Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PEDRO M. MENEZES | ||
Descritores: | CRIME DE HOMICIDIO NEGLIGENTE CRIME DE ABORTO CONCEITO DE "PESSOA" | ||
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Nº do Documento: | RP202212142751/16.9T9PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 12/14/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. | ||
Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Para efeitos de aplicação das normas relativas à incriminação dos homicídios, só pode falar-se da existência de uma «pessoa» a partir do início do trabalho de parto. II - Deve ter-se por iniciado o trabalho de parto logo que se verifique a eclosão da contractilidade uterina dolorosa, regular em frequência e intensidade, dirigida, por regra, a lograr o completo apagamento e dilatação cervicais. III – O aborto negligente não é punível | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º: 2751/16.9T9PRT.P1 Origem: Juízo de Instrução Criminal do Porto (Juiz 3) Recorrente: AA (assistente) Referência do documento: 16397153 I 1. O presente recurso vem interposto de decisão instrutória proferida no Juízo de Instrução Criminal do Porto (Juiz 3) que, após a competente instrução – requerida pela arguida, aqui recorrida, no tocante aos factos por que foi, findo o inquérito, acusada pelo Ministério Público (e também pela assistente e ora recorrente, quanto à qualificação jurídica sugerida no libelo acusatório público para os factos imputados à arguida, por requerimento que o Tribunal recorrido, no entanto, a seu tempo rejeitou liminarmente) –, concluiu pela não pronúncia da arguida pelos factos em causa nos autos. 2. Inconformada com o assim decidido, pugna a assistente, neste recurso, por que seja a «arguida PRONUNCIADA pelo crime de homicídio por negligência, p. e p. nos precisos termos da douta acusação pública». 3. Este é, na parte aqui relevante, o texto da decisão recorrida, que se reproduz verbatim (ignoraram-se as notas de rodapé): «O tribunal é competente. O Ministério Publico tem legitimidade para acusar. Questão prévia: Vem a arguida requerer que o tribunal considere a intervenção hierárquica datada de 07.06.2020 (fls 340 a 345, e que recaiu sobre o despacho de arquivamento de fls 328, revogando-o e ordenado o prosseguimento do inquérito, inválida, deve a mesma ser reconhecida e declarada, dando-se sem «efeito o processado posterior, incluindo a acusação formulada em 06.04.2021. O Ministério Público pronunciou-se no debate judicial no sentido da verificação da irregularidade alegada, mas que a mesma se encontra sanada, como se refere a fls. 390, e de que não resulta para a arguida situação em que esteja em causa os seus direitos à defesa, como se colhe pelo RAI apresentado. O que não deixa de ser estranho é que não existiu por parte dos serviços do DIAP, notificações do despacho de arquivamento, e das intervenções da Sra Procuradora Dirigente. Concordamos com a posição assumida pelo Sr.º Procurador . A apontada irregularidade existiu, sendo que a arguida através do requerimento datado de 9/12/2020, ( fls 382 a 383vº) a veio arguir. A 15/12/2020 ( fls 390/391) foi proferido despacho que decidiu sobre a mesma. Tal despacho, não foi efetivamente notificado à arguida, sendo certo que a arguida podia e devia ter sido notificada do mesmo aquando do seu interrogatório não judicial, o qual teve lugar no dia 18/12/2020. No entanto decorre dos autos que a mesma tomou conhecimento do despacho pelo menos no dia em que foi notificada da acusação e ou do dia em que o processo foi confiado ao seu mandatário- dia 29- 04-2021. Assim, teria o mesmo três dias para invocar qualquer irregularidade sobre não notificação do referido despacho, o que não fez- art.º 123º, do CPP. Em 17.05.2021 (data da entrada do RAI) já há muito se encontrava ultrapassado o prazo para arguir tal irregularidade, motivo pelo qual a considero sanada. * Não existem questões previas ou incidentais susceptíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa.* Inconformada com o despacho de acusação do Ministério Público que lhe imputa a autoria material de um crime de homicídio negligente p.p. pelo artº137º., nºs 1 e 2 do Cod. Penal , a BB [...] veio pelo requerimento de abertura de instrução de fls 538 a 557 que aqui reproduzimos requerer a abertura de instrução, alegando, no que de mais relevante interessa que a morte do feto ocorreu antes do inicio de trabalho de parto; que os pareceres de consulta técnica que serviram de base à acusação, forma elaborados tendo como base factos e ocorrências incorretas, e que a prova recolhida não aponta para que a arguida tenha tido uma conduta omissiva que foi causa da morte do feto.Procedeu-se à reinquirição da testemunha CC [...], médica que atendeu a assistente no dia 18 de agosto aquando da entrada da mesma na urgência do Hospital de [...]. A arguida prestou declarações na instrução. Após a conclusão de todas as diligências probatórias deferidas e não se reputando a existência de quaisquer outras úteis ou necessárias à decisão a proferir, realizou-se o debate instrutório, com observância do legal formalismo. * De acordo com o disposto no artº 308º do C.P.P. chegou o momento de analisar o processo e verificar se foram recolhidos indícios suficientes que apontem para uma possibilidade razoável de a arguida, em sede de julgamento, ser condenada pelo crime que lhe é imputado.A lei processual considera “suficientes” os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança -.Cfr.artº 283º nº2 do C.P.P. Na instrução, o juiz não julga a causa, verifica se se justifica que, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, o arguido seja submetido a julgamento. A dedução de acusação findo o inquérito, como o despacho de pronúncia no caso de ter havido lugar a instrução, supõem a existência no processo de indícios suficientes de que se tenha verificado crime e de quem foi o seu agente - artigos 283.º, n.º 1 e 308.º, n.º 1, do CPP. O artigo 283.º, n.º 2, do citado diploma, formata normativamente o conceito de “indícios suficientes”: “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”. Esta fórmula legal acolhe a noção, sucessivamente densificada pela doutrina e pela jurisprudência, de “indícios suficientes”. Em formulação doutrinalmente bem definida, «os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. “Afirmar a suficiência dos indícios deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. Não logrando atingir essa convicção, o Ministério Público deve arquivar o inquérito e o juiz de instrução deve lavrar despacho de não pronúncia”. Traçando o limite de distinção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza processualmente relevante, acrescenta o referido autor: “o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta. O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no fim da fase preparatória”. Quer isto dizer que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento; mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo prova bastante para a acusação (ou para a pronúncia). A jurisprudência, por seu lado, afinou a compreensão do conceito através da definição e enunciação de elementos de integração que se podem hoje rever na noção legal. Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado. O juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade. O despacho de pronúncia, como também a acusação, dependem, pois, da existência de prova indiciária, de prima facie, de primeira mas razoável aparência, quanto à verificação dos factos que constituam crime e de que alguém é responsável por esses factos. Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação. Cumpre agora analisar a prova produzida em sede de inquérito e de instrução: A assistente AA [...] inquirida a fls 106 e 107 confirmou na integra o teor da participação que apresentou (fls. 11 a 57). A testemunha DD [...]s, casado com a denunciante e pai do bebé falecido, inqurido a fls 112 a 114, confirmou as informações constantes da participação de fls. 11 a 57. Referiu, ainda, ter tido conhecimento da gravidez da sua mulher em dezembro de 2014 e, após pesquisa realizada por esta, passaram a ser acompanhados pela sociedade “[...], Lda.”, na pessoa da denunciada BB [...]. Acrescentou que, sempre teve muitas dúvidas sobre o parto natural e, em concreto, o parto na água, tendo manifestado essa inquietude junto da denunciada, a qual sempre lhe respondeu que, apesar de ser um parto natural, dentro de água, existia uma equipa médica de apoio para intervir no caso de algo correr mal, encabeçada pelo médico Dr. EE [...]. Por sugestão e indicação da denunciada, o depoente e a denunciante optaram pelo Hospital [...], para a realização do parto na água, por ser dos poucos que teria uma piscina apropriada para o efeito, tendo comunicado essa escolha à denunciada. Mais informou terem comunicado à denunciada que o parto iria ter lugar entre finais de julho e inícios de agosto de 2015, tendo esta informado que, nesse período, o Dr. EE [...] estaria em férias, pelo que, caso o nascimento ocorresse naquela data e não fosse possível encontrar uma outra equipa médica disponível, o parto teria de ocorrer num hospital público. Sem prejuízo disso, e de acordo com o depoente, foi combinado com a denunciada que, após o começo do trabalho de parto, esta se deslocaria à sua residência afim de os acompanhar nesse processo e, quando entendesse estarem reunidas as condições, deslocar-se-iam para o hospital. Afirmou, também, que, entre abril e 17.08.2015, realizaram várias sessões de formação e preparação para o parto, ministradas pela denunciada, nas instalações da sociedade “[...], Lda.”, nas quais se encontravam também outros casais. Para além dessas sessões, realizaram várias consultas com a denunciada, naquelas instalações, onde era analisada a pulsação e movimentos do feto, através de monotorização (CTG), e feita a apreciação de resultados de ecografias e análises clínicas efetuadas pela denunciante. Mais afirmou que, em 17/08/2015, entre as 15:30 e as 16:30 horas, esteve com a sua mulher numa sessão de preparação aquática pré-natal, no ginásio “[...]”, na presença da denunciada, sendo que, no final dessa sessão, AA [...] comunicou àquela que «o bebé não está a dar chutos, não o sinto», tendo esta realizado, no local, uma nova monotorização (CTG) que confirmou os batimentos cardíacos do feto, o que os tranquilizou. Após este evento, o depoente e esposa foram para o escritório que possuem na [...], no Porto, onde permaneceram até próximo das 18:30 horas. Nessa altura, a denunciante informou-o que estava a sentir contrações, pelo que podia estar perante o início do trabalho de parto, tendo, então, contactado telefonicamente a denunciada reportando-lhe essa situação. Contudo, como haviam sido alertados pela denunciada que o trabalho de parto «era uma coisa demorada», principalmente quando se trata do primeiro filho, como era o caso, foram tranquilamente para casa. Conforme referiu, chegaram ambos a casa pelas 20:00 horas desse dia, e prepararam o local, «incluindo música ambiente, massagens», mantendo contacto com a denunciada através de mensagens de texto (sms). Em resposta a denunciada «mandava descansar e dormir, porque ia demorar muito tempo». Adiantou que, pelas 03:00 ou 04:00 horas de dia 18/08/2015, as dores de AA [...] tornaram-se «horríveis», tendo comunicado esse facto à denunciada. Como as dores eram constantes, a denunciante optou por entrar na banheira com água, dizendo que lhe acalmava as dores. Apenas «com o nascer do dia» o depoente ligou à denunciada, dando-lhe conta da preocupação e, também, do facto das contrações estarem a ocorrer de dois em dois minutos. Só nesse momento a denunciada disse que iria ter com eles. No entanto, apenas chegou à sua residência cerca de duas horas depois. Referiu que, quando a denunciada chegou a casa do depoente e esposa, a denunciada BB [...] realizou uma monotorização aos batimentos cardíacos do feto (CTG), tendo, então, dito que não conseguia detetar pulsações, sugerindo que todos se deslocassem de imediato, em veículo automóvel particular, para o Centro Hospitalar [...], unidade de obstetrícia. Chegados ao local, entraram para aquela unidade hospitalar, tendo sido atribuída uma pulseira amarela à denunciante, tendo esta sido chamada pelos serviços apenas alguns minutos depois. Entretanto, foi chamado o depoente, tendo-lhe sido transmitido que «o bebé não tinha batimentos cardíacos», ou seja, «o bebé já estaria morto». Confirmou que o parto foi induzido no dia seguinte e declarado o nascimento, sem vida, pelas 09:39 horas, de 19/08/2015. Segundo o depoente, a denunciada BB [...] devia ter acompanhado o parto desde o momento em que a contactaram, ao final do dia de 17/08/2015, podendo assim ter verificado todas as ocorrências. Foi inquirida FF [...], a qual a fls 148 a 149 se identificou como amiga da denunciante AA [...]. Referiu que sempre foi vontade da denunciante que o parto ocorresse na água e que, para esse efeito, procurou profissionais de saúde que o realizassem como desejado. Soube, entretanto, pela denunciante, que o mesmo teria lugar no Hospital [...], e seria acompanhado pela enfermeira BB [...], que a iria buscar a casa «quando entendesse ser a hora a transportar para aquele hospital». Disse ter seguido a gravidez da denunciante e que «tudo corria normalmente». Apenas achou estranho o facto desta continuar a fazer aulas aquáticas de preparação para o parto, pois este estaria iminente e «rompendo-se as águas dentro da piscina, a ofendida não se iria aperceber dessa situação». Foi inquirida, GG [...], a qual a fls. 164 disse ter conhecido a denunciante durante a gravidez, pois também estava grávida na mesma altura, estando ambas a ser seguidas na “[...], Lda.”, bem como no Hospital [...], sendo a responsável desse acompanhamento a denunciada BB [...]. Afirmou nunca lhe ter sido relatado pela denunciante qualquer circunstância anormal no acompanhamento que lhe era prestado pela denunciada, exceto no dia em que foi internada no hospital [...], pois, segundo informou, a denunciante considerou a atuação da denunciada como «grosseiramente» negligente no momento do parto. Foi inquirida HH [...], a qual a fls 173 e vº que se identificou como médica e amiga da denunciante AA [...] e da mãe desta. Referiu ter seguido a gravidez da denunciante, solicitando os «exames de protocolo de uma gravidez de uma mulher de 37 anos de idade». Todavia, apesar de solicitar a realização desses exames e de os ter analisado, enviando-os de seguida para a denunciante, disse nunca a ter visto em consulta. Confirmou que a denunciante lhe manifestou pretender ter o parto em ambiente natural, na água, e que já teria encontrado esse local no Porto, estando a ser acompanhada por uma enfermeira, com quem se consultava e a quem mostrava os exames que fazia, frequentando, também, aulas de preparação para o parto em piscina, juntamente com outros casais. Questionada, respondeu que a gravidez da denunciante foi sempre normal e que o parto estava previsto para 18/08/2015, momento em que completava as quarenta semanas de gestação. Acrescentou que, «quando a AA telefonou à enfermeira a relatar a possível perda de mecônio, o procedimento normal seria chamar o 112 ou deslocar-se imediatamente a um hospital» e que a denunciante sabia disso, porquanto, segundo lhe contou, a denunciada havia-lhe explicado os sinais de alerta, «sendo a perda de mecônio um desses sinais», pois significa «sofrimento fetal». Referiu, ainda, que, «quando uma parturiente tem contrações de dois em dois minutos, significa que está em trabalho de parto e deve ser imediatamente assistida», pelo que, quando a denunciante chegou hospital de [...] em trabalho de parto, sem movimentos fetais e ausência de batimentos cardíacos, «o procedimento normal seria a imediata condução para a obstetrícia e eventual cesariana de urgência». Afirmou que foi a mãe da denunciante quem lhe ligou a informar o sucedido, logo após o conhecimento da morte do bebé, e que nessa altura aquela lhe comunicou que a denunciante pretendia ir para outra unidade de saúde, «tendo a depoente aconselhado vivamente a não abandonar aquela unidade hospitalar, porque era muito perigoso e teria muitos riscos associados, principalmente infeções». Foi inquirida II [...], mãe da denunciante, a qual a fls 174 a 175 confirmou que a sua filha sempre tinha tido o «sonho» de ter um filho em ambiente natural, na água, «que desde muito cedo manifestou essa vontade» e, por isso, ajudou-a a pesquisar uma clínica na zona norte de Portugal onde fizessem esse tipo de parto, tendo assim encontrado a “[...], Lda.”, onde trabalhava a denunciada BB [...], enfermeira que, posteriormente, fez o acompanhamento da gravidez. Referiu que, a partir de março de 2015, passou a ser frequente a troca de mensagens entre a denunciante e a denunciada, sobre orçamentos e condições de parto dentro de água, bem como, sobre a ligação com o Hospital [...] e com o médico, Dr. EE [...]. De igual modo, confirmou que a denunciada prestou informações sobre os procedimentos a ter na altura do parto e respetivo acompanhamento no ato. Deu, também, a conhecer que, na manhã de 18/08/2016, ao falar com a filha pelo telefone, esta informou-a que estava em trabalho de parto e que «a enfermeira estava a caminho e que, em princípio, ia para o hospital», tendo a depoente respondido por “sms” («por não conseguir falar com a AA»), pelas 09:54 horas, a dizer «já devias ter ido!». Mais tarde, recebeu duas mensagens de texto (sms) com os dizeres «reza!», «o coração não está a bater!», enviadas pela filha às 11:16 e 11:17 horas, respetivamente. De imediato, deslocou-se com o marido em direção ao hospital onde a filha se encontrava. Quando aí chegou, foi-lhe transmitido o óbito do feto e que a denunciante tinha já assinado um pedido para sair daquele hospital, o que a depoente se apressou a insistir para que não o fizesse nas condições em que se encontrava. Nesse local encontrou a denunciada BB [...], a qual lhe transmitiu ter sido contactada pela denunciante pelas 03:30 horas a informar o estado em que estava, contudo, «não considerou a gravidade da situação em virtude de ser o primeiro filho e que sendo um parto dentro de água, teria de estar bem adiantado o trabalho parto». Mais referiu que a denunciante continuava a insistir em sair daquele estabelecimento de saúde e, só após a depoente ter contactado com vários médicos, incluindo com a médica e testemunha HH [...], que a aconselharam a não o fazer, é que a de denunciante aceitou ficar internada e induzir ali o parto. Recordou-se, no entanto, que a denunciada afirmava que não havia problema em ir para casa, pois «o bebé acabaria por sair naturalmente». Foi inquirida [...] JJ [...] na qualidade de testemunha, tendo a fls 266/267, referido ter estado com a denunciante apenas uma vez, na sessão de relaxamento na água realizada na piscina do “[...]”, em agosto de 2015, uma vez que também estava grávida há altura. Recordou que, nesse dia e local, a enfermeira foi ao carro buscar o aparelho de doppler fetal e esteve a ouvir os batimentos cardíacos do feto durante algum tempo, constatando que estavam regulares. Mesmo assim, afirmou que a arguida aconselhou a denunciante e, depois, o marido, a irem fazer uma ecografia e um CTG a um hospital, uma vez que aquela aparentava estar muito ansiosa. A testemunha e enfermeira KK [...], inquirida a fls 268/269, confirmou ter estado em 18/08/2015, na urgência a fazer a triagem, quando recebeu um contacto telefónico da arguida a informar que estava a sair de casa da denunciante em direção ao hospital, porquanto não conseguia ouvir o batimento cardíaco fetal. Referiu que, na triagem questionou diretamente a denunciante AA [...] sobre se tinha sentido o bebé mexer e que esta, «um pouco assustada», disse-lhe que achava que sim, mas sem conseguir concretizar. Então perguntou-lhe se desde que tinha chegado à urgência tinha sentido o bebé, tendo aquela dito que não. Nessa medida, afirmou ter encaminhado a situação para a médica de serviço, Dra. CC [...], para ser observada. Aí fizeram de imediato uma ecografia, altura em que puderam confirmar a ausência de batimento cardíaco fetal. Depois disso, a denunciante foi encaminhada para o setor de diagnóstico pré-natal onde se confirmou o resultado da ecografia. Relatou que, após essa notícia, a denunciante disse não querer ficar ali internada e ponderou ir para outra instituição hospitalar, tendo chegado a assinar o termo de responsabilidade de alta contra o parecer médico. Porém, depois de aconselhada por si e pela arguida, acabou por decidir ficar no hospital, sendo aberta uma nova ficha de urgência para internamento. Recordou que a denunciante tinha «fobia a agulhas e de todos os procedimentos médicos». Mais referiu que esteve toda a manhã com a denunciante e que esta nunca comunicou sentir dores, nem evidenciou sinais de dores. Foram inquiridas as médicas CC [...] e LL [...], especialistas em ginecologia obstetrícia, a exercer funções no Centro Hospitalar [...], as quais, em síntese, confirmaram o depoimento da enfermeira KK [...]. A médica CC [...] reinquirida em sede de instrução (fls 649 a 662) confirmou ter observado a assistente na urgência, não tendo objetivado batimentos cardíacos , solicitando a uma colega que confirmasse tal observação, a que se seguiu a realização de uma ecografia , que confirmou a ausência de batimentos cardíacos, tendo informado a assistente. Confirmou que a mesma não quis ficar internada, tendo assinado o termo de responsabilidade. Sabe que posteriormente tornou a dar entrada no hospital, mas foi outra colega que deu entrada e assistiu a mesma. Afirmou que a assistente quando entrou na urgência, não estaria em trabalho de parto, que não objetivou qualquer perda de mecônio, e que o líquido que a assistente terá expelido seria rolhão mucoso. Inquirido o médico ginecologista obstetra, [...] EE [...]. A fls 274ª 275, afirmou exercer funções no Hospital [...], no entanto, nunca fez qualquer consulta a AA [...], «nunca a viu, nem foi procurado por ela, por telefone ou presencialmente». Aludiu que, «em qualquer situação semelhante, teria de haver pelo menos uma consulta consigo, de forma a serem avaliados os fatores de risco da gravidez para um parto não medicado como era a pretensão da AA». Referiu que, por telefone e por email, a arguida BB [...] já lhe havia, «sobejamente», comunicado a pretensão da denunciante em ter um parto natural. Contudo, pelo que se pôde aperceber, a denunciante apenas teria sido observada uma vez no segundo trimestre pela arguida e ainda não teria feito a ecografia morfológica que devia ter realizado às vinte semanas, assim como esta não tinha feito as análises necessárias do terceiro trimestre, que devia ter feito às trinta e duas semanas. Sustentou que tais exames apenas foram realizados posteriormente, «por muita insistência da parteira BB». Adiantou, ainda, que não era possível realizar um parto natural no Hospital [...] de uma grávida que não tivesse sido consultada por si, pelo menos uma vez. Foi informado, em 18/08/2015, pela arguida, através de contacto telefónico, do diagnóstico de morte fetal “in utero”, tendo recomendado que a denunciante permanecesse internada no Centro Hospitalar [...], onde se encontrava. Na sua opinião, «houve da parte da AA uma série de facilitismos, entre os quais, o facto de nunca ter sido por si consultada». A assistente prestou declarações complementares a fls 358 a 363, onde confirma no essências a denuncia efetuada e o depoimento do seu marido. Mantem que a arguida lhe disse que podia continuar a ser seguida por outro médico, mas não via motivo, por ser suficiente o seu aconselhamento não sendo aconselhável fazer muitas ecografias. Optou por não ser seguida por médicos por sentir segura com a arguida, não tendo ido a qualquer consulta em obstreta no 3º trimestre. Refere que no último mês de gravidez ia pelo menos uma vez por semana e na última semana diariamente sendo sempre observada pela arguida. Refere que fez uma ecografia por semestre. Mais disse que nunca falou com o Dr. EE [...], apesar das suas insistências com a arguida mas esta referia que estava tudo combinado com o médico. Refere que estava combinado com a arguida esta acompanhar o incio das contrações e quando o bebe estivesse para nascer é que seguiam para o Hospital [...]. Refere que a arguida nunca a informou da obrigatoriedade da consulta com o Dr. EE [...]. No dia 17.08.2015, foi ao [...] e fez um CGT e estava tudo bem. Mostrou preocupação à arguida e esta disse que se quisesse devia ir ao Hospital Pedro Hispano. Não foi ao hospital nesse dia porque quis esperar para ver se nascia naturalmente e porque a arguida lhe disse que estava tudo bem. Depois foi para casa e a partir das 4h começou a ter contracções mais fortes. Depois de ter enviado uma mensagem a dizer que tinha contracções de 10/10 minutos, a arguida ligou-lhe e disse que só ia a sua casa mais tarde porque o trabalho de parto ia demorar tempo e ainda estava no início. Disse ainda para relaxar e tentar dormir. Pediu para ela se deslocar a sua casa mas ela respondeu o referido. O telefonema durou algum tempo não sabendo precisar. Ao telefone a arguida ainda disse quando estivesse com trabalho de parto avançado que ligasse e não mandasse mensagem. Depois de desligar o telefone continuou deitada no sofá e as contracções aumentaram. As dores começaram a ficar muito fortes e cerca das 7/8h da manha, o seu marido ligou à enfermeira. Neste espaço de tempo, não se lembraram de chamar o INEM e não pensaram nisso. Sabe que a arguida no telefonema perguntou ao marido se pretendiam ir directamente para o hospital ou se pretendiam a sua presença e o marido respondeu "venha ca porque ela não está bem". Quando a enfermeira chegou já estava um pouco melhor. Quando a enfermeira chegou oscultou-a e de imediato disse para a seguirem até ao hospital de Gaia. A arguida não referiu ser necessário accionar o INEM. Confrontada com as declarações de KK de fls. 268 refere que o ali referido é mentira e nunca disse o ali referido por não ter prestado declarações a enfermeiras. Deram-lhe uma pulseira amarela e foi levada para uma outra sala para fazer a radiografia. Esclarece entrou mais cedo nas urgencias e não às 11h44 conforme referido a fls. 74. É mentira ter pedido para sair do hospital e ter solicitado assinar o termo de responsabilidade conforme é referido a fls. 74verso. Nunca disse isso. Depois da ecografia e de lhe terem dito que o bebe estava morto, a enfermeira BB e a outra enfermeira disseram-lhe que era melhor ir para casa para esperar que o bebe nascesse naturalmente, sem necessidade de fazer cesariana. Pediu para ser transferida para o Hospital de [...] e demorou algum tempo a assinar o internamento porque queria ir para [...]. Após falar com alguns médicos acabou por aceitar ficar internada. Nunca disse que queria ir para casa. Nunca disse à medica que queria ir para casa. Acabou por aceitar ficar internada. Quando estava deitada no hospital acha chegou a sentir o bebé. Não consegue afirmar com toda a certeza se quando saiu de casa as 10h30 ainda sentia o bebé porque as contracções amenizaram. Só no hospital voltaram a ser mais fortes. Foi nessa altura, quando estava numa sala de espera, que começou a dizer que estava com dores e em trabalho de parto. Quando chegaram ao Hospital quem se dirigiu à recepção foi a arguida. Não sabe o que ela disse. Esperaram algum tempo e como começou a sentir contracções, levantou-se e nessa altura a BB levou-a para dentro das urgências e falaram com uma enfermeira que não lhe fez qualquer tipo de exame, apenas lhe pôs a pulseira amarela e a encaminhou para outra sala para fazer a ecografia. Nesta sala estavam outras grávidas e só fez a ecografia depois das outras grávidas fazerem. Não se lembra de ter assinado o termo de responsabilidade e nunca disse que queria ir para casa. Nunca saiu da zona de urgência e nunca disse que queria ir para casa. Nunca quis sair do hospital, só queria era ser transferida. Sempre disse à arguida e à outra enfermeira que não ia para casa. Confrontada com fls. 279 refere que a sua assinatura não consta em tal documento, não assinou tal documento e nunca disse que queria sair do hospital. Acha que se a arguida tivesse dito no hospital que era uma situação muito urgente teria tido outro tipo de atendimento na urgência e o resultado poderia ter sido outro. Esclarece que apenas falou com uma medica. Quando chegou ao hospital não disse a ninguém o motivo da ida à urgência. Nunca quis ter um parto em casa. A arguida BB [...] prestou declarações a fls 207 e 211, nas quais confirmou ser enfermeira especialista em saúde materna obstetra, exercendo funções na Unidade Local [...], e na sociedade “[...], Lda.”, da qual era sócia fundadora desde 2003. De igual modo, atestou que a primeira consulta com a denunciante ocorreu em 30/04/2015, tendo, ainda, sido realizadas outras consultas em 18/06/2015, 27/07/2015 e 13/08/2015, todas efetuadas nas instalações da “G..., Lda.”, sempre consigo. Na primeira consulta apresentou à denunciante os serviços disponibilizados pela “[...], Lda.” e explicou a parceria com o Hospital [...]. Sustentou que todos os casais são advertidos que têm de marcar uma consulta prévia com o Dr. EE [...] para que este possa conferir que reúnem as condições para um parto fisiológico e que está disponível para ficar à chamada. A consulta com este médico obstetra teria de ser marcada pelo casal e não pela denunciada. A partir dessa data o casal pode optar por continuar com o médico obstetra ou de família que já o acompanhava ou passar para o Dr. EE [...]. Conforme informou, essa consulta com o médico, Dr. EE [...], nunca chegou a acontecer, embora a denunciada estivesse convicta do contrário. A arguida aludiu, também, ter obtido a confirmação da opção do parto natural dentro de água por parte da denunciante no dia 18/06/2015, através do email que consta de fls. 47 dos autos. Referiu que, ao contrário do que seria de esperar, a denunciante não realizou todas as análises e exames que lhe haviam sido prescritos pela médica que a acompanhou no primeiro trimestre, apesar de ter consigo cópia das respetivas requisições, alegadamente, por «pavor a intervenções médicas». Declarou estar convicta que a denunciante estava a ser regularmente acompanhada por vários médicos, nomeadamente, a médica de família, Dra. HH [...], a obstetra, Dra. [...] MM e, ainda, a Dra. NN [...]. Mais acrescentou que, em 13/08/2015, através de telefonema, teve conhecimento que a denunciante tinha «vómitos e diarreia», pelo que lhe sugeriu que fosse ao hospital. Contudo, esta recusou-se a seguir essa recomendação, tendo-lhe pedido que a observasse na “[...], Lda.” onde, nesse mesmo dia, foi monitorizada através de CTG, a qual estava normal. Ainda nessa altura fez análise à urina, com fita combur, que acusou nitritos e leucócitos, o que podia ser indicativo de gastroenterite, pelo que, a aconselhou a falar com a médica assistente. Nesse mesmo contacto telefónico, disse ter questionado a denunciante sobre os resultados das análises do terceiro trimestre, que tinha ficado de enviar, ao que esta respondeu que ainda não as tinha feito, fazendo-as naquele dia. Confirmou, igualmente, o episódio reportado pela denunciante, ocorrido na tarde de 17/08/2015, nas instalações do ginásio “[...]”, onde através de um doppler fetal ouviu a frequência cardíaca do bebé, durante cerca de cinco minutos, e que este se encontrava normal. Nessa altura, apesar da frequência cardíaca estar normal e «tudo indicar que o bebé estivesse bem», a arguida sugeriu «vivamente» à denunciante que fosse à urgência do Hospital [...] ou a outra instituição hospitalar para fazer uma ecografia e CTG, «para confirmar se a placenta estava a funcionar bem», tendo insistido neste procedimento junto do companheiro da denunciante. No entanto, ao contrário do seu pedido, a denunciante comunicou-lhe através de “sms”, enviado nesse mesmo dia, pelas 19:00 horas, que não havia ido ao hospital, afirmando «Não fui. Estamos no escritório. Se não nascer até amanhã que era a dpp. Vamos quarta-feira às urgências» (cfr. fls. 109). A arguida asseverou que nunca combinou que se deslocaria à residência do casal no início do processo de trabalho de parto. Só o faria «se houvesse dúvidas», «para garantir que quando entrassem no Hospital [...] estivesse efetivamente em trabalho de parto». Referiu que, quando, em 18/08/2015, pelas 03:49 horas, recebeu o “sms” da denunciante a informar que estava com contrações de 10 em 10 minutos e que a dor continuava forte, mas era suportável e que, depois de se ter oferecido para ir a sua casa, aquela recusou, preferindo descansar. Salientou, porém, que, não estavam reunidos os sinais de verdadeiro trabalho de parto nomeadamente, contrações intensas de frequência e intensidade regular e, por outro lado, as características do “líquido”, tal como foram descritas pela queixosa, eram compatíveis com a saída de rolhão mucoso». Acrescentou que, na manhã de 18/08/2015, recebeu uma chamada do marido da denunciante a relatar que a denunciante tinha tido dificuldade em descansar durante a noite, mas as contrações pareciam ter abrandado, todavia, este pediu-lhe que fosse ao domicílio do casal. A arguida aludiu ter solicitado, então, indicações da morada, a qual lhe foi enviada através de “sms”, recebido às 09:48 horas. Negou que, em algum momento, o marido da denunciante a tivesse informado que as contrações estavam a decorrer de dois em dois minutos. De acordo com as declarações da arguida, quando esta chegou a casa da denunciante, pelas 10:30 horas, observou que a mesma se encontrava no interior da banheira, sem contrações regulares, tendo a ideia que, no espaço de 30 minutos, a denunciante apenas manifestou uma contração curta. Quando a denunciante saiu da banheira, a arguida usou o doppler fetal, constatando a ausência de ruídos cardíacos fetais e placentares, momento em que temeu que alguma coisa grave pudesse ter acontecido. Em face do exposto, sugeriu que fossem de imediato, de carro, ao hospital de [...], por ser o mais próximo. A caminho do hospital telefonou à colega KK para saber quem estava de urgência no hospital, ao que esta respondeu ser ela própria e que estaria à sua espera para os receber. Chegados ao hospital, referiu que a denunciante se deslocou de imediato à triagem e entrou com a colega enfermeira, sendo que, alguns minutos depois, a arguida recebeu a informação que a ecografia confirmava a morte fetal. A arguida negou que, após esta notícia, tivesse dito à denunciante para assinar o termo de responsabilidade e ir para casa, tanto mais que lhe havia sido aconselhado que não devia sair do hospital por ser clinicamente arriscado. A arguida prestou novas declarações a fls 392 a 396, onde para além de confirmar as declarações por si prestadas anteriormente, afirmou que as ecografias da gravidez foram acompanhadas pelas médicas que seguiam a denunciante AA [...], nomeadamente a Dra. HH [...] e Dra. [...] MM, sendo que, quando esta se dirigia a si já trazia consigo a prescrição das ecografias passadas pelas médicas. Sabe que a denunciante fez as ecografias obstétricas do primeiro, segundo e terceiro trimestre em centro obstétrico, acompanhadas por médico. Referiu que a denunciante era acompanhada por médica obstetra/médica de família, embora não possa confirmar com que regularidade, sendo que o seu papel era apenas de «verificar» se as análises que eram prescritas pelo médico assistente era realizadas e se estavam reunidas as condições para um parto com baixa intervenção, pois era o desejo da denunciante, e orientar sobre os procedimentos para poder ter o parto «com intervenção mínima», com utilização ou não de água, no Hospital [...]. A arguida apenas tomava conhecimento do resultado dessas ecografias que lhe eram trazidas pela denunciante, nunca tendo a sua realização sido indicada pela arguida, pois sabia que a denunciante tinha já o devido acompanhamento médico obstétrico. Apesar do exposto, as referidas ecografias foram apresentadas pela denunciante à arguida, a última das quais a ecografia do terceiro trimestre (das 33 semanas), por forma a que pudesse confirmar se se tratava de uma gravidez de baixo risco, pois isso era essencial para se avaliar se estavam reunidas as condições para a utilização de uma «banheira de parto». Da avaliação que fez, aferiu que estavam reunidas as condições necessárias para a realização de parto «com baixa intervenção» (em água ou não), pelo que, indicou à denunciante que marcasse consulta com o Dr. EE [...], no Hospital [...], por forma a que este pudesse fazer uma segunda verificação e, bem assim, junto do Hospital, poderem ser preenchidos os papeis do seguro e todas as demais burocracias administrativas. Mais referiu que, desde os primeiros contactos com a denunciante, sempre a informou que a consulta com o Dr. EE [...] era um requisito essencial para a realização do parto de baixa intervenção nas instalações do Hospital [...]. Este aconselhamento manteve-se sempre, ao longo de todas as consultas que teve com a denunciante. Esclareceu que, em 28/06/2015, enviou um email ao Dr. EE [...] a dar-lhe conhecimento deste caso, por forma a apurar se o mesmo estaria disponível para acompanhar o parto, uma vez que se previa que o mesmo pudesse ocorrer durante o período de férias, ou indicar outro colega que estivesse disponível nessa data. Nesse mesmo email, deu a conhecer ao Dr. EE [...] a especificidade de, caso não ser possível o parto de «baixa intervenção, sem medicamentos», a denunciante solicitava que o mesmo fosse realizado com anestesia geral, «pois a AA tem mesmo muito receio de intervenções e refere que poderia entrar em pânico», questionado aquele se isso era possível (cfr. email junto a fls 397). Sempre teve a ideia que a denunciante teria tido a tal consulta com o Dr. EE [...], pois isso sempre foi o procedimento de todas as grávidas que acompanhou, no entanto, não pode confirmar se, em algum momento, a denunciante lhe referiu ter efetuado essa consulta, nem que o Dr. EE [...] lhe tenha dado qualquer informação nesse sentido. No entanto, o Dr. EE [...] «validou» consigo que estava disponível para acompanhar este caso (conforme email junto a fls 409). Questionada sobre se, quando a denunciante entrasse em trabalho de parto tinha condições de ser recebida no Hospital [...], a arguida esclareceu que, entendia que sim, pois confirmou essa hipótese com o Dr. EE [...], verificando previamente a sua disponibilidade. Quanto ao demais pessoal necessário para a execução do parto (pediatra, anestesia, instrumentistas, e outros), o Hospital [...] tinha tudo preparado, pois tem equipas 24 horas por dia disponíveis para esse efeito. Conforme acima referiu, a última ecografia que lhe foi apresentada e a que teve acesso foi a realizada às 33 semanas, que indicava um percentil 50 (p50), inexistindo qualquer indício que algo pudesse estar mal com o bebé. Desde então, a denunciante não lhe apresentou qualquer outra ecografia, nem sabe se a denunciante efetuou mais alguma ecografia, não tendo registo disso. Também afirmou não ter pedido à denunciante que fizesse uma ecografia de rotina posterior às 33 semanas, não só porque essa ecografia, em conjunto com as duas anteriores ecografias do primeiro e segundo trimestre, preenchiam os requisitos estabelecidos pela próprio "Programa Nacional para a Vigilância da Gravidez de Baixo Risco", da Direção-Geral de Saúde (que se mostra junto a fls 398 a 401) como entendeu que, estando a denunciante a ser acompanhada na gravidez por médica de família, competiria a esta requisitar ecografias complementares ou outros exames médicos. Acrescentou que, no final do dia 17/08/2015, às 19:00 horas, a denunciante entrou em contacto consigo através de mensagens "sms" a dar-lhe conta que «se sentia diferente». Em face disso, questionou a denunciante se já tinha ido ao hospital nesse dia, conforme lhe tinha sugerido. De facto nesse dia, quando estavam nas instalações do [...], e após questionar a denunciante sobre se tudo estava bem, esta transmitiu-lhe que lhe «parecia» que o bebé se estava a mexer menos. Em face disso, nessas circunstâncias de tempo, fez uma avaliação da frequência cardíaca fetal, mediante a utilização de um dopler, que registou uma frequência normal. Mesmo assim, face à informação que esta lhe prestou que sentia o bebé a mexer-se menos, recomendou-lhe que se dirigisse a um hospital para fazer uma ecografia, o que, de igual modo, comunicou ao marido da denunciante. Tal recomendação foi feita na presença de um outro casal, mas, segundo soube depois, não foi acatada pela denunciante. Disse que, desde o momento em que recebeu o contacto da denunciante às 19:00 horas, ficou «alerta» por percecionar que o parto poderia ocorrer nessa noite. Ao receber "sms" da denunciante cerca das 03:00 horas, de dia 18/08/2015, em que a denunciante lhe comunicou que estava a ter contrações de 10 em 10 minutos e pediu que lhe recomendasse o que fazer, a arguida, através de contacto telefónico direto, manifestou total disponibilidade para se deslocar a casa da denunciante, não por ter a certeza de que estava a entrar em trabalho de parto, mas para poder confirmar "in loco" em que estado a denunciante se encontrava. Em resposta esta disse-lhe que não havia necessidade, porquanto as contrações ainda eram «fracas e irregulares». Ainda assim, a arguida pediu à denunciante que, caso tivesse necessidade de entrar em contacto consigo, a contactasse através de chamada telefónica e não por "sms". Nessa noite não voltou a ser contactada pela denunciante. Não contactou com qualquer equipa médica ou com o hospital, pois entendeu que, nessa altura, não havia, ainda, sinais suficientes para poder concluir que a denunciante já estava a entrar em trabalho de parto. Referiu que, nessa manhã, contactou com o marido da denunciante, tendo este informado que as contrações tinham diminuído. Sem prejuízo disso, a arguida, mais uma vez, mostrou-se disponível para ir a casa da denunciante, tendo, só nesse momento, o marido da denunciante pedido que o fizesse, pois ficavam mais descansados. Nessa altura, a arguida pediu-lhe que enviasse a morada da residência por mensagem, pois era mais rápido do que ter de a ir consultar ao processo, o que aquele fez. Não entendeu que, nesse momento, estivesse em causa alguma situação urgente, ou sequer que o trabalho de parto fosse emergente. Quando chegou a casa da denunciante, esta encontrava-se deitada na banheira, com água, relaxada. Referiu-lhe que, durante a noite, tinha sentido o bebé a mexer. A arguida referiu ter, então, pedido que a denunciante saísse da banheira, por forma a poder fazer uma avaliação ao colo do útero e ouvir a frequência cardíaca do bebé, o que esta aceitou. Ao fazer a avaliação da frequência cardíaca não detetou batimentos. Perguntou à denunciante se tinha sentido nas últimas horas o bebé a mexer, esta respondeu afirmativamente. Por forma a confirmar se havia algum problema com o aparelho, trocou as pilhas, e constatou que o resultado era o mesmo. Nesse instante, disse-lhe para irem, rapidamente, para o hospital, pois não estava a sentir os batimentos cardíacos do bebé, tendo a denunciante a questionado se isso era normal, o que a arguida respondeu que «não», daí a urgência em se deslocarem para o hospital. Não lhe ocorreu chamar uma ambulância, pois considerou que seria mais rápido irem de carro até ao hospital, do que estarem à espera de uma ambulância. Não sabe referir quanto tempo mediou entre o momento em que chegou a casa da denunciante e o momento em que registou a ausência de batimentos cardíacos do bebé. Também não sabe precisar quanto tempo mediou entre o momento em que constatou a ausência desses batimentos cardíacos e o momento em que chegaram ao Hospital. Tem apenas um apontamento que às 11:10 horas registou a referida ausência de batimentos cardíacos, pelo que seguiriam para o hospital. Esclareceu que, o casal lhe perguntou se podiam ir para o Hospital [...], ao que lhes respondeu que, como a situação se afigurava muito urgente, o melhor era irem para o Hospital de [...], por ser o mais próximo, o que eles concordaram. Seguiram em dois carros separados, com a arguida à frente a indicar o caminho, logo seguida do carro do casal. Não sabe indicar se ligaram luzes indicativas de urgência (quatro piscas), mas sabe que foram «muito rápido». Pelo caminho, e para acelerar a entrada da denunciante, ligou para a colega KK, que, por coincidência, lhe disse estar de serviço naquela altura. Informou-a, então, do que se estava a passar, pedindo-lhe que falasse com os médicos para prepararem a entrada da denunciante e esta poder ser logo atendida. Quando chegaram ao hospital, deslocou-se aos serviços administrativos, mostrou o cartão de enfermeira parteira, comunicou que já tinha entrado em contacto com a enfermeira KK reportando-lhe a situação, e pediu que deixassem entrar a denunciante para ser de imediato atendida, pois já estaria tudo preparado para a receber. Mais informou que, a colega KK surgiu no local e encaminhou a denunciante, dando início ao processo clínico com a urgência que se impunha. Pouco tempo depois, recebeu a informação que o bebé estava sem vida, mas que a denunciante não estava em trabalho de parto. O parto foi induzido, tendo o bebé nascido apenas no dia seguinte. Prestou também declarações em sede de instrução, estando as mesmas transcritas a fls 685 a 708, onde confirma no essencial o já por ela referido. No que concerne às conclusões da "Consulta Técnico-Científica" de fls. 351 a 354, refere que, quanto à «ausência de vigilância materno-fetal com monitorização fetal ante parto», da sua parte sempre deu todo o acompanhamento à denunciante no decurso das consultas realizadas no período de gravidez, incluindo a monitorização através de Dopler. No entanto, a realização de ecografias seria da responsabilidade da médica que acompanhava a denunciante, desconhecendo se foram, ou não, realizadas outras ecografias para além das supra aludidas, sendo certo que, das ecografias a que teve acesso (até às 33 semanas), tudo apontava para uma gravidez de baixo risco. Encontra-se, igualmente, junto aos autos os relatórios dos serviços de urgência do Centro Hospital[ar] [...] de dia 18/08/2015, referentes à denunciante AA [...] (fls. 74 a 101). O relatório de consulta técnico-científica (fls 290 a 293 e 302 ,351 a 354) elaborado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P cujo teor se dá qui por reproduzido, analisa a atuação da arguida partindo do pressuposto de que estava perante uma situação de preparação de um parto natural em conceito domiciliário. O Relatório de Perícia Médico-Legal (fls. 324 a 325vº), cujo teor se dá por reproduzido elaborado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., assenta num erro ao referir que a ecografia realizada na 33 semana apresentava uma placenta de grau III, quando na verdade o grau era II. Neste relatório não foi analisado o Boletim Individual de Saúde da Grávida, porque não fornecido. A assistente inquirida a fls. 350 refere não saber onde se encontra tal Boletim. Refere que em 17.08.2015 fez um CGT e estava tudo bem. A arguida no que concerne às conclusões da "Consulta Técnico-Científica" de fls. 351 a 354, refere que, quanto à «ausência de vigilância materno-fetal com monitorização fetal ante- parto», da sua parte sempre deu todo o acompanhamento à denunciante no decurso das consultas realizadas no período de gravidez, incluindo a monitorização através de Dopler. No entanto, a realização de ecografias seria da responsabilidade da médica que acompanhava a denunciante, desconhecendo se foram, ou não, realizadas outras ecografias para além das supra aludidas, sendo certo que, das ecografias a que teve acesso (até às 33 semanas), tudo apontava para uma gravidez de baixo risco. A fls. 308 consta a informação prestada pela Ordem dos Enfermeiros a confirmar que a arguida se encontra inscrita como enfermeira, com a cédula profissional número ....., desde 17/12/2001. A fls. 63 a 65vº mostra-se junta a certidão comercial da sociedade “[...], Lda.”, através da qual se observa que, desde a sua fundação em 08/08/2003, a arguida sempre ocupou a posição de sócia gerente da sociedade, com uma participação social maioritária. Mais se constata que a referida sociedade comercial tinha sede no Porto, tendo por objeto social a atividade principal de preparação para o parto e, como atividades secundárias, entre outras, o comércio de produtos de apoio à maternidade, obrigando-se desde 22/09/2009 pela assinatura da gerente única, ou seja, da aqui arguida BB [...]. Foram carreados nos autos, com interesse para a investigação, um conjunto de mensagens de correio eletrónico trocadas entre a denunciante e a arguida entre 31/03/2015 e 09/08/2015 (fls. 25 a 56) e entre aquela e a sociedade “[...], Lda.” em 11/06/2015 e 13/08/2015 (fls. 115 a 121), bem como, cópia certificada das transcrições das mensagens de texto (sms) trocadas entre a arguida e a denunciante e o marido desta, reportadas ao período de 21/04/2015 a 04/07/2016 (fls. 108 a 111 e 230 a 247) e ainda o CD junto na contra capa do 1º volume com os registos de chamadas telefónicas. Da análise de toda a prova acima referida ressalta não resulta minimamente indiciado, muito pelo contrário, que o parto seria domiciliário. Das declarações quer da assistente, quer do seu marido, e mesma da arguida assim como da troca de emails (fls 45/47) o parto iria ocorrer no Hospital [...], logo em meio hospitalar pelo que a conclusão a que chegou o parecer técnico cientifico a considerar-se que foi criado perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde da grávida (fls. 302) e "que se está perante uma situação de programação de parto natural no domicílio, procedimento não recomendado em Portugal " (fls. 293), não se aplica ao caso pois jamais o parto era para ocorrer no domicilio. Da informação constante de fls. 80, "história clínica" recolhida (pelo Centro Hospitalar [...], no dia 18.08.2015: consta que a gravidez era vigiada no médico de família. A médica de família a que a denunciante AA [...] vinha recorrendo durante a gravidez era a Dra. HH [...] que: prescreveu a realização da ecografia do 3. 0 trimestre — cf. fls. 45, e-mail de 21.05. 015, remetido pela denunciante AA [...] à arguida: relativamente à ecografia vou tentar solicitar para a semana à médica de família prescrição da 3. a ecografia para fazer às 32 semanas. Neste momento já estou com 29 semanas, pelo que, já não falta muito"; e prescreveu as análises clínicas realizadas pela denunciante AA [...] poucos dias antes da morte do seu nascituro, como se depreende de fls. 223 e 224 (data da colheita, 13.08.2015; data da entrega, 14.08.2015). Resulta ainda dos autos, a fls. 41, que a denunciante AA [...] teve uma consulta em Março de 2015 no Centro de Saúde, com médica de família (a 4.a Consulta, que, na verdade, foi a 3.2, já que faltou à 3.a consulta, marcada para dia 27.02.2015), e que no dia no dia 14.05.2015 voltou a ter nova consulta no Centro de Saúde, tendo sido prescrita a ecografia da 22 semana. Como acima se transcreveu a testemunha HH [...] disse "Que desde Janeiro de 2015, a depoente, a pedido da AA [...], (...) seguiu a gravidez da AA, sendo a depoente quem solicitava os exames de protocolo de uma gravidez de uma mulher de 37 anos de idade. (...) que apesar de solicitar os exames, nunca viu em consulta a AA. Que os exames eram analisados pela depoente que de seguida os enviava para a AA. Mais disse que a gravidez foi sempre normal e que o parto estava previsto para 18 de Agosto de 2015, altura em que fazia as 40 semanas de gravidez" (negritos nosso). E a própria denunciante afirma que estava a ser seguida no Centro de Saúde: "A arguida sabia que estava a ser seguida no centro de saúde" (fls. 362). É certo que a arguida passou a orientar a denunciante, através do agendamento de consultas de apoio e contactos telefónicos e por email, tendo recebido de AA [...] [por emails de 07/05/2015 (11:54 horas) e 19/05/2015 (17:29 horas)], um conjunto de informações sobre os procedimentos médicos que havia efetuado até então e os relatórios das ecografias do primeiro e segundo trimestre da gravidez. No entanto, é igualmente certo que durante todo esse período e até ao parto, a denunciante foi também acompanhada por outros clínicos, nomeadamente pela médica de família, da sua confiança, a aqui testemunha HH [...], que inclusive lhe indicou a realização de exames médicos que deveria efetuar e, posteriormente, os analisava a seu pedido. Além de ser seguida, e ter dito à arguida que era seguida, pela médica de família Dra. HH [...], a denunciante AA [...] referiu ainda à arguida que poderia recorrer à sua ginecologista de [...] Dra. [...] MM como resulta da leitura do e-mail enviado pela arguida à assistente no dia 07.05.2015 (fls. 40):Chegaste a contactar a Dra. OO? Tendo a assistente respondido ao mesmo por e-mail, a fls. 41: "(...) Penso que não será necessário contactar a Dra. PP [sic], uma vez que sé for preciso algum exame obstétrico tenho a minha ginecologista de [...], Dra. [...] MM e os exames obrigatórios, tenho feito no Hospital [...] através dos PI passados pela médica de família (...)". A arguida recomendou à denunciante AA [...] que recorresse ao acompanhamento da médica obstetra Dra. OO [...], tendo sido a denunciante que decidiu prescindir do seguimento de um médico obstetra. Não resultam indícios pois que permitam concluir que a arguida se sobrepôs aos comandos médicos a que a denunciante estava adstrita, nem resulta que tenha procurado induzi-la a abster-se de os seguir até ao dia do parto, tendo sempre confiado que a denunciante estava a ser devidamente acompanhada e observada por médico obstetra durante a gestação, ou médica de família não competindo à arguida ocupar esse lugar. Aliás jamais a arguida poderia prescrever a realização de uma ecografia, análises clínicas ou qualquer outro exame de natureza médica. Se a assistente optou por não seguir com as consultas de obstetrícia, fê-lo por mote próprio. A assistente, atenta até a sua formação académica, é uma pessoa esclarecida com acesso a toda a informação sobre gravidez, sabendo perfeitamente que as funções de médico e de enfermeira não são as mesmas nem se confundem entre si e que o acompanhamento por uma enfermeira não substituiu nem pode substituir o acompanhamento médico. Dos autos ressalta a pouca disponibilidade da assistente para seguir as orientações da própria médica de família pois conforme resulta de fls. 41 não fez a 3.a consulta pré-natal; a ecografia das 22 semanas foi feita às 23 semanas e 6 dias quando deveria ter sido a realizada 'entre as 20 semanas e as 22 semanas + 6 dias" (fls. 399 v). Do mesmo modo, as análises do terceiro trimestre foram feitas às 39 semanas+5 dias, depois das datas recomendadas, apesar de terem sido prescritas em tempo e de a denunciante ter sido orientada pela médica de família para as fazer nos timings recomendados pela Direção Geral de Saúde. De todos os elementos clínicos constantes do processo e outros meios de prova da autoria dos profissionais de saúde que participaram nas intervenções médicas a que a assistente AA [...] foi sujeita no Hospital de [...] nos dias 18 e 19 de Agosto de 2015, resulta objectiva e inequivocamente que, na madrugada do dia 18.08.2015, a denunciante AA [...] não entrou em trabalho de parto, nem que tinha contrações mormente as por ela referidas na denuncia e declarações ( 2 em dois minutos) e descritas no artº 24 da acusação, nem que tenha perdido mecónio(art.º 23 da acusação) pois, nos Relatórios do Centro Hospitalar [...], relativo ao episódio de urgência n. ..., com data de admissão às 1 1 horas do dia 18.08.2015, de fls. 74 e ss., consignou-se :"Toque: colo encurtado, permeável a I dedo" (fls. 74v e fls. 86) — ou seja, a dilatação do colo uterino era de I cm; "Diagnósticos diferenciais": "Morte fetal por asfixia ou anoxia antes do início do trabalho de parto ou em ocasião não especificada (Em investigação). CC [...] (Ginecologia / Obstetrícia) / 18-Ago-2015/12:32"(fls. 74v) No Relatório relativo ao episódio de urgência n...., com data de admissão às 13:58 do dia 18.08.2015, de fls. 74 e ss., consignou-se: "Diagnóstico de saída": "Feto morto / anteparto" (fls. 76,)."Causa de admissão: 65641 — Morte intra-uterina Condição Anteparto Com Parto Referenciado" (fls. 94),No "Certificado de óbito fetal e neonatal", de fls. 90, consignou-se: "Momento da morte: Antes do parto Causa da morte: a) paragem cardio-respiratória; b) asfixia fetal; c) circular cervical do cordão umbilical" (fls. 90).No "Partograma", a fls. 78, consignou-se:"Rot. de membrana: Data 18/8/2015 Hora 16:00" (fls. 78) — ou seja, a bolsa amniótica permaneceu intacta até às 16:00 do dia 18.08.2015."C. U. Freq.: 0" [parte inferior esquerda de fls. 78] — isto é, a frequência das contracções uterinas (C. U. Freq.) era zero. No seu depoimento de fls. 272, a médica do Hospital de [...] Dra. LL [...] esclarece que o caso da denunciante AA lhe foi passado na manhã do dia 19.08.2015 e que na véspera, dia 18.08.2015, havia sido iniciada a indução do parto: "No dia em causa, 19 de Agosto de 2015, entrou ao serviço às 8:30.Na reunião de serviço, passaram-lhe o caso tendo sido informada ser uma situação de morte fetal, que a paciente teria iniciado a indução durante o dia anterior e que o parto se daria em breve. O parto aconteceu pelas 9h39" (fls. 272). A indução do parto post-mortem é também confirmada pelo "Certificado de óbito fetal e neonatal, de s. 90:"Tipo de parto: Eutócico, induzido, apresentação de vértice" (fls. 90,).O documento de fls. 90 atesta que se tratou de um parto post-mortem por via vaginal sem qualquer intervenção instrumental durante o parto (parto eutócico). Ora a indução artificial do parto, iniciada às 16:00 do dia 18.08.2015, através da administração à assistente AA do fármaco misoprostol, só se explica porque até aí o trabalho de parto não se havia iniciado. A administração de misoprostol está documentada no partograma de fls. 78, manuscrita no canto infenor direito, na vertical: "inicia protocolo de misoprostol". O misoprostol é um fármaco que é ministrado na grávida para iniciar a indução o trabalho de parto, através da provocação artificial de contracções, com vista também (mediatamente, por via das contracções) a uma dilatação do colo uterino. O que mostra que só se realizou a indução porque a denunciante AA [...] não tinha contracções e apresentava uma dilatação do colo do útero de apenas 1 cm, o que leva a concluir que a assistente quando deu entrada no hospital, não havia sequer iniciado o trabalho de parto. E por isso mesmo os médicos que a acompanharam afirmaram reiteradamente, na documentação clínica pertinente, e na fase de instrução pela medica inquirida, que se tratou de uma "morte fetal por asfixia ou anoxia antes do início do trabalho de parto (fls. 74vº). A ausência de contrações resulta também do teor do registo hospitalar de fls. 78 (canto inferior esquerdo), no qual se consignou que não apresentava contracções ["C. U. Freq.: 0" —> frequência das contracções uterinas: zero]; p Ia e ala de dor de fls. 74v que aponta para 0 (zero): "Dor: O (Régua da dor); do depoimento da enfermeira KK [...], que esclareceu que "esteve com AA toda a manhã e ela nunca referiu dores, nem evidenciou sinais dores" (fls. 269). Nos registos do dossier clínico (fls. 74 e ss.) não há uma nota sequer sobre a existência de contracções prévias à chegada ao Hospital, o que é sinal claro de que a assistente não revelou ter tido tais contracções. Face a toda esta prova é muitíssimo improvável, para não dizer mesmo impossível, que de um período de várias horas seguidas de contrações a uma cadência de 2 minutos, (tal como a acusação refere, baseada tão só nas declarações da assistente e marido) a dilatação do colo do útero não tivesse excedido 1 cm. Note-se que o parto post-mortem realizado à assistente foi um parto eutócico (parto vaginal sem intervenção instrumental), artificialmente induzido (fls. 90 e fls. 94).O que se significa que com a medicação administrada à denunciante AA (misoprostol — fls. 78) para a indução artificial do parto, da qual resultou a produção de contracções, houve dilatação do colo uterino suficiente para a expulsão do nascituro do ventre materno. Como resulta do processo (fls. 74v e depoimento da Dra. CC, prestado em inquérito e em instrução médica que especialista em ginecologia e obstetrícia do Hospital de ..., fls. 270), à chegada ao Hospital, pelas I I do dia 18.08.2015, a denunciante AA "ao toque vaginal apresentava um colo encurtado permeável a um dedo" (fls. 270): "Toque: colo encurtado, permeável a 1 dedo" (fls. 74v). Ou seja, a dilatação não excedia 1 cm. Uma dilatação, pura e simplesmente, incompatível com várias horas prévias de contrações a cada 2 minutos. O mesmo é dizer que a dilatação uterina de I cm apresentada pela denunciante, objetivamente provada no processo, afasta a factualidade descrita nos pontos 20. e 24. da acusação na parte relativa às contrações. E também comprovam que a assistente não estava a perder mecónio, mas sim rolhão mucoso, com a arguida lhe referiu, pois sendo o mecónio o conteúdo dos intestinos do feto, só pode ocorrer libertação de mecónio se houver rompimento da bolsa amniótica (vulgo, rebentar as águas). Ora, quando a assistente deu entrada no Hospital [...], verificou-se que não havia ainda ocorrido o rebentamento das águas. Face a esta prova documental e objetiva ( médica e testemunhal pelos profissionais de saúde que acompanharam a assistente no Hospital ...) de pouca relevância se mostram as contradições existentes quanto aos conteúdos das conversas telefónicas a que alude o art.º 22º e 24º da acusação , com a especificação de que efetivamente foi a arguida quem por volta às 04:15 do dia 18.08.2015, telefonou à denunciante — cf. a listagem enviada pela Vodafone, constante de CD anexo dos autos, telefonema que decorreu entre as 04:15 e as 04:20. Não resulta também indiciado que a testemunha DD tenha ligado à arguida às 7:30 do dia 18, para que esta fosse a casa dos mesmos. Tal telefonema ocorreu poucos minutos antes do envio por este através de mensagem da morada da casa do casal o que ocorreu às 9:48 horas., pois como diz a arguida no seu RAI quando afirma “Desafia a lógica admitir que, estando a AA a sentir contracções de 2 em 2 minutos, o marido tenha ligado à arguida pedindo-lhe para, com urgência, vir a casa de ambos... e só lhe enviar a morada mais de 2 horas depois! E nesse intervalo não lhe ligar de novo, não lhe mandar mensagens a perguntar se estava a caminho, se estava perdida, etc.”. Da leitura do "plano de parto" elaborado pela assistente e junto a fls 51, do depoimento da testemunha DD [...], a fls 113 e das declarações da arguida não resulta indiciado que a arguida acordou com a ofendida que logo que esta entrasse em trabalho de parto avisaria a arguida e esta ficaria encarregada de a acompanhar até serem atingidos os 8 cm de dilatação, altura em que se deslocariam ao Hospital [...], e não antes, porque tal prejudicaria o trabalho de parto". No que concerne ao Relatório Pericial de fls. 351 e ss., o Senhor Perito partiu de dois dados — primeiro, que se teria tomado conhecimento, durante a gravidez, com a ecografia das 33 semanas, que a placenta teria, às 33 semanas um grau de maturação III, que normalmente só aparece às 35 semanas; e segundo que, entre as 33 semanas e o termo da gravidez o crescimento fetal baixou do percentil 50 para o percentil 3, facto só descoberto já após a morte do feto — para concluir que se justificaria uma monitorização contínua e rigorosa do parto, naturalmente em meio hospitalar. Sucede que, o Senhor Perito labora em erro, na parte relativa ao grau de maturação da placenta, e raciocina com base num dado que era desconhecido à data dos factos, o relativo à redução do percentil de crescimento. Vícios que, naturalmente, prejudicam o acerto das conclusões formuladas acerca da vigilância do parto. Pois: A consideração de que, às 33 semanas, a placenta apresentava uma maturidade de grau III poderá eventualmente fundar-se no registo hospitalar de fls. 84, que, de facto, na parte referente à 3.a ecografia (24.06.2015), consigna, quanto à "placenta (localização e maturidade)": "Grau III". Tratou-se, porém, seguramente, de um lapso de transcrição de quem, no Hospital ..., compilou os dados relativos à gravidez, já que, no relatório da ecografia das 33 semanas ficou expresso que a maturidade da placenta era de "Grau II". Esse relatório, datado de 24.06.2015, elaborado pela Dra. QQ [...], do grupo "[...] Saúde, está junto aos autos, anexado na contra capa do vol. I. O relatório da ecografia realizada às 33 semanas é concludente: "Placenta anterior, grau II a distância regular do orificio interno do colo uterino. Líquido amniótico de volume normal e textura homogénea. Não se observaram anomalias do desenvolvimento fetal". E mesma, na 2.a ecografia, feita a 15.04.2015, às 22 semanas + 6 dias, nenhuma anomalia foi apontada à placenta: placenta de localização anterior, sem relação com o orificio interno do colo uterino, com grau de maturação adequado à idade gestacional (grau I)" (fls. 402). Mais, a médica de família Dra. HH [...], que seguia a gestação, asseverou que "a gravidez foi sempre normal' (fls. 173). Consideração esta — a de que a gravidez foi sempre normal — que não seria explicável, como bem decorre do relatório pericial de fls. 351 e ss., se realmente a maturação placentária às 3 semanas fosse de grau III. Tendo a Dra. HH [...] tido acesso ao relatório da ecografia das 33 semanas, por certo não concluiria tratar-se de uma gravidez normal e não inspiradora de cuidados e procedimento especiais, designadamente os descritos no relatório pericial, se nele não se consignasse, como de facto se consignou que a placenta apresentava uma maturação de grau II e que não se observaram anomalias no desenvolvimento fetal. O segundo dado que, no entender do Senhor Perito, recomendaria que o parto fosse monitorizado continuamente é o da desaceleração tardia do crescimento fetal (p 50 para p3). Essa evolução anómala e inspiradora de cuidados (médicos) acrescidos era, porém, desconhecida da médica que seguia a gravidez, a Dra. HH [...], e da arguida, só tendo sido descoberta após a morte do feto. Esta desaceleração era delas desconhecida, sem que estivessem obrigadas a conhecê-la. Na verdade, o meio de diagnóstico próprio para a verificação do índice de crescimento era a ecografia obstétrica, mas não havia, in casu, nenhuma indicação terapêutica que justificasse a realização de uma quarta ecografia após a ecografia do 3.0 trimestre, a realizar entre as 30 semanas e as 32 semanas + 6 dias — cf. fls. 400v, "Programa Nacional para a Vigilância de Gravidez de Baixo Risco", na qual, em regra, se recomendam apenas 3 ecografias. E mesmo que, medicamente, fosse recomendável a realização de nova ecografia no período final da gravidez, já depois da ecografia das 33 semanas, não seria, por certo, a arguida a pessoa responsável por prescrevê-la. Desde logo, porque lhe falta competência legal para prescrever ecografias obstétricas, acto médico da exclusiva competência dos médicos. E, além disso, porque a gravidez estava a ser seguida pela médica de família Dra. HH [...], que, por exemplo, durante o mês de Agosto de 2015, prescreveu diversas análises clínicas. Se a médica clinica que acompanhava a gravidez, a profissional de saúde primeira e principal responsável pela vigilância de possíveis problemas que pudessem pôr em risco a vida e a saúde do feto e da mãe, não detetou nenhuma anomalia na gravidez e, por isso, não viu necessidade de promover a realização de novos exames que permitissem averiguar o estado de desenvolvimento fetal. Mesmo assim e como acima já foi referido a aqui arguida no dia 17/08/2015, auscultou os batimentos cardíacos, que se revelaram normais, e mesmo assim disse à assistente que deveria deslocar-se a um hospital para fazer uma ecografia e um CTG (cf. os depoimentos da testemunha JJ [...], a fls. 266, e da arguida, a fls. 394).Depois disso, a [...] ainda se dirigiu ao marido da denunciante, DD [...], e reiterou a recomendação que antes fizera àquela (cf. novamente os depoimentos da testemunha [...] JJ [...], a fls. 266, e da arguida, a fls. 394). E no final da tarde desse dia 17.08.2015, numa troca de mensagens iniciada pela denunciante AA [...], a arguida perguntou-lhe se sempre haviam ido ao Hospital [...]:"Que bom... estará para breve :-) Sempre foram ao hph?" (fls. 233, negrito nosso) ao que a assistente lhe respondeu que não:"Não fui. Estamos no escritório. Decidimos que se não nascer até amanhã que era a dpp. Vamos Quarta feira as urgências". (fls. 233). Face a tudo o acima descrito é manifesta a inexistência de circunstâncias conhecidas da arguida ou cujo conhecimento lhe fosse exigível que impusessem um acompanhamento e uma monitorização do parto como se refere na acusação, na linha do Relatório Pericial de fls. 351 e ss. Tendo o juízo pericial de fls. 351 e ss. sido formado e desenvolvido fundamentalmente a partir de um dado essencial errado, fica necessária e irremediavelmente prejudicada a sua valia como prova para fundar a indiciação dos factos levados aos pontos 31. (desde logo, a referência à existência de uma suspeita de sofrimento fetal agudo e, seguidamente, por inerência a restante factualidade aí descrita), 32. e 33. Assim da análise da prova produzida em sede de inquérito e de instrução, e pelos fundamentos acima referidos, com relevância para a decisão instrutória a proferir não resultaram indiciados os seguintes factos da acusação publica de fls 418 a 420 que aqui damos por integralmente por reproduzida para todos os legais efeitos, fazendo parte integrante deste despacho: Ponto 9: que a partir de data não apurada do mês de Maio de 2015, AA [...] passou sou a ser orientada e seguida exclusivamente pela arguida, que assumiu a responsabilidade de acompanhamento da gestação; Ponto 14: que por recomendação da arguida, a ofendida AA não se encontrava a ser acompanhada por médico-obstetra; Ponto 20: que nas circunstâncias de tempo, modo e lugar aí referido a assistente estava com contracções fortes e ritmadas com intervalos de 10 minutos cada"; - Ponto 22. Decorridos alguns minutos (. . .) [a ofendida] contactou telefonicamente a arguida"; Ponto 23: que a arguida desvalorizou a descrição de perda de sangue, referida no ponto 21, descrito com sendo perda de mecónio, achando tratar-se de rolhão mucuso, o que se facto de veio a confirmar ser; ficando assim não indiciado que a assistente perdeu mecónio. Ponto 24: "Após esse telefonema, o intervalo entre cada contracção reduziu para 2 minutos"; pelo que por volta das 07:30h o marido da ofendida AA, DD [...], contactou a arguida novamente por telefone, dando essa informação à arguida"; ou seja que a assistente tinha iniciado o trabalho de parto. Ponto 25: que a arguida referiu a que a suspensão do trabalho de parto era normal na presença de estranhos"; Ponto 31: que se estava perante uma suspeita de sofrimento fetal agudo; Ponto 32: que a morte fetal deu-se por falta de monotorização electrónica contínua da frequência fetal (GTG) de forma a avaliar a probabilidade de ocorrência de hipoxia e a obstar à sua intensidade e duração, evitando o resultado possível de morte fetal. Ponto 33: que no caso concreto impunha-se à arguida, enquanto responsável pelo acompanhamento da gestação da parturiente e até ao parto, providenciar pela assistência médica multidisciplinar a ter lugar em contexto hospitalar de modo à monitorização de todo o trabalho de parto e a obstar a um quadro possível de sofrimento fetal agudo, só prevenido e evitado daquela forma, sendo esse, como bem sabia, o procedimento médico recomendado pelas legis artis; Ponto 34: a arguida, deveria ter –se a deslocado de imediato à residência da ofendida após o primeiro contacto realizado no dia 18 de agosto de 2015, pelas 4 horas, e encaminhado de seguida a ofendida AA ao hospital mais próximo. Ponto 35. Não o tendo feito, violou a arguida o dever especial de cuidado que lhe incumbia, decorrente da sua profissão, de evitar o resultado morte que veio a acontecer e que devia ter representado. Ponto 36. que a arguida ignorou as previsíveis complicações decorrentes de um possível sofrimento fetal, e o óbito fetal que se veio a verificar. Ponto 37. Sabia que tal conduta era proibida e punida por lei. E dados como indiciados: 1- A arguida BB [...] é enfermeira, especialista em enfermagem de saúde materna e obstétrica, inscrita na Ordem dos Enfermeiros desde 17/12/2001, detentora da cédula profissional n.º ...... 2- A arguida é sócia-gerente da sociedade [...] que tem com activdade principal a preparação para parto e maternidade, na área de partos na água. 3- Em 30 de março de 2015, a ofendida AA [...], encontrando-se grávida do seu primeiro filho, e porque desejava experienciar o parto na água em ambiente hospitalar, consultou a página [...] e nessa sequência, após se decidir pelo recurso aos serviços da empresa da arguida, trocou com esta diversos e-mails e SMS, com recurso ao endereço eletrónico [...] e telemóvel n.º [...], ou [...], do seu marido DD [...], e endereço eletrónico da arguida [...] ou [...], e telemóvel n.º [...]. 4- Assim, no 31 de Março de 2015, pelas 22 h e 14 m, a ofendida AA [...] remeteu um e-mail ao endereço da sociedade, às 22:14, procurando informações sobre as especificidades e condições do parto realizado dentro de água, concretamente, se esse tipo de parto poderia ocorrer sem complicações relativas à sua saúde e à saúde do bebé e se haveria equipa especializada que a acompanharia até à realização do parto. 5- Após uma resposta formatada enviada pela empresa da arguida à ofendida, em 04 de abril de 2015, às 19:28, a própria arguida respondeu à ofendida AA por e-mail, explicitando, entre o mais, que fazia parte de uma equipa disponível para o acompanhamento de grávidas que pretendessem vivenciar a gravidez e o parto de uma forma mais natural e saudável. 6- Mais especificou que os honorários propostos incidiriam também sobre o acompanhamento no trabalho de parto, diferenciados para o caso de disponibilidade total, ou não, e consoante se optasse pelo Hospital [...], sugerindo ainda a realização de uma primeira consulta para conhecimento mútuo e perspectivar o futuro. 7- Posteriormente, em dia não apurado do mês de Abril de 2015, AA encontrou- se com a arguida BB [...] nas instalações da [...], transmitindo-lhe que pretendia realizar o parto na água, mas o seu marido manifestava receio, pretendendo ambos segurança relativamente ao sucesso do método de parto pretendido. 8. No dia 30 de abril de 2015, a arguida e a ofendida AA [...] encontraram-se novamente, estando a ofendida acompanhada do seu marido, sendo-lhes explicado nessa altura pela arguida que o parto teria lugar no Hospital [...][...], que seria um parto seguro, e que se algo corresse mal o Dr. EE [...] – médico-obstetra que trabalhava consigo e dava apoio à equipa – asseguraria a cesariana. 9. A partir de data não apurada do mês de Maio de 2015, AA [...] passou a ser orientada pela arguida, acompanhando a da gestação tendo em vista a preparação para o parto pelo metodo acorado e deseado pela assistente. 10. Assim, a pedido da arguida, AA [...] remeteu em 07 de maio de 2015 e 19 de maio de 2015 todos os exames médicos que tinha feito até ao momento, 11. A 21 de maio de 2015, AA [...] solicitou por e-mail à arguida que fosse marcada reunião para conhecer o Dr. EE [...], a qual não veio a ocorrer. 12. Depois dessa data, a ofendida foi vista pessoalmente pela arguida em consulta, sendo que em 18 de junho de 2015 a ofendida entregou à arguida os exames do trimestre, análises sanguíneas e ecografia. 13. Nessas consultas a arguida procedia à análise dos exames médicos realizados pela ofendida, apalpava a barriga daquela, nunca tendo feito qualquer exame de toque por entender desnecessária a verificação da dilatação até ao momento do trabalho de parto. 14. Por opção própria a assitente não se encontrava a ser acompanhada por médico-obstetra, sendo os exames obrigatórios prescritos pela sua médica de família, Dr.ª HH [...], e realizados no Hospital [...], 15. A partir de Julho de 2015, a ofendida, acompanhada pelo seu marido, passou a frequentar aulas de preparação para o parto dirigidas pela arguida. 16. A arguida transmitia sempre nesses momentos à ofendida AA [...] a confiança de que no tipo de parto escolhido não havia perigo de vida para o feto, a não ser que fossem doentes, que a opção geral pela cesariana era apenas por se tornar uma opção mais fácil, rápida e lucrativa e que depois de rebentarem as águas se podia esperar o tempo que fosse necessário para que houvesse dilatação desde que as águas fossem transparentes. 17. Nos meses de Junho, Julho e Agosto de 2015, a ofendida AA [...] frequentou também sessões de pilates nas instalações da [...], e tanto ela, quanto o seu marido, participaram em workshops na piscina do ginásio [...], de preparação para o parto na água. 18. A arguida acordou com a ofendida que logo que esta entrasse em trabalho de parto avisaria a arguida e esta ficaria encarregada de a acompanhar, altura em que se deslocariam ao Hospital [...], e não antes, porque tal prejudicaria o trabalho de parto. 19. Por e-mail de 09 de agosto de 2015, a ofendida AA [...] remeteu à arguida um plano de parto, no qual, a propósito do trabalho de parto, escreveu: “Presença do DD e da enfermeira BB (sempre).”. A este e-mail, respondeu a arguida, às 12:18 do mesmo dia: “Combinado na parte que me toca e tudo farei para que a restante equipa também respeite (…)”. 20.No dia 18 de agosto de 2015, aproximando-se as 4:00 da madrugada, com 40 semanas e 3 dias de gestação, a assistente remeteu SMS à arguida, a dizer que estava com contrações fortes e ritamdas com 10 m de intervalo, ao que a arguida respondeu, recomendando descanso. 21. Às 04:14, a ofendida AA remeteu nova SMS à arguida, tendo referido: “Saiu um líquido em pouca quantidade mas não e transparente … e acastanhado … parece sangue”. 22. Decorridos alguns minutos, a arguida ligou para asssitente recomendando, que a ofendida AA tivesse calma e fizesse repouso, achando poder tratar-se de rolhão mucoso. 23. Por volta das 9.48 do dia 18 a testemunha DD contactou a arguida por telefone, solicitando a presença da mesma, enviando de seguida uma mensagem com o endereço da morada do casal. 24.A arguida chegou à residência da ofendida por volta das 10:30 h quando. 26.A arguida utilizou um Doppler fetal para tentar ouvir o batimento cardíaco do feto, apercebendo-se, de imediato, que não conseguia ouvir qualquer batimento cardíaco fetal, pelo que nessa altura a arguida aconselhou a ida para hospital, mais perto, pedindo que a ofendida AA e o seu marido a seguissem de carro atrás do veículo conduzido por ela. 27.A arguida, seguida da ofendida e do seu marido, deslocou-se então às urgências do [...], onde se encontrava ao serviço a enfermeira sua conhecida, KK, tendo a entrada no serviço ocorrido pelas 11:44. H.. 28. Sucede que logo nessa altura e após observação foi verificada a ausência de actividade cardíaca fetal. 29. No dia 19 de agosto de 2015, pelas 09:39, foi confirmado o óbito fetal in útero, tendo o feto sido expulso, nado-morto, com 2650 gramas de peso. 30.A morte fetal ocorreu num contexto de distresse fetal agudo e subagudo com descarga de mecónio no contexto de patologia placentária, sem critérios de infecção fetal e ausência de malformações, e persistência de circulação fetal. Da subsunção dos factos ao Direito: Dispõe o artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, que «quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa». Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos O bem jurídico protegido é a vida humana, ficando o crime consumado com a morte da vítima, tendo o tipo de ilícito como pressuposto que o agente mate «outra pessoa», por ação, ou mesmo por omissão da ação adequada a evitá-lo, tal como consagrado no artigo 10.º, n.º 1, do mesmo diploma legal. Contudo, antes de nos debruçarmos sobre a existência de um nexo causal entre o resultado – a morte - e a eventual conduta (proibida) praticada pela arguida BB, impõe-se aferir se se está, de facto, perante um caso de morte tutelado pela norma jurídica em apreço, ou seja, se a morte do feto reportada nos autos é suscetível da proteção jurídico-penal enquadrável no elemento do tipo objetivo do crime de homicídio por negligência. Adiantamos, desde já, uma resposta afirmativa a esta questão. Com efeito, sem prejuízo de posições contrárias nesta matéria, entre as quais a de LEAL HENRIQUES E SIMAS SANTOS (in “Código Penal Anotado”, Vol. III, art.º 131 ao 235.º, 3.ª edição, Rei dos Livros, pág. 15) que sustentam que «para haver homicídio é preciso que o sujeito passivo seja um ser vivo. Isto é: que tenha já iniciado o nascimento (a proteção legal dirige-se, pois, a uma vida extrauterina)», somos da opinião, seguida pela maioria da doutrina penal e jurisprudência, que o começo da vida humana está intimamente relacionado como inicio do ato de nascer, na convicção que, como admitem MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO (in “Código Penal Parte Geral e Especial”, 3ª edição atualizada, Almedina, 2018, pág. 555), «é neste momento que acaba a situação fetal e começa o ser humano». Ainda a este propósito, sublinhamos o ensinamento de FIGUEIREDO DIAS (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 6) quando refere que «o fim da proteção da norma do homicídio impõe que a morte dada durante o parto, seja qual for a via pela qual esta se opere, se considere já um verdadeiro homicídio, antes que um mero aborto. Nesse sentido fala da necessidade de correspondência entre a especial força de tutela jurídico- penal e os especiais perigos que podem verificar-se no decurso do processo de nascimento; o que é tanto mais assim quanto a tutela jurídico penal em caso de aborto é restrita a comportamentos dolosos (cf. infra art. 140° § 29), pelo que a criança a nascer ficaria, no decurso do parto, completamente desprotegida face a ofensas (à vida, ao corpo ou à saúde) não dolosas», acrescentando, «o início do ato de nascimento faz-se coincidir, no parto natural, com o começo das contrações ritmadas, intensas e frequentes que previsivelmente conduzirão à expulsão do feto». Ora, de acordo como os factos não indiciados não resulta que a assistente na madrugada do dia 18 de agosto de 2015, tivesse iniciado o trabalho de parto. De todos os elementos clínicos constantes do processo e outros meios de prova da autoria dos profissionais de saúde que participaram nas intervenções médicas a que a assistente AA foi sujeita no Hospital de [...] nos dias 18 e 19 de Agosto de 2015, resulta objectiva e inequivocamente que, na madrugada do dia 18.08.2015, a denunciante AA [...] não entrou em trabalho de parto, nem que tinha contrações mormente as por ela referidas na denuncia e declarações (2 em dois minutos) e descritas no artº 24 da acusação, nem que tenha perdido mecónio(art.º 23 da acusação) . Nessa medida, não resultando indiciado que o trabalho de parto se havia iniciado na madrugada de 18/08/2015, não se pode concluir que a morte do feto se consumou no processo de nascimento, não sendo enquadrável pois na previsão do crime de homicídio por negligência do artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal. Mas mesmo que assim não se entenda, não resultam indícios que a morte ocorrida teve, como causa natural e adequada, por omissão, a atuação da arguida, ainda que a título negligente. Dispõe o artigo 15.º, do Código Penal, que: “age com negligência quem «não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz (…)». A negligência é a omissão de um dever objetivo de cuidado, adequado segundo as circunstâncias concretas de cada caso, a evitar um evento lesivo, expressa nos dizeres «não proceder com o cuidado». O aludido dever de cuidado, que pode ser violado por ação ou omissão, manifesta-se em duas vertentes, a saber: o cuidado interno, enquanto dever de representar ou prever o perigo para o bem jurídico tutelado pela norma jurídica e de valorar esse perigo; e o cuidado externo, enquanto dever de praticar um comportamento externo correto, com vista a evitar a produção do resultado. Este último desdobra-se em três exigências principais: o dever de omitir ações perigosas; o dever de atuar prudentemente em situações perigosas; o dever de preparação e informação prévia (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09.10.2017, proc. 103/15.7GTVCT.G2, Relator: Ausenda Gonçalves, em www.dgsi.pt). Depois de verificada a lesão do dever objetivo de cuidado cumpre verificar se o resultado típico pode objetivamente ser imputado à conduta descuidada do agente. A eventual violação por parte do arguido de um dever objetivo de cuidado afere-se segundo o cuidado exigível ao homem médio, consciente e cuidadoso, colocado na concreta situação do agente. Nas palavras de FIGUEIREDO DIAS, trata-se de «um critério subjetivo e concreto ou individualizante que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as capacidades e qualidades do agente» (“Pressupostos da punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa”, in “O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, 1983, pág. 71). Conforme afirme este autor, «para a valoração jurídica da ilicitude serão assim relevantes, não todas as condições, mas só aquelas que, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer e, portanto, segundo o que é em geral previsível, são idóneas para produzir o resultado. Consequências imprevisíveis, anómalas ou de verificação rara serão pois juridicamente irrelevantes» (“Direito Penal”, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, pág. 161). Exige-se, desde logo, um nexo de causalidade adequada. O resultado tem de ter como sua causa natural e adequada a ação ou omissão da ação. Só é causa a condição que, em abstrato e de acordo com a experiência geral, é idónea a produzir o resultado típico. Como sustenta o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10.12.2013 (Proc. n.º 30/03.0TASTR.E2, Relatora: Ana Barata Brito, em www,dgsi.pt), «A imputação objetiva do resultado implica causalidade conforme às leis científico-naturais, previsibilidade objetiva, de acordo com um critério de “causalidade adequada” (art.º 10º do Código Penal) e concretização do risco proibido criado, potenciado ou não diminuído no resultado». Quanto à culpa, o juízo de censurabilidade depende da capacidade pessoal do agente de reconhecer e observar o dever de cuidado e de prever o resultado e o concreto processo causal. Esta capacidade é apreciada subjetivamente, isto é, em função das faculdades ou qualidades que ao agente assistem. A previsibilidade existe «quando o agente, nas circunstâncias em que se encontrou, podia, segundo a experiência geral, ter-se representado como possíveis as consequências do seu ato» (LEAL HENRIQUES e SIMAS SANTOS, “Código Penal Anotado”, Vol. I, Rei dos Livros, 2019, pág. 231). Isto posto, revertendo ao caso dos autos, constata-se que a arguida BB [...] é enfermeira especialista em saúde materna e obstétrica, inscrita na Ordem dos Enfermeiros com a cédula profissional número ....., desde 17/12/2001. A arguida era, também, sócia maioritária e gerente da sociedade comercial “[...], Lda.”, desde a sua fundação em 08/08/2003, exercendo a função de gerente única a partir de 22/09/2009. Esta sociedade comercial tinha sede no concelho do Porto, tendo por atividade principal a preparação para o parto e, como atividades secundárias, entre outras, o comércio de produtos de apoio à maternidade. Era, pois, evidente que a arguida, no âmbito das suas competências de enfermagem, tinha plena experiência e conhecimento na área da saúde materna e obstétrica, o que facilitou o ganho de confiança junto da denunciante AA [...] na altura em que ambas encetaram os primeiros contactos (finais de março de 2015), e em que esta já se encontrava grávida do primeiro filho. Sabendo da vontade de AA [...] em realizar o parto natural, na água, a arguida cuidou de lhe prestar todas as informações necessárias, tendo, inclusive, recomendado que o parto tivesse lugar no Hospital [...], em [...], acompanhado pelo médio obstetra, Dr. EE [...], com quem a denunciante deveria encetar contacto e agendar consulta para o efeito. O que, porém, nunca veio a suceder. É certo que a arguida passou a orientar a denunciante, através do agendamento de consultas de apoio e contactos telefónicos e por email, tendo recebido de AA [...] [por emails de 07/05/2015 (11:54 horas) e 19/05/2015 (17:29 horas)], um conjunto de informações sobre os procedimentos médicos que havia efetuado até então e os relatórios das ecografias do primeiro e segundo trimestre da gravidez. No entanto, é igualmente certo que durante todo esse período e até ao parto, a denunciante foi também acompanhada por outros clínicos, nomeadamente pela médica de família, da sua confiança, a aqui testemunha HH [...], que inclusive lhe indicou a realização de exames médicos que deveria efetuar e, posteriormente, os analisava a seu pedido. Não ficou indiciado que a arguida se sobrepôs aos comandos médicos a que a denunciante estava adstrita, e que tenha procurado induzi-la a abster-se de os seguir até ao dia do parto, tendo até sugerido uma médica obstetra que a assistente não aceitou por estar a ser seguida por uma médica de família e ter uma médica obstetra conhecida caso necessitasse. Em complemento da preparação para o parto, AA [...] e DD [...], passaram também a frequentar aulas de preparação para o parto ministradas pela arguida, algumas das quais com a participação de outros casais, onde lhes foram prestadas todas as informações sobre os procedimentos do trabalho pré-parto e pós-parto, sendo, assim, de admitir que aqueles estariam minimamente cientes dos cuidados a tomar em consideração no respetivo momento, evitando situações de alarme. Resulta, também, dos elementos de prova que, na tarde de 17/08/2015, pelas 16:30 horas, nas instalações do ginásio “[...]” e após uma formação e preparação aquática prénatal realizada em piscina por AA [...] e DD [...], a arguida, ao verificar o estado de ansiedade em que aquela se encontrava, prontificou-se a proceder à medição dos batimentos cardíacos e movimentos do feto através da respetiva monotorização com aparelho doppler fetal, afirmando que tudo estava bem. No entanto, após esse ato, a arguida não descurou de alertar os progenitores para que se deslocassem às urgências do hospital, para fazerem uma ecografia, por forma a confirmarem que tudo estava normal. Conselho que estes não acataram. Nessa madrugada, e tal como acima tivemos a oportunidade de analisar, AA [...] pensou estar em trabalho de parto, mas não estava como se veio a demonstrar. De acordo com o teor das mensagens (sms) trocadas entre a denunciante e a arguida a partir das 03:49 horas de 18/08/2015 é possível aceitar que esta tinha conhecimento dessa realidade, embora não o admita. Todavia, das circunstâncias apuradas, não resultam indícios suficientes de que a arguida tivesse tido a perceção ou representado como possível que haveria complicações no parto que poderiam determinar a morte fetal, como veio a acontecer, tanto mais que esta só contactou presencialmente com a denunciante pelas 10:30 horas, num momento em que já não conseguia ouvir o batimento cardíaco do feto (cfr. fls. 19). Por outro lado, não é possível determinar qual o momento exato em que essa morte ocorreu, quando é certo que a última monotorização dos batimentos cardíacos do feto teve lugar na tarde anterior, aproximadamente pelas 16:30 horas, não sendo a autópsia conclusiva a este respeito. Os únicos factos que são possíveis de extrair dos autos é que, quando AA [...] foi atendida de urgência no Centro Hospitalar [...], pelas 11:44 horas, o feto já não apresentava quaisquer batimentos cardíacos, tendo sido declarado morto. Por seu turno, o resumo de autópsia fetal concluído que a morte se deu por «disstresse fetal agudo e subagudo com descarga de mecónio no contexto de patologia placentária, sem critérios a favor de infeção fetal. Ausência de malformações. Persistência de circulação fetal», não sendo possível concluir, por insuficiência de indícios, que outra conduta da arguida poderia ter evitado este desfecho. Os pareceres de consulta técnico científicas como se referiu na fundamentação partem de pressupostos erróneos -o primeiro que o parto era domiciliário) o segundo parecer que o gau de placenta apresentado na ecografia da 33 semana era III. Tendo o juízo pericial de fls. 351 e ss. sido formado e desenvolvido fundamentalmente a partir de um dado essencial errado, fica necessária e irremediavelmente prejudicada a sua valia como prova para fundar, a referência à existência de uma suspeita de sofrimento fetal agudo e, seguidamente, por inerência a restante factualidade aí descrita), e que a morte fetal se deu por falta de monotorização electrónica contínua da frequência fetal (GTG) de forma a avaliar a probabilidade de ocorrência de hipoxia e a obstar à sua intensidade e duração, evitando o resultado possível de morte fetal e que que no caso concreto impunha-se à arguida, enquanto responsável pelo acompanhamento da gestação da parturiente e até ao parto, providenciar pela assistência médica multidisciplinar a ter lugar em contexto hospitalar de modo à monitorização de todo o trabalho de parto e a obstar a um quadro possível de sofrimento fetal agudo, só prevenido e evitado daquela forma, sendo esse, como bem sabia, o procedimento médico recomendado pelas legis artis; Acresce, ainda, que, mesmo da análise do resumo de autópsia fetal (fls. 99), existem poucas certezas de quais terão sido os fatores potenciadores da morte, para daí se poder extrair que havia indicadores que a arguida devia ter tomado em atenção para a prevenir e evitar o resultado. Inclusive, é referido no relatório de fls. 100, sob o item “aspetos patológicos e implicações clínicas” a existência de «lesões graves de vasculopatia fetal trombótica com calcificações murais – podendo relacionar-se com complicações fetais e justificar a morte», acrescentando que, «associadamente há alterações de maturação, trombos intervilositários de fibrina, deciduíte crónica e enfartes que não permitem excluir desordens maternas subjacentes, apesar da ausência de vasculopatia deciduóide», sendo que, tal hipótese, a verificar-se poderia ser impossível de detetar pela arguida no contacto telefónico e presencial que teve com a denunciante em 18/08/2015. Daqui resulta que, mesmo que se entendesse, o que não resulta indiciado, poder haver nexo causal entre o comportamento da arguida e a morte ocorrida ainda assim, não é possível afastar a hipótese de que tal resultado se teria produzido independentemente da observância ou não do dever de cuidado que lhe era imposto. É a chamada causalidade hipotética ou virtual. Como refere TERESA PIZARRO BELEZA (in “Direito Penal”, II Vol., Lisboa, AAFDL, 2000, pág. 575) o «resultado tem de ser não só imputável à pessoa, mas tem de derivar justamente da violação do dever de cuidado, que é outro elemento essencial do crime negligente». O que, in casu, não resulta suficientemente indiciado. Face aos factos dados como indiciados e não indiciados, é manifesta a inexistência de circunstâncias conhecidas da arguida ou cujo conhecimento lhe fosse exigível que impusessem um acompanhamento e uma monitorização do parto como se refere na acusação, na linha do Relatório Pericial de fls. 351 e ss. Para a arguida, bem assim como para a médica que vinha acompanhando a gravida, estava em causa uma gravidez com evolução normal, qualificada de baixo risco e que, por isso, de modo algum justificaria um parto com o intensivo acompanhamento médico como o referido no parecer de 351 e ss,. Não é pois, possível considerar, que a arguida BB [...] tenha agido violando o dever objetivo de cuidado que sobre si impendia e/ou da legis artis, elemento de natureza objetiva indispensável para que se afirme a negligência, concretamente, que a sua conduta, por ação ou por omissão, tenha sido a causa natural e adequada para a morte ocorrida, facto que esta pudesse prever e evitar. Analisada a prova dos autos e atentas as razões supra referidas, entendemos deve ser proferido despacho de não pronúncia. Da análise da prova constante dos autos e tida em conta nesta fase processual não foram demonstrados indícios suficientes da prática pela arguida dos factos que lhe são imputados, subsistindo quanto a nós a dúvida da verificação desses indícios o que resultará como muito provável (probabilidade como já supra referimos positiva), de à arguida, em sede de julgamento não lhe vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança. A prova constante dos autos é assim manifestamente insuficiente para legitimar uma decisão de pronúncia. Assim, porque os autos não fornecem indícios da prática pela arguida do crime de homicídio por negligência p. p. pelo art.º 137º, nºs 1 e 2 do Código Penal determino NÃO PRONÚNCIAR: [...], determinando, em consequência o oportuno arquivamento dos autos.» 4. A recorrente verbera a esta decisão (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado): «I. Nos termos do n.º 1, do artigo 163º do CPP, a prova pericial presume-se subtraída à livre apreciação do julgador, afastando assim, o princípio da livre apreciação da prova previsto pelo artigo 127º do CPP. II. É certo que o n.º 2, do mesmo preceito legal prevê a possibilidade de divergir do parecer dos peritos, no entanto, tal deverá ser devidamente fundamentado, o que significa que uma tal divergência poderá assentar em perícia ou parecer similar de sinal contrário ou diferente, que comprometa o primitivamente existente, ou então, se estribar na não prova dos factos em que tal parecer se estribava, retirando-lhe actualidade ou, se quisermos, suporte fáctico alicerçante. III. Mas não pode o Juiz retirar eficácia à prova pericial existente, mais concretamente ao parecer do Conselho Médico Legal, com base em documentos e depoimentos médicos, cujo crédito que lhe é reconhecido não se questiona, incluindo a arguida legalmente desligada do dever de verdade. IV. O parecer adicional ao Conselho Consultivo do INML, constante de fls. 351 e seguintes, para esclarecimento da seguinte questão: Se o quadro de sofrimento fetal agudo descrito na autópsia fetal que levou à morte fetal in útero poderia ter sido evitada se diagnosticada atempadamente em contexto hospitalar e com a adopção dos procedimentos medicamente recomendados para tal situação, ou se pelo contrário, existiam outras patologias detectadas na placenta, líquido amniótico e feto que necessariamente levariam ao resultado morte fetal, é uma prova essencial e não foi devidamente apreciada pelo Tribunal. V. Ao pedido de esclarecimento acima indicado, respondeu o CCINML afirmativamente, no sentido de que independentemente das alterações placentárias descritas e da presença de líquido amniótico com mecónio, tendo em consideração a informação clínica disponível, é possível afirmar com a necessária segurança, que o quadro de sofrimento fetal agudo, também designado por estado fetal não tranquilizador, poderia e deveria ter sido identificado atempadamente em contexto hospitalar, desde que fossem seguidas a legis artis e os procedimentos medicamente recomendados para a condução clínica do parto, - vigilância clínica materna e monitorização eletrónica contínua de frequência cardíaca fetal (CTG) o que com significativa probabilidade, poderia ter evitado a morte do feto, recorrendo, por exemplo, a uma extração urgente/emergente, eventualmente por cesariana.”; VI. E que “De igual modo, desde o início do trabalho de parto está recomendado por todas as organizações nacionais e internacionais que se proceda a uma vigilância fetal, recorrendo à monitorização eletrónica contínua da frequência cardíaca fetal (…). Estes exames permitem identificar atempadamente, através do seu traçado, parâmetros tranquilizadores ou não tranquilizadores da frequência cardíaca fetal (FCF de base, variabilidade da FCF, bradicardias, taquicardias, e diversos tipos de desacelerações com significado clínico específico) que se revelam padrões cardiotocográficos reveladores de estados fetais não tranquilizadores, que se bem interpretados devem conduzir a procedimentos médicos e/ou cirúrgicos de urgência, que com grande probabilidade evitam a morte dos fetos e mesmo sequelas graves. O que está recomendado é que qualquer parturiente deve ter acesso a estes cuidados e que estes procedimentos devem ser executados ao longo de todo o trabalho de parto”. VII. E ainda perante a conclusão do CCINML onde se lê que -se-á de concluir que a ausência de vigilância materno-fetal com monitorização fetal ante e intraparto impediu, objetivamente, a possibilidade de se identificar sinais que sugerissem a degradação do estado fetal e, por consequência, que tivesse havido oportunidade de atuar em tempo útil, evitando a morte do feto”. VIII. Pelo que, se deve considerar-se indiciado que: “A morte fetal deu-se por falta de monitorização eletrónica contínua da frequência cardíaca fetal (CTG) de forma a evitar a ocorrência de hipoxia e a obstar à sua intensidade e duração, evitando o resultado possível de morte fetal. IX. Também deve considerar-se suficientemente indiciado que se impunha à arguida, enquanto enfermeira especialista de obstétricia e responsável pelo acompanhamento da gestação da parturiente até ao parto e durante o mesmo, providenciar pela assistência médica multidisciplinar a ter lugar em contexto hospitalar de modo à monitorização de todo o trabalho de parto e a obstar a um possível quadro de sofrimento fetal agudo, só prevenido e evitado daquela forma, sendo esse, como bem sabia, o procedimento médico-legal recomendado pela legis artis. X. É pois, exigível que uma enfermeira-parteira especialista em obstetrícia represente o perigo de acompanhar um parto à distância, por mensagens de telemóvel, e só se desloque para verificar in loco 6 horas depois de lhe terem sido reportados sinais de alarme. Pelo que há negligência grosseira pela parte da arguida. XI. Com efeito as SMS de telemóvel trocadas entre recorrente e arguida, na madrugada do dia 18 de agosto de 2015, demonstram claramente que durante a madrugada, do dia 18 de agosto de 2015, a recorrente alertou a arguida, de que estava a sentir contrações de 10 em 10 minutos fortes e ritmadas, e que tinha sentido uma descarga de um líquido castanho, tendo solicitado recomendação quanto ao que devia fazer. Em face disto, a arguida respondeu às SMS conformando-se que o trabalho de parto teria começado e recomendou apenas descanso e repouso. Apesar de alertada a arguida desvalorizou os sintomas descritos, e só seis horas depois do alerta se deslocou à residência da recorrente a fim de monitorizar o parto. Pelo que, houve violação da legis artis. XII. A arguida não cumpriu com os deveres que lhe eram exigidos e exigíveis em razão da sua profissão, e não cumpriu com a legis artis a que estava adstrita perante o indício do começo de um trabalho de parto e do indício de descarga de mecónio (o que lhe foi reportado por SMS na madrugada do dia 18 de agosto de 2015 pela assistente e que a arguida admitiu que teria começado). XIII. Tendo em conta que era enfermeira-parteira especialista em saúde materna e obstétrica, a arguida tinha perfeito conhecimento de que não tendo se deslocado à residência da assistente para proceder à monitorização do feto ou encaminhado imediatamente a assistente para o Hospital da Boa Nova, estaria a colocar a saúde, a integridade física, e a vida da mãe e do feto, em causa. A arguida tinha a obrigação de conhecer os riscos que um trabalho de parto não monitorizado poderia acarretar, bem como, de que a eventual descarga de mecónio que lhe tinha sido reportada poderia ser o indício de sofrimento fetal agudo, o que poderia acarretar a morte fetal. XIV. De acordo com o relatório de autópsia, a morte fetal terá ocorrido entre as 9h30 e as 21h30 do dia 18 de agosto de 2015. XV. Pelo que, se a arguida tivesse se deslocado à residência da assistente ou se a tivesse encaminhado para a unidade hospitalar as 4h da manhã do dia 18 de agosto, poderia ter evitado a morte intrauterina do feto. XVI. Houve, portanto, também quanto a este aspecto erro de julgamento relativamente à apreciação da prova, no que diz respeito às SMS enviadas pela recorrente à arguida e pela arguida à assistente, na madrugada do dia 18 de agosto de 2015. XVII. Houve também erro de julgamento quando o Tribunal considerou como início do trabalho de parto, apenas o ocorrido após o óbito fetal, pois nenhuma prova lhe permitia concluir que por ter havido necessidade de o parto ser induzido após o óbito fetal, os sintomas indicados por mensagem e presenciados pela testemunha DD [...], na madrugada do dia 18 de agosto de 2015, não correspondiam efetivamente ao início do trabalho de parto. Na pior das hipóteses, tratando-se de matéria técnica, teria de ser requerida uma consulta pericial com dedução de quesitos aos peritos da medicina legal para clarificar situações técnicas relacionadas com o início do trabalho de parto. Com efeito, ao juiz de instrução é imposto realizar todas as diligências de prova tendentes a carrear para os autos os elementos necessários à formação de uma convicção séria e firme sobre a existência, ou não, em termos indiciários, de um qualquer imputado crime. Não o tendo feito estar-se-ia perante uma nulidade de instrução por omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. XVIII. A testemunha CC [...] não presenciou os factos ocorridos na madrugada do dia 18 de agosto de 2015, pelo que, não sabe o que ocorreu nessa madrugada. Esta testemunha, apesar de médica obstetra do Centro Hospitalar [...], nem sequer procedeu à observação da parturiente, tendo-lhe sido reportado, muito mais tarde, apenas às 11h44 do dia 18 de agosto de 2015, causa da urgência como sendo falta de movimentos fetais. Com efeito, esta testemunha desconhecia os factos que tinham ocorrido na madrugada do dia 18 de agosto de 2015. XIX. Para além disso, o seu depoimento não merece credibilidade na medida em que nem sequer se lembrava do episódio de urgência, sendo que o depoimento que prestou em instrução nada teve que ver com o depoimento que prestou em inquérito. XX. Sem prescindir de que a testemunha refere factos inverídicos, tais como que a recorrente saiu do serviço de urgências do CH..., tendo assinado um termo de responsabilidade. Constata-se que a recorrente nunca assinou qualquer termo de responsabilidade e esteve sempre com o marido no interior do serviço de urgências. XXI. Acresce que, apesar de o Tribunal ter sido alertado para o facto de que a assistente não pode contraditar a testemunha, por não ter sido notificada para querendo estar presente no debate instrutório, arguindo-se a nulidade em momento oportuno, certo é que o Tribunal de Instrução Criminal não repetiu a inquirição desta testemunha. XXII. Nestes termos, é forçoso concluir que esta diligência de prova deve ser declarada nula para todos os efeitos legais. Com efeito, a decisão instrutória padece de nulidade por insuficiência, por o Tribunal ter iniciado o debate instrutório, ouvindo a testemunha indicada pela arguida, sem ter procedido à notificação da assistente, impedindo desta forma, fosse exercido o devido contraditório. O que foi arguido em requerimento deduzido durante a instrução. XXIII. Mas ainda que assim não se entendesse, certo é que o CD de gravação do depoimento desta testemunha encontra-se em vários momentos impercetível, devido a ruído e má qualidade da gravação, o que apesar de ter sido oportunamente apontado ao tribunal, nem sequer mereceu resposta. Pelo que, mais uma vez se verifica uma nulidade. XXIV. Os documentos clínicos referentes ao episódio de urgências no CH... não permitem concluir que o início do trabalho de parto não ocorreu na madrugada do dia 18 de agosto de 2015. XXV. Os documentos clínicos referentes ao episódio de urgência permitem apenas concluir que após a morte fetal in útero, a recorrente foi sujeita a internamento às 15h, do dia 18 de agosto de 2015, tendo sido necessário induzir o parto com medicação para que ocorresse a expulsão do feto morto, o que veio a ocorrer às 9h39, do dia 19 de agosto de 2015. XXVI. O relatório de autópsia permite concluir que a causa da morte fetal decorreu de Distress fetal agudo e subagudo com descarga de mecónio, no contexto de patologia placentar, sem critérios a favor de infeção fetal. Ausência de malformações. Persistência de circulação fetal. XXVII. Os diversos correios eletrónicos trocados entre a recorrente e a arguida, e sobretudo o plano de parto enviado à arguida e constante dos autos, permitem concluir que a recorrente depositou total e exclusiva confiança à arguida para o acompanhamento da gestação, e sobretudo, acompanhamento e organização do parto. XXVIII. A livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência. XXIX. Em face do exposto, segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência, deve concluir-se que existem indícios suficientes dos factos vertidos na douta acusação pública, pelo que, deve a arguida ser pronunciada. XXX. Indícios suficientes são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade, NÃO SE EXIGINDO, EM INSTRUÇÃO, O JUÍZO DE CERTEZA QUE A CONDENAÇÃO IMPÕE a certeza processual para além de toda a dúvida razoável. XXXI. De acordo com a maioria da doutrina penal e jurisprudência defende que o começo da vida humana está intimamente relacionado com o ato de nascer. Nestes termos, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 6, FIGUEIREDO DIAS defende que “o fim da proteção da norma do homicídio impõe que a morte dada durante o parto, seja qual for a via pela qual esta opere, se considere já um verdadeiro homicídio, antes que um mero aborto. Nesse sentido fala da necessidade de correspondência entre a especial força de tutela jurídico-penal e os especiais perigos que podem verificar-se no decurso do processo de nascimento; o que tanto mais assim quanto a tutela jurídico penal em caso de aborto é restrita a comportamentos dolosos, pelo que a criança ficaria desprotegida face a ofensas (à vida, ao corpo ou à saúde) não dolosas. O início do ato de nascimento faz-se coincidir, no parto natural, com o começo das contrações ritmadas, intensas e frequentes que previsivelmente conduzirão à expulsão do feto. Pelo que, deve a arguida ser PRONUNCIADA pelo crime de homicídio por negligência, nos precisos termos da douta acusação pública.» 5. A isto respondeu a recorrida: «1. A decisão recorrida não merece qualquer reparo, pelo que deverá improceder in totum o recurso interposto. 2. Desde logo, as nulidades aludidas nas conclusões XXII e XXIII comportam matéria nova, não alegada, com a devida autonomia, no corpo do recurso, pelo que não podem ser atendidas. 3. Caso assim não se entenda, sempre se dirá que a nulidade arguida na conclusão XXII foi objecto de despacho, devidamente transitado em julgado, que não mereceu impugnação, em tempo, da assistente; sendo de improceder tal alegação ou, no limite, confirmar o sentido da decisão do despacho de fls. 607. 4. Quanto à nulidade arguida na conclusão XXIII, não basta alegar-se genericamente que existe uma gravação deficiente, antes importa que se demonstre qual o relevo que a parte defeituosa teria na decisão e na causa. 5. A apontada deficiência não compromete, de modo algum, a percepção e a captação do sentido das palavras, sendo possível a percepção e inteligibilidade do que está gravado. 6. Devem, pois, improceder, com as legais consequências. 7. Inconformada com o desfecho do inquérito, e certa da regularidade e rigor da sua actuação, a arguida requereu a abertura da instrução, tendo demonstrado, logo no seu requerimento inicial, e depois, no decurso daquela fase processual, que o juízo incriminador do Ministério Público padecia de erros e de conclusões desajustadas, fruto dos vícios que, a montante, também inquinaram a apreciação e as conclusões das consultas técnico-científicas realizadas nos autos. 8. Lamentando embora, muito, o trágico desfecho da gravidez da assistente AA, a arguida não pode sujeitar-se a ser o seu bode expiatório, impondo-se que manifeste a evidência da regularidade da sua actuação e, em consequência, do desacerto da acusação com que foi visada. 9. A imputação à arguida da prática de um crime de homicídio negligente foi totalmente desprovida de fundamento substancial, assentando, além do mais, em factos falsos e deturpados, relevando de efabulações e radicando numa errada qualificação jurídico-penal dos factos pertinentes. 10. Em sede de instrução, ficou patente que: i) eram numerosos os factos dados como indiciados que não tinham respaldo na prova constante do processo ou que eram por ela infirmados; ii) nos momentos em que ocorreu a omissão de conduta tida como penalmente relevante, por volta das 4:00 do dia 18.08.2015, bem como a morte do nascituro, o trabalho de parto da assistente AA [...] ainda não se havia iniciado; iii) não era possível imputar o resultado morte à alegada conduta omissiva da arguida; e iv) esta não violou qualquer dever objectivo de cuidado, não havendo por isso razão para lhe ser imputada uma responsabilidade por negligência (consciente!). 11.Mais se demonstrou que todas as considerações “sensíveis” da perícia, que aparentemente apontavam para a responsabilização criminal da arguida, assentavam em pressupostos que se concluíram falsos e/ou errados, pelo que acabaram excluídos da ponderação imposta ao Tribunal a quo. 12. No processo assomava com frequência o tipo de parto que estaria previsto, sendo notório ao longo da investigação, sobretudo no primeiro parecer aprovado pelo INML (fls. 291 e ss. e 302), um juízo crítico sobre uma prática que, pura e simplesmente, esteve fora das cogitações dos pais do nascituro e da arguida: o parto natural ao domicílio. 13. De uma vez por todas afirmou-se com clareza que este tipo de parto nunca foi cogitado, tendo todos os intervenientes sempre trabalhado sobre a certeza de que o parto seria natural, em contexto hospitalar (cf. fls. 45, 47, 397, 408). 14. E nunca a arguida encorajou a assistente a coisa diferente, pelo que não tolera a afirmação da pág. 19 do recurso em resposta. 15. Também é totalmente falso que, a partir de Maio de 2015, a assistente tivesse passado a ser exclusivamente orientada e seguida pela arguida. 16. A assistente era acompanhada pela sua médica de família, Dra. HH [...], e assumiu ter uma ginecologista em [...], Dra. [...] MM, a quem poderia recorrer, se necessário fosse: veja-se, por tudo, elementos clínicos de fls. 11, 80, 45, 223, 224, 41; ainda, o depoimento da Dra. HH [...], de fls. 173; e da assistente, a fls. 362. 17. O que é facto é que a arguida até recomendou à assistente que recorresse ao acompanhamento da médica obstetra Dra. OO [...], tendo sido a assistente a decidir prescindir do seguimento de um médico obstetra veja-se o e-mail enviado pela arguida à assistente no dia 07.05.2015 (fls. 40), e resposta, fls. 41. 18. É, pois, evidente que, como se afirmou na decisão recorrida, a assistente não era permeável a recomendações que a orientassem no sentido do acompanhamento médico e hospitalar e da realização de exames complementares. 19. Quer-se agora passar a ideia de que a assistente vivia tão deslumbrada com a (sua) noção romântica da gravidez, alegadamente estimulada p 20. Não esqueçamos que se trata[va] de uma mulher de 36 anos; licenciada em Direito; bem esclarecida e com capacidade para se informar; com capacidade económica para bem se aconselhar, pelo que mesmo que a arguida tivesse, ela própria, romantizado esta fase da (sua) vida – o que não se viu acontecer , nem assim se justificava que a assistente se tivesse mantido absorta numa tal “bolha de ilusão”, ao ponto de omitir cuidados essenciais e medicamente recomendados, mesmo numa gravidez normal. 21. Acresce que também andou bem o Tribunal recorrido ao dar como não indiciados os pontos 20, 22 e 24 da acusação referentes à cadência de contracções e à perda de mecónio. 22. Desafia a lógica admitir que, estando a AA [...] a sentir contracções de 2 em 2 minutos, o marido tenha ligado à arguida pedindo-lhe para, com urgência, vir a casa de ambos… E só lhe enviar a morada mais de 2 horas depois! E nesse intervalo não lhe ligar de novo, não lhe mandar mensagens a perguntar se estava a caminho, se estava perdida, etc. 23. Sem que nenhum deles tenha tomado a decisão de se deslocar ao hospital ou chamar o INEM! 24. Acresce que os registos clínicos não dão conta da presença de contracções à chegada ao hospital, ou na pendência da sua estadia: cf registo hospitalar de fls. 78; escala de dor de fls. 74v; e depoimento de KK, fls. 269. 25. Sendo absolutamente implausível que, tendo tido as contracções que ela, o seu marido e a acusação diziam que teve durante mais de 6 horas, primeiro, de 10 em 10 minutos, e, depois, de 2 em 2 minutos –, disso não dessem conhecimento à sua chegada ao Hospital. 26. E a única justificação racional para isso é só uma: a assistente não falou de quaisquer contracções, porque não teve contracções características da fase activa trabalho de parto. 27. Tanto assim é que o parto post-mortem realizado à assistente foi um parto eutócito (parto vaginal sem intervenção instrumental), artificialmente induzido (fls. 90 e 94). 28. É também falso que a arguida tenha combinado, recomendado ou sequer feito menção à possibilidade de a ida para o hospital, já depois de iniciado o trabalho de parto, só ocorrer quando se atingissem os 8 cm de dilatação do colo do útero (cf. plano de parto de fls. 51 e depoimento de DD, fls. 113). 29. Como o é a afirmação de ter havido perda de mecónio (pontos 22 e 23 da acusação). 30. O mecónio é o conteúdo dos intestinos do feto, só podendo ocorrer a sua libertação se houver rompimento da bolsa amniótica. 31. Ficou demonstrado que quando a assistente AA deu entrada no Hospital de [...] não havia ainda ocorrido o rebentamento das águas cf. partograma de fls. 78. Isto dito, 32. Assumia ainda especial relevo nestes autos a determinação do início do trabalho de parto: afinal, o que verdadeiramente conta para efeito de preenchimento do tipo incriminador de homicídio negligente é se, objectivamente, o acto de nascimento havia já tido ou não o seu início nos momentos em que ocorreram a omissão da arguida que a acusação reputa como violadora de um dever objectivo de cuidado e a morte do feto. 33. De todos os elementos clínicos constantes dos autos resulta inequívoco que a assistente não entrou em trabalho de parto na madrugada do dia 18/08/2015: cf. relatório de urgência do Centro Hospitalar [...], fls. 74 e ss, 76, 78, 86, 90, 94; ainda, o depoimento da Dra. LL [...], fls. 272, do qual resulta que foi necessário proceder-se à indução do parto, depois de constatada a morte fetal. 34. Pela própria natureza das coisas, não se induz um parto que já se iniciou! 35. Afronta, pois, as regras da ciência e da medicina afirmar-se, como se afirmou no recurso, que “houve dois momentos totalmente distintos do parto”: um que “se iniciou na madrugada do dia 18 de agosto de 2015, de forma natural”, e outro, medicamente provocado, já no Centro Hospitalar [...], no dia seguinte. 36. Neste sentido, foi aliás o depoimento claro e objectivo da Dra. CC [...], médica que recebeu a assistente na urgência do Centro Hospitalar [...], no dia 18/08/2015, ouvida em sede de instrução: afirmou que o quadro clínico da assistente, no momento em que a observou, não era compatível com a fase activa do parto, tanto mais que o parto apenas viria a ocorrer no dia seguinte e após administração do misoprostol cf. depoimento prestado no dia 28/09/2021, ficheiro 20210928142323_15962772_2871466, minutos 12:19 a 13:53; e 17:50 a 19:26. 37. Sendo patente que a morte do nascituro ocorreu antes de se ter iniciado o trabalho de parto, ficou desde logo inviabilizada a imputação do crime de homicídio negligente que recaía sobre a arguida, assim se justificando, e bem, a sua não pronúncia. 38. Acresce que neste contexto está longe de ser irrelevante o comportamento da própria assistente e do seu marido. 39. Independentemente da inverosimilhança da tese das contracções de 2 em 2 minutos (que já vimos ter ficado prejudicada pela prova), a verdade é que aqueles nem sequer deram disso conhecimento à arguida. 40. Por outro lado, segundo as regras da experiência comum, numa situação de emergência e necessidade desta natureza, o comportamento que seria previsível e expectável seria o de ida imediata a um hospital ou de chamada de uma equipa de emergência médica. 41. A assistente AA [...] e o seu marido DD [...] revelaram, enfim, uma passividade tão inesperada e tão inexplicável que contribuiu, ela própria, para interromper o nexo causal que porventura se pretendesse estabelecer entre a omissão da arguida e a morte do nascituro. 42. As evidências levam a concluir, sem espaço para grandes dúvidas, que o pavor da assistente quanto aos actos médicos a condicionaram nas suas decisões, de um modo tal que não compreendeu que ultrapassava os limites da razoabilidade quanto ao modo como (não) acompanhou a sua gravidez e como desvalorizou os sinais de risco. 43. Para que de um homicídio negligente se possa falar é ainda JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (com a colaboração de Maria João Antunes / Susana Aires de Sousa / Nuno Brandão / Sónia Fidalgo), Direito Penal. Parte Geral, I, 3.ª ed., Gestlegal, 2019, 35.º Cap., § 4. 44. Acusava-se a arguida de não ter providenciado uma assistência médica multidisciplinar em contexto hospitalar, de modo a assegurar uma monitorização de todo o trabalho de parto, no essencial, com base na perícia médico-legal de fls. 351. 45. Sucede que tal meio de prova assenta em premissas que não têm correspondência com a realidade que se deixou indiciada. 46. Basicamente, o Senhor Perito partiu de dois dados [primeiro, que se teria tomado conhecimento, durante a gravidez, com a ecografia das 33 semanas, que a placenta teria, às 33 semanas um grau de maturação III, que normalmente só aparece às 35 semanas; e segundo que, entre as 33 semanas e o termo da gravidez o crescimento fetal baixou do percentil 50 para o percentil 3, facto só descoberto já após a morte do feto] para concluir que se justificaria uma monitorização contínua e rigorosa do parto, naturalmente em meio hospitalar. 47. Sucede que laborou em erro, na parte relativa ao grau de maturação da placenta, e raciocinou com base num dado que era desconhecido à data dos factos, o relativo à redução do percentil de crescimento. 48. Vícios que, naturalmente, prejudicam o acerto das conclusões formuladas acerca da vigilância do parto. 49. Quanto ao primeiro ponto, ficou expresso no relatório da ecografia das 33 semanas que a maturidade da placenta era de Grau II (cf. relatório junto ao final do vol. 1; ainda, fls. 402; depoimento da Dra. HH [...], fls. 173). 50. Constatando o óbvio, não podia o Tribunal persistir no erro, mais ainda às custas da responsabilização penal da arguida, por um crime de homicídio. 51. Quanto ao segundo ponto, a desaceleração do crescimento era desconhecida da arguida, como da médica de família, sem que elas estivessem obrigadas a conhecê-la. 52. A arguida não tinha sequer competência para prescrever exames complementares! 53. E todavia, tendo-lhe sido dado a conhecer pela assistente um sinal inspirador de preocupação, no dia 17/08 – uma diminuição dos movimentos do nascituro –, a arguida de imediato recomendou-lhe que “tirasse isso a limpo”, aconselhando-a vivamente a fazer uma ecografia nesse mesmo dia. 54. O que aquela decidiu não fazer, antes aguardar (cf. fls. 233). 55. Tudo visto, é manifesta a inexistência de circunstâncias conhecidas da arguida ou cujo conhecimento lhe fosse exigível que impusessem um acompanhamento e uma monitorização do parto como se referia na acusação, na linha do Relatório Pericial de fls. 351 e ss. 56. No caso dos autos, o Tribunal percepcionou que os peritos emitiram um juízo fundado numa base factual sem correspondência com a realidade, tendo-se dele distanciado. 57. Quando assim é, é pacífico que o Tribunal não está sujeito à vinculação de princípio às conclusões da perícia prevista no art. 163.º do CPP. 58. A decisão instrutória é, pois, inatacável quando dá como NÃO INDICIADOS os factos 9, 14, 20, 22, 23, 24, 25, 31, 32 33, 34, 35, 36 e 37 da acusação, fixando a matéria indiciada com a redacção que também resulta desse despacho. 59. Numa palavra final, e persistindo naquilo que vem defendendo neste processo: A arguida lamenta enormemente a morte do filho de AA [...] e de DD [...], mas não aceita ser o bode expiatório de uma tragédia para a qual não contribuiu e pela qual não há razão alguma para que responda penalmente. 60. Deve, pois, improceder totalmente a pretensão impugnatória da assistente.» 6. O Ministério Público junto da 1.ª instância pronunciou-se pela improcedência do presente recurso, pelas razões que indica nas suas alegações. 7. Já o Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se, nos termos a seguir reproduzidos, a favor da procedência do recurso: «Como se estabelece no artigo 286.º n.º 1 do CPP «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa ao julgamento». Desta forma, cabe ao Juiz de Instrução, no caso da comprovação da decisão de acusar, ajuizar da suficiência de indícios da prática criminosa, da mesma forma como se exige no n.º 2 do artigo 283.º do CPP., objetivo que exluí obviamente um julgamento definitivo sobre os factos objecto da instrução. Por sua vez, e na avaliação da prova que sustenta os factos da acusação, e durante a instrução, o Juíz de Instrução oficiosamente, ou a requerimento, pode proceder à inquirição de testemunhas, à tomada de declarações do assistente, das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações, nos termos e com as finalidades referidas no artigo 271.º (artigo 294.º, n.º 1 do CPP). Chama-se ainda à colação o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do CPP que «o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador». E ainda o que foi entendido por exemplo no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-4-2012 sobre o valor probatório do parecer do Conselho Consultivo do INML «numa hierarquia de valoração da prova pericial, os pareceres técnico-científicos emitidos pelo Conselho Médico-Legal, superam o valor do parecer pericial já que aqueles constituem o entendimento definitivo do conselho sobre a questão concretamente colocada, a apresentação de novos elementos que fundamentam a sua alteração; 2.- Ao considerar que o parecer daquele Conselho Médico-Legal não era prova pericial, ao considerar que o relator do parecer não era perito, postergando-o, incorreu a sentença no vício do erro notório na apreciação da prova». Recordadas estas regras considera-se incorrecta a interpretação da prova por parte do tribunal a quo na decisão de não pronúncia proferida. Violando-se o disposto no artigo 163.º, n.º 1 do CPP, rebate-se o parecer técnico contido no parecer do Conselho Consultivo do INML com depoimentos recolhidos durante a instrução, mesmo que provenientes de profissionais de saúde, e prova documental, retirando-se conclusões com teor científico, especulando-se e com essa especulação retirando-se o valor probatório da prova que sustentava a acusação deduzida. Em causa nos autos está a assistência contratualizada entre a arguida e a assistente relativamente à possibilidade do seu parto se dar em meio aquático. Desse ponto de vista, e conforme bem diz a Recorrente, a responsabilidade sobre a segurança para a vida do feto e da própria assistente foi assumida pela arguida e foi por esse motivo que a mesma aceitou acompanhar a gravidez da assistente, sendo obvio que lhe estaria vedada a prática de actos médicos. Na verdade, e como resulta dos próprios factos considerados como suficientemente indiciados pela Mª Juíz de Instrução, a realização do parto em água era da responsabilidade da arguida e para isso o parto teria que ter lugar na clínica onde prestava funções um médico em concreto a quem a assistente obrigatoriamente teria que recorrer antes do parto, e confirmando o próprio em declarações, não ter sido tal consulta providenciada pela arguida. Também é inequívoco que a arguida foi informada das primeiras contracções sentidas pela assistente através de contacto por telefone e mensagem e da possibilidade de poder estar a perder mecónio o que indiciaria o possível início de trabalho de parto e, no entanto, a arguida não se deslocou de imediato à residência da assistente, nem lhe comunicou que deveria ir de imediato para ambiente hospitalar. A esse respeito o parecer do CC do INML é inequívoco ao afirmar que com tal comportamento violou a arguida a legis artis e que a única forma de evitar, de prevenir, um possível sofrimento fetal agudo e possível morte do feto seria a imediata monotorização através de TGC, o que não foi feito. Por outro lado, no próprio relatório de autópsia se afirma que o morte do feto se deu nas 12/ 24 horas antes de se ter verificado o óbito, o que reporta para a madrugada em que a arguida sente as primeiras contrações. Não tendo havido qualquer acompanhamento médico nesse período, nomeadamente, controlo através da cardiotocografia e respectivo traçado, tudo o que se diga que se poderá ter passado contrário ao afirmado no parecer do conselho consultivo do INML é totalmente especulativo e abusivo, concretamente, como se afirma na decisão recorrida, que a assistente não iniciou o trabalho de parto durante a madrugada no dia 18 de agosto de 2015 e que não teve contracções com caracter regular. A assistente estava com 40 semanas e três dias de gestação e sentiu dores próprias do início do trabalho de parto e que precedem o nascimento, estando obviamente nessa altura o feto vivo, tendo deixado a assistente de sentir essa intensidade de dores já pela manhã, já não sendo audíveis os batimentos cardíacos fetais às 10 h e 30m, altura em que a arguida fez o respectivo exame. Os registos clínicos recolhidos e respeitantes já a momento posterior ao relatado não podem como é evidente invalidar o afirmado e o parecer do CC do INML. É também incorrecto dizer-se que o parto não se tinha iniciado quando o feto entrou em sofrimento intra-utero, porque quando a assistente chegou ao serviço de urgência hospitalar não tinha quase dilatação do colo do útero e não se sentiam batimentos cardíacos. Porém, e sem prejuízo do afirmado, eventuais dúvidas geradas sobre se a morte do feto se deu durante o trabalho de parto, de que forma e respetiva interpretação, deveriam ter sido dissipadas em sede de instrução, através de declarações complementares ao relator do parecer médico-legal e dos subscritores do relatório de autopsia, estando vedado ao juíz tirar ilações de caracter cientifico sobre o ocorrido. O parecer do CC do INML admite não só a violação da legis artis por parte da arguida, na sua especialidade em enfermagem obstétrica como no nexo causal entre o seu comportamento omissivo e a morte do feto que veio a ocorrer, tendo tal morte ocorrido após o início do trabalho de parto e portanto sendo já subsumível essa morte no crime de homicídio negligente, como se tem considerado de forma pacífica na doutrina e jurisprudência. Pelo exposto, entende-se que deverá o recurso interposto pela assistente ser procedente, revogando-se o despacho de não pronúncia proferido e substituindo-se o mesmo por um despacho de pronúncia, confirmando a acusação do M.º P.º, ou assim não se entendendo, prosseguindo a instrução com a audição complementar dos peritos.» 8. Notificada deste «Parecer», renovou a arguida a posição que já anteriormente havia exposto nos autos (portanto, desnecessariamente, pois que nada de novo trouxe à consideração deste Tribunal). 9. Cumpridos os legais trâmites importa decidir. II 10. O presente recurso não merece provimento. 11. 1. A eventual invalidade invocada pela recorrente e relativa à sua ausência na reinquirição da testemunha CC foi já objeto de decisão pelo despacho que constitui o documento com a referência n.º 428851983 (18/10/2021) (e que foi levada ao seu conhecimento pela notificação que constitui o documento com a referência n.º 429341294 (18/10/2021)), que não foi impugnado, motivo pelo qual tal questão não pode ser conhecida, novamente, nesta sede. 12. Também a (eventual) irregularidade suscitada pela recorrente e relativa à (alegada) falta de qualidade da gravação do (segundo) depoimento da testemunha aludida se mostra improcedente: embora, de facto, a gravação em causa apresente imperfeições evidentes, é ainda possível compreender o teor do depoimento que foi prestado; e sendo assim, não se mostra incumprida a exigência legal de documentação da inquirição da testemunha em causa, não se verificando, por isso, a invalidade invocada. 13. 2. Só com o início do trabalho de parto – isto é, com a eclosão das contrações uterinas dolorosas, regulares e frequentes, dirigidas ao apagamento e dilatação cervicais – pode existir uma «pessoa» para efeitos de aplicação das normas relativas ao homicídio. 14. a) Conforme decorre da respetiva disciplina legal (cfr. artigos 131.º e segs., e 140.º e segs., do Código Penal), a vida humana é, no nosso ordenamento jurídico-penal, objeto de uma tutela diferenciada, segundo o respetivo estádio de desenvolvimento: os ataques que conduzem à morte de uma «pessoa» (como é óbvio, viva), caem sob o âmbito de proteção do crime de homicídio; os eventuais atentados dolosos contra a dita vida «intra-uterina», ou seja, contra o feto, são abrangidos pela incriminação do aborto. 15. Daqui resulta, pois, a necessidade de, estabelecendo a fronteira entre ambas as incriminações, se definir o limite «mínimo» da vida para efeitos do crime de homicídio (que corresponderá ao limite «máximo» do âmbito de proteção do crime de aborto), determinando o momento em que se possa afirmar a ocorrência de um salto qualitativo de tal magnitude que justifique o diferente tratamento que a ordem jurídica confere a cada uma das referidas fases de desenvolvimento da vida humana. 16. Esse momento é, por regra, identificado com o nascimento, embora não faltem propostas de outras soluções, que, ao menos para já, só podem sustentar-se numa perspetiva de lege ferenda (veja-se, a propósito, v. g., Ferrando Mantovani, Diritto Penale. Parte Speciale I, págs. 25 e segs., que conclui que «[o] homem [entre nós diríamos «a pessoa»] torna-se tal, e consequentemente tem “início” para efeitos do direito penal vigente, a partir do momento em que o concebido adquire a capacidade de vida autónoma (…), ainda que permaneça no ventre materno», id., pág. 28, sublinhados no original; sobre a situação na doutrina alemã após a eliminação do crime de infanticídio, vd. a resenha oferecida por Enrique Peñaranda Ramos, La protección de la vida y la salud humanas entre sus fases prenatal y postnatal de desarrollo, em «Revista de Derecho Penal y Criminología», 2.ª Época, n.º 11, págs. 170-172, bem como as considerações de Eser/Sternberg-Lieben, em Schönke/ Schröder, 30.ª ed., nótula antes dos §§ 211 e segs., n. m. 13, pág. 2062). 17. O processo de nascimento, no entanto, é também um fenómeno dinâmico, que se espraia no tempo, em fases sucessivas, mais ou menos prolongadas, terminando com a completa separação do feto (vivo) do útero materno, dando assim lugar a uma vida (totalmente) «independente», momento este a partir do qual já nenhuma dúvida se pode albergar de que se está perante uma «pessoa» para efeitos da incriminação do homicídio. 18. b) A determinação exata de um tal momento tem sido, no entanto, nos diferentes ordenamentos jurídicos que nos rodeiam, objeto de respostas distintas. 19. Em Espanha (onde, de resto, o respetivo Código Penal não prevê agora a punição autónoma do crime de infanticídio, mas pune o aborto doloso e negligente, artigos 144.º e 146.º, respetivamente, e contém uma específica incriminação de lesiones al feto dolosas e negligentes, artigos 157.º e 158.º, respetivamente; sobre esta incriminação vd., v. g., Eduardo Ramón Ribas, El delito de lesiones al feto, passim), é tendencialmente no final do parto que a doutrina e a jurisprudência maioritárias fixam a existência de uma «pessoa» para efeitos do crime de homicídio, embora algumas decisões judiciais venham admitindo a possibilidade de já existir um sujeito passivo suscetível de beneficiar da tutela jurídico-penal oferecida pela incriminação do homicídio em momento anterior, e designadamente logo no início do parto (cfr., a propósito, as indicações de Peñaranda Ramos, cit., págs. 169-170; e J. Álvarez García, em Id. (dir.)/Araceli Manjón-Cabeza Olmeda/Arturo Ventura Püschel (coords.), Derecho Penal Español. Parte Especial, vol. I, pág. 38-41, especialmente, pág. 39, considerando «originais» e violadoras do princípio da legalidade as soluções jurisprudenciais aludidas, pronunciando-se a favor do critério da «respiração pulmonar autónoma» e referindo outros critérios também defendidos na doutrina espanhola mas que apontam, igualmente, para o termo do nascimento como o ponto de partida para a proteção da vida por via dos crimes de homicídio). 20. Em França, também a chambre criminelle da Cour de Cassation, por seu turno, vem afirmando, reiteradamente, que «o princípio de legalidade dos delitos e das penas, que impõe uma interpretação estrita da lei penal, opõe-se a que a incriminação do homicídio (…) se aplique a um caso em que a criança não nasceu viva» (assim, designadamente, nos seus acórdãos de 30/06/1999, 97-82.351, 29/06/2001, 99-85.973, 25/06/2002, 00-81.359 – de onde se retirou a citação antecedente – e 04/05/2004, 03-86.175, todas disponíveis em https://www.legifrance.gouv.fr). 21. c) É outro o entendimento, porém, em países como a Itália, a Suíça e a Alemanha, cujos códigos penais preveem (ou previram durante muito tempo, como ocorreu neste último país) a punição do infanticídio como tipo autónomo de crime. 22. Em Itália, o artigo 578.º do Codice Penale, que pune o infanticídio, abrange os casos em que «[l]a madre (…) cagiona la morte del proprio neonato immediatamente dopo il parto, o del feto durante il parto» (sublinhados nossos). A partir daqui (e tendo ainda em consideração as coordenadas legislativas relativas à punição do aborto no país), o entendimento generalizado, na doutrina e na jurisprudência italianas, é, de há muito, o de que existe um «uomo» (uma «pessoa») na aceção do crime de homicídio, a partir do momento em que se inicia a separação («distacco») do feto do ventre materno; considerando a indeterminação deste critério, uma Sentenza relativamente recente da Cassazione italiana veio esclarecer inequivocamente que o início da vida para efeitos do crime de homicídio ocorria com o início do trabalho de parto (vd., a Sentenza n.º 27539/2019, disponível em https://www.cortedicassazione.it/ corte-di-cassazione/, bem como as decisões anteriores do mesmo tribunal aí citadas; sobre esta questão, com breves referências à discussão na doutrina e na jurisprudência, vd. Luigi Delpino, Diritto Penale. Parte Speciale, 4.ª ed., págs. 1243-1244; Silvia Larizza, em Emilio Dolcini/Giorgio Marinucci (a cura di), Codice Penale Commentato, 3.ª ed., tomo III, art. 575, n. m. 5, pp. 5162-5163; Silvana Strano Ligato, em Gabrio Forti/Sergio Seminara/Giuseppe Zuccalà, Commentario Breve al Codice Penale, 6.ª ed., pág.1822; Giovanni Fiandaca/Enzo Musco, Diritto penale. Parte speciale, vol. II, t. 1, pág. 5, para quem «o momento determinante da aplicabilidade das normas relativas ao homicídio é o início do parto, e (…) relevante para fins da tutela garantida das normas citadas é já a vida do feto (isto é, o produto da conceção e da gestação, chegado precisamente à fase do parto)», sublinhados são do original). 23. Na Suíça, onde o Código Penal prevê também o crime de infanticídio (no seu artigo 116.º, «infanticide»/«Kindestötung»/«infanticidio»), doutrina e jurisprudência maioritárias consideram que a «vida» para efeitos de aplicação dos crimes de homicídio começa no momento do início do trabalho de parto, mais concretamente com o início das «Eröffnungswehen», as contrações de dilatação (assim, Günter Stratenwerth/Wolfgang Wohlers, Schweizerisches Strafgesetzbuch – Handkommentar, 2.ª ed., artigo 111, n.º 1, pág. 250; com exposição das diferentes posições doutrinais, Günter Stratenwerth/Guido Jenny/Felix Bommer, Schweizerisches Strafrecht – Besonderer Teil I, 7.ª ed., págs. 25-26, n. m. 5; Cristopher Geth, em Stefan Trechsel/Mark Pieth (Hrsg.), Schweizerisches Strafgesetzbuch – Praxiskommentar, 2.ª ed., artigo 111, n.º 3, pág. 580 e autores aí citados; José Hurtado Pozo, Droit pénal, Partie spéciale, 2009, págs. 15-16; noutro sentido, Martin Schubarth, Kommentar zum schweizerischen Strafrecht – Besonderer Teil, vol. I, págs. 17-19, aludindo a várias posições alternativas e defendendo que a «pessoa», para os efeitos em discussão, só surge com a «respiração autónoma», criticando a doutrina e jurisprudência maioritárias por considerar que o momento em que se iniciam as aludidas contrações não pode ser fixado de forma adequada; da parte da jurisprudência, é por regra citada como relevante a decisão do Tribunal féderal de 21/09/1993, BGE 119 IV 207, 209, acessível online a partir do endereço https://www. bger.ch/fr/index/juridiction/jurisdiction-inherit-templ ate/jurisdiction-recht.htm, onde se conclui que antes do início do parto não pode produzir-se qualquer homicídio). 24. Idêntico é também o entendimento na Alemanha, apesar da revogação (desde 01/04/1998), do § 217 («Kindestötung») do respetivo Código Penal, operada pela 6.ª Lei de reforma do direito penal (embora o debate doutrinal em torno desta matéria tenha inevitavelmente reacendido entretanto: veja-se, a propósito, o artigo, citado, de Peñaranda Ramos, págs. 170-172, e os autores por ele referidos). Com base nessa norma, e na ideia de que o parto constitui momento de elevado perigo para a vida da mãe e do (até então) feto, a jurisprudência, primeiro do Reichsgericht (logo, de forma expressa, no seu acórdão de 29/09/1883 [RG 9, 131, 132-133, processo n.º I 1143/83], contrariando decisão anterior do mesmo tribunal, proferida em 08/06/1880 [RG 1, 446, processo n.º II 721/80]; as decisões podem ser consultadas online, respetivamente, em http:// resolver.staatsbibliothek-berlin.de/RGN22674640B6250131 e http://resolver .staatsbibliothek-berlin.de/RGN22674640AECE0446) e, depois, do Bundesgerichthof (definitivamente no seu acórdão de 07/12/1983, BGHSt. 32, 194, 197), sempre manteve o entendimento de que o início do parto (fixado, de acordo com esta última decisão, com o desencadeamento das «Eröffnungswehen») marcava o momento a partir do qual se aplicava a disciplina legal do homicídio (entendimento que a doutrina também foi acompanhando, com pequenas diferenças de pormenor, aliás notadas na última decisão citada: cfr., pars pro toto, Eser/Sternberg-Lieben, op. e loc. cit.; Henning Rosenau, em Heinrich Wilhelm Laufhütte/Ruth Rissing-van Saan/Klaus Tiedemann (Hrsg.), Strafgesetzbuch – Leipziger Kommentar, 12.ª ed., vol. 7-1, Vor §§ 211 ff., n. m. 6, págs. 17-18; Thomas Fischer, Strafgesetzbuch mit Neben-gesetzen, 65.ª ed., Vor §§ 211-217, n. m. 5-6, págs. 1439-1440; Reinhart Maurach/Friedrich-Christian Schroeder/ Manfred Maiwald, Strafrecht – Besonderer Teil 1, 10.ª ed., § 1, n. m. 8-9, págs. 15-16; Johannes Wessels/Michael Hettinger, Strafrecht – Besonderer Teil 1, 40.ª ed., § 1, n. m. 9 e segs., págs. 3-4). 25. d) Os argumentos de natureza sistemática e político-criminal que a doutrina e a jurisprudência dos últimos três países mencionados invocam para justificar o entendimento aí seguido no tocante à determinação do critério relevante para a determinação do ponto a partir do qual se pode falar de uma «pessoa» para efeitos da incriminação do homicídio, são plenamente transponíveis para o nosso país. 26. Assim, e antes de mais, também o nosso Código Penal prevê, e pune como forma de homicídio privilegiado, o infanticídio (artigo 136.º do Código Penal), que consiste, precisamente, em «matar o filho durante ou logo após o parto» (sublinhados nossos; a redação acompanha de perto a formulação do artigo 116 do Código Penal suíço – «pendant l’accouchement»/«während der Geburt»/«durante il parto» – e do revogado § 217 do Strafgesetzbuch alemão – «in (…) der Geburt»). 27. É certo que aqui não se faz menção explícita ao «feto», como ocorre no artigo 578.º do codice penale italiano (expressão que, aliás, como recorda a aludida Sentenza n.º 27539/2019, citando decisão anterior da mesma Cassazione, é «usada impropriamente, porque o nascituro vivo já não é feto, nem em sentido biológico, nem em sentido jurídico, mas sim pessoa»: vd. pág. 9), mas alude-se ao parto, explicitamente sem exclusão de qualquer dos seus momentos, assim permitindo concluir que a proteção conferida pelos tipos legais dos crimes de homicídio se aplica logo a partir do início desse mesmo parto. Não se compreenderia, com efeito (como, aliás, logo notou o Reichsgericht na sua decisão, citada, de 29/09/1883 (RG, 9, 131, 133) – se bem que para afastar o critério ainda seguido na sua citada decisão de 08/06/1880, que exigia que pelo menos parte do feto tivesse já saído do útero materno – que o legislador tratasse o nascens como feto numa fase do parto e que noutra fase do mesmo processo o tratasse já como «pessoa»; como ainda menos se compreenderia, a nosso ver, que o legislador quisesse proteger de forma mais intensa o «feto» no âmbito de um tipo privilegiado (infanticídio) do que contra condutas suscetíveis de integrarem formas porventura mais graves da mesma incriminação. 28. Por outro lado, é inequívoco que o parto constitui efetivamente uma «zona de risco elevado» seja para a mãe, seja para a criança, em cujo decurso ficam particularmente expostas à possibilidade de agressões de diversa índole, que o direito penal, no interesse de uma proteção tão completa quanto possível da vida humana, não pode deixar de abranger (Eser/Sternberg-Lieben, op. e loc. cit.). 29. Também a doutrina mais relevante se pronuncia, entre nós, no sentido de que o início da vida, para efeitos de aplicação das normas respeitantes ao homicídio, se situa no início do trabalho de parto. Figueiredo Dias (na sua nótula antes do artigo 131.º, em Id. (dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª ed., §§ 9-11, pág. 8-9, invocando «o estado dos conhecimentos da medicina – naturalmente, quando conexionado com a teleologia e a funcionalidade próprias da solução jurídico-penal que se busca», considera, acompanhando no essencial os argumentos esgrimidos na doutrina alemã, que «[a] melhor solução, perante o estado daqueles conhecimentos, é a de considerar que esse momento se verifica – não necessariamente quando se inicia o "processo de dilatação", mas – quando se iniciam contracções ritmadas, intensas e frequentes que previsivelmente conduzirão à expulsão do feto». 30. Em sentido similar pronunciam-se Conceição Ferreira da Cunha, Os crimes contra as pessoas. Relatório sobre o programa, os conteúdos e os métodos de ensino da disciplina, págs. 78-79; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, anotação 4 ao artigo 131.º, pág. 344). Já Augusto Silva Dias (Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª ed., págs. 17-19), por seu turno, defende que relevantes devem ser consideradas já as contrações de dilatação do útero e não apenas as contrações de expulsão, pois que «aquelas contracções são ritmadas e irreversíveis e (…) já se verifica nelas a razão material» que justifica a antecipação da tutela criminal oferecida pela incriminação do homicídio. 31. A posição de Figueiredo Dias encontrou, entretanto, eco na jurisprudência. Assim, seguem-no explicitamente, do que pudemos encontrar, os acórdãos dos Tribunais da Relação do Porto de 15/02/2006 (processo n.º 0542341), e de Coimbra de 15/05/2013 (processo n.º 1053/10.9T3AVR.C1), ambos disponíveis na base de dados de jurisprudência de tais Tribunais em www.dgsi.pt. 32. e) Deve notar-se, no entanto, que, mesmo do ponto de vista médico, a questão da determinação do preciso momento a partir do qual tem início o trabalho de parto não recebe propriamente resposta unívoca. 33. Assim, após revisão de literatura que abrangeu 62 estudos publicados, provenientes de países de muito diferente geografias, Hanley, G.E., Munro, S., Greyson, D. et al. (Diagnosing onset of labor: a systematic review of definitions in the research literature, «BMC Pregnancy Childbirth», vol. 16:71, 2016) concluem que, sendo embora «um dos mais importantes juízos em matéria de saúde materna», existe uma considerável discrepância acerca do que constitui o início do trabalho de parto («labor onset»), embora nos trabalhos consultados fosse comum defini-lo em função da presença de contrações regulares dolorosas (71% dos estudos) – ainda assim com variação na indicação das respetivas extensão e frequência – e/ou algum grau de dilatação cervical (68% dos estudos). 34. Talvez por isso optem autores como Carlos Tadashi Yoshizaki, et. al. (em Marcelo Zugaib (ed.), Obstetrícia, 3.ª ed., pág. 328) por uma abordagem sincrética: «[o] diagnóstico de trabalho de parto está condicionado à presença de contrações uterinas com ritmo e características peculiares, combinadas a alterações progressivas no colo uterino (esvaecimento e dilatação) e à formação da bolsa das águas. Dessa forma, nesse diagnóstico não se deve considerar isoladamente a presença de contrações ou mesmo quantificar a dilatação cervical, mas sim todo o conjunto: a presença de contrações uterinas (pelo menos duas em 10 minutos) associada a dilatação cervical (pelo menos 2 cm), esvaecimento cervical e/ou modificações progressivas no colo uterino.» 35. Na nossa literatura médica de referência, Maria Helena Machado/Luís M. Graça (em Luís Mendes Graça, et al., Saúde materno-fetal, 5.ª ed., 2017, pág. 223) entendem, por trabalho de parto, «o conjunto de fenómenos fisiológicos que, uma vez postos em marcha, conduzem à contractilidade uterina regular, à dilatação do colo do útero, à progressão do feto através do canal de parto e à sua expulsão para o exterior», acrescentando, do mesmo passo, que «[n]a prática, considera-se que o TP [trabalho de parto] está estabelecido quando a grávida refere contractilidade dolorosa e regular em frequência e intensidade», esclarecendo que «[m]uitas vezes, o início do apagamento e dilatação cervicais dá-se antes que comece a contractilidade regular» (id.). 36. f) Sendo o trabalho de parto «uma obra-prima bioquímica, fisiológica e mecânica» (Wayne R. Cohen/Emanuel A. Friedman (Labor and Delivery Care: A Practical Guide, 2011, pág. 32) extraordinariamente complexa, que pode decorrer de formas muito distintas consoante os casos, compreendem-se as dificuldades que a ciência médica sente em definir o exato momento em que ele tem o seu início. 37. Parece existir um alargado consenso, no entanto, de que com a eclosão da contractilidade uterina dolorosa, regular em frequência e intensidade, dirigida, por regra, logo a lograr o completo apagamento e dilatação cervicais, se deve ter por medicamente iniciado o trabalho de parto. 38. Sendo assim, como corretamente nota Augusto Silva Dias na obra supracitada, não existe qualquer razão para restringir a proteção penal da incriminação do homicídio ao momento do início das contrações de expulsão, quando, manifestamente, logo a partir da eclosão das contrações de dilatação se estará já perante o início do trabalho de parto e, assim, do do nascimento. 39. É, pois, a partir deste ponto – que justifica já o recurso a cuidados médicos especializados e, portanto, se expõe a mulher grávida e a criança à atuação de terceiros que podem, dolosa ou negligentemente, atentar contra a vida de qualquer deles, ou de ambos – que estaremos perante uma «pessoa» para efeitos de aplicação das normas que incriminam o homicídio, assim «realiza[ndo], (…) de uma forma ótima, os objetivos político-criminais que a lei persegue, quando estabelece o limite no “início do nascimento”. (…) Qualquer outra interpretação, parece, portanto, contradizer a “ratio legis”» (Hans Lüttger, Medicina y Derecho Penal, pág. 68; deste autor ver, já antes, Der Beginn der Geburt und das Strafrecht. Probleme an der Grenze zwischen Leibesfruchtcharakter und Menschenqualität, Juristische Rundschau, 1971(4), pp. 133 e segs.). 40. 3. Resultando dos autos que a aqui assistente, no dia em que ocorreram os factos em causa nos presentes autos, não havia iniciado o seu trabalho de parto, nos moldes acabados de definir, não pode considerar-se o feto que trazia no seu útero, e que aí morreu, uma «pessoa» para efeitos de aplicação do tipo legal do crime de homicídio (por negligência), o que, consequentemente, afasta a possibilidade de vir a arguida a ser condenada pela comissão de um tal ilícito-típico, como é pretensão da recorrente. 41. Com efeito, conforme decorre claramente dos depoimentos das profissionais de saúde que assistiram a aqui recorrente quando ela se dirigiu a estabelecimento de saúde para receber cuidados médicos (em especial, os das testemunhas CC e KK), e da documentação clínica produzida a propósito por esses mesmos profissionais (bem como outros que atenderam a recorrente: cfr. fls. 74 e v.º, 76, 78 e 86), não se encontrava ela, na manhã do dia em causa nestes autos, em trabalho de parto, não lhe tendo sido observadas quaisquer contrações dolorosas, regulares e intensas, ou vislumbrado sinal de dilatação cervical relevante, de tal sorte que o parto só veio a ocorrer depois de ter sido quimicamente induzido já na tarde desse mesmo dia (o que se antolha sinal seguro de que não tinha ainda tido «início», de forma natural, até então). 42. A sugestão da recorrente de que teria entrado em trabalho de parto durante a madrugada do referido dia 18/08/2015, algo de que, na manhã desse mesmo dia, quando observada em estabelecimento hospitalar, ninguém se teria apercebido, porventura até por eventual ação da arguida, é inaceitável: se a causa de internamento que ficou a constar da documentação clínica poderia, de facto, ter sido resultado de informação fraudulentamente prestada pela arguida, já o posterior tratamento da recorrente (que incluiu o seu exame direto e ulterior sujeição a ecografia de confirmação do diagnóstico inicialmente efetuado) foi levado a cabo por profissionais de saúde devidamente habilitados, nada sugerindo que estivessem, todos eles, em conluio com a arguida para faltarem à verdade no tocante ao resultado das suas observações e juízos clínicos. 43. Tem-se assim por seguro que a aqui recorrente não entrou efetivamente, em momento algum do dia 18/08/2015, em trabalho de parto, nos moldes em que atrás o definimos. Isso não significa que não tenha ela sentido contrações, e que as mesmas não tenham sido, para si, bastante dolorosas; só significa que não eram ainda as contrações que marcam o início do processo de expulsão natural do feto do útero materno – as contrações que marcam, isto é, o início do parto (e do nascimento). 44. E sendo assim, não é possível afirmar que o filho da recorrente adquiriu a qualidade de «pessoa» para efeitos de aplicação, ao caso, da incriminação do homicídio, o que tanto basta para se concluir que a arguida não pode vir a ser responsabilizada pela prática de qualquer crime de homicídio negligente por conta da sua conduta aqui sob apreciação. 45. 4. Face à conclusão que antecede, fica prejudicado o conhecimento de todas as demais questões suscitadas no presente recurso, pois que dada a impunibilidade do aborto negligente no nosso ordenamento jurídico, é irrelevante, para os nossos fins, saber se a arguida, com a sua imputada conduta, violou qualquer dever que sobre si impendia e, em caso afirmativo, se é possível estabelecer um nexo causal (ou de imputação objetiva) entre essa conduta (alegadamente omissiva) e o resultado típico ocorrido. 46. 5. Decaindo integralmente no seu recurso, tem a assistente de suportar as respetivas custas (artigo 515.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal). 47. Considerando, nos termos previstos no artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, a tramitação processual ocorrida (incluindo fase de instrução e o presente recurso), afigura-se adequado fixar em 6 Unidades de Conta a taxa de justiça devida. III 48. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em, negando provimento ao presente recurso, confirmar a decisão recorrida. 49. Custas pela assistente, aqui recorrente (artigo 515.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça devida em 6 (seis) Unidades de Conta. Cidade e Tribunal da Relação do Porto, 14 de dezembro de 2022. Pedro M. Menezes Pedro Donas Botto Paula Guerreiro (acórdão assinado digitalmente) |