro. Ocupou sempre aquele lugar de garagem, sendo o seu marido (entretanto falecido) quem andava com o carro. Nunca ninguém a incomodou por lá pôr o carro. Quando comprou a casa, passou a ocupar o lugar de garagem. Confiou na vendedora. O seu marido é que fazia a limpeza e utilizava a garagem. Tem sido ultimamente o seu irmão quem anda com o carro, pois não tem carta e o seu filho também não.

Analisados tais depoimentos, verifica-se que, não obstante deles resultar que já a anterior proprietária da fração adquirida pela ré utilizava o lugar de garagem em causa e o considerava como pertencente à fração – esta última asserção até já resulta dos factos provados sob as alíneas r) e s), que não se mostram questionadas no recurso [onde consta como provado que: “r) Ainda durante as negociações entre ré e vendedora, tendentes à aquisição por escritura pública acima referida, para além da habitação, foi-lhe mostrado aquele lugar de garagem como pertencendo à fracção em negociação”; “s) A ré sempre se manteve ininterruptamente na posse das chaves e do comando do portão da garagem, que lhes foram entregues pela anterior proprietária” (sublinhados nossos)] –, não se mostra neles referenciado qualquer data a partir da qual tenha começado o aparcamento da viatura no lugar de garagem pela vendedora da fração referido sob a alínea q).

Por outro lado, dos autos não consta qualquer documento que a tal aluda. Efetivamente, embora se saiba que a data ali referida de 23 de outubro de 2001 é a da celebração da escritura pública de compra e venda da fração da ré, já quanto à data de 24 de julho de 1998 ali também referida não se descortina de onde possa vir.

Assim, quanto à alínea em análise, conclui-se, apenas se prova que o aparcamento no lugar de garagem nos termos ali referidos durou desde data não concretamente apurada e até à data em que ocorreu a venda da fração à ré.

Como tal, tal alínea passará a ter a seguinte redação: “Desde data não concretamente apurada, ininterruptamente, e até 23 de outubro de 2001, a declarante vendedora acima referida, com exclusão de terceiros, aparcou a sua viatura no lugar de estacionamento designado por ... (ou ...), convicta de não ofender o direito de outrem e de ser sua dona, com conhecimento dos demais moradores do prédio”.

Passemos para as questões enunciadas sob a alínea b).

É a seguinte a matéria de facto a ter em conta [a da sentença recorrida, com a alteração anteriormente decidida quanto à alínea q); os itens com os nºs 4, 5 e 6 a seguir à alínea c) – que constam do elenco dos factos não controvertidos ou não carecidos de prova enunciado no despacho subsequente ao despacho saneador sob os pontos com os nºs 4, 5 e 6 – constam assim na sentença recorrida e assim se vão manter, apenas se acrescentando ao nº4 que os lugares de garagem são “na cave”, como expressamente consta da escritura de propriedade horizontal junta fls. 58 e sgs.]:

Factos provados

a) No que se refere à construção do “Edifício ...”, em 20 de agosto de 1982, foi inscrita a favor de B... Lda. (atualmente A... Lda., ora autora) a aquisição do prédio urbano situado na Rua ... nºs ... a ... e Rua ... nºs ... a ..., ..., Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar com o n.º ... do Livro ..., secção ..., atualmente descrito na ficha n.º .../... (conforme documento junto aos autos, que aqui se considera transcrito);

b) Nesse prédio urbano, a B... Lda. (atualmente A... Lda.) fez construir um edifício descrito como “casa de cave, rés-do-chão e sete andares” (adiante, Edifício ...);

c) Em 23 de Novembro de 1984, pela construtora e proprietária inscrita, atualmente A..., foi aquele edifício constituído em propriedade horizontal, conforme documento junto a fls. 58 e ss., onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:

ZONAS COMUNS

(…)

A todas as frações, o previsto no artigo mil quatrocentos e vinte e um do Código Civil.

4 – Entre as frações constituídas, consta a fração autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ....../... (adiante, fração J), com a descrição predial como espaço destinado a estabelecimento comercial, onze lugares de garagem na cave, vinte e cinco lugares de arrumos no 5.º andar e quarenta e quatro lugares no 7.º andar.

5 – Os espaços de estacionamento do Edifício ... são abertos para os corredores de circulação automóvel da garagem coletiva do edifício, não tendo divisórias relativamente aos restantes espaços da garagem nem portas individuais de fechamento.

6 – A descrição predial da fração J abrange o lugar de estacionamento designado por ... (ou ...).

d) A autora mantém inscrita a seu favor a propriedade da fração J;

e) Em 23 de outubro de 2001, por escritura pública de compra e venda, a ré AA e EE (entretanto falecido) declararam adquirir, declarando FF vender, a fração autónoma designada pelas letras CS, correspondente a uma habitação no terceiro andar esquerdo traseiras, com entrada pelo n.º ... da Rua ..., do prédio urbano referido em c), conforme documento de fls. 50, que aqui se dá por transcrito;

f) Em 22 de outubro de 2001, foi inscrita a favor da ré a aquisição da fração autónoma CS, correspondente a uma habitação no terceiro andar esquerdo traseiras, com entrada pelo n.º ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar com na ficha n.º ...-CS/... (conforme documento de fls. 49, que aqui se dá por transcrito).

g) Não existe escrito que mencione a compra pela ré de lugar de estacionamento nas garagens coletivas do Edifício ...;

h) Em 23 de outubro de 2001, pelos vendedores da fração autónoma CS foi entregue à ré a chave de acesso à garagem coletiva do Edifício ...;

i) Desde tal data, a ré sempre deteve, até à atualidade, a chave de acesso à garagem coletiva do Edifício ... onde se situa o lugar de estacionamento designado por ... (ou ...) e sempre ocupou este lugar;

j) Desde 23 de outubro de 2001, ininterruptamente, e até data não anterior a 24 de julho de 2018, a ré, com exclusão de terceiros, aparca a sua viatura no lugar de estacionamento designado por X-... (ou ...), convicta de não ofender o direito de outrem e de ser sua dona, com conhecimento dos demais moradores do prédio;

k) A partir de 24 de julho de 2018, designadamente por meio dos anúncios cuja cópia se encontra junta a fls. 17 v., que aqui se dá por transcrita, a autora arrogou-se proprietária, designadamente perante os demais condóminos do Edifício ..., da fração J, compreendendo um lugar de garagem designado por n.º … e …;

l) Em 1 de novembro de 2018, a autora e a ré, esta à data já convencida de não ser dona do lugar de estacionamento designado por ... (ou ...), subscreveram o documento intitulado CONTRATO DE ARRENDAMENTO NÃO HABITACIONAL COM PRAZO CERTO, cuja cópia se encontra junta a fls. 15, onde consta, além do mais que aqui se dá por provado:

CONTRATO DE ARRENDAMENTO NÃO HABITACIONAL COM PRAZO CERTO ENTRE:

PRIMEIRA OUTORGANTE: A..., LDA (…)

E

SEGUNDO OUTORGANTE: AA (…)

Entre os sobreditos outorgantes na qualidade em que outorgam, é celebrado, livremente e de boa-fé, o presente contrato de arrendamento para fim não habitacional (…) nos termos e condições seguintes:

Cláusula Primeira

A Primeira Outorgante é proprietária e legítima possuidora fração designada pela letra “J”, com entrada pelo n.º ... da Rua ... nºs ... a ..., ambas com afetação a comércio, que tem como partes integrantes onze (11) lugares de estacionamento, na cave do prédio em propriedade horizontal sito na Rua ... e Rua ... nºs ... a ..., na união de freguesias ... e ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº ... da freguesia ....

Cláusula Segunda

Pelo presente contrato, a Primeira Outorgante dá em arrendamento ao Segundo Outorgante, o lugar de estacionamento – parte integrante da fração mencionada na Cláusula Primeira – denominado por “...”.

Cláusula Terceira

1 – Este arrendamento é efetuado pelo prazo de um (1) ano, produzindo efeitos a partir do dia 1 de novembro de 2018 e com termo no dia 31 de outubro de 2019, renovando-se automaticamente no seu termo e por iguais e sucessivos períodos de tempo, salvo se for denunciado por qualquer das partes, de acordo com o estabelecido no presente contrato e nos termos prescritos na lei.

(…)

4 – Decorrido um terço do prazo de duração inicial do contrato as partes podem denunciá-lo a todo o tempo, mediante comunicação com a antecedência mínima de sessenta dias do termo pretendido do contrato.

5 – Inobservância da antecedência prevista nos números 3 e 4 não obsta à cessação do contrato, mas obriga ao pagamento das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta.

Cláusula Quarta

1 – A renda total (de duração do contrato) é de 300,00 Euros (…).

(…)

3 – No ato de assinatura do presente contrato, o SEGUNDO OUTORGANTE entrega à PRIMEIRA OUTORGANTE, a quantia de € 50,00 (…), referentes às rendas dos meses de novembro e dezembro de 2018, dando esta última respetiva quitação após boa cobrança.

(…)

m) Em 8 de Novembro de 2018, a ré remeteu à autora a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 17, por esta recebida, onde consta, além do mais que aqui se dá por provado:

ASSUNTO: Lugar de Garagem n.º ... do Prédio sito na Rua ... com entrada pelo n.º ... – REVOGAÇÃO CONTRATUAL

(…)

Em seguimento do que nos foi transmitido aquando da assinatura do contrato de arrendamento relativo ao lugar em causa e, sendo certo que, V. Exas até hoje não apresentaram qualquer título que legitime a propriedade do mesmo, vimos por este meio, proceder à revogação da assinatura do mesmo contrato, informando que o lugar de garagem em causa, continuará na nossa posse, o que acontece há mais de 20 anos, ou seja desde a celebração da escritura de compra e venda da fração que habitamos.

n) Em 27 de novembro de 2018, foi instaurada a presente ação;

o) Em 4 de dezembro de 2018, a ré foi citada para a ação;

p) Em 16 de janeiro de 2019, a ré contestou a ação;

q) Desde data não concretamente apurada, ininterruptamente, e até 23 de outubro de 2001, a declarante vendedora acima referida, com exclusão de terceiros, aparcou a sua viatura no lugar de estacionamento designado por ... (ou ...), convicta de não ofender o direito de outrem e de ser sua dona, com conhecimento dos demais moradores do prédio;

r) Ainda durante as negociações entre ré e vendedora, tendentes à aquisição por escritura pública acima referida, para além da habitação, foi-lhe mostrado aquele lugar de garagem como pertencendo à fração em negociação;

s) A ré sempre se manteve ininterruptamente na posse das chaves e do comando do portão da garagem, que lhes foram entregues pela anterior proprietária;

t) A ré sempre limpou e cuidou daquele lugar de garagem ao longo dos anos, pagando condomínio pelo seu uso, convencida de que estava a usar um bem de sua propriedade, o que era do conhecimento de todos os condóminos e das pessoas das suas relações;

u) Convencida de que tinha adquirido aquele lugar de garagem à vendedora, convencida de que não lesava direitos de quem quer que fosse.

v) Naquele espaço, guarda o seu carro, abre e fecha a porta da garagem, como autêntica proprietária e na convicção de que o é de facto.

x) Aquele lugar de estacionamento designado por ... (ou ...) e em causa nestes autos, é o que consta da planta da Câmara Municipal ... como lugar ....


*

Factos não provados

- Que o espaço de estacionamento ... (ou ...) tenha o valor locatício individual de € 25,00 mensais.


*

Averiguemos então do direito de propriedade sobre o lugar de garagem em causa.

Mostra-se provado que a autora, na sequência de o ter feito construir, tem registada a seu favor a fração J do prédio constituído em propriedade horizontal referido sob a alínea a) dos factos provados, fração essa que consta na descrição predial como comportando espaço destinado a estabelecimento comercial, onze lugares de garagem na cave, vinte e cinco lugares de arrumos no 5º andar e quarenta e quatro lugares no 7º andar, e na qual se integra o lugar de estacionamento (lugar de garagem) designado por ... (ou ...) e que consta na planta de tal edifício da Câmara Municipal ... como lugar ... [alíneas a), b), c)-4 e 6 e x) dos factos provados].

A autora pugna pelo direito de propriedade sobre tal lugar de garagem porque o mesmo faz parte daquela fração J, que está registada a seu favor.

Por outro lado, a ré/reconvinte defende que, só por si, tem a posse de tal lugar de garagem há mais de 17 anos (artigo 214º da contestação/reconvenção) e que adquiriu o direito de propriedade sobre tal lugar de garagem por usucapião, que invocou.

A presunção de titularidade do direito de propriedade decorrente do registo predial (art. 7º do Código do Registo Predial), no caso existente a favor da autora, é ilidível mediante prova em contrário, isto é, com a prova de factos de relevo jurídico demonstrativos de que a titularidade daquele direito não corresponde àquela inscrição no registo (art. 350º nº2 do C. Civil).

Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária do direito de propriedade por via da posse exercida sobre o bem (arts. 1316 e 1317 c) do C. Civil), a dar-se a mesma por verificada resulta adquirido aquele direito a favor do possuidor que dela beneficie, ilidindo-se assim a presunção de titularidade do mesmo constante do registo.

No caso vertente, a recorrente defende que a usucapião não se pode ter como verificada porque o prazo para adquirir por tal forma seria de 20 anos e o mesmo, tendo começado a 23/10/2001, interrompeu-se a 24/7/2018 (data em que a autora se arrogou proprietária do lugar de garagem), e defende inclusivamente a impossibilidade de a usucapião poder ter lugar, pois o lugar de garagem em causa só poderá autonomizar-se e constituir uma fração autónoma se estiverem verificados todos os requisitos legais para o efeito, como os constantes dos arts. 1414º e 1415º do C. Civil e de normas urbanísticas aplicáveis, e, no seu entendimento, tal não ocorre no caso em apreço.

Comecemos pela invocada impossibilidade de a usucapião poder ter lugar.

A possibilidade de o lugar de garagem em causa ser objeto, por si, de propriedade horizontal, mostra-se acautelada pelo que se dispõe no art. 1415º do C. Civil.

Decorrendo deste preceito que só pode existir propriedade horizontal sobre uma fração autónoma e que esta deverá ser constituída por parte específica do edifício com as características ali referidas – distinta e isolada de outras frações e com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública – e mostrando-se provado que o lugar de garagem/estacionamento em causa é aberto para os corredores de circulação automóvel da garagem coletiva do respetivo edifício e consta delimitado no espaço dos restantes lugares (alíneas c)-5 e x) dos factos provados), mostram-se preenchidas aquelas características.

Poderia obstar-se que a constituição como fração autónoma daquele lugar de garagem implica a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal – para alteração da qualificação daquela parte de fração autónoma em fração autónoma – e que isso não é viável, atendendo a que no artigo 1419º, nº 1, do C. Civil se exige o acordo de todos os condóminos vertido em escritura pública ou documento particular autenticado para o modificar.

Porém, como expressamente previsto no nº1 do art. 1417º do C. Civil, a propriedade horizontal pode ser constituída por usucapião.

Podendo ser constituída por usucapião, não se pode a tal objetar com o disposto no art. 1419º nº1 do C. Civil.

Efetivamente, como refere o professor M. Henrique Mesquita[2], “[p]ode bem dizer-se, na verdade, que o objectivo daquele preceito é apenas impedir que a posição relativa de cada condómino seja alterada por via negocial, sem o seu consentimento. Sempre que isso não esteja em causa, já não há motivo para impedir a modificação do título”, acrescentando mais à frente que “(…) nos casos em que um condómino adquira por usucapião parte de uma fracção autónoma ou de uma coisa comum (…), também terá de haver alteração do título constitutivo e ninguém sustentará, por certo, que esta alteração só pode ser feita com o acordo de todos os condóminos.” (o negrito é nosso).

Neste mesmo sentido, diz-se no Acórdão do STJ de 19/12/2018 (disponível em www.dgsi.pt, proferido no proc. nº6115/08.0TBAMD.L1.S2, em que é relatora a Sra. Conselheira Catarina Serra) que “(…) o aparente conflito entre as normas dos artigos 1417.º, n.º 1, e 1419.º, n.º 1, do CC deve ser resolvido por via da interpretação restritiva da segunda. Nesta linha de raciocínio, as exigências impostas por ela valerão in totum mas somente para as hipóteses em que a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal é feita por negócio jurídico. Quando esteja em causa, ao abrigo da primeira norma, uma das demais fontes de constituição / modificação da propriedade horizontal (usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial), deverá entender-se que a norma não é aplicável”, o que se afirma depois de ali também se escrever que “se a usucapião tem aptidão para constituir a propriedade horizontal, como é possível negar-se que tenha aptidão para simplesmente modificar os termos em que foi constituída a propriedade horizontal? A causa de constituição deve poder, a fortiori (a maiori ad minus), ser causa de modificação, tanto mais que [como no caso vertente] se trata de modificação meramente jurídica ou formal” [também no sentido desta última asserção, vide Durval Ferreira, “Posse e usucapião”, Almedina, 2002, pág. 446-447].

Por outro lado, a nosso ver, também a tal não obsta o disposto no art. 1422º-A, nº3. do C. Civil, onde se preceitua que “Não é permitida a divisão de frações em novas frações autónomas, salvo autorização do título constitutivo ou da assembleia de condóminos, aprovada sem qualquer oposição”.

Na verdade, como da economia daquele artigo resulta – designadamente do seu nº4 [onde se diz “Sem prejuízo do disposto em lei especial, nos casos previstos nos números anteriores, cabe aos condóminos que juntaram ou cindiram as frações …”] –, o mesmo só é aplicável às situações de divisão de fração autónoma por iniciativa do condómino seu proprietário, não sendo por isso aplicável à situação dos autos. De resto, a par desta leitura do preceito, valeriam aqui as considerações anteriormente tecidas a propósito da previsão da usucapião para a constituição e, por argumento de maioria de razão, para a modificação dos termos em que foi constituída a propriedade horizontal.

Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, “o novo titular recebe o seu direito independente do direito do titular antigo” e “em consequência, não lhe podem ser opostas as exceções de que seria passível o direito daquele titular” (citamos José de Oliveira Ascensão, in “Direito Civil, Reais”, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 300). Isto é, “o direito adquirido por usucapião surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, pois não depende geneticamente de um direito anterior, depende tão só do facto aquisitivo em que o processo de usucapião se analisa” (Abílio Vassalo Abreu, in “Titularidade Registral do Direito de Propriedade Imobiliária vs Usucapião”, Coimbra, pág. 19).

As regras da usucapião também são determinadas por razões de interesse público, pois mais do que satisfazer o interesse individual do possuidor, a usucapião, como refere Durval Ferreira (in “Posse e Usucapião”, Almedina, 3ª ed., pág. 494), visa satisfazer o interesse público de “assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer em proteger o valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, quer em fornecer, através do usucapião, um meio de prova seguro, de fácil utilização e consentâneo com a confiança, quanto à existência do direito e á sua titularidade”.

Daí que, como se refere no Acórdão do STJ de 25/5/2023 (disponível em www.dgsi.pt, proferido no proc. nº681/20.9T8MTR.E1.S1, em que é relator o Sr. Conselheiro Nuno Pinto Oliveira), “a aquisição da propriedade, designadamente por usucapião, precede a aplicação das normas de direito do urbanismo ou, ainda que não preceda, prevalece sobre a aplicação das normas de direito do urbanismo relativas à divisão, ou ao fracionamento, dos prédios”.

Averiguemos agora se, no caso concreto – e no seguimento da consideração de que a propriedade sobre o lugar de garagem em causa, ainda que integrado numa fração, é passível de, por o mesmo constituir uma parte que reúne as características previstas no art. 1415º do C. Civil, ser adquirida por usucapião nos termos previstos no art. 1417º nº1[3] – ocorre a usucapião invocada pela ré/reconvinte.

Quanto à posse invocada por esta, temos o seguinte:

- desde 23 de outubro de 2001, data de compra da sua fração autónoma constituída pela fração CS do prédio identificado nos autos, a ré sempre deteve a chave de acesso à garagem coletiva de tal edifício – a si entregue pela vendedora naquela mesma data – onde se situa o lugar de garagem/estacionamento anteriormente identificado e sempre o ocupou, sendo que ainda durante as negociações tendentes a tal aquisição, para além da habitação, foi-lhe mostrado aquele lugar de garagem como pertencendo à fração em negociação (alíneas h), i), r) e s) dos factos provados);

- desde aquela mesma data, ininterruptamente, e até data não anterior a 24 de julho de 2018, a ré, com exclusão de terceiros, aparca a sua viatura naquele lugar de estacionamento designado por ... (ou ...), convicta de não ofender o direito de outrem e de ser sua dona, com conhecimento dos demais moradores do prédio (alínea j) dos factos provados);

- já a vendedora à ré da fração, desde data não concretamente apurada, ininterruptamente, e até 23 de outubro de 2001, com exclusão de terceiros, aparcou a sua viatura no lugar de estacionamento designado por ... (ou ...), convicta de não ofender o direito de outrem e de ser sua dona, com conhecimento dos demais moradores do prédio (alínea q) dos factos provados);

- a ré sempre limpou e cuidou daquele lugar de garagem ao longo dos anos, pagando condomínio pelo seu uso, convencida de que estava a usar um bem de sua propriedade, o que era do conhecimento de todos os condóminos e das pessoas das suas relações, convencida de que tinha adquirido aquele lugar de garagem à vendedora e convencida de que não lesava direitos de quem quer que fosse (alíneas t) e u) dos factos provados);

- naquele espaço, guarda o seu carro, abre e fecha a porta da garagem, como autêntica proprietária e na convicção de que o é de facto (alínea v) dos factos provados).

Por outro lado, mostra-se também provado que não existe escrito que mencione a compra pela ré de lugar de estacionamento nas garagens coletivas do edifício onde se situa a sua fração (alínea g) dos factos provados).

Decorre da factualidade acabada de referir que, ainda que não decorrente de qualquer negócio pela qual o tivesse adquirido, a ré, pelo menos desde 23 de outubro de 2001 e até 24 de julho de 2018, passou a praticar sobre o aludido lugar de garagem inequívocos atos de posse nos termos em que esta é definida no art. 1251º do C.Civil, já que, como dali se evidencia, com a prática ao longo daquele período de tempo de todos aqueles atos exerceu sobre ele poderes de facto de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.

Tal posse, ainda que não titulada (pois não adquirida por qualquer negócio – art. 1259º nº1 do C. Civil, “a contrario”), provou-se ser de boa fé (assim se ilidindo a presunção do nº2 do art. 1260º do C. Civil), pois foi adquirida pela tradição da coisa sobre que incide pela anterior possuidora e a ré estava convicta de não ofender o direito de outrem (arts. 1263º, alínea b), e art. 1260º nº1 do C. Civil), é pacífica, pois foi adquirida sem violência (art. 1261º nº1), e é pública (art. 1262º), pois sendo efetuada com o conhecimento de todos os condóminos e das pessoas das relações destes é exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados.

Durando a mesma já há mais de 15 anos (considerando o período entre 21/10/2001 e 24/7/2018 referido na factualidade provada), tal posse, dado o preceituado no art. 1296º do C. Civil, levou à aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre aquele lugar de garagem por parte da ré – tal aquisição ter-se-á já operado em 21/10/2016 e os seus efeitos retrotraem-se a 21/10/2001, data do início da posse (art. 1288º do C. Civil).

Além disso, não podemos deixar de o notar, a tal aquisição por usucapião não obsta o facto de a ré, em 1 de novembro de 2018, ter celebrado com a autora o contrato de arrendamento referido sob alínea l) dos factos provados tendo por objeto o lugar de garagem referido nos autos e na altura convencida (como ali dado como provado) de que não era dona do mesmo.

Estando nessa data já decorridos os 15 anos necessários para adquirir por aquela forma e podendo conjeturar-se, por isso, que tal atuação da ré poderia integrar renúncia tácita à usucapião por via do disposto no art. 302º nºs 1 e 2 do C. Civil – aplicável à usucapião por força do art. 1292º –, é de afirmar que não se pode, no caso, concluir por tal renúncia.

Efetivamente, a ré celebrou tal contrato mas logo passados 7 dias, a 8 de novembro de 2018, comunicou à autora por carta a “revogação da assinatura do mesmo” (que traduz uma desvinculação contratual com a qual a autora se veio a conformar, pois na ação que de seguida propôs não atua um qualquer seu direito que pudesse decorrer daquele contrato) e invocou nela a “posse” sobre o referido lugar de garagem, que ali disse acontecer “há mais de 20 anos, ou seja desde a celebração da escritura de compra e venda” da fração habitacional, do que decorre que a celebração daquele contrato, por si, não pode ser vista como um ato de renúncia consciente e esclarecida à usucapião [alínea m) dos factos provados].

Na verdade, para que a renúncia a um direito se possa afirmar como efetiva – no caso, o de adquirir por usucapião a propriedade sobre o referido lugar de garagem –, tal renúncia, como refere Ana Filipa Morais Antunes[4], “tendo a natureza de um acto jurídico, pressupõe, nos termos gerais, a consciência e a vontade de renunciar pelo sujeito renunciante. Numa palavra, o acto de renúncia tem de se sustentar numa vontade qualificada, isto é, madura, livre, esclarecida e lícita, no plano da motivação”, acrescentando mais à frente que «deve rejeitar-se a validade de um acto de renúncia puramente casual ou acidental. É, pelo contrário, necessário que a vontade do renunciante se oriente no sentido da produção daquele efeito, “o qual é objecto de tutela do ordenamento jurídico porque justamente foi querido”, a saber, a “extinção do direito a que se renuncia”».

Não se podendo considerar aquela atuação da ré um ato com as características que se vêm de enunciar, é de concluir que do mesmo não decorre qualquer impedimento à referida aquisição por usucapião.

Deste modo, na sequência de tudo quanto se veio de referir, é de reconhecer que a ré/reconvinte adquiriu por usucapião o direito de propriedade sobre o lugar de garagem em referência.

Assim, há que julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.

As custas do recurso ficam a cargo da autora, que nele decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC).


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.


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Porto, 27/1/2025
Mendes Coelho
Miguel Baldaia de Morais
Ana Paula Amorim
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[1] Sobre a confissão ficta e seus efeitos, vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 161 e 162, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, volume 2º, Almedina, 4ª edição, 2019, pág. 569, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 345.
[2] In “A propriedade horizontal no Código Civil português”, Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXIII, Janeiro-Dezembro 1976, págs. 117 e 118.
[3] No sentido de, em propriedade horizontal, uma parte de fração autónoma e até uma parte comum poder ser adquirida por usucapião, vide, além do Prof. Henrique Mesquita no artigo referido na nota 2, designadamente o Acórdão do STJ de 19/12/2018 referido no texto deste acórdão, o Acórdão do STJ de 4/10/2018 (proc. nº 4080/16.9T8BRG-A.G1.S1), os Acórdãos da Relação de Guimarães de 30/5/2018 (proc. nº8250/15.9T8VNG.G1) e de 11/1/2018 (proc. nº 4080/16.9T8BRG-A.G1), o Acórdão da Relação de Coimbra de 9/5/2006 (proc. 966/06) e o Acórdão da Relação de Lisboa de 20/5/2010 (proc. nº 1727/07.1TVLSB.L1-6).
[4] “Da irrenunciabilidade antecipada a direitos”, in Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva, Universidade Católica Editora, Vol. I, pág. 94, na sequência de a págs. 89 se referir expressamente a previsão do art. 302º nº1 do C. Civil.