Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
219/22.3T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: LITISCONSÓRCIO VOLUNTÁRIO
CONFISSÃO DE FACTOS
FACTOS ASSENTES
CONTRATO DE SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
RESOLUÇÃO POR FALTA DE PAGAMENTO DO PRÉMIO
VALIDADE DO CERTIFICADO INTERNACIONAL DE SEGURO
Nº do Documento: RP20240318219/22.3T8OAZ.P1
Data do Acordão: 03/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Por mor do disposto na alínea a) do artigo 568º do Código de Processo Civil, havendo pluralidade de corréus, demandados em situação de litisconsórcio voluntário, quando um deles conteste a ação, os factos por ele impugnados não podem ser considerados confessados em relação aos seus corréus revéis.
II - Compreende-se que assim seja, pretendendo-se com essa solução legal evitar uma eventual discrepância no julgamento da matéria de facto, obstando-se, por essa via, a que os factos articulados pelo autor sejam, no mesmo processo, considerados confessados quanto a uns réus e impugnados quanto a outros.
III - Ainda que se admita não haver obstáculo a que o juiz, no âmbito do novo Código de Processo Civil, continue a proferir despacho de fixação da matéria de facto considerada assente, é inquestionável que tal despacho não pode deixar de ser visto como um “guião” ou mero “suporte de trabalho” para o julgamento, pelo que, mesmo depois de decididas as reclamações contra ele apresentadas, não se forma caso julgado formal sobre ele, podendo, por isso, os factos dados como assentes ser alterados pelo juiz do julgamento e/ou pelo juiz do tribunal de recurso.
IV - No contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel a cobertura dos riscos depende do prévio pagamento do prémio, sendo esta uma regra absolutamente imperativa nos termos do nº 1 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de abril.
V - Quando esteja em causa a falta de pagamento do prémio inicial, ou da primeira fração deste, na data do vencimento, tal determina a resolução automática do contrato a partir da data da sua celebração; já se a falta se reportar ao pagamento do prémio de anuidades subsequentes, ou da primeira fração deste, na data do vencimento, tal impede a prorrogação do contrato, o que equivale a dizer que o contrato se extingue por caducidade.
VI - O certificado internacional de seguro (vulgo “carta-verde”) referido na alínea a) do nº 1 do artigo 28º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08 demonstra apenas e só, perante terceiros, a existência de contrato de seguro, sendo que a respetiva eficácia decorre da existência e eficácia do contrato de seguro que depende do pagamento do prémio.
VII - Daí que verificada a extinção do contrato de seguro por falta de pagamento do prémio durante o período a que se refere o certificado internacional de seguro, essa extinção do seguro tem, necessariamente, implicações na eficácia deste certificado.
VIII - Haverá, no entanto, que distinguir consoante se esteja no domínio das relações entre a seguradora e os terceiros lesados, ou então no âmbito do relacionamento entre aquela e o tomador do seguro.
IX - É que, atendendo a que o certificado internacional é considerado um documento autêntico (cfr. artigo 83º, nº 1, do citado Decreto-Lei nº 291/2007), o facto de dele constar um período de validade superior àquele que foi efetivamente contratado e para o qual foi liquidado o prémio, não desonera, perante terceiros, a seguradora que o emitiu da assunção de sinistros que venham a ocorrer durante esse período de extensão de eficácia. Já não assim nas relações entre a seguradora e o tomador de seguro em que valerá o que ficou entre eles contratualizado no que tange ao período de vigência do seguro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 219/22.3T8OAZ.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Oliveira de Azeméis – Juízo Local Cível, Juiz 1


Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Carlos Gil
2º Adjunto Des. Manuel Fernandes


*

SUMÁRIO
…………………….
……………………..
……………………..

*



Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO

Companhia de Seguros A..., S.A. intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra B... Unipessoal, Ldª e AA peticionando a condenação destes no pagamento do valor de €15.209,81, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.

Para substanciar tal pretensão alegou ter celebrado com a ré contrato de seguro nos termos do qual lhe foi transferida a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do veículo com a matrícula ..-UR-.., sendo que a demandada, todavia, não liquidou atempadamente o respetivo prémio do seguro, motivo pelo qual a apólice em causa não se renovou, tendo cessado os seus efeitos às 24h00 do dia 30 de abril de 2019.

Acrescenta que no dia 20 de maio desse mesmo ano o identificado veículo foi interveniente em acidente de viação, sendo que a responsabilidade na produção do mesmo é imputável aos réus.

Refere que, apesar de na data do sinistro não se encontrar para si transferido qualquer risco inerente à circulação da dita viatura, procedeu à regularização dos danos perante o terceiro lesado, devendo, em razão do incumprimento do contrato de seguro por parte da 1ª ré, ser ressarcida pelos réus do montante que despendeu.

Regularmente citada a 1ª ré não deduziu contestação.

Por seu turno, o réu AA apresentou contestação, na qual impugna os factos alegados pela autora, frisando que, no momento do sinistro, conduzia o veículo por conta da 1ª ré enquanto motorista e que lhe havia sido transmitido que o veículo tinha contrato de seguro em vigor.

Proferiu-se despacho saneador em termos tabelares, definiu-se o objeto do litígio e fixaram-se os temas da prova.

Realizou-se audiência final com observância do formalismo legal, vindo a ser proferida sentença na qual se decidiu julgar «a ação totalmente procedente, por provada, em consequência do que se condenam os réus no pagamento solidário à autora do valor de €15.209,81, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos a calcular desde a data da interpelação (11.03.2020) até efetivo e integral pagamento».

Não se conformando com o assim decidido, veio a ré B... Unipessoal, Ldª interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

1- O presente Recurso tem como objeto a matéria de facto e de direito que presidiu à decisão do Tribunal a quo.

2- Os presentes autos tiveram início com a ação declarativa intentada pela A..., S.A contra a aqui Apelante, na qual aquela peticionou a condenação da Apelante no pagamento da quantia de €15.209,81 «acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos a apurar até efetivo e integral pagamento, custas judiciais e respectivas custas de parte».

3- Alegou, em síntese, a Autora A..., S.A que no exercício da sua atividade celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório pela apólice nº ...77 e que em virtude da celebração desse contrato foi transferida para esta a responsabilidade civil por danos emergentes de acidentes de viação automóvel do veículo com a matrícula ..-UR-.. e que a apólice (anual) vigorava pelo período de 11-05-2018 a 30-04-2019, renovável, por um ano, mediante o pagamento do prémio. Acrescentou dizendo que a aqui recorrente não liquidou o prémio do seguro contratado, motivo pelo qual a apólice deixou de produzir efeitos às 24h00 do dia 30/04/2019. A 20-05-2019 ocorreu um acidente de viação com a viatura com a matrícula acima referida, alegando a A. que o seguro não estava válido por falta de pagamento, pelo que a responsabilidade pelo risco não estava transferida para a A. e que, não obstante, procedeu à regularização do sinistro.

4- Regularmente citada a aqui Apelante não contestou. Houve contestação pelo 2º Réu, tendo impugnado todos os factos constantes do articulado da A. aqui recorrida.

5- Alicerçou o Tribunal para a sua decisão, quanto ao aqui recorrente que se consideravam confessados os factos, uma vez que este não apresentou contestação e que o 1º Réu impugnou o articulado da Autora, não especificando. Ora, tal apreciação computa uma nulidade ao abrigo da alínea b) do artigo 615º do C.P.C.

6- Ora se é certo que a aqui recorrente não apresentou contestação, não poderá considerar o Tribunal como confessados os factos nos articulados da Autora.

7- Proferida Sentença decidiu o Douto Tribunal a quo pela procedência do peticionado pela Recorrida condenando a aqui Apelante a pagar àquela o montante de «15.209,81€, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos», acrescentando na decisão de que se recorre «a calcular desde a data da interpelação (11.03.2020) até efectivo e integral pagamento.»

8- Salvo o devido respeito por opinião contrária, foi incorretamente julgado como provado, de acordo com o que se explana de seguida, essencialmente os pontos 3, 4 e 5) dos factos dados como provados.

9- Tendo-se baseado o Douto Tribunal a quo que para dar como provado tal facto com base na confissão dos factos, por falta de contestação da 1ª Ré, aqui apelante em clara violação do disposto na alínea a) do artigo 568º C.P.C., uma vez que o 2º Réu apresentou contestação e impugnou todos os factos.

10- Baseado o Douto Tribunal a quo que para dar como provado tal facto, além de considerar confessados os factos, fundamentou a sua decisão numa alegada «alegação do enriquecimento sem causa».

11- Ora, é certo que a testemunha da seguradora afirmou na gravação «Diligência _219-22.3T8OAZ_2023-06-02_10-49-31» ao tempo (00:03:02) «o primeiro, o primeiro pagamento foi feito», resultando provado que o pagamento do prémio estaria pago.

12- Acresce que também tal depoimento é confirmado pela prova junto aos autos, através da carta verde do seguro com data de validade de 11-05-2018 a 21-05-2019.

13- Ora, não pode colher a versão da recorrida quanto ao não pagamento, tanto que a testemunha na mesma gravação pode esclarecer que as apólices anuais pagas por débito directo tinham sempre uma «benesse» de mais uns dias, o que condiz com a emissão da carta verde emitida após o primeiro pagamento.

14- De referir, que se tratava de um pagamento anual, feito de uma só vez.

15- Acresce dizer quanto à forma de pagamento, com pagamento antecipado e anual, relativamente a estes factos que se afirma que o prazo de validade da apólice era o constante da carta verde, pelo que este se encontrava válido à data do sinistro.

16- Em que a carta verde apenas é emitida após esse pagamento anual, incluída a alegada «benesse» pela seguradora, independentemente de qualquer renovação.

17- Por estar transferida a responsabilidade para a A. é que esta procedeu ao pagamento do sinistro que bem sabe ser da sua responsabilidade.

18- Desta forma, tanto a fundamentação por falta de pagamento, confissão dos factos ou enriquecimento não poderá colher, salvo o devido respeito por opinião diversa.

19- Na realidade, o seguro encontrava-se válido com data do sinistro (20-05-2019), pelo que vem lançar indevida do presente processo.

20- Coloca-se ainda questão de saber se o Tribunal poderia decidir sobre a quantificação dos juros desde a data de interpelação (11-03-2020) ao invés desde a data da citação da presente ação, tendo em conta que esse não foi o pedido expresso da Autora, em violação do princípio do pedido nos termos nº 1 do artigo 3 do CPC

21- Tanto que a carta de interpelação junta pela A. ora recorrida não faz prova plena da recepção da carta da datada de 11-05-2020, pela 1ª Ré.

22- Pelo que, devem VV. Exas. revogar a decisão proferida, absolvendo-a de todo o peticionado pela recorrida.

23- Sem prescindir, por cautela de patrocínio, cumpre ainda referir, a título subsidiário que a factualidade dada como provada não conduz, in casu, à condenação da Apelante no valor em que foi condenada pelo Douto Tribunal a quo, pelo contrário.

24- Salvo o devido respeito, é entendimento da aqui Apelante que a Sentença Recorrida não faz uma análise cuidada dos factos, nem uma análise critica e ponderada da documentação junta aos autos pela Recorrida e pela Apelante (carta verde do seguro) tidas tanto pela Recorrida como pela Recorrente, declarações da testemunha da seguradora onde afirma que o primeiro prémio estava válido e pago e a benesse por alargamento do seguro pago por débito direto, por confronto com as interpretação que o tribunal a quo fez da prova, fazendo um raciocínio que, na nossa modesta opinião, se afigura incoerente e infundado, estando com erro e alvo de uma incorreta apreciação e julgamento da matéria de facto e também de direito nos termos já supra alegados.


*

A autora apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.

*

Após os vistos legais, cumpre decidir.

***

            II - DO MÉRITO DO RECURSO


1. Definição do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].

Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:

         . da nulidade da sentença;
         . determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas no concernente aos factos dados como provados sob os nºs 3, 4 e 5;
. da vigência do contrato de seguro celebrado entre a autora e a ré à data da ocorrência do sinistro;
. data de início de contagem dos juros de mora.


***

2. Da nulidade da sentença

Nas suas alegações recursivas a apelante advoga, desde logo, que o ato decisório sob censura enferma de vício de nulidade que reconduz à previsão da alínea b) do nº 1 do art. 615º.

Certo é que não identifica em que passos concretos da decisão recorrida ocorre o invocado vício formal limitando-se a alegar, de forma marcadamente genérica, que a mesma «é nula porque não houve especificação quanto aos fundamentos de facto e de direito”, o que, per se, justificaria a improcedência desse fundamento de recurso por falta de objeto.

Ainda assim, dentro dos poderes de cognição que competem a este tribunal ad quem, iremos procurar dilucidar se efetivamente a decisão recorrida padece da invocada nulidade.

Se bem entendemos o propósito da apelante, o alegado vício formal assentará na circunstância de o juiz de 1ª instância ter dado como provados factos com base na ausência de contestação da ré, quando, na sua perspetiva, o efeito confessório decorrente dessa omissão não poderia operar já que o corréu AA apresentou articulado de defesa impugnando os factos alegados pela demandante.

Nessa configuração não se antolha em que medida ocorra, in casu, o apontado vício já que, conforme deflui da citada alínea b) do nº 1 do art. 615º, o mesmo apenas se verifica quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido, mas não especifica, de todo, quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão[2]. Não é essa, manifestamente a situação vertente porquanto na sentença recorrida o juiz a quo revelou as razões de facto - enunciando a materialidade que considerou provada - e de direito - afirmando, designadamente, que se verificam os pressupostos que permitem à autora reclamar dos réus o pagamento das importâncias que desembolsou na reparação do ajuizado sinistro em virtude de o mesmo ter na sua génese um facto a estes imputável - que conduziram à decisão (de condenação dos demandados no pedido) constante do respetivo dispositivo.

Consequentemente a decisão recorrida não pode ser havida por não motivada no sentido supra considerado, não incorrendo, pois, no vício formal que lhe é imputado.


***


3. Recurso da matéria de facto

3.1. Factualidade considerada provada na sentença

O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:

1. No exercício da sua atividade, no âmbito do ramo automóvel, a Autora celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório titulado pela apólice n.º ...77.

2. Em virtude da celebração do contrato de seguro foi transferida para a Autora a responsabilidade civil por danos emergentes de viação automóvel do veículo de matrícula ..-UR-.., através da cobertura de responsabilidade civil de subscrição obrigatória.

3. A 1.ª Ré celebrou um contrato de seguro, em que foi transferida a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do veículo em questão, para a Autora, pelo período de 11.05.2018 a 30.04.2019, renovável, por um ano, mediante pagamento do competente prémio.

4. A Ré, por razões que se desconhece, decidiu revogar a ordem de débito direto do pagamento do prémio, não tendo sido possível ser cobrado o prémio referente a anuidade de 01.05.2019 a 30.04.2021.

5. Pese embora a Autora a tenha alertado para a falta de pagamento do prémio por missiva, face à omissão do competente pagamento de prémio, a apólice em causa, não se renovou, tendo cessado os seus efeitos às 24 horas do dia 30.04.2019, razão pela qual, à data do sinistro dos presentes autos, não se encontrava transferido para a aqui Autora qualquer risco inerente à circulação do veículo UR.

6. Apesar da falta de pagamento do prémio de seguro devido à autora, esta procedeu à regularização dos danos decorrentes do sinistro.

7. No dia 20 de maio de 2019, pelas 17h20 ocorreu um acidente de viação no parque de estacionamento das instalações da 1ª Ré e da sociedade “C..., LDA.”, sito na Rua ..., ..., concelho de Oliveira de Azeméis conforme Declaração Amigável de Acidente de Automóvel.

8. No referido acidente foram intervenientes os veículos de matrícula UR propriedade da 1ª Ré, e conduzido pelo 2º Réu, e o veículo de matrícula ..-OZ-.., conduzido por um trabalhador da empresa C..., Lda..

9. O local do acidente, parque de estacionamento conjunto da 1ª Ré e da empresa proprietária do veículo OZ, era composto por lugares de estacionamento em espinha.

10. Sendo partilhado pelas duas empresas mencionadas.    

11. Ambos os veículos envolvidos são pesados de mercadorias.

12. O veículo OZ encontrava-se devidamente estacionado.

13. Nestas circunstâncias, de tempo e lugar, o 2º Réu, depois de aceder com o veículo UR ao parque de estacionamento em causa, deu início a manobras atinentes ao estacionamento do mesmo.

14. Uma vez que existia um lugar vago entre dois veículos, sendo um desses veículos, o veículo OZ.

15. Para o efeito, e com vista ao pretendido estacionamento, o 2º Réu, iniciou uma manobra de marcha atrás.

16. Sendo que a dado momento, durante a manobra de marcha atrás, o 2º Réu, por ter calculado mal a trajetória, permitiu que o veículo UR, embatesse com a sua traseira, sobre o lado direito, na frente e lateral esquerda do veículo OZ, conforme foi confirmado pelo mesmo, ao averiguador da Autora, através de depoimento escrito.

17. Do sinistro resultaram danos materiais nos veículos envolvidos, conforme assumiu a 1ª Ré, quando preencheu e assinou a Declaração Amigável de Acidente de viação junta como documento nº2 que acompanha a petição.

18. A colisão entre os veículos identificados decorreu da conduta do 2º réu, pois ao efetuar uma manobra de marcha atrás, mais ainda quando se trata de um veículo pesado de mercadorias, a diligência do condutor deve ser redobrada pelas próprias características do referido veículo, desrespeitando assim o 2º réu as regras estradais presentes nos arts. 3º, nº2º e 18º, nº2 ambos do Código da Estrada.

19. Em virtude do embate, o veículo OZ sofreu danos na frente esquerda e frente lateral esquerda.

20. Efetuada uma peritagem a esse veículo foi apurado o valor dos danos como sendo €9.223,07.

21. O veículo OZ foi reparado.

22. A Autora procedeu ao pagamento da reparação do veículo OZ junto da oficina D... Unipessoal, Lda.

23. Pagou também a esta entidade a quantia de €5.777,64 a título de paralisação do veículo OZ, uma vez que este ficou sem poder circular desde a data do acidente até à data em que foi concluída a sua reparação.

24. Com a averiguação e peritagem do presente sinistro despendeu ainda a Autora a quantia de €209,10.

25. A 11.03.2020 a Autora interpelou a 1ª Ré para o pagamento da quantia por si despendida com a regularização de todos os danos decorrentes do sinistro, no montante global de €15 209,81.


*


3.2. Apreciação da impugnação da matéria de facto

Nas conclusões recursivas veio a apelante requerer a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova, em relação aos pontos nºs 3, 4 e 5 dos factos provados.

Os referidos pontos factuais têm o seguinte teor:

- “A 1.ª Ré celebrou um contrato de seguro, em que foi transferida a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do veículo em questão, para a Autora, pelo período de 11.05.2018 a 30.04.2019, renovável, por um ano, mediante pagamento do competente prémio” (ponto nº 3);

- “A Ré, por razões que se desconhece, decidiu revogar a ordem de débito direto do pagamento prémio, não tendo sido possível ser cobrado o prémio referente a anuidade de 01.05.2019 a 30.04.2021” (ponto nº 4);

- “Pese embora a Autora a tenha alertado para a falta de pagamento do prémio por missiva, face à omissão do competente pagamento de prémio, a apólice em causa, não se renovou, tendo cessado os seus efeitos às 24 horas do dia 30.04.2019, razão pela qual, à data do sinistro dos presentes autos (referido infra), não se encontrava transferido para a aqui Autora qualquer risco inerente à circulação do veículo UR” (ponto nº 5).

Registe-se, desde logo, que malgrado tenha impugnado os transcritos pontos factuais, certo é que nas conclusões de recurso a apelante não indica, de forma expressa, qual, afinal, o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, ou seja, não indica qual a concreta “resposta” que os mesmos devem passar a ter, o que, per se, motivaria a rejeição dessa impugnação por inobservância do ónus estabelecido na al. c) do nº 1 do art. 640º. 

Condescendendo, no entanto, que o propósito da apelante passará pela alteração da redação desses pontos - de molde a que deles conste, como data de validade do contrato de seguro que celebrou com a autora, o período de 11.05.2018 a 21.05.2019 em vez do período temporal neles indicado -, iremos, então, analisar este fundamento recursivo.

Na motivação da decisão de facto, o juiz a quo fundamentou o sentido decisório referente à descrita materialidade na «[c]onfissão manifestada pela 1ª ré perante a ausência de contestação, sendo que o 2º réu deduziu contestação, alicerçando a mesma em defesa por impugnação não especificada».

Colocada perante a transcrita motivação, a apelante sustenta que, ao invés do que foi decidido pelo tribunal de 1ª instância, o facto de não ter apresentado contestação não pode valer como confissão, posto que o réu AA contestou impugnando a factualidade alegada na petição inicial, o que, na sua perspetiva, não pode deixar de relevar para os efeitos da aplicação do preceituado na al. a) do art. 568º.

            Que dizer?

Em conformidade com o disposto nos arts. 566º e 567º, nº 1, se o réu, investido pela citação, no ónus de contestar, não deduzir qualquer defesa dentro do prazo legal, incorrerá em situação de revelia a qual, por via de regra, produz efeito probatório «considera[ndo]-se confessados os factos articulados pelo autor».

Este comportamento omissivo do réu provoca pois o que tem sido denominado de confissão tácita, ficta ou presumida[3], a qual fica adquirida definitivamente no processo (com eficácia juris et de jure), não podendo este vir posteriormente negar os factos relativamente aos quais se manteve em total silêncio ou inércia.

E para despoletar essa consequência ou efeito probatório a lei adjetiva basta-se com a realização regular do ato de citação do réu e com a ausência de contestação.

No entanto, nem sempre o aludido efeito cominatório[4] resultante da revelia se produz, já que o art. 568º prevê, com cariz excecional, algumas limitações à enunciada regra, relevando, no que ao caso interessa, a situação prevista na sua alínea a), onde se dispõe que «[N]ão se aplica o disposto no artigo anterior quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar».

Portanto, de acordo com o transcrito inciso, havendo pluralidade de corréus, quando um deles conteste a ação, os factos por ele impugnados não podem ser considerados confessados em relação aos seus corréus revéis. Compreende-se que assim seja, pretendendo-se com essa solução legal evitar uma eventual discrepância no julgamento da matéria de facto, obstando-se, por essa via, a que os factos articulados pelo autor sejam, no mesmo processo, considerados confessados quanto a uns réus e impugnados quanto a outros[5].

Ora, no caso, a materialidade objeto de impugnação corresponde às afirmações de facto vertidas nos artigos 28º, 29º, 30º e 31º da petição inicial, as quais foram diretamente impugnadas na contestação apresentada pelo réu AA (cfr., v.g., art. 2º), que foi demandado juntamente com a corré B... Unipessoal, Ldª em situação de litisconsórcio voluntário passivo.     

Não se pode, assim, considerar estar-se em presença de factos tidos como provados por ficta confessio, sendo que a essa conclusão – ao invés do que advoga a apelada nas respetiva contra-alegações - não obsta a circunstância de no despacho saneador o juiz a quo ter definido um conjunto de factos que entendeu encontrarem-se assentes, entre os quais se contam os que agora são alvo de impugnação. É que, conforme vem sendo sublinhado quer na doutrina quer na jurisprudência[6], factos provados são os factos concretos assim julgados, na sentença final, após exame crítico das provas e não os factos tidos como assentes no despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Deste modo, ainda que se admita não haver obstáculo a que o juiz, no âmbito do atual Código de Processo Civil, continue a proferir despacho de fixação da matéria de facto considerada assente, é inquestionável que tal despacho não pode deixar de ser visto como um “guião” ou mero “suporte de trabalho” para o julgamento, pelo que, mesmo depois de decididas as reclamações contra ele apresentadas, não se forma caso julgado formal sobre ele, podendo, por isso, os factos dados como assentes ser alterados pelo juiz do julgamento e/ou pelo juiz do tribunal de recurso.

Isto posto, vejamos, então, se os elementos de prova que foram carreados para os autos justificam, ou não, a alteração da redação das proposições factuais alvo de impugnação.

A este propósito haverá, desde logo, que relevar os documentos juntos aos autos, mormente o documento nº 1 junto com a petição inicial de cuja análise resulta que no dia 11 de maio de 2018 a autora e a ré B... Unipessoal, Ldª celebraram um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório, destinado a cobrir os danos emergentes da circulação do veículo automóvel de matrícula ..-UR-.., contrato esse titulado pela apólice nº ...77, ficando a dela constar (nas respetivas condições particulares) que o mesmo teria o seu início pelas 17 horas e 3 minutos desse mesmo dia e termo às 24 horas do dia 30 de abril de 2019, sendo automática e anualmente renovável, a partir de 1 de maio de 2019.

Mostra-se igualmente junta cópia da “carta-verde” onde é mencionada como data de início do contrato o dia 11 de maio de 2018 e como data do termo o dia 21 de maio de 2019.

Consta ainda dos autos (documento nº 11 junto com o articulado inicial) missiva remetida, em 26 de abril de 2019, para a ré B..., Unipessoal, Ldª dando nota da falta de pagamento, por cancelamento da autorização de débito, do prémio referente ao período de 1 de maio de 2019 a 1 de maio de 2020, aí se indicando como consequência desse não pagamento “a anulação do contrato”.

O teor dos referidos suportes documentais foi confirmado pela testemunha BB (que desenvolve a sua atividade profissional ao serviço da autora), a qual deu notícia dos termos em que foi celebrado o ajuizado contrato de seguro, designadamente quanto ao seu período de duração, esclarecendo ainda que, em resultado do não pagamento do prémio referente à anuidade de 1 de maio de 2019 a 1 de maio de 2020, foi remetido para o endereço da tomadora do seguro (indicado no contrato) a missiva junta com a petição inicial como documento nº 11[7].

Ponderando os referidos subsídios de prova (que não foram contraditados por quaisquer outros), não se vislumbra razão válida que imponha (como é suposto pelo nº 1 do art. 662º) a modificação do juízo probatório emitido quanto às mencionadas proposições, que deverão, por conseguinte, continuar a constar do elenco dos factos provados, embora com alterações na redação dos pontos nºs 3 e 5.

Assim, o ponto nº 3 passará a ter a seguinte redação: «A 1.ª Ré celebrou um contrato de seguro, em que foi transferida a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do veículo em questão, para a Autora, pelo período de 11.05.2018 a 30.04.2019, renovável, por um ano, mediante pagamento do competente prémio, sendo que no certificado internacional que lhe foi remetido foi indicada como data de início do contrato o dia 11 de maio de 2018 e como data do termo o dia 21 de maio de 2019».

 Por seu turno, a redação do ponto nº 5 terá de ser alterada (posto que a sua parte final encerra uma conclusão jurídica que, qua tale, não pode constar da materialidade provada), passando a ter o seguinte teor: «Por carta datada de 26 de abril de 2019 a autora alertou a ré B..., Unipessoal, Ldª para a falta de pagamento do prémio referente à anuidade de 1 de maio de 2019 a 1 de maio de 2020, aí indicando as consequências dessa falta de pagamento».


***


4. FUNDAMENTOS DE FACTO

Face à decisão que antecede, passa a ser a seguinte a factualidade relevante provada:

1. No exercício da sua atividade, no âmbito do ramo automóvel, a Autora celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório titulado pela apólice n.º ...77.

2. Em virtude da celebração do contrato de seguro foi transferida para a Autora a responsabilidade civil por danos emergentes de viação automóvel do veículo de matrícula ..-UR-.., através da cobertura de responsabilidade civil de subscrição obrigatória.

3. (alterada a redação) A 1.ª Ré celebrou um contrato de seguro, em que foi transferida a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do veículo em questão, para a Autora, pelo período de 11.05.2018 a 30.04.2019, renovável, por um ano, mediante pagamento do competente prémio, sendo que no certificado internacional que lhe foi remetido foi indicada como data de início do contrato o dia 11 de maio de 2018 e como data do termo o dia 21 de maio de 2019.

4. A Ré, por razões que se desconhece, decidiu revogar a ordem de débito direto do pagamento do prémio, não tendo sido possível ser cobrado o prémio referente a anuidade de 01.05.2019 a 30.04.2021.

5. (alterada a redação) Por carta datada de 26 de abril de 2019 a autora alertou a ré B..., Unipessoal, Ldª para a falta de pagamento do prémio referente à anuidade de 1 de maio de 2019 a 1 de maio de 2020, aí indicando as consequências dessa falta de pagamento.

6. Apesar da falta de pagamento do prémio de seguro devido à autora, esta procedeu à regularização dos danos decorrentes do sinistro.

7. No dia 20 de maio de 2019, pelas 17h20 ocorreu um acidente de viação no parque de estacionamento das instalações da 1ª Ré e da sociedade “C..., LDA.”, sito na Rua ..., ..., concelho de Oliveira de Azeméis conforme Declaração Amigável de Acidente de Automóvel.

8. No referido acidente foram intervenientes os veículos de matrícula UR propriedade da 1ª Ré, e conduzido pelo 2º Réu, e o veículo de matrícula ..-OZ-.., conduzido por um trabalhador da empresa C..., Lda..

9. O local do acidente, parque de estacionamento conjunto da 1ª Ré e da empresa proprietária do veículo OZ, era composto por lugares de estacionamento em espinha.

10. Sendo partilhado pelas duas empresas mencionadas.    

11. Ambos os veículos envolvidos são pesados de mercadorias.

12. O veículo OZ encontrava-se devidamente estacionado.

13. Nestas circunstâncias, de tempo e lugar, o 2º Réu, depois de aceder com o veículo UR ao parque de estacionamento em causa, deu início a manobras atinentes ao estacionamento do mesmo.

14. Uma vez que existia um lugar vago entre dois veículos, sendo um desses veículos, o veículo OZ.

15. Para o efeito, e com vista ao pretendido estacionamento, o 2º Réu, iniciou uma manobra de marcha atrás.

16. Sendo que a dado momento, durante a manobra de marcha atrás, o 2º Réu, por ter calculado mal a trajetória, permitiu que o veículo UR, embatesse com a sua traseira, sobre o lado direito, na frente e lateral esquerda do veículo OZ, conforme foi confirmado pelo mesmo, ao averiguador da Autora, através de depoimento escrito.

17. Do sinistro resultaram danos materiais nos veículos envolvidos, conforme assumiu a 1ª Ré, quando preencheu e assinou a Declaração Amigável de Acidente de viação junta como documento nº2 que acompanha a petição.

18. A colisão entre os veículos identificados decorreu da conduta do 2º réu, pois ao efetuar uma manobra de marcha atrás, mais ainda quando se trata de um veículo pesado de mercadorias, a diligência do condutor deve ser redobrada pelas próprias características do referido veículo, desrespeitando assim o 2º réu as regras estradais presentes nos arts. 3º, nº2º e 18º, nº2 ambos do Código da Estrada.

19. Em virtude do embate, o veículo OZ sofreu danos na frente esquerda e frente lateral esquerda.

20. Efetuada uma peritagem a esse veículo foi apurado o valor dos danos como sendo €9.223,07.

21. O veículo OZ foi reparado.

22. A Autora procedeu ao pagamento da reparação do veículo OZ junto da oficina D... Unipessoal, Lda.

23. Pagou também a esta entidade a quantia de €5.777,64 a título de paralisação do veículo OZ, uma vez que este ficou sem poder circular desde a data do acidente até à data em que foi concluída a sua reparação.

24. Com a averiguação e peritagem do presente sinistro despendeu ainda a Autora a quantia de €209,10.

25. A 11.03.2020 a Autora interpelou a 1ª Ré para o pagamento da quantia por si despendida com a regularização de todos os danos decorrentes do sinistro, no montante global de €15 209,81.


***

5. FUNDAMENTOS DE DIREITO

De acordo com o quadro factual apurado (e ora estabilizado) entre a autora (como seguradora) e a ré B..., Unipessoal, Ldª (como tomadora do seguro) foi celebrado um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice nº ...77, nos termos do qual se “transferiu” para aquela a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-UR-...

No texto dessa apólice consta que o contrato vigoraria no período compreendido entre 11 de maio de 2018 e 30 de abril de 2019 e que seria sucessivamente prorrogado por períodos de um ano, contanto fosse realizado o (prévio) pagamento do prémio convencionado.

Certo é que a tomadora do seguro não procedeu ao pagamento do prémio referente à anuidade de 1 de maio de 2019 a 30 de abril de 2020, vindo a ocorrer, no dia 20 de maio de 2019, um acidente de viação no qual foi interveniente o identificado veículo e que ocasionou danos num veículo pertencente a terceiro, sendo que a produção desse evento súbito se ficou a dever ao comportamento culposo do réu AA, então ao serviço daquela.

Resulta do exposto que à data da ocorrência do sinistro não estaria já em vigor o ajuizado contrato de seguro - cujos efeitos cessaram às 24 horas do dia 30 de abril de 2019. Não obstante, a autora pagou ao lesado a quantia global de €15.209,81, pretendendo através da presente ação obter dos réus o reembolso desse montante.

Assentando no pressuposto de que efetivamente o contrato havia caducado por falta de pagamento do respetivo prémio, o decisor de 1ª instância, convocando o instituto do enriquecimento sem causa, julgou procedente essa pretensão de tutela jurisdicional, condenando solidariamente os réus no pagamento da mencionada quantia, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos até efetivo pagamento.

A apelante rebela-se contra esse segmento decisório por considerar que, contrariamente ao entendimento sufragado pelo juiz a quo, na data do acidente estaria em vigor o contrato de seguro que firmou com a autora, porquanto o respetivo certificado internacional de seguro (“carta verde”) indicava ser válido no período de 11 de maio de 2018 a 21 de maio de 2019.

Tal como o problema se mostra equacionado, tendo ficado demonstrado que a tomadora do seguro não realizou o pagamento do prémio referente à anuidade de 1 de maio de 2019 a 30 de abril de 2020, importa desde logo determinar quais as consequências desse facto no contrato de seguro celebrado entre as partes.

De acordo com o que se dispõe no art. 19º do DL nº 291/2007, de 21.08[8] «[A]o pagamento do prémio do contrato de seguro e consequências pelo seu não pagamento aplicam-se as disposições legais em vigor», disposições essas que, presentemente, se mostram plasmadas nos arts. 51º a 61º do DL nº 72/2008, de 16 de abril (que vem sendo correntemente designada por Lei do Contrato de Seguro – doravante LCS).

Preceitua o nº 1 do art. 51º da LCS que «[o] prémio é a contrapartida da cobertura acordada», sendo que, por mor do estabelecido no art. 59º desse mesmo diploma, «[a] cobertura dos riscos depende do prévio pagamento do prémio».

Portanto, no contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel a cobertura dos riscos depende do prévio pagamento do prémio[9], sendo esta uma regra absolutamente imperativa (cfr. art. 12º, nº 1 da LCS).

Significa isto que neste tipo de seguro o contrato somente produzirá os respetivos efeitos efetuado que seja o pagamento do prémio devido pelo tomador do seguro, assim se consagrando – como, aliás, se enfatiza no preâmbulo da LCS – o princípio de no premium, no risk ou no premium, no cover. No entanto, a mora na realização desse pagamento tem um regime diverso do regime geral previsto na lei civil, na medida em que os efeitos que dela decorrem são típicos do incumprimento definitivo, isto é, tanto o prémio ou fração inicial como os prémios ou frações subsequentes são devidos numa determinada data, mas o contrato apenas produz os seus efeitos, na parte correspondente ao prémio ou fração em dívida, a partir do momento do seu pagamento. Não procedendo o tomador de seguro ao seu pagamento, verificam-se duas consequências: por um lado, o risco deixa de estar coberto pelo contrato; por outro, o valor do prémio ou fração em dívida deixa, relativamente à generalidade dos contratos, de poder ser judicialmente exigido pela seguradora.

E, de acordo com o regime vertido no art. 61º, nºs 1 e 2 da LCS[10], quando esteja em causa a falta de pagamento do prémio inicial, ou da primeira fração deste, na data do vencimento, tal determina a resolução automática[11] do contrato a partir da data da sua celebração; já se a falta se reportar ao pagamento do prémio de anuidades subsequentes, ou da primeira fração deste, na data do vencimento, tal impede a prorrogação do contrato, o que equivale a dizer que o contrato se extingue por caducidade.

Consequentemente, in casu, não tendo a ré “B..., Unipessoal, Ldª” procedido ao pagamento do prémio referente à anuidade de 1 de maio de 2019 a 30 de abril de 2020, tal significaria que o contrato de seguro não se renovou, extinguindo-se, por caducidade, às 24 horas do dia 30 de abril de 2019.

Questão que se coloca e que importa dilucidar é a de saber se a conclusão acabada de firmar pode ser contraditada pelo facto de o certificado internacional de seguro (vulgarmente denominado “carta-verde”, atualmente branca) indicar como data de validade o período compreendido entre 11 de maio de 2018 e 21 de maio de 2019.

Nesta matéria rege o art. 28.º do DL nº 291/2007, de 21.8, dispondo na al. a) do seu nº 1 que «[c]onstitui documento comprovativo de seguro válido e eficaz em Portugal, relativamente a veículos com estacionamento habitual em Portugal, o certificado internacional de seguro («carta verde»), o certificado provisório, o aviso-recibo ou o certificado de responsabilidade civil, quando válidos».

Por seu turno, o art. 29.º do mesmo diploma legal estabelece que «[O] certificado internacional de seguro referido na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior é emitido pela empresa de seguros, mediante o pagamento do prémio ou fração correspondente ao contrato de seguro, no prazo máximo de 60 dias a contar da data da celebração do contrato e renovado no momento do pagamento do prémio ou fração seguinte».

Ora, conquanto se tenha demonstrado nos autos que a ré seguradora emitiu o certificado internacional de seguros para o período compreendido entre 11 de maio de 2018 e 21 de maio de 2019, tal não nos pode levar a concluir, sem mais, que o ajuizado contrato de seguro não se mostrava extinto à data da ocorrência do sinistro por falta de pagamento do respetivo prémio. De facto, como em análogas situações se tem decidido[12], esse certificado demonstra apenas e só, perante terceiros, a existência de contrato de seguro, sendo que a respetiva eficácia decorre da existência e eficácia do contrato de seguro que depende, como anteriormente se sublinhou, do pagamento do prémio. Daí que, verificada a extinção do contrato de seguro por falta de pagamento do prémio durante o período a que se refere o certificado internacional de seguro, a aludida extinção do contrato de seguro tem, necessariamente, implicações na eficácia deste certificado.

Haverá, no entanto, que distinguir consoante se esteja no domínio das relações entre a seguradora e os terceiros lesados, ou então no âmbito do relacionamento entre aquela e o tomador do seguro.

É que, atendendo a que o certificado internacional é considerado um documento autêntico (cfr. art. 83º, nº 1, do DL nº 291/2007, de 21.08), o facto de dele constar um período de validade superior àquele que foi efetivamente contratado e para o qual foi liquidado o prémio, não desonera, perante terceiros, a seguradora que o emitiu da assunção de sinistros que venham a ocorrer durante esse período de extensão de eficácia[13]. Já não assim nas relações entre a seguradora e o tomador de seguro em que valerá o que ficou entre eles contratualizado no que tange ao período de vigência do seguro.

Ora, no caso sub judicio, a ré não poderia desconhecer que o contrato de seguro já não vigorava na data do sinistro, tanto mais que, como resultou provado, a mesma foi notificada[14] em 26 de abril de 2019 de que perante a falta de pagamento do prémio referente à anuidade de 1 de maio de 2019 a 1 de maio de 2020 o contrato de seguro “seria anulado” na data prevista para o seu termo, ou seja, 30 de abril de 2019.

Por isso, tendo o contrato de seguro caducado nessa data, teremos de concluir, como o fez a 1.ª instância, que no momento em que ocorreu o sinistro, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-UR-..FG não estava “transferida” para a autora, assistindo a esta o direito a reclamar, à luz do instituto do enriquecimento sem causa[15], o reembolso das quantias que teve de pagar ao terceiro lesado em resultado desse evento súbito e que ascenderam ao montante global de €15.209,81.

A esse quantitativo acrescem os respetivos juros moratórios, sendo que, neste ponto e ao contrário do que se decidiu na sentença recorrida, apenas podem ser contabilizados os que se venceram a partir da citação, porquanto os que se terão vencido em data anterior a esse momento não foram objeto de liquidação pela autora que sequer os computou no valor da causa.

Por conseguinte, nesta parte, impõe-se a procedência do recurso.


***

III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, em consequência do que se condenam os réus no pagamento solidário à autora do valor de €15.209,81 (quinze mil duzentos e nove euros e oitenta e um cêntimos), acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Custas da ação e do recurso a cargo de autora e réus na proporção da respetiva sucumbência.


Porto, 18/03/2024.
Miguel Baldaia de Morais
Carlos Gil
Manuel Domingos Fernandes
___________________________
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2]  Neste sentido se tem pronunciado a doutrina pátria de que constituem exemplo, entre outros, TEIXEIRA DE SOUSA, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997,  pág. 221 e seguinte, LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, págs. 735 e seguinte, ALBERTO DOS REIS, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1984, pág. 140 e RODRIGUES BASTOS, in Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 194), ressaltando os referidos autores que a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 do art. 615º é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão, sendo que uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afeta o valor legal da sentença.
[3] A este propósito LEBRE DE FREITAS (in A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, págs. 474 e seguinte) opta antes pelo termo “admissão”.
[4] Efeito que, no entanto, não é pleno, mas tão-somente semipleno, posto que, na revelia operante, há confissão dos factos, mas não do direito.
[5] Cfr., sobre a questão, LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, ob. citada, pág. 541, FERREIRA DE ALMEIDA, in Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, pág. 127 e ANTUNES VARELA et al., in Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, págs. 348 e seguinte, sendo que estes últimos autores apresentam ainda como justificação desse regime o propósito de facilitar aos réus a possibilidade de delegarem, expressa ou tacitamente, em algum ou alguns deles, o ónus de contestar no interesse de todos.
[6] Cfr., por todos, na doutrina, PAULO PIMENTA, in Processo Civil Declaratório, Almedina, 2015, pág. 288, ABRANTES GERALDES et al., in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 727 e RAMOS DE FARIA/LUÍSA LOUREIRO, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 553; na jurisprudência, acórdão do STJ de 17.05.2018 (processo nº 3811/13.3TBPRD.P1.S1), acessível em www.dgsi.pt.
[7] Sendo que a este respeito não seria sequer despiciendo sublinhar que, encontrando-se a eficácia da exceção contemplada na al. a) do art. 568º limitada aos factos de interesse comum para o réu contestante e para o réu revel, é irrelevante, fora duma relação formal de representação, a impugnação de factos que, por só respeitarem ao revel (como é o caso da receção pela ré da missiva que constitui o documento nº 11), o réu contestante não tem interesse em contradizer.
[8] Que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - transpondo parcialmente para ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio, que altera as Diretivas nºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva nº 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.
[9] Sobre a ratio dessa regra – com o que primordialmente se pretendeu evitar, através de subterfúgios, que o pagamento do prémio não seja devidamente efetuado, antes de qualquer sinistro -, vide, entre outros, MENEZES CORDEIRO, in Direito dos Seguros, Almedina, 2013, págs. 693 e seguinte, BONIFÁCIO RAMOS, O pagamento do prémio na Lei do Contrato de Seguro, in Cadernos de Direito Privado, nº 39, págs. 10 e seguintes e MARGARIDA LIMA REGO, O prémio, in Temas de Direito dos Seguros, Almedina, 2012, págs. 200 e seguintes.
[10] Regime que se mostra reproduzido no art. 14º, nºs 1 e 2 da Parte Uniforme das Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel.
[11] Solução que surgiu no nosso ordenamento jurídico com o DL nº 122/2005, de 29.07, e que teve como principal desiderato – como, aliás, se afirma no respetivo preâmbulo – diminuir o número de litígios relacionados com o pagamento (rectius, a falta dele) de prémios de seguro.
[12] Cfr., por todos, acórdão do STJ de 30.04.2020 (processo nº 2710/11.8TBVCD.P1.S1), acórdão da Relação de Coimbra de 12.01.2016 (processo n.º 439/13.1TBTND.C1), acórdãos desta Relação de 21.10.2019 (processo nº 2710/11.8TBVCD.P1) e de 12.07.2023 (processo nº 328/17.0T8PVZ.P1), acórdão da Relação de Évora de 16.01.2014 (processo n.º 291/12.4TBRMZ.E1) e acórdão da Relação de Lisboa de 17.04.2009 (processo n.º 574/05.0 TBLNH) – este último reportando-se à legislação anterior ao DL 72/2008 que, todavia, e no que respeita ao pagamento do prémio ou fração dele e efeitos da falta de pagamento, consagrava soluções idênticas às acolhidas no regime que lhe sucedeu -, todos eles acessíveis em www.dgsi.pt.
[13] Nesse sentido se tem, aliás, pronunciado a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, cujo posicionamento pode ser visto em https://www.asf.com.pt/NR/exeres/B3A21200-AB6C-4A38-9766-B192795EE492.htm.
[14] No seu recurso a apelante vem agora alegar, ainda que apenas no corpo alegatório, que não terá recebido as comunicações a que alude o art. 60º da LCS. Trata-se, contudo, de uma questão que não foi suscitada em 1ª instância que sobre ela não se pronunciou, não cabendo - por não se tratar de questão de conhecimento oficioso - a sua apreciação nos poderes de cognição deste tribunal ad quem. É que, como é consabido, o recurso de apelação é um meio de impugnação de decisões judiciais e não uma forma de julgamento de questões novas, vigorando, entre nós, um “modelo do recurso de reponderação” em que o seu âmbito se encontra objetivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido.
[15] Nesta linha de entendimento se posicionou, entre outros, o acórdão da Relação de Coimbra de 28.04.2009 (processo nº 1272/05.0TBAND.C1), acessível em www.dgsi.pt.