Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
772/23.4T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
DIREITOS DO COMPRADOR
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
RECONHECIMENTO DO DIREITO
Nº do Documento: RP20251113772/23.4T8VNG.P1
Data do Acordão: 11/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A nulidade da sentença constitui vício intrínseco da decisão, desde que ocorra alguma das circunstâncias taxativamente previstas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que, pela sua gravidade, comprometem a sua validade; o referido normativo contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença, nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível.
II - Os vários meios jurídicos facultados ao comprador de coisa defeituosa pelos artigos 913.º e seguintes do Código Civil não podem ser exercidos de forma aleatória ou discricionária; os mesmos acham-se estruturados de forma sequencial e escalonada: em primeiro lugar, o vendedor está vinculado à eliminação do defeito; se esta não for possível ou se for demasiado onerosa, deverá substituir a coisa viciada; frustrando-se qualquer dessas alternativas, assiste ao comprador o direito de exigir a redução do preço e, não se mostrando esta medida satisfatória, poderá o mesmo pedir a resolução do contrato.
III - Com qualquer dessas pretensões pode cumular-se a indemnização - pelo interesse contratual negativo -, destinada a assegurar o ressarcimento de danos não reparados por aqueles meios jurídicos.
IV - O reconhecimento do direito do comprador de coisa defeituosa, nomeadamente através de sucessivas tentativas do vendedor reparar ou eliminar os defeitos, constitui facto impeditivo da caducidade de acção.
V - A privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade.
VI - A determinação do valor desse dano haverá de corresponder ao efectivo prejuízo sofrido pelo lesado em consequência da privação do bem que lhe pertence; não podendo ser quantificado esse prejuízo, a sua reparação far-se-á com recurso a critérios de equidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 772/23.4T8VNG.P1

Tribunal Judicial do Porto

Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

A..., LDA., NIF ..., com sede no ..., ... e ..., ... ..., Concelho de Arouca, intentou acção declarativa de condenação, contra:

1- B..., S.A., NIF ..., com sede na Rua ..., ..., ... Guimarães,

e

2- C..., LDA, NIF ..., com sede na Rua ..., ..., ... Vila Nova de Gaia,

Pedindo:

- A condenação da primeira ré a reparar os defeitos que a viatura com a matrícula ..-..-GR apresenta e obstam ao seu normal funcionamento;

- A condenação da segunda ré a entregar a viatura à autora, sem quaisquer custos associados;

- A condenação da primeira ré a pagar 50,00€ por cada dia de privação da viatura até efectiva entrega da mesma, a título de indemnização pela privação da viatura.

Em alternativa:

- A resolução do contrato de compra e venda celebrado com a primeira ré relativamente à viatura ..-..-GR, por incumprimento culposo imputável a essa ré;

- A condenação da primeira ré a pagar 36.900,00€, respeitante ao preço fixado entre as partes.

Para o efeito, a autora alegou que comprou à primeira ré um veículo para carga e descarga de mercadoria com grua, o qual lhe foi entregue defeituoso, não tendo podido utilizá-lo para o fim pretendido. Comunicada à primeira ré a existência de defeitos, esta não os eliminou integralmente. Como consequência, a autora sofreu prejuízos.

Na contestação apresentada, a primeira ré alegou que a autora não lhe comunicou a existência de defeitos que justificassem a intervenção feita pela segunda ré em Junho de 2022, nem a interpelou para os sanar, motivo pelo qual caducou o seu direito de exigir a reparação dos defeitos. Adicionalmente, sustenta a primeira ré que tal reparação não teve como causa qualquer defeito do veículo, motivo pelo qual não é responsável pela mesma. Por fim, entende que, não tendo a autora feito interpelação admonitória, não pode pretender a resolução do contrato.

A segunda ré contestou igualmente, alegando ter efectuado por duas vezes reparação do veículo, não tendo obtido pagamento da última reparação, motivo pelo qual invoca o direito de retenção sobre o mesmo.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Em face do exposto, decido julgar a presente acção procedente e, em consequência:

a) Condeno a primeira ré a reparar os defeitos que a viatura com a matrícula ..-..-GR ainda apresenta e obstam ao seu normal funcionamento: não apresenta desenvolvimento em aceleração, tendo dificuldades em progredir marcha.

b) Condeno a segunda ré a entregar a viatura à autora, sem quaisquer custos associados;

c) Condeno a primeira ré a pagar 50,00€ (cinquenta euros) por cada dia de privação da viatura até efectiva entrega da mesma;

d) Condeno as rés no pagamento das custas processuais, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil.

Registe e notifique”.

Inconformada com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação a Ré B..., SA, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

1. O Tribunal recorrido deu como provado que, na sequência da Autora ter reportado a situação e ter solicitado a reparação da viatura, a Primeira Ré informou-a para entregar a viatura nas instalações da Segunda Ré, o que veio a acontecer em 2 de junho de 2022. E que a Segunda Ré procedeu à reparação do veículo. O Tribunal considerou, ainda, provado que, não obstante, os problemas da aceleração persistiram.

2. Ora, da matéria de facto dada como provada, não consta que a Autora denunciou ou interpelou a B... para sanar tais defeitos que surgiram ou reapareceram após as intervenções de reparação efetuadas pela Segunda Ré e nem poderia resultar provado pois não foi alegado pela Autora, que apenas diz ter interpelado as Rés para procederem à entrega da viatura sem quaisquer custos associados.

3. Ora, a denúncia dos defeitos é necessária para exercer os direitos que a lei confere em caso de venda de defeituosa, assim como a fixação de um prazo para sanar os defeitos denunciados, sendo certo que a prova da denúncia do defeito cabe à Autora, por ser pressuposto do exercício do seu direito (artigo 342º, nº 1, do Código Civil), impendendo sobre a B... o ónus da prova do decurso do prazo da denúncia (artigo 343º, nº 2, do Código Civil).

4. Constitui entendimento corrente na doutrina e na jurisprudência que, frustrada uma tentativa de eliminação dos defeitos, verifica-se um segundo incumprimento, sujeito às mesmas regras do primeiro, designadamente no tocante a prazos.

5. Assim, por não terem sido denunciados os defeitos que alegadamente se mantinham após a reparação, ocorreu a caducidade da ação, pelo que a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 342º, 916º e 917º do Código Civil, ao julgar improcedente a exceção da caducidade.

6. Ainda e sem prescindir, resultando da matéria de facto, que a Autora denunciou os defeitos em 2022, o que terá ocorrido seguramente antes do dia 2 de junho de 2022, pelo que tinha o prazo de seis meses após a denuncia para instaurar a presente ação, sob pena de caducidade, tal como resulta do disposto no artigo 917º do Código Civil, ação esta que deu entrada em 24 de janeiro de 2023, pelo que depois de ultrapassado o referido prazo de seis meses a contar da denúncia.

7. O prazo de caducidade do direito de ação previsto no artigo 917.º do Código Civil deve abranger todas as ações emergentes de cumprimento defeituoso, sendo, como tal, aplicável não unicamente à ação de anulação, ali referida, mas a todas as pretensões e ações decorrentes da compra e venda de coisa defeituosa.

8. Também por esta via se verifica a caducidade, neste caso, caducidade do direito de propor a ação judicial com vista à satisfação dos direitos de que se arroga titular a Autora, tendo a sentença recorrida violado o disposto no artigo 917º do Código Civil.

9. De acordo com o disposto no artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

10. A sentença recorrida padece da citada nulidade, pois que, de acordo com a decisão de facto, a viatura apenas padece de «problemas de aceleração», pelo que não poderia a Ré ser condenada a reparar outros defeitos, como o foi, sob pena de contradição entre a fundamentação de facto e a decisão proferida, que efetivamente ocorreu.

11. Por outro lado, foi a co-Ré C... condenada a entregar a viatura à Autora, sem quaisquer custos associados, na sequência do entendimento de que não lhe assistia o direito à retenção da mesma.

12. A sentença nesta parte é ambígua, tornando-a ininteligível, pois que a não entrega da viatura, de acordo com a factualidade provada, não resultou de qualquer ato ou omissão por parte da B..., que nem sequer tinha a viatura na sua posse, mas da recusa da sua entrega por parte da co-Ré C.... Aliás, por isso mesmo, foi a C... quem foi condenada a entregar a viatura à Autora e não a B..., pelo que daí não poderia resultar, sem mais, a obrigação da B... pagar à Autora uma indemnização por cada dia de privação da viatura.

13. Também, por isso, a sentença ferida de nulidade, face quer à contradição entre os fundamentos de facto e a decisão, quer resultante da sua ambiguidade ou obscuridade11, tal como resulta do disposto no artigo 615º, nº 1, alíneas c) e e) do Código de Processo Civil.

14. E mesmo quanto à decisão acerca da inexistência do invocado direito de retenção da viatura por parte da C... e da obrigação da B... indemnizar pela privação do uso da viatura, seria necessário o Tribunal recorrido decidir a quem incumbia suportar o custo dos serviços prestados na viatura pela C..., que importou um custo global de € 4.292,23, mas que dele faziam parte, para além de peças destinadas à eliminação dos defeitos, peças de substituição de peças de desgaste, da responsabilidade da Autora.

15. O Tribunal não se pronunciou, assim, acerca de matéria essencial para a decisão da causa, que constitui nulidade, tal como resulta do citado artigo 615º, nº 1, alínea d), mas que determina ainda que a sentença seja obscura e contraditória, pois considera não ocorrer o direito de retenção por parte da C..., em manifesta violação do disposto no artigo 754º do Código Civil, sem qualquer respaldo na decisão de facto.

16. A sentença recorrida violou, assim, o disposto nos artigos 754º, 756º e 757º, nº 2, do Código Civil, tanto mais que, pelo menos relativamente às peças que foram colocadas no veículo, destinadas à substituição de peças de desgaste, a responsabilidade do pagamento seria da Autora.

11 «Para efeitos da nulidade por ininteligibilidade da decisão, prevista no art. 615.º, n.º 1, al. e), 2.ª parte do CPC, ambígua será decisão à qual seja razoavelmente possível atribuírem-se, pelo menos, dois sentidos díspares sem que seja possível identificar o prevalente e, obscura será a decisão cujo sentido seja impossível de ser apreendido por um destinatário medianamente esclarecido» - Acórdão do STJ mencionado na nota anterior.

17. Outra das contradições entre a matéria de facto e a decisão proferida tem a ver com a condenação da Ré no pagamento do montante de 50,00 € diários até à entrega da viatura.

18. Nesta parte a sentença é ininteligível, pois omite o período pelo qual a Ré foi condenada a pagar tal montante diário, se desde a interpelação para a entrega, se da citação, se da sentença, se do transito em julgado da mesma.

19. Por outro lado, a Autora definiu a sua atividade no artigo 2º da Petição Inicial, que o Tribunal levou à matéria de facto assente sob o ponto 1 dos factos provados, que consistiu no comércio a retalho de peças e acessórios para veículos automóveis, tendo alicerçado o seu pedido na impossibilidade da utilização da viatura nessa sua atividade comercial para execução de trabalhos de carga e descarga, cfr. artigos 84, 85, 86, 87, 88, 90, 109 e 110 da PI.

20. Entendeu o Tribunal que provada a utilização normal do veículo de cuja utilização a autora se viu privada em virtude dos defeitos ainda não inteiramente reparados por parte da primeira ré, embora a autora não tenha conseguido provar o concreto valor – alega 50 euros diários – que deixou de ganhar com a privação, é de presumir, segundo o curso normal das coisas, que essa privação trouxe um conjunto de prejuízos para a autora, com a frustração da sua utilização, sendo os mesmo calculáveis ao abrigo do artigo 566º, nº3 do Código Civil.

21. Porém, nada resultou demonstrado que a Autora ficou privada de utilizar a viatura no comércio a retalho de peças e acessórios para veículos automóveis, nem se compreenderia como é que a impossibilidade de utilização da viatura pudesse interferir com essa atividade.

22. E o certo é que tal como resulta dos depoimentos prestados pelas testemunhas, anteriormente transcritos, a viatura era utilizada numa outra atividade, não alegada pela Autora, que era o transporte de materiais para a construção civil.

23. Por isso é que o Tribunal deu como não provado que «k. Devido à falta de grua, não foram adjudicados à autora serviços que requeressem a sua utilização, assim perdendo, diariamente, € 50,00.»

24. Porém, não poderia o Tribunal recorrer a juízos de equidade para fixar o valor de indemnização diária assente em factos não alegados pelas partes, pois que não resultou provada a utilização da viatura na referida atividade de comércio a retalho de peças para veículos automóveis, bem antes pelo contrário.

25. A sentença recorrida viola o disposto no artigo 566º, nº 3, do Código Civil.

26. Ainda e sem prejuízo do supra exposto, a Recorrente impugna a decisão proferida acerca da matéria de facto, uma vez que entende que, da prova produzida, resultaria outra decisão quanto aos factos infra discriminados.

27. A Recorrente impugna desde logo a redação dada ao ponto 29 dos factos dados como provados, uma vez que da análise conjunta do Relatório Pericial, junto aos autos em 12/12/2023, com a referência 37540715, com os esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito, juntos aos autos através do documento de 01/10/2024, com a referência 40221753, com os documentos juntos pelas Rés, sob os nºs 5 e 6 com a Contestação da B... e sob os nºs 2 e 3 com a Contestação da C..., e bem assim com o documento nº 14 junto pela Autora, o Tribunal deveria ter dado como provado que: 29. A reparação importou um custo global de € 4.292,23, da qual fazem parte peças que se destinaram a substituir peças de desgaste, designadamente Discos, indicador de desgaste e calços de travão, que importaram no custo global de 1.103,86 € (897,45 € acrescido de 206,41 €, de iva). As restantes peças destinaram-se a reparar defeitos e tiveram o custo de 3.188,37 €.

28. Acresce que a Recorrente impugna ainda a factualidade constante do ponto 27 dos factos provados, pois que a existência de um manuscrito no interior do veículo, quando a viatura foi entregue na C..., ocorreu aquando da entrega da mesma em dezembro de 2021 e não em junho de 2022, tal como expressamente o refere a Autora nos artigos 47º e 48º da Petição Inicial e resulta do depoimento da testemunha AA, anteriormente transcrito.

29. A Recorrente impugna a decisão de facto relativa aos factos provados, pois considera que os factos dados como provados sob os nºs 23, 24, 27, 30 e 35 não resultaram provados, impugnando a decisão de facto relativamente à matéria de facto que foi julgada como não provada, quanto aos seguintes factos b.); d.); e i.), pois resultaram os mesmos provados.

30. Quanto à utilização da viatura por parte da Autora, o Tribunal não poderia ter dado como provado que a Autora deixou de a utilizar em operações de carga e descarga, desde logo porque esta fundamentou a sua pretensão, para o que alegou factos na Petição Inicial manifestamente diferentes do que resultou demonstrado em audiência de julgamento, pois que a Autora alegou que a viatura se destinava a ser utilizada no exercício do comércio a retalho de peças para automóveis.

31. Ora, quer as testemunhas arroladas pela Autora, quer o seu legal representante, declararam uma outra utilização da viatura, não conhecida das partes, porque não alegada: - a utilização da mesma no transporte, cargas e descargas de material destinado a obras de construção civil, conforme resultou das transcrições dos citados depoimentos.

32. Quanto às alegadas «denuncias» feitas pela Autora à Ré, as testemunhas não demonstraram qualquer conhecimento a esse respeito, nunca tendo feito qualquer denuncia ou assistido a qualquer conduta nesse sentido por parte da Autora, conforme demonstrado na transcrição dos depoimentos que se efetuou e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

33. Relativamente aos factos que o Tribunal deu como não provados, designadamente «b. Quando a ré entregou a viatura à autora, em meados de setembro de 2021, registava 274.350 km», o certo é que resulta do documento junto pela Autora, sob o documento nº 6 – Declaração Aduaneira de Veículo – que o mesmo em 7 de setembro de 2021 tinha 274.283 kms. Acresce que foi dado como provado que foi o mesmo entregue à Autora em meados de setembro de 2021, pelo que deveria ter sido dado como provada aquela factualidade.

34. «d. A autora levantou a viatura da oficina da segunda ré em dezembro de 2021 depois de verificar a inexistência de qualquer outra anomalia na viatura»: Tal prova resulta do facto da Autora ter percorrido com a mesma cerca de 2000 kms, tal como é confessado pelo legal representante daquela, o que apenas poderia ter ocorrido entre dezembro de 2021 e junho de 2022, tanto mais que aquando da reparação ocorrida em dezembro de 2021 a viatura tinha 275.271 kms, tal como resulta do documento nº 11 junto pela Autora com a Petição Inicial.

35. Quanto à conclusão de que não ficou provado que «i. A autora solicitou à segunda ré a substituição de peças de desgaste, com um custo de € 2.330,03», o Tribunal deveria ter dado como provado que a autora solicitou à Segunda Ré a substituição de peças de desgaste, pois resulta da prova, mormente pericial, o fornecimento de tais peças, sendo que, de acordo com as regras de experiencia comum jamais qualquer das Rés tomariam a iniciativa de custear as peças destinadas a substituir peças de desgaste.

36. Pelo que deverá ser alterada a decisão de facto nos termos expostos.

Termos em que deverá o presente recurso ser admitido e julgado procedente, com as legais consequências, como é de JUSTIÇA”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- se se verifica caducidade de acção;

- se a matéria de facto foi incorrectamente julgada;

- se a sentença padece de nulidade;

- critérios a atender para a determinação da indemnização por privação da viatura adquirida à apelante.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Pelo tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes factos:

1. A autora dedica-se ao comércio a retalho de peças e acessórios para veículos automóveis.

2. A primeira ré dedica-se à importação, exportação, reparação, venda, aluguer e montagem de máquinas; comércio de granitos, materiais de construção civil e biomassas. construção civil, obras públicas e terraplanagens; transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem; aluguer de veículos ligeiros e pesados com e sem condutor; armazenamento de cargas, distribuição e logística das mesmas; pronto-socorro e serviço de reboque; atividades de mecânica geral e construção de protótipos; tratamento e revestimento de metais; fabricação de equipamentos de elevação e de movimentação; fabricação de automóveis-grua; fabricação de mobiliário metálico para outros fins; compra, venda e instalação de máquinas e de equipamentos industriais; reparação e manutenção de máquinas e equipamentos; comércio de sucatas e de desperdícios metálicos; comércio de artigos em 2º mão; aluguer de outras máquinas e equipamentos; compra e venda de imóveis e aluguer dos mesmos.

3. A segunda ré dedica-se ao comércio a retalho de veículos automóveis ligeiros e pesados, motociclos e scooters, tractores, reboques e semi-reboques, manutenção e reparação de veículos automóveis e comércio a retalho de qualquer tipo de partes, peças e acessórios para veículos automóveis; intermediação de crédito; atividades dos intermediários de seguros na venda de apólices de seguros e resseguros.

4. Em meados de Agosto de 2021, a Autora comprou à primeira ré a viatura pesada, de marca Mitsubishi, com caixa basculante e grua, com a matrícula ..-..-GR e, em troca, a primeira ré comprou à autora a viatura da marca Volvo, com a matrícula ..-..-VO.

5. A primeira ré descrevera à autora a viatura que esta veio a adquirir como sendo uma viatura equipada com báscula e grua.

6. A primeira ré comprometeu-se perante a autora a substituir a grua que a viatura Mitsubishi trazia por outra usada mas com características superiores – a fim de auxiliar nas operações de carga e descarga -, a colocar um controlo remoto e a pintar a chaparia.

7. A primeira ré garantiu à autora que, apesar de usado, o veículo com a matrícula ..-..-GR não tinha anomalias, avarias ou limitações e que apresentava as qualidades e desempenho habituais dos veículos da mesma categoria, encontrando-se em bom estado de conservação e em bom estado de funcionamento.

8. A ré entregou a viatura à Autora em meados de Setembro de 2021.

9. Em meados de Setembro de 2021, a autora procedeu ao registo da viatura em seu nome.

10. Passando a suportar as despesas relativas à viatura.

11. A autora utilizou posteriormente a viatura adquirida à primeira ré.

12. Após a entrega à autora da viatura com a matrícula ..-..-GR e verificação do seu estado pela autora, esta verificou que ela apresentava as seguintes anomalias:

a. A pintura havia sido efectuada de uma forma deficitária, tendo sido posta apenas uma camada de tinta por cima de pontos de ferrugem, ficando de espessura irregular e que rapidamente iria ceder;

b. Tinham sido colocados pneus de diferentes pisos.

c. Não apresentava desenvolvimento em aceleração, tendo dificuldades em progredir marcha, e nem sempre pegava;

d. Apresentava dificuldades na travagem.

13. A autora comunicou à primeira ré as referidas anomalias.

14. A autora deslocou a viatura de matrícula ..-..-GR à oficina da primeira ré para reparação.

15. A primeira ré reparou a pintura e trocou os pneus à viatura.

16. A primeira ré encaminhou, seguidamente, a viatura para a «D...», concessionário autorizado da marca Mitsubishi, onde foi efectuado um diagnóstico ao sistema de travagem e substituída a válvula reguladora da travagem.

17. Nessa sequência, a primeira ré encaminhou a viatura para a oficina da segunda ré, igualmente concessionária da marca Mitsubishi.

18. No dia 16.12.2021 o veículo com a matrícula ..-..-GR deu entrada nas instalações da segunda ré por instruções da primeira ré.

19. A segunda ré foi informada de que o veículo custava a pegar.

20. A segunda ré, para além do mais, substituiu quatro injectores e o veículo saiu das suas instalações em 18.12.2021.

21. A primeira ré pagou à segunda ré €2.245,40 pela reparação efectuada.

22. A autora verificou que, em aceleração, a viatura não progredia e que não fazia a travagem com segurança para circular em carga.

23. Face às anomalias que a viatura apresentava, a autora deixou de utilizar a viatura em operações de carga e descarga.

24. Em 2022, a autora reportou novamente a situação à primeira ré e pediu a reparação da viatura.

25. A primeira ré informou a autora de que poderia entregar a viatura na oficina da segunda ré em Junho de 2022.

26. A 2.06.2022, o veículo voltou a dar entrada nas instalações da segunda ré.

27. No interior da viatura, a autora deixou manuscrito com descrição das anomalias detectadas.

28. A segunda ré efectuou reparação ao veículo.

29. A reparação importou um custo global de €4.292,23

30. Todavia, os problemas da aceleração persistiram.

31. A viatura ainda não foi entregue à autora.

32. Em Setembro de 2022, a autora interpelou as rés para procederem à entrega da viatura.

33. A segunda ré informou a autora que apenas entregaria a viatura após o pagamento da reparação.

34. A viatura adquirida pela autora padecia das acima identificadas anomalias, pelo menos, desde o momento da aquisição pela autora.

35. Em virtude da falta de bom funcionamento da viatura, a autora viu-se obrigada a fazer a carga nas carrinhas manualmente.

III. 2. E julgou não provados os seguintes factos:

a. A viatura ..-..-GR foi submetida a inspecção B, tendo sido aprovada sem indicação de qualquer defeito ou anomalia.

b. Quando a ré entregou a viatura à autora, em meados de Setembro de 2021, registava 274.350 km.

c. Previamente à entrega da viatura à autora, esta verificou o estado em que a mesma se encontrava e experimentou-a.

d. A autora levantou a viatura da oficina da segunda ré em Dezembro de 2021 depois de verificar a inexistência de qualquer outra anomalia na viatura.

e. Quando a viatura foi deixada nas instalações da segunda ré, tinha no seu interior os documentos relativos ao seguro e o documento único de automóvel e, após restituição à autora, o documento único de automóvel tinha desaparecido do seu interior.

f. A autora teve de solicitar segunda via do documento único automóvel.

g. A primeira ré informou a autora de que poderia entregar a viatura na oficina da segunda ré em Junho de 2022 apenas para substituir o módulo ABS.

h. Previamente a Junho de 2022, a segunda ré fornecera à primeira ré orçamento de € 1.595,29 € mais IVA para substituição de módulo ABS.

i. A autora solicitou à segunda ré a substituição de peças de desgaste, com um custo de € 2.330,03.

j. Após a reparação de meados do ano de 2022, os problemas de travagem da viatura mantinham-se.

k. Devido à falta de grua, não foram adjudicados à autora serviços que requeressem a sua utilização, assim perdendo, diariamente, € 50,00.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Da invocada nulidade da sentença.
Imputa a recorrente à sentença que impugna vício de nulidade que reconduz à previsão do artigo 615.º, n.º 1, c) d) e e) do Código de Processo Civil.
Dispõe o n.º 1 do artigo 615.º do referido diploma:
“É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
A nulidade da sentença - ou de despacho[1] - constitui vício intrínseco da decisão, desde que ocorra alguma das circunstâncias taxativamente previstas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que, pela sua gravidade, comprometem a sentença ou o despacho qua tale.
Como o n.º 1 do artigo 668.º do anterior diploma, também o n.º 1 do artigo 615.º do actual Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença[2], nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível[3].
No primeiro segmento da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º enquadra-se o vício da sentença em que ocorra oposição entre os seus fundamentos e a decisão. A nulidade resultará dos próprios termos da sentença e está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos artigos 154.° e 607.°, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil, de fundamentar as decisões e, por outro, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a consequência ou conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Esta oposição é a que se verifica no processo lógico, que das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas, este extrai a decisão a proferir[4].
Não se cuida, no vício contemplado na referida alínea, de indagar se existe contradição/oposição entre a decisão que julga a matéria de facto e os fundamentos que a motivaram, como sucede na hipótese delineada pelo anterior artigo 653.º da lei adjectiva, mas antes de averiguar se essa oposição ocorre entre a decisão que aprecia a matéria controvertida e os fundamentos quer de facto, quer de direito que contribuíram para essa mesma decisão.
Numa perspectiva silogística da sentença, a decisão nela contida deve estar numa relação lógica e coerente com as respectivas premissas, que a haverão de anteceder, sendo aquela o resultado natural decorrente das mesmas.
Isto é, “a decisão tem como antecedentes lógicos os fundamentos de direito (premissa maior) e os fundamentos de facto (premissa menor), não podendo o sentido da decisão achar-se em contradição ou oposição com os fundamentos, o que sucede sempre que na construção da sentença os fundamentos expressos pelo juiz, necessariamente, haveriam de conduzir a uma solução de sentido antagónico: a proposição final (conclusão) revela-se incompatível com as proposições logicamente antecedentes (fundamentos), o que traduz um vício de raciocínio. A nulidade de oposição entre os fundamentos e a decisão não se confunde com o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, ou com a inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão[5].
Configura-se a nulidade tipificada no citado preceito quando “o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”[6].
Ou seja: “…se os fundamentos invocados conduzem logicamente, não ao resultado expresso da decisão, mas a resultado oposto ou pelo menos diferente, em última análise a decisão carece de fundamento[7].
Precisa, também a propósito do vício em análise, Lebre de Freitas[8]: “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se”.
Quanto à “ambiguidade ou obscuridade que torne a sentença ininteligível”, vício a que se refere o segundo segmento do mencionado normativo, ele ocorre “quando não seja percetível qualquer sentido da parte decisória (obscuridade) ou ela encerre um duplo sentido (ambiguidade), sendo ininteligível para um declaratário normal[9].
Segundo o Prof. Alberto dos Reis[10], a “(…) sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes”, explicitando que “(…) num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”, adiantando ainda ser “(…) evidente que em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade” por “(…) se a determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz”.
Sinteticamente, poderá afirmar-se que ocorre obscuridade quando não seja perceptível o pensamento do julgador traduzido na parte decisória, verificando-se ambiguidade quando ela comportar mais do que uma interpretação.
Segundo o acórdão do S.T.J. de 11.4.2002,[11]só existe obscuridade quando o tribunal proferiu decisão cujo sentido exacto não pode alcançar-se. A ambiguidade só releva se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que não seja possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se diz ambíguo [...].
Mas deve ter-se em conta que o haver-se decidido bem ou mal, de forma correcta ou incorrecta, em sentido contrário ao preconizado pela requerente, é coisa totalmente diversa da existência de obscuridade ou ambiguidade do acórdão [...]”.Em todo o caso, a ambiguidade e a obscuridade só invalidam a sentença se e na medida em que qualquer uma daquelas patologias a tornem ininteligível.
O artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil correlaciona-se com o estatuído no n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma legal, onde se determina que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. O vício tipificado na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º ocorre quando haja falta de apreciação de questão que o tribunal devesse conhecer, cuja resolução não tenha ficado prejudicada por solução dada a outras.
Exige-se, com efeito, uma correspondência entre a pronúncia e a pretensão deduzida.
Como esclarecia Anselmo de Castro, ainda no âmbito da aplicação da pretérita lei adjectiva[12], «o vício relaciona-se com o dispositivo do art.° 660.°, n.° 2.° e por ele se tem de integrar. A primeira modalidade tem a limitação aí constante quanto às decisões que devam considerar-se prejudicadas pela solução dada a outras; a segunda reporta-se àquelas questões de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente e que não tenham sido suscitadas pelas partes, como nesse preceito se dispõe.
A palavra questões deve ser tomada aqui em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a “fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sobre os aspectos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”.
E Alberto dos Reis[13] já alertava que não se pode confundir questões suscitadas pelas partes com motivos ou argumentos por elas invocados para fazerem valer as suas pretensões: "São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão."
Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas pelas partes, apenas deve conhecer destas e das que oficiosamente lhe caiba conhecer[14].
Também “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir” – artigo 609º, n.º 1 do Código de Processo Civil. O desrespeito por tal limite inquina a sentença de nulidade, conforme previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º.
Argumenta a recorrente que tendo o tribunal a quo dado como provado que o veículo da Autora apenas padece de problemas de aceleração, não podia aquela ser condenada a reparar outros defeitos, “sob pena de contradição entre a fundamentação de facto e a decisão proferida, que efetivamente ocorreu”.
Resulta da matéria de facto considerada assente pelo tribunal recorrido que, após a entrega da viatura à Autora, a mesma apresentava as anomalias/desconformidades descritas no ponto 12.º dos factos provados, designadamente as descritas na alínea c) do referido segmento decisório.
Dela também resulta que não obstante as reparações efectuadas, os problemas de aceleração persistiram – ponto 30.º dos factos provados.
Como se extrai da sentença impugnada, “Dos defeitos denunciados pela autora, o único que subsiste e carece ainda de reparação é o da falta de desenvolvimento em aceleração, com dificuldades em progredir a marcha”.
A mesma sentença condena a primeira Ré, aqui apelante, “a reparar os defeitos que a viatura com a matrícula ..-..-GR ainda apresenta e obstam ao seu normal funcionamento”, tendo tido o cuidado de, logo de seguida, identificar os defeitos a reparar: “não apresenta desenvolvimento em aceleração, tendo dificuldades em progredir marcha”.
Neste contexto, só um tortuoso raciocínio, desprovido de fundamento, poderia sustentar a denunciada contradição que, claramente, não existe, achando-se a decisão estruturada de forma lógica e coerente com a matéria de facto apurada e com os respectivos fundamentos, quer de facto, quer de direito.
E nenhuma outra contradição, nomeadamente das invocadas pela apelante, se detecta na sentença sob recurso: existe correspondência lógica entre a decisão contida na sentença impugnada e as premissas em que a mesma se apoia e lhe servem de fundamento.
Também a mesma não enferma de ambiguidade ou ininteligibilidade que comprometam a sua validade, sendo perceptível o seu sentido e significado para qualquer normal destinatário.
A Autora comprou à primeira Ré, aqui apelante, a viatura identificada no ponto 4.º dos factos provados que, algum tempo decorrido sobre a sua entrega, viria a revelar problemas no seu funcionamento resultantes de defeitos que a afectavam.
A Autora não estabeleceu com a segunda Ré qualquer relação negocial.
Como resulta do elenco dos factos provados, foi a apelante que encaminhou a viatura vendida à Autora para a oficina da segunda Ré, onde deu entrada por instruções da primeira Ré e quando, em 2022, a Autora reportou à Ré vendedora da viatura as anomalias que continuavam a afectá-la, pedindo a sua reparação, o veículo deu novamente entrada nas instalações da segunda Ré, em Junho desse ano, uma vez mais por indicação da primeira Ré.
Compreende-se, pois, que pelos prejuízos sofridos pela Autora, decorrentes da paralisação do veículo que adquiriu à primeira Ré, seja esta, e apenas esta, a responsável. Tendo essa paralisação resultado das anomalias que afectavam a viatura, que impediam o seu normal funcionamento, só a vendedora responde pelos danos que daí tenham advindo para a compradora, não podendo a segunda Ré, que não interveio na aludida transação, sendo, por isso, alheia ao cumprimento defeituoso da obrigação a que e vendedora estava vinculada, responder pelos danos daí resultantes.
Entendendo a apelante que deve a segunda Ré ser responsabilizada pelo facto de reter a viatura adquirida pela Autora deverá, em sede própria, demandá-la para o efeito.
Sendo de incontestável evidência que só podendo a segunda Ré responder perante quem contratou os seus serviços por eventuais prejuízos resultantes da não entrega do veículo, é também de inegável evidência que jamais ela, segunda Ré, poderia responder perante a Autora, com a qual não celebrou o contrato de compra e venda da viatura, cuja paralisação teve como causa directa os vícios que a mesma apresentava e que obstavam ao seu funcionamento normal.
A sentença é clara: ao condenar a segunda Ré a entregar a viatura à Autora fê-lo por considerar que àquela não assistia qualquer direito de retenção que justificasse a recusa dessa entrega; já pela indemnização pela privação do uso da viatura em causa, determinada pelos defeitos que a mesma apresentava, responde quem procedeu à venda naquelas condições, como, de forma inequívoca, se extrai do próprio texto da sentença impugnada: “[F]icou provado que a autora, não foram os defeitos, utilizaria o veículo na sua actividade normal de transporte de mercadorias, carga e descarga, não tendo outro veículo com as mesmas características.
Ora, provada a utilização normal do veículo de cuja utilização a autora se viu privada em virtude dos defeitos ainda não inteiramente reparados por parte da primeira ré, embora a autora não tenha conseguido provar o concreto valor – alega 50 euros diários – que deixou de ganhar com a privação, é de presumir, segundo o curso normal das coisas, que essa privação trouxe um conjunto de prejuízos para a autora, com a frustração da sua utilização, sendo os mesmo calculáveis ao abrigo do artigo 566º, nº3 do Código Civil.
Integrando o direito de propriedade, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, a privação do uso representa violação do direito de propriedade com gravidade bastante para justificar o seu ressarcimento”.
Não padece, assim, a sentença de ambiguidade ou ininteligibilidade que a recorrente lhe imputa por ter apenas condenado a apelante a indemnizar a Autora pelos danos sofridos em consequência da paralisação da viatura adquirida àquela.
Também a sentença não enferma do vício tipificado na alínea d), do n.º 1 do citado artigo 615.º.
Com efeito, a sentença não conheceu de pedidos que não tenham sido deduzidos, não apreciou causas de pedir que não hajam sido invocadas, nem excepções não invocadas na exclusiva disponibilidade das partes.
E conheceu todas as questões submetidas pelas partes à apreciação do tribunal a quo. E não mais que estas.
Não enferma a mesma sentença do vício previsto na alínea e) do mencionado normativo. De resto, não se compreende que a recorrente aponte à sentença patologia que integra naquela previsão legal quando não articula qualquer facto ou razão que indicie o vício imputado.
A apelante socorre-se de argumentos que poderia ter convocado para impugnar a matéria de direito e as soluções jurídicas pelas quais enveredou.
Porém, ao invés de invocar tais argumentos para, nesse sentido, impugnar a sentença, optou por questionar a validade intrínseca da sentença, limitando-se a expressar as razões que justificam, no seu entender, a discordância que manifesta quanto à decisão de mérito da mesma.
Como se começou por referir, qualquer dos vícios a que alude o artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil constitui patologia intrínseca à própria sentença[15], que invalida a mesma enquanto tal, com ela não se confundindo o erro de julgamento, de facto ou de direito.
Claramente, não padece a sentença recorrida de nenhum dos vícios apontados pela recorrente, que se limita a esgrimir argumentos para exprimir a sua inconformidade com a sentença que impugna, os quais, porém, não atingem a sua validade.
Por conseguinte, improcede, nesta parte, o recurso.
2. Reapreciação da matéria de facto.
Dispõe o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[16], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa notar que a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova[17] e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1ª instância encontra-se em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”[18].
Também é certo que, como em qualquer actividade humana, sempre a actuação jurisdicional comportará uma certa margem de incerteza e aleatoriedade no que concerne à decisão sobre a matéria de facto. Mas o que importa é que se minimize tanto quanto possível tal margem de erro, porquanto nesta apreciação livre o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, os princípios da lógica, ou as regras científicas[19].
De todo o modo, a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando, como no caso, se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.
Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.
A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2012[20], “…a verdade judicial traduz-se na correspondência entre as afirmações de facto controvertidas, relevantes e pertinentes, aduzidas pelas partes no processo e a realidade empírica, extraprocessual, que tais afirmações contemplam, revelada pelos meios de prova produzidos, de forma a lograr uma decisão oportuna do litígio. Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a realidade empírica, vide Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide Eduardo Gambi, A Prova Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e seguintes; LLuís Muñoz Sabaté, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor, Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.
Por isso mesmo, a “reconstrução” cognitiva da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia ter, a finalidade exclusiva de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do acontecido, como sucede, de certo modo, nos domínios da verdade história ou da verdade científica, muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e íntima do julgador. Diversamente, tem como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)”.
2.1. Discordando da decisão proferida em primeira instância que julgou provada a matéria constante dos pontos 23.º, 24.º, 27.º, 29.º, 30.º, 34.º e 35.º e não provada a elencada nas alíneas b), d) e i), reclama a recorrente a sua reapreciação por esta instância de recurso.
Importa, assim, proceder à reapreciação da matéria de facto na parte abrangida pela impugnação recursiva da apelante.
Tendo o tribunal a quo considerado provado que “A reparação [realizada pela segunda Ré] importou um custo global de €4.292,23” - Ponto 29.º dos factos provados -, propõe a recorrente a alteração da redacção deste segmento decisório, passando a ser o seguinte o seu teor: “A reparação importou um custo global de € 4.292,23, da qual fazem parte peças que se destinaram a substituir peças de desgaste, designadamente Discos, indicador de desgaste e calços de travão, que importaram no custo global de 1.103,86 € (897,45 € acrescido de 206,41 €, de iva). As restantes peças destinaram-se a reparar defeitos e tiveram o custo de 3.188,37 €”.
A pretendida alteração fundamenta-se, segundo a apelante, no teor do relatório pericial junto aos autos a 12.12.2023 e nos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito, além de documentos juntos pelas partes com os seus articulados.
Fundando-se a acção proposta pela Autora na existência de defeitos/anomalias detectadas na viatura adquirida à primeira Ré, aqui apelante, e peticionando aquela, para além de indemnização por privação do uso da viatura, a condenação desta demandada na reparação dos defeitos que a viatura com a matrícula ..-..-GR apresenta e obstam ao seu normal funcionamento, bem como a condenação da segunda Ré na entrega da viatura sem quaisquer custos associados, ou, em alternativa, a resolução do contrato de compra e venda celebrado com a primeira ré relativamente à viatura ..-..-GR, e a condenação desta no pagamento da quantia de € 36.900,00€, respeitante ao preço fixado entre as partes, a alteração pretendida pela apelante é absolutamente inócua, sem qualquer contributo para a decisão de mérito.
De facto, a Autora não reclama da apelante o pagamento de qualquer valor que haja despendido com a reparação dos vícios da viatura que a esta adquiriu, mas antes, e somente, a própria reparação desses vícios, sendo que o segmento da decisão que condenou a segunda Ré a entregar à demandante a viatura em causa transitou em julgado dado que a parte afectada [vencida] por tal decisão não interpôs recurso da mesma.
Neste contexto, qualquer divergência que eventualmente possa existir quanto ao valor efectivo devido à segunda Ré pela reparação da viatura adquirida pela Autora à primeira Ré não poderá obter resolução nesta acção, a qual incontroversamente está delimitada pela causa de pedir e pedidos formulados pela apelada/demandante.
O legal representante da Autora, BB, relatou de forma convincente e esclarecedora em que circunstâncias negociou com CC, que perante si se apresentou como representante da primeira Ré, a aquisição da viatura pesada, de marca Mitsubishi, com caixa basculante e grua, com a matrícula ..-..-GR, em conformidade com a matéria fixada nos pontos 4.º a 7.º, que não foi objecto de impugnação, precisando o mesmo que concretizou o negócio por o referido CC o ter convencido que necessitava de um veículo com maior capacidade e potência para circular, com carga, pelas vias de Arouca, reconhecendo o mesmo essa necessidade.
O mesmo referiu ainda que as anomalias detectadas na viatura impediam a sua utilização, nomeadamente, em operação de cargas e descargas, facto confirmado pelo depoimento das testemunhas DD, que trabalha para a Autora há 26 anos, com funções de motorista, e AA, igualmente funcionário da Autora, com idênticas funções, e que, tendo utilizado o veículo em causa, constataram os vícios que afectavam o seu funcionamento, dando conta das suas implicações na sua utilização.
Todos eles mencionaram não dispor a Autora de outro veículo de transporte de mercadorias dotado de grua, pelo que as cargas e descargas passaram a ser processadas manualmente.
Os aludidos depoimentos conferem consistência probatória bastante para que possa ter-se como provada a factualidade vertida no ponto 23.º dos factos provados, não tendo sido produzida prova que a infirme.
Tal juízo não é invalidado pelo que consta do ponto 1.º dos factos provados, que apenas se refere ao objecto social da Autora, resultando da prova produzida que a sua actividade efectiva consistia (ou consistia também) no comércio de materiais de construção civil, e subsequente transporte dos mesmos para os clientes, o que passou a ser efectuado com a utilização do veículo adquirido à primeira Ré, dotada de grua para o processamento da carga e descarga desses mesmos materiais.
Refira-se, além do mais, que a primeira ré descrevera à Autora a viatura que esta veio a adquirir como sendo uma viatura equipada com báscula e grua e que se comprometeu perante a mesma a substituir a grua que a viatura Mitsubishi trazia por outra usada mas com características superiores – a fim de auxiliar nas operações de carga e descarga – conforme descrito nos pontos 5.º e 6.º dos factos provados, que não foram objecto de impugnação -, o que claramente aponta para os fins a que a viatura se destinava – transporte de mercadorias, com carga e descarga das mesmas, operadas através de grua -e, comprometendo-se a primeira Ré a substituir a grua de que estava equipada a viatura Mitsubishi por outra de características superiores, tudo indiciando que a pessoa que, em nome da primeira Ré, interveio no negócio conhecia o fim específico a que aquela viatura se destinava.
O legal representante da Autora e as testemunhas DD e AA aludiram à persistência de algumas das anomalias da viatura no decurso do ano de 2022, após efectuada a primeira intervenção e reparação, a solicitação da Autora
Em declarações prestadas em audiência, o legal representante da Autora confirmou a factualidade vertida no ponto 24.º dos factos provados, as quais se mostram corroboradas pelo teor dos documentos 12, 13 e 14, juntos com a petição inicial, e documentos n.ºs 2 e 3 juntos pela Ré C... com a sua contestação, onde a mesma alega que em 2.06.2022 o veículo deu entrada nas suas instalações e, efectuado por esta o orçamento, foi-lhe solicitada a reparação do veículo, concluída em meados do mês de Julho de 2022 (cfr. artigos 14.º a 17.º do mencionado articulado).
Não existe, assim, fundamento para reclamada alteração dos pontos 24.º, 30.º 34.º e 35.º dos factos provados.
Quanto ao ponto 27.º dos factos provados: defende a Ré que o manuscrito foi deixado no interior da viatura, quando a viatura foi entregue na C..., não em Junho de 2022, mas anteriormente, em Dezembro de 2021.
Em abono desse seu entendimento, convoca o alegado pela própria Autora nos artigos 47.º e 48.º da petição inicial, e o depoimento da testemunha AA.
Embora sem referência temporal, a inserção sistemática do ponto 27.º dos factos permite interpretação de que o facto nele mencionado tenha ocorrido aquando da segunda entrega da viatura nas instalações da segunda Ré, em Junho de 2022 – cfr. pontos 25.º e 26.º.
No artigo 47.º da petição inicial alega a Autora ter a viatura ido para as instalações da Ré C... no final de 2021, alegando a mesma no artigo seguinte que “No seu interior e a pedido da Ré B..., S.A. foi deixado um manuscrito com todas as anomalias que tinham sido detectadas pela Autora e cuja reparação era imprescindível para a realização do fim a que se destinava a viatura”, o que, de acordo com o por ela própria alegado, a colocação do dito manuscrito no interior do veículo ocorreu aquando da primeira entrega da mesma nas instalações da segunda Ré, em final do ano de 2021.
O circunstancialismo relatado na petição inicial foi confirmado, de resto, pela testemunha AA, que elaborou o referido manuscrito, que em audiência esclareceu que “passou” o papel na primeira vez que a viatura “veio para arranjar”.
Neste contexto, importa precisar que o facto mencionado no ponto 27.º ocorreu nas condições e circunstâncias descritas na petição inicial e confirmadas pelo depoimento da indicada testemunha.
Desta forma, procede-se à alteração do ponto 27.º dos factos provados, cuja redacção passará a ser a seguinte: Aquando dos factos referidos nos pontos 17.º e 18, a Autora deixou, no interior da viatura, um manuscrito com descrição das anomalias detectadas.
A decisão relativamente à matéria das alíneas b), d) e i), dada como não provada e que, no entender da recorrente, deve considerar-se provada, mostra-se assim fundamentada na sentença impugnada:
“[...] Não existe qualquer documento ou outro elemento de prova que permita concluir no sentido de que a primeira ré entregou à autora a viatura com 274.350 km, já que da respectiva factura ou declaração de permuta nada consta. Apenas da declaração aduaneira de veículo, datada de 7 de Setembro de 2021 (documento 6 junto com a petição inicial) consta a menção a 274.283 km percorridos, não sendo possível saber quantos km percorreu desde então.
Inexiste prova de que, previamente à entrega da viatura à autora, seja em Setembro de 2021 seja em Dezembro de 2021, esta tenha verificado o seu estado e a tenha experimentado.
[...] Não há evidência de que tenha sido apenas por ordem da autora que a segunda ré tenha procedido à substituição de peças de desgaste, com o custo de € 2.330,03, até porque, na respectiva estimativa elaborada pela segunda ré é referida a anomalia de travagem, anomalia essa em virtude da qual a primeira ré já antes (em Dezembro de 2021 – veja-se a respectiva factura) havia deslocado a viatura à oficina da segunda ré. [...]”.
Reconhece-se acerto na ponderação e valoração da prova produzida que conduziu aos referidos segmentos decisórios impugnados.
Quanto à alínea b), a declaração aduaneira, junta como documento n.º 6 com a petição inicial não constitui prova bastante de que a viatura, aquando da entrega à Autora, registava 274.350 km, já que se desconhece se a mesma circulou depois da leitura documentada e, tendo circulado, qual o número de quilómetros efectivamente percorridos. Acresce que o documento em causa apenas atesta que o veículo registava, aquando do desalfandegamento, 274.350 km, não permitindo, todavia, atestar que tal número correspondesse à real quilometragem por ele percorrida.
Em relação à alínea d), nenhuma prova foi produzida que comprove que a viatura fosse então testada para certificação da existência ou não de qualquer anomalia que pudesse afectá-la.
Relativamente à alínea i), também nenhuma prova comprova que tenha a Autora solicitado à segunda Ré a substituição de peças de desgaste.
Em conclusão: com excepção da indicada alteração introduzida à redacção do ponto 27.º dos factos provados, toda a demais matéria de facto impugnada se mantém, sem alterações, improcedendo, também nesta parte, o recurso.

3. Da aplicação do Direito aos factos provados.
3.1. Da invocada caducidade.
Tal como é definido pelo artigo 874.º do Código Civil, “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou direito, mediante um preço”.
O contrato de compra e venda, independentemente da sua natureza civil ou comercial, é, assim, um contrato translativo ou de efeito real imediato (produz sempre a transferência da propriedade de uma coisa ou de um direito), bilateral ou sinalagmático, (pressupõe a existência de, pelo menos, dois contraentes, que reciprocamente se vinculam, sendo ambos sujeitos de direitos e obrigações), oneroso (pressupõe atribuições patrimoniais de ambos os contraentes), em regra comutativo (as duas prestações patrimoniais são certas e tendencialmente equivalentes).
Segundo o n.º 1 do artigo 406.º do Código Civil, que consagra o princípio pacta sunt servanda, traduzido no reconhecimento da força vinculativa dos contratos, tal como foram concluídos, em relação aos contratantes, “o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contratantes ou nos casos admitidos na lei”.
E de acordo com o artigo 762.º do Código Civil, “o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado”.
O cumprimento deve, pois, ter por objecto a coisa ou o facto sobre os quais versa a obrigação.
Vale dizer: no caso específico do contrato de compra e venda, o vendedor cumpre a sua obrigação quando entrega a coisa objecto do contrato, a qual deve ter as características e as qualidades acordadas entre as partes.
A realização da prestação nem sempre significa que o cumprimento haja sido efectuado de forma correcta e nos termos devidos.
No domínio dos contratos nominados, como o contrato de compra e venda, podem ocorrer, durante a sua execução, vicissitudes várias que determinem a imperfeição do seu cumprimento.
Como salienta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.03.2010[21], “será preciso (…) distinguir, o cumprimento defeituoso da obrigação (ou falta qualitativa de cumprimento da obrigação) da venda de coisa defeituosa. Naquele, o vendedor não realizou a prestação a que, por força do contrato, estava adstrito. Nesta a coisa objecto da transacção sofre dos vícios ou carece das qualidades referenciadas no art. 913º, quer a coisa entregue corresponda, ou não, à prestação a que o vendedor se encontrava vinculado”.
Com efeito, no âmbito da inexecução do contrato, além da mora e do incumprimento definitivo, destaca-se também a execução defeituosa do contrato, ou cumprimento defeituoso do contrato, na designação acolhida pelo artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil. Ou seja: o devedor executa materialmente a prestação, mas em desconformidade com o convencionado com a outra parte – “a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito”[22].
Poder-se-á, assim, considerar que ocorre cumprimento defeituoso da obrigação quando a prestação efectuada não tem requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo obrigacional tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e da boa fé, podendo o defeito ser quantitativo ou qualitativo[23].
O mesmo é dizer, “no cumprimento defeituoso, o devedor cumpre a obrigação que lhe estava imposta, mas não como lhe estava imposta, isto é, cumpre mas de forma defeituosa, com vícios ou deficiências[24].
Pode-se, deste modo, concluir que “há venda de coisa defeituosa sempre que a coisa vendida sofrer vícios ou carecer de qualidades abrangidas no art. 913 do CC, quer a coisa entregue corresponda ou não à prestação a que o vendedor se encontra vinculado.
O defeito material tanto pode ser inerente à própria coisa, como a uma desconformidade ao contrato ou ainda à sua execução, por isso, sempre que o bem vendido não tem a qualidade, explicita ou implicitamente assegurada, a prestação é defeituosa
[25].
Na compra e venda, para além da equiparação, em termos de tratamento jurídico, do vício ao defeito e à falta de qualidade da coisa transaccionada, privilegia a lei a idoneidade e aptidão do bem para o fim a que se destina.
Como esclarece João Calvão da Silva[26], “…a lei posterga a definição conceitual e privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina, ciente de que o importante é a aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera.
Daí a noção funcional: vício que desvaloriza a coisa ou impede a realização do fim a que se destina; falta de qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente - função negocial concreta programada pelas partes - ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º, nº2)”, acrescentando ainda o mesmo Autor: «a “venda de coisa defeituosa” respeita à falta de conformidade ou qualidade do bem adquirido para o fim (específico e/ou normal) a que é destinado. E na premissa de que parte o Código Civil para considerar a coisa defeituosa, só é directamente contemplado o interesse do comprador/consumidor no préstimo ou qualidade da coisa, na sua aptidão ou idoneidade para o uso ou função a que é destinada, com vista à salvaguarda da equivalência entre a prestação e a contraprestação subjacente ao cumprimento perfeito ou conforme do contrato».
De acordo com o n.º 1 do artigo 913.º do Código Civil, há venda de coisa defeituosa quando “a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim”, fornecendo o n.º 2 do mesmo normativo os critérios supletivos para a determinação do fim relevante.
Resulta do artigo 913.º do Código Civil que se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinado, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, é reconhecido ao comprador o direito à anulação do contrato - artigo 905.º do Código Civil -, ou à redução do preço - artigo 911.º -, e ainda a ser indemnizado pelos prejuízos sofridos - artigos 908.º e 909.º do mesmo diploma legal.
Porém, os vícios referidos no artigo 913º, nº 1 não constituem fundamento autónomo de anulação do contrato: como decorre do disposto naquele normativo e no artigo 905º, devem verificar-se requisitos exigidos pelos artigos 251.º ou 254.º do Código Civil (erro ou dolo).
Para além do direito à anulação por erro ou dolo, o regime da venda de coisa defeituosa confere ainda ao comprador os direitos à reparação ou substituição da coisa - artigo 914º -, à indemnização em caso de simples erro - artigo 915º -, ao cumprimento coercivo ou à indemnização respectiva - artigo 918º - e à garantia de bom funcionamento -artigo 921º.
Refira-se, no entanto, que os vários meios jurídicos facultados ao comprador de coisa defeituosa pelos artigos 913.º e seguintes do Código Civil não podem ser exercidos de forma aleatória ou discricionária; os mesmos acham-se estruturados de forma sequencial e escalonada[27].
Em primeiro lugar, o vendedor está vinculado à eliminação do defeito: se esta não for possível ou se for demasiado onerosa, deverá substituir a coisa viciada;
Frustrando-se qualquer dessas alternativas, assiste ao comprador o direito de exigir a redução do preço e, não se mostrando esta medida satisfatória, poderá o mesmo pedir a resolução do contrato.
Com qualquer dessas pretensões pode cumular-se a indemnização - pelo interesse contratual negativo -, destinada a assegurar o ressarcimento de danos não reparados por aqueles meios jurídicos.
Como destaca o acórdão da Relação Coimbra de 01.02.2011[28], “demonstrando-se que a coisa/fracção apresenta “defeitos”, ficam provados todos os factos constitutivos do direito à reparação/eliminação dos defeitos (art. 914.º, n.º 1, do CC). Com efeito, para no âmbito dum contrato de compra e venda se pedir a reparação/eliminação dum defeito, basta provar (art. 342.º, n.º 1, do CC), por um lado, a existência do defeito e, por outro lado, que o mesmo, pela sua gravidade, é de molde a afectar o uso ou a acarretar uma desvalorização da coisa; uma vez que, provado o defeito e a sua gravidade, presume-se – uma vez que é contratual a responsabilidade do vendedor – que o mesmo é imputável ao vendedor (art. 799.º, n.º 1, do CC), isto é, presume-se que o cumprimento defeituoso é imputável ao vendedor”.
O dever de reparação ou de substituição da coisa afectada por vício ou falta de qualidade apenas deixará de onerar o vendedor se este alegar e demonstrar circunstancialismo fáctico passível de enquadramento na previsão do segundo segmento do artigo 914.º do Código Civil.
O recurso a qualquer dos apontados meios reconhecidos ao comprador como reacção contra vícios ou falta de qualidade que afecte e desvalorize a coisa adquirida pressupõe o exercício atempado da denúncia dos defeitos, a menos que o vendedor tenha agido com dolo, pois nesse caso não se justifica a reclamação de vícios ou defeitos que ele próprio conhece.
Estabelece, com efeito, o artigo 916.º do Código Civil:
1. O comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou falta de qualidade da coisa, excepto se este houver usado de dolo.
2. A denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa.
3. Os prazos referidos no número anterior são, respectivamente, de um e de cinco anos, caso a coisa vendida seja um imóvel”.
O artigo 917.º do Código Civil determina, por sua vez: “a acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no nº2 do artigo 287.º”.
Como resulta do conteúdo literal do preceito legal em causa, este foi concebido para a hipótese do comprador optar, como remédio para a solução dos defeitos da coisa que adquiriu, pela anulação do contrato fundado em erro ou dolo.
E compreende-se a necessidade de consagração de um prazo de caducidade da acção pois que a anulabilidade tem de ser invocada, não podendo ser oficiosamente decretada, e exige uma demanda judicial para o efeito.
Apesar de não constarem expressamente do conteúdo literal do artigo 917.º do Código Civil, já alguma jurisprudência defendia o entendimento de que o referido normativo abarcava os demais direitos reconhecidos ao adquirente de coisa defeituosa (reparação, substituição, redução, resolução, indemnização) por interpretação extensiva do mesmo, tendo o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/97[29] firmado doutrina no sentido de a acção destinada a exigir a reparação de defeitos de coisa imóvel estar sujeita ao prazo de caducidade previsto no preceito legal em causa.
Deste modo, para que o vendedor possa ser responsabilizado pelo cumprimento defeituoso e seja reconhecido o direito ao comprador à eliminação dos defeitos é indispensável que este tempestivamente proceda à sua denúncia, nos termos do artigo 916.º do Código Civil, e, não sendo na sequência dela eliminados, interponha a correspondente acção no prazo fixado no artigo 917.º do mesmo diploma.
Dito de outro modo: relativamente aos direitos do comprador de coisa defeituosa, o seu reconhecimento pressupõe o funcionamento, de forma articulada, dos seguintes prazos:
- o prazo de denúncia dos defeitos, que, salvo se a coisa vendida for um imóvel, é de 30 dias a contar do conhecimento dos mesmos, ou de seis meses após a entrega da coisa: nºs 2 e 3 do artigo 916º.
- o prazo de exercício do direito (eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato, indemnização): prazo da denúncia, no caso do comprador não ter feito a mesma, ou seis meses a contar da denúncia atempada dos defeitos.

Sustenta a recorrente que “por não terem sido denunciados os defeitos que alegadamente se mantinham após a reparação, ocorreu a caducidade da ação”[30], acrescentando seguidamente que “resultando da matéria de facto, que a Autora denunciou os defeitos em 2022, o que terá ocorrido seguramente antes do dia 2 de junho de 2022, pelo que tinha o prazo de seis meses após a denuncia para instaurar a presente ação, sob pena de caducidade, tal como resulta do disposto no artigo 917º do Código Civil, ação esta que deu entrada em 24 de janeiro de 2023, pelo que depois de ultrapassado o referido prazo de seis meses a contar da denúncia”[31].
Refere, todavia, a sentença recorrida que “[...] a autora denunciado os defeitos, nomeadamente, associados à travagem e à aceleração do veículo pouco tempo depois de obter a sua entrega e tendo, a partir de Novembro de 2021, a primeira ré começado a proceder a diversas reparações das anomalias reportadas pela autora, não de uma vez só, mas em momentos sequenciais diversos – Novembro e Dezembro de 2021 e Junho de 2022 -, existe claro reconhecimento do seu dever de proceder à reparação dos defeitos do veículo que lhe foram reportados pela autora, com o que apenas é possível concluir não se ter verificado a caducidade do direito de acção”.
Sob a epígrafe “Causas impeditivas da caducidade”, dispõe o artigo 331.º do Código Civil:
“1. Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo.
2. Quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido”.
Após denúncia pela Autora dos defeitos, relacionados com a travagem e aceleração, detectados na viatura adquirida à segunda Ré, pouco tempo após a sua entrega, promoveu esta, por mais de uma vez, a sua reparação, persistindo, não obstante, tais anomalias.
Ao diligenciar pela reparação/eliminação dos aludidos defeitos denunciados, reconheceu a Ré vendedora a existência dos mesmos (de outro modo, não teria dado ordem para a segunda Ré proceder à sua reparação), o que constitui facto impeditivo da invocada caducidade.
Como refere o acórdão desta Relação de 9.03.2021[32], “O reconhecimento do direito, impeditivo da caducidade, não tem como efeito abrir-se um novo prazo de caducidade: reconhecido o direito, a caducidade fica definitivamente impedida.[5]
[...] Apenas quando se verifique uma recusa expressa em reparar os defeitos é que o comprador está em condições de exercer o seu direito face ao preceituado no art. 329.º do C.Civil.
É que o (novo) prazo de caducidade, no entendimento perfilhado nos Acórdãos do STJ de 18/05/2006, 24/08/2009 e de 24/09/2009[7], nesta situação especial de tentativas prévias de reparação, só começa a correr após a recepção da comunicação a enjeitar qualquer responsabilidade pelos defeitos detectados pois antes disso não se pode com razoabilidade sustentar que o direito estava em condições de legalmente ser exercido”.
Acertadamente concluiu, pois, a sentença recorrida pela não verificação da invocada caducidade.
3.2. Da indemnização pela privação do uso do veículo.
Como já antes se esclareceu, para além dos meios de reação legalmente facultados ao comprador de coisa defeituosa, pode ele cumular com qualquer das correspondentes pretensões, pedido de indemnização, pelo interesse contratual negativo, destinado ao ressarcimento de danos não reparados por aqueles meios jurídicos.
Tal pedido de indemnização poderá reportar-se à reparação dos danos emergentes da privação da coisa defeituosa durante o período em que o vício ou anomalia impeça o seu normal funcionamento, privando o comprador do uso ou utilização da coisa adquirida.

Não importando tanto definir a natureza do dano em causa, patrimonial ou não patrimonial, que sempre dependerá da natureza do bem afectado, não podemos deixar de considerar que a privação de um bem patrimonial, constitui fonte da obrigação de reparar, na medida em o seu titular se confronta com a impossibilidade de dele dispor e de o usufruir[33].

A privação do uso de um bem poderá constituir uma ofensa ao direito de propriedade do respectivo titular, na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava. Ela é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira a sua utilização) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito[34].

Esta posição jurisprudencial traduz-se numa das duas correntes que vêm sendo seguidas nos tribunais, incluindo no Supremo Tribunal de Justiça, a que não tem sido alheia a influência de certa doutrina, designadamente a que foi desenvolvida por Abrantes Geraldes[35], para a privação do uso de um veículo, assim sintetizada:

Em vista do disposto nos artigos 562.º a 564.º e 566.º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente pode resultar:

a) Um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como seria o aluguer de outro veículo;

b) Um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa;

c) Um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no artigo 1305.º do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender[36].

De acordo com este último entendimento, o dano resultante da simples privação do uso do veículo é susceptível de indemnização, a fixar com recurso à equidade.

Revemo-nos no entendimento perfilhado, entre outros, pelo acórdão da Relação de Coimbra de 8.04.2014[37], adoptando idêntica orientação: “Estamos, pois, com aqueles que, partindo do princípio de que a privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar - uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem nos termos genericamente consentidos pelo art.º 1305º -, consideram, no entanto, que a privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano correspondente a essa realidade de facto, porquanto “podem ...configurar-se situações da vida real em que o titular da coisa não tenha interesse algum em usá-la, não pretenda dela retirar as utilidades que aquele bem normalmente lhe podia proporcionar (o que até constitui uma faculdade inerente ao direito de propriedade), ou pura e simplesmente não usa a coisa; (…) quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente (o que na generalidade das situações concretas constituirá facto notório ou poderá resultar de presunções naturais a retirar da factualidade provada) para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos, como, por exemplo, que deixou de fazer esta ou aquela viagem de negócios ou de lazer, que teve de utilizar outros meios de transporte (táxi, transportes públicos, automóvel alugado, etc.) com o custo correspondente; (…) se puder ter-se por provado que o proprietário lesado utilizava na sua vida corrente e normal o veículo sinistrado, ficando privado desse uso ordinário em consequência dos danos sofridos pela viatura no acidente, provado está o prejuízo indemnizável durante o período de privação, ou, tratando-se de inutilização total, enquanto não for indemnizado da sua perda nos termos gerais. É neste contexto que dizemos que a privação do uso, constitui, por si, um prejuízo indemnizável”.[...]

Assim, para efeito de atribuição de indemnização pela privação do uso não será de exigir a prova de danos efectivos e concretos, mas a ressarcibilidade também não pode ser apreciada e resolvida em abstracto, aferida pela mera impossibilidade objectiva de utilização da coisa (independentemente de que a utilização tenha ou não lugar durante o período de privação), emergindo como critério de atribuição do direito à indemnização a demonstração no processo que, não fora a privação, o lesado usaria normalmente a coisa, vendo frustrado esse propósito; se a privação do uso do bem durante um determinado período origina a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se tal perda não pode ser reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente.[...]

Como esclarece o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2011[38], “a avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no artigo 566º, nº 3, do CC”.

No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.2007, citando o Prof. Gomes da Silva, lê-se: “o bem só interessa, quer económica quer juridicamente (...) pela utilidade, isto é, pela aptidão para realizar fins humanos”; e nos casos de perda ou deterioração de um bem, o dano consiste “no malogro dos fins realizáveis por meio do bem perdido ou deteriorado, isto é, consiste menos na perda do próprio bem do que em ser-se privado da utilidade que ele proporcionava”. No dano haverá sempre, portanto, a frustração de um ou mais fins, resultante de se haver colocado o bem, por meio do qual era possível atingi-los, em situação de não poder ser utilizado para esse efeito.

Para Abrantes Geraldes[39]não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização”.

No seu acórdão de 8.05.2013[40], o Supremo Tribunal de Justiça mostra-se alinhado com tal posição ao sustentar: “Entende-se que a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito (assim, por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 5 de Julho de 2007, www.dgsi.pt, proc, nº 07B1849, ou de 10 de Setembro de 2009, já citado); e que o cálculo da correspondente indemnização, tal como se decidiu no acórdão recorrido, há-de ser efectuado com base na equidade, por não ser possível avaliar “o valor exacto dos danos” (nº 3 do artigo 566º do Código Civil)”.

A determinação do valor do dano haverá de corresponder ao efectivo prejuízo sofrido pelo lesado em consequência da privação do bem que lhe pertence; não podendo ser quantificado esse prejuízo, a sua reparação far-se-á com recurso a critérios de equidade, assim se ressarcindo o proprietário das desvantagens de não poder exercer, por virtude da privação a que está sujeito, as prerrogativas próprias do direito de propriedade de que é titular sobre o bem em causa.

Como dá conta a sentença recorrida, “Ficou provado que a autora, não foram os defeitos, utilizaria o veículo na sua actividade normal de transporte de mercadorias, carga e descarga, não tendo outro veículo com as mesmas características.

Ora, provada a utilização normal do veículo de cuja utilização a autora se viu privada em virtude dos defeitos ainda não inteiramente reparados por parte da primeira ré, embora a autora não tenha conseguido provar o concreto valor – alega 50 euros diários – que deixou de ganhar com a privação, é de presumir, segundo o curso normal das coisas, que essa privação trouxe um conjunto de prejuízos para a autora, com a frustração da sua utilização, sendo os mesmo calculáveis ao abrigo do artigo 566º, nº3 do Código Civil.

Integrando o direito de propriedade, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, a privação do uso representa violação do direito de propriedade com gravidade bastante para justificar o seu ressarcimento”.

Independentemente do objecto social da Autora, apurou-se ter a mesma adquirido à primeira Ré o veículo aqui em discussão para o utilizar no transporte das mercadorias que comercializa, e para carga e descarga das mesmas, tendo tal veículo sido provido de uma grua para poder garantir essa finalidade.

Estando a Autora impossibilitada de usar o veículo para o fim que visava prosseguir ao adquiri-lo, em virtude das anomalias que o afectam e que impedem o seu normal funcionamento, tem direito a ser ressarcida pelos prejuízos decorrentes dessa privação, podendo o valor indemnizatório ser fixado com recurso a critérios de equidade na impossibilidade de apuramento dos danos concretos e efectivos.

Também nesta parte não merece reparo a sentença recorrida.

Deve, por conseguinte, confirmar-se o decidido, com a consequente improcedência da apelação.


*

Síntese conclusiva:

………………………………

………………………………

………………………………


*

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a sentença recorrida.

Custas: a cargo da apelante – artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Notifique.


Porto, 13.11.2025

Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.
Judite Pires
Isabel Ferreira
João Venade
______________
[1] Artigo 613.º, n.º 3 do Código de Processo Civil
[2] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[3] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[4] Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil”, vol. III, página 246.
[5] Acórdão do STJ, 07.05.2008, processo nº 3380/07, www.dgsi.pt.
[6] Alberto dos Reis, ob. cit., vol. V, pág. 141; cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra, ob. cit., pág. 690.
[7] Anselmo de Castro, ob. cit., pág. 142.
[8] “A Acção Declarativa Comum – À Luz do Código do Processo Civil de 2013”, 3ª ed., pág. 333.
[9] Lebre de Freitas, “A Acção Declarativa Comum – À Luz do Código do Processo Civil de 2013”, 3ª ed., pág. 333.
[10] Obra citada, pág. 151.
[11] Processo n.º 01P3821, www.dgsi.pt.
[12] “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 142.
[13] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, 1981, pág. 143.
[14] Artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[15] Ou despacho judicial, como decorre do n.º 3 do artigo 613.º.
[16] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[17]Artigos 396º do C.C. e 607º, nº5 do Novo Código de Processo Civil.
[18] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Acórdão Relação de Coimbra de 11.03.2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20.09.2005, proferido no processo 05A2007, www.dgsi.pt, podendo extrair-se deste último: “De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)”.
[19] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil”, Vol. 3º, pág. 173 e L. Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, 1ª Ed., pág. 15 7.ve
[20] Processo nº 5797/04.2TVLSB.L1-7, l1-7, www.dgsi.pt.
[21] Processo nº 4467/06.5TBVLG.P1.S1, www.dgsi.pt.
[22] Antunes Varela, parecer publicado na “Colectânea de Jurisprudência”, Ano XII, 1987, Tomo 4, págs. 22 a 35.
[23] Baptista Machado, “Obra Dispersa”, I, pág. 169.
[24] Armando Braga, “Contrato de Compra e Venda”, pág. 174.
[25] Acórdão da Relação de Coimbra de 14.11.2006, processo nº 477/05.8TBILV.C1, www.dgsi.pt.
[26] “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, 5.ª ed., págs. 44 e 49.
[27] Pedro Romano Martinez, “Direito das Obrigações - Parte Especial”, pág. 130.
[28] Processo n.º 1127/07.3TCSNT.C1, www.dgsi.pt.
[29] Acórdãos Uniformizadores, Colectânea de Jurisprudência, 1.ª ed., pág. 89.
[30] N.º 5 das conclusões.
[31] N.º 6 das conclusões.
[32] Processo n.º 812/19.1T8PVZ.P1, www.dgsi.pt.
[33] Artigo 483º, n.º 1 e 1305º, ambos do Código Civil.
[34] Neste sentido, cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2011, proc. 3922/07.2TBVCT.G1.S1 e de 08.05.2013, proc. 3036/04.9TBVLG.P1.S1, www.dgsi.pt, citando-se, no segundo, outra jurisprudência, nomeadamente, os acórdãos do mesmo Tribunal de 5 de Julho de 2007, proc. nº 07B1849, e de 10 de Setembro de 2009, proc. nº 376/09.4YLSB, também publicados na referida base de dados. Também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2008, Colectânea de Jurisprudência do STJ, t. I, pág. 90, citando Direito das Obrigações do Prof. Menezes Leitão, vol. I, pág. 317, Cadernos de Direito Privado, anotação do Prof. Júlio Gomes, nº 3, pág. 62 e Temas, do Desembargador Abrantes Geraldes, vol. 1, pág. 90 e 91. E ainda acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2005, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, XIII, III, pág. 151, onde se contém vasta referência jurisprudencial no sentido sustentado, e o acórdão da Relação de Guimarães de 11.11.2009, proc. 8860/06.5TBBRG.G1, www.dgsi.pt.
Alguma jurisprudência, todavia, designadamente no Supremo Tribunal de Justiça - de que são exemplo os acórdãos de 16.9.2008, de 30.10.2008 e de 12.1.21012, www.dgsi.pt - perfilham entendimento no sentido do reforço das exigências de prova dos prejuízos emergentes da paralisação do veículo.
[35] Indemnização do Dano da Privação do Uso, Coimbra, Almedina, 2001.
[36] Em sentido diverso, outra corrente jurisprudencial defende a essencialidade da alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efectivo, de proceder à utilização do veículo e termos dessa utilização.
[37] Processo 1091/12.7TJCBR.C1, www.dgsi.pt.
[38] Processo nº 2618/08.06TBOVR.P1, www.dgsi.pt. No mesmo sentido, acórdão do mesmo STJ de 08.05.2013, processo nº 3036/04.9TBVLG.P1.S1, www.dgsi.pt.
[39] Indemnização do Dano Privação do Uso, págs. 39-41.
[40] Proc. nº 3036/04.9TBVLG.P1.S1.