Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1918/20.0T8VRL.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: ACIDENTE COM VEÍCULO AUTOMÓVEL
RISCO PRÓPRIO DO VEÍCULO
CULPA DO LESADO
EXCLUSÃO DA GARANTIA DO SEGURO
Nº do Documento: RP202406061918/20.0T8VRL.P1
Data do Acordão: 06/06/2024
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O artigo 505.º CCivil acolhe a regra do concurso de culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
II - A qualidade de condutor não se descaracteriza nem se perde, durante a imobilização do veículo, durante 30 minutos, no parque de estacionamento do restaurante.
III - Num acidente com a intervenção de um só veículo e com a intervenção, de uma só pessoa, estão excluídos da garantia do seguro os danos corporais e os danos materiais, sofridos pelo lesado, por coincidir com a qualidade de condutor do veículo seguro responsável pelo acidente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação - Processo 1918/20.0T8VRL - Acção de Processo Comum – do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Central Cível de Penafiel - Juiz 2




Relator – Ernesto Nascimento
Adjunta – António Paulo de Vasconcelos
Adjunto – Isabel Silva




Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto





I. Relatório

AA intentou a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra Companhia de Seguros A... SA. pedindo a sua condenação no pagamento da quantia global de €920.000,00, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, com fundamento em responsabilidade civil objectiva ou pelo risco, decorrente do atropelamento de que foi vítima, pelo semi-reboque do veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-..-GV, que apesar de devidamente estacionado e travado pelo autor, começou a circular, sem intervenção humana, devido a avaria mecânica no sistema de travagem, sem que lograsse travar a marcha do mesmo, do que resultaram para si os danos patrimoniais e não patrimoniais dos quais pretende ser indemnizado.
Citada, contestou a ré invocando a excepção da exclusão, da garantia do seguro obrigatório, dos danos corporais sofridos pelo autor, enquanto condutor do veículo seguro responsável pelo acidente, assim como dos danos decorrentes daqueles e subsidiariamente, invocando, ainda, a culpa do autor e, defendendo-se, também, por impugnação.
Percorrida a pertinente tramitação seguiu o processo para julgamento que culminou com a prolação de sentença a julgar a acção improcedente e, por consequência, a absolver a ré do pedido.
Inconformado, recorre o autor
1- Salvo o devido respeito por entendimento diverso, a decisão proferida, ainda que doutamente tenha feito uma correta fixação dos factos dados como provados, aliás diga-se em abono da verdade, correctíssima, em face da prova produzida dos autos, o mesmo não se pode dizer da aplicação do direito aos factos dados como provados, isto sempre com o devido respeito por opinião contrária.
2- O Autor veio interpor a presente ação, pedindo a condenação da Ré – Companhia de Seguros A..., S.A., no pagamento da quantia global de 920.000,00€, com fundamento na responsabilidade civil objetiva ou pelo risco, em virtude de ter sido atropelado pelo veículo pesado de mercadorias, que conduziu até ao local do acidente.
3- Que aí estacionou, devidamente travado e do qual saiu, quando passado cerca de 30/40 minutos após o estacionamento, em virtude de uma avaria no sistema de travagem e sem qualquer intervenção do Autor, começou a circular desgovernado, tendo embatido num outro veículo estacionado no local e depois atropelado o Autor.
4- Ora, em face dos factos dados como provados e que são incontestáveis, outra não poderia ter sido a decisão do Tribunal “a quo” que não fosse a condenação da Ré, no pagamento da indemnização peticionada, face à gravidade das consequências do acidente para o Autor.
5- A decisão proferida, acolheu a tese de que sendo o Autor o condutor do veículo, estaria excluído da garantia do seguro obrigatório.
6- Ainda que se considere que o conceito de “condutor” é um conceito amplo que abrange a pessoa que, encontrando-se a dirigir o veículo, o imobiliza para abastecer ou retirar um obstáculo da estrada – ainda assim discutível- tal amplitude não pode, de modo algum, abranger alguém que conduziu o veículo o estacionou devidamente, saiu do mesmo por mais de 30/40 minutos e sem entrar no veículo e assumir a sua direcção efectiva, seja atropelado pelo mesmo.
7- Considerar que a qualidade de condutor acompanha a pessoa que dirigiu o veículo e o estacionou nas horas seguintes a tais atos, é abusivo e inadmissível à luz da legislação portuguesa e das directivas europeias, violando os direitos e garantias das vítimas de acidentes de viação.
8- Fundamenta o Tribunal “a quo” a sua decisão com o preceituado no nº 1 do artº 14º do DL nº 291/2007:
“Excluem-se da garantia do seguro os danos sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles”
9- A exclusão a que se refere o artigo supramencionado, refere-se sem margem para dúvidas, aos danos sofridos pelo individuo que se encontre no exercício da condução, ao volante do veículo, detendo o controle da marcha, velocidade e direcção do mesmo.
10- Ora, o Autor, no momento em que é colhido pelo veículo, não tem a sua direcção efectiva, não está a conduzi-lo, nem sequer está no seu interior.
11- Mais, o veículo iniciou a sua marcha sem qualquer intervenção do Autor, mas sim como resultou provado de uma avaria no sistema de travagem do referido veículo, sem qualquer acção ou omissão do Autor.
12- O Autor, perante a marcha do veículo sem condutor, mais não fez, do que o que qualquer cidadão faria, como de resto foi referido por todas as testemunhas ouvidas, tentou por todos os meios ao seu alcance evitar a entrada do pesado com cerca 30 toneladas numa via de trânsito sinuosa com tráfego intenso nos dois sentidos, quer de pesados, quer de veículos ligeiros.
13- Actuando assim perante um absoluto estado de necessidade desculpante – artº 34 do Código Penal.
14- Com a sua conduta pretendeu evitar a lesão de bens ou interesses de terceiros, nomeadamente dos utilizadores da estrada em que o veículo entrou completamente desgovernado.
15- Aliás, o nº 2 do citado artigo 14º diz o seguinte:
“Excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas:
a)- O Condutor do veículo responsável pelo acidente.”
16- Ora, como ficou provado o acidente resultou de uma avaria no sistema de travagem do veículo, avaria a que o Autor é alheio.
17- Se dúvidas restassem de que o artigo supracitado não tem aplicação ao caso em discussão, o número dois afasta claramente essa possibilidade, já que se a exclusão do condutor estivesse prevista no número um “tout court”, o legislador não teria necessidade de prever a exclusão do condutor no caso de existir responsabilidade do mesmo.
18- Mas ainda que assim não se entenda, o que só por mera hipótese se concebe, sempre a Ré terá responder nos termos do artº 503º nº1 do CC “Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”
19- Mais ainda admitindo o concurso de responsabilidades, entre o risco próprio do veículo e a actuação do Autor, que repita-se, atuou perante um estado de necessidade desculpante, sempre a Ré teria que ser condenada ao abrigo do artigo 505º do CC.
20- A doutrina e jurisprudência tradicionais têm entendido que em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no artº 505º do CC, máxime, ser o acidente imputável ao facto, culposo ou não, do lesado, exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição de responsabilidade: a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado.
21- Esta corrente doutrinal e jurisprudencial engloba as situações mais díspares e não distingue as condutas culposas das não culposas e dentro daquelas as de culpa mais grave das de culpa mais leve, conduzindo muitas vezes a resultados chocantes e injustos e mostra-se ainda insensível ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário, do âmbito da responsabilidade pelo risco e da expressa consagração da hipótese da concorrência entre o risco da actividade do agente e um facto culposo do lesado, que tem tido tradução em recentes diplomas legais.
22- Nestes últimos anos tem vindo a surgir jurisprudência que privilegia uma interpretação progressista e actualista do artigo 505º do CC, no sentido de nele se acolher a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo.
23- A decisão recorrida, partindo da conclusão de que o lesado teve culpa na produção do acidente afastou desde logo a hipótese de este poder ser responsabilizado pelo risco.
24- A sentença recorrida ao não ter equacionado nem apreciado a responsabilidade com base no risco, mesmo a existir culpa do lesado, encontra-se em contradição com outros acórdãos do STJ, já transitados em julgado no domínio da mesma legislação – artº 503º, 505º e 570º do CC- e sobre a mesma questão fundamental de direito – a concorrência de culpa e risco em acção emergente de acidente de viação, designadamente o acórdão proferido em 28-03-2019 no processo nº 954/13.7TBPMS.C1.S1 e o acórdão proferido em 22-06-2021 no processo nº 2992/18.4T8AVR.P1.S1- Cfr. Doc. Nº 1 e 2, que ora se juntam.
25- Ora, de acordo com a interpretação actualista do preceituado no artº 505º do C.C., reclama a subsunção desta situação concursal de causas de dano à norma da repartição do dano que é o artigo 570º do C.C., repartição que deve ser efectuada em igual proporção de 50% para o lesado e 50% para o risco do veículo.
26- Salvo o devido respeito, o Recorrente entende que a sentença, violou por errada interpretação e aplicação o disposto nos artºs 503º, 505º e 570º do CC.
27- Pelo que, se não se entender condenar a Ré com base na apólice que garante a responsabilidade civil do sinistro dos autos, deve proceder-se à repartição de responsabilidades de forma proporcional nos termos enunciados ou noutra proporção que se entenda mais adequada ao caso concreto.
28- Condenando a recorrida Companhia de Seguros A..., ao pagamento da indemnização peticionada, tendo em conta o supra referido.
Contra-alegou a ré defendendo a improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, nos termos dos artigos 644.º/1 alínea a), 645.º/1 alínea a) e 647.º/1 CPCivil.
Recebido o processo nesta Relação foi proferido despacho onde se teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, uma vez que a tal nada obsta.


II. Fundamentação

II. 1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, as questões a que o autor reduz as suas razões de discordância para com a decisão recorrida, são, as de saber se,
- em sede de responsabilidade civil extra-contratual, por factos ilícitos, é caso de concorrência de culpa do autor com o risco da circulação do veículo acidentado e,
- em sede de seguro de responsabilidade civil obrigatório, do ramo automóvel, é caso de exclusão dos danos sofridos pelo autor.
Importa, contudo, desde já referir que invocando o artigo 34.ºCPenal, alega o autor que actuou em absoluto estado de necessidade desculpante, pois que,
- perante a marcha do veículo sem condutor, mais não fez, do que o que qualquer cidadão faria, como de resto foi referido por todas as testemunhas ouvidas, tentou por todos os meios ao seu alcance evitar a entrada do pesado com cerca 30 toneladas numa via de trânsito sinuosa com tráfego intenso nos dois sentidos, quer de pesados, quer de veículos ligeiros;
- com a sua conduta pretendeu evitar a lesão de bens ou interesses de terceiros, nomeadamente dos utilizadores da estrada em que o veículo entrou completamente desgovernado;
- infelizmente, não conseguiu evitar que o veículo o atropelasse, passando com os rodados sobre as suas pernas, tendo ficado amputado dos dois membros inferiores.
Esta questão suscita se aborde a natureza dos recursos.
Sem que antes se despreze, ainda, assim, a falta de rigor e o manifesto erro de enfoque do autor, pois que invoca o artigo 34.º CPenal e o estado de necessidade desculpante quando, afinal, o artigo 34.º prevê o direito de necessidade e é o artigo 35.º que se refere ao estado de necessidade desculpante.
Consabidamente, os recursos são meios processuais de impugnação de anteriores decisões judiciais e não ocasião para julgar questões novas.
Os recursos não servem para conhecer de novo da causa, mas antes para controlo da decisão recorrida. Nem para conhecer de questões novas, que ali não hajam sido abordadas e decididas.
Os recursos destinam-se ao reexame e reponderação das questões submetidas ao julgamento do tribunal recorrido. O tribunal de recurso aprecia e conhece de questões já conhecidas pelo tribunal recorrido e não de questões que antes não tenham sido submetidas à apreciação deste tribunal – o tribunal de recurso reaprecia o concretamente já decidido, não profere decisões novas.
Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados.
O recurso não pode ter como objecto a decisão de questões novas, constituindo apenas um remédio processual que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões expressas sobre matérias e questões já submetidas e objecto de decisão do tribunal de que se recorre.
No recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas, que tenham já sido objecto de decisão anterior pelo tribunal a quo e que o recorrente pretende ver reapreciadas.
Assim sendo, não é lícito invocar no recurso questões que não tenham sido suscitadas, nem resolvidas na decisão de que se recorre. Os recursos destinam-se a reapreciar as decisões tomadas pelos tribunais de inferior hierarquia e não a decidir questões novas que perante eles não foram equacionadas.
Esta preclusão apenas sofre as restrições atinentes com matéria do conhecimento oficioso.
Donde, no confronto com a petição inicial, por um lado e, com a decisão recorrida, por outro, cremos que a questão da invocação, agora, da apontada causa de exclusão da ilicitude, do estado de necessidade desculpante, constitui, além do mais, uma questão nova – no sentido de não abordada nem decidida na decisão recorrida - estando, assim, vedado a este tribunal o seu conhecimento.
Assim sendo, não se conhece desta questão, o que nunca constituiria uma reapreciação, mas sim uma apreciação ex novo.
Reapreciação implicaria a sua fixação se viesse negada. A sua negação se viesse afirmada. A sua confirmação se tivesse sido avaliada.
Ora, nada disto aconteceu.


II. 2. Vejamos, então, primeiramente os fundamentos da decisão recorrida.
II. 2. 1. De facto.
Factos provados.
1- O veículo pesado de mercadorias com matrícula ..-..-GV tinha a responsabilidade civil inerente à sua circulação transferida para a Ré, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...20, válido e eficaz à data de 04/12/2017, conforme doc. 2 junto com a contestação.
2- No dia 04/12/2017, o Autor tinha estacionado o veículo “GV”, o qual trazia a si atrelado a galera com matrícula L - ....4, no parque de estacionamento do Restaurante B..., sito à E.N. 101, Concelho ..., do lado direito da via atento o sentido ... – ... e direcionado nesse sentido.
3- Ao estacionar o veículo no referido parque de estacionamento, o Autor travou devidamente o veículo.
4- O local, atento o sentido em que o veículo se encontrava direcionado, é de acentuado declive descendente e inclinação para a esquerda, atento o sentido supra referido.
5- O Autor, ao sair do referido estabelecimento de restauração, reparou que o seu veículo estava a deslocar-se sozinho, pelo que correu em direção ao mesmo.
6- Entre o estacionamento e a saída do restaurante mediaram, pelo menos, 30 minutos, durante os quais o veículo permaneceu imóvel.
7- Durante o lapso de tempo em que o veículo ficou estacionado verificou-se uma avaria mecânica no sistema de travagem, a qual foi a causa do início da marcha do veículo.
8- O Autor subiu à cabine, agarrando-se à porta do lado do condutor, com o intuito de a tentar abrir de forma a aceder ao interior do trator, comportamento este destinado a tentar parar a circulação do veículo.
9- O “GV”, com o Autor agarrado à porta do condutor, apesar de ter embatido na lateral esquerda do veículo pesado de mercadorias com matrícula ..-IE-.., que se encontrava também ele estacionado no parque do Restaurante B..., continuou a sua marcha, fletindo à esquerda e invadindo a E.N. 101, com o Autor agarrado ao exterior da porta esquerda, em flexão para a esquerda, face à inclinação da via nesse sentido.
10- O “GV” conseguiu passar por uma curva que se desenrolava para a esquerda atento o seu sentido de marcha, aproximando-se cada vez mais da berma esquerda.
11- O Autor não largou a porta a que estava agarrado, facto que implicou que, quando o “GV” invadiu a berma esquerda, atento o seu sentido de marcha, passados que foram mais de 136 metros desde o início da sua circulação, veio a lateral esquerda do trator e consequentemente também o Autor a embater num sinal vertical existente no terreno adjacente à berma.
12- Embate que provocou a queda do Autor.
13- Os rodados do pesado, o qual só se imobilizou a 25 metros daquele ponto de embate, passaram por cima/colheram ambas as pernas do Autor.
14- Em consequência do acidente, o Autor sofreu graves lesões, que determinaram a amputação de ambas as pernas.
15- Ficou a padecer de uma IPG de 54 pontos.
16- Ficou absolutamente incapaz para a sua profissão habitual, como para qualquer outra na sua área de preparação escolar, estando incapaz para toda e qualquer profissão.
17- Além da amputação das duas pernas, o Autor sofreu outras lesões, na medida em que ficou com um dano estético permanente fixável no grau 5/7 e com uma repercussão permanente na Atividade Sexual fixável no grau 3/7.
18- Está a ser acompanhado pelos serviços clínicos da Ré ao abrigo de apólice de acidentes de trabalho que a entidade patronal do Autor celebrou com a aqui Ré.
19- No âmbito do processo de trabalho que corre termos pelo Juízo de Trabalho de Vila Real, Proc. …, ainda não foi determinada a pensão final a que o Autor terá direito, dado ainda não se ter verificado a cura clinica.
20- A aqui Ré, enquanto seguradora da entidade patronal do Autor na área de acidentes de trabalho, tem suportado todas as despesas a que, naquela vertente, está obrigada nomeadamente tratamentos, despesas médicas, medicamentosas, salariais, etc.
21- À data do acidente, o Autor tinha 56 anos de idade.
22- Era motorista, auferindo o salário mensal de € 726,41.
23- O Autor foi socorrido pelo INEM no local do acidente e imediatamente transferido para o HSJ, onde ficou internado nos cuidados intensivos.
24- Já foi submetido a 12 intervenções cirúrgicas.
25- Desde a data do acidente que o Autor esteve sempre internado, ora no HSJ, ora nos serviços clínicos da Ré.
26- O Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total é fixável num período total de 747 dias.
27- As lesões e sequelas causam ao Autor grande sofrimento e desgosto.
28- Até 31/12/2020, foi liquidada ao Autor, a titulo de pensão provisória arbitrada no Tribunal de Trabalho, a quantia de €21.651,60 sendo que tal pensão provisória se encontra presentemente fixada em € 651,60 mensais.

II. 2. 2. De direito.

“Através da presente ação, pretende o Autor obter a condenação da Ré no pagamento da quantia global de € 920.000,00, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, com fundamento em responsabilidade civil objetiva ou pelo risco, decorrente do atropelamento do Autor pelo semirreboque do veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-..-GV, que tinha a responsabilidade civil inerente à sua circulação transferida para a Ré por contrato de seguro válido e eficaz à data do acidente.
Exceciona a Ré a exclusão, da garantia do seguro obrigatório, dos danos corporais sofridos pelo Autor, enquanto condutor do veículo seguro responsável pelo acidente, assim como dos danos decorrentes daqueles.
Alega a Ré que, nos termos do n.º 1, do art.º 14.º, do DL. n.º 291/2007, “Excluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles.”; que vigora na nossa jurisprudência um conceito amplo de condutor que abrange quer a pessoa que está ao volante do veículo a conduzi-lo, quer a pessoa que desempenhou essa tarefa, mas que o imobilizou e/ou estacionou, tendo o Autor de ser considerado como condutor do veículo; que a cobertura do seguro obrigatório destina-se a garantir a responsabilidade daquele que possa ser civilmente responsável pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais ou materiais causados a terceiros por veículos, não pode esse responsável ser considerado simultaneamente terceiro e beneficiário para efeito de ressarcimento de danos do próprio, estando, assim, excluídos da garantia do seguro os danos sofridos pelo Autor, o qual era simultaneamente condutor.
Exceciona ainda a Ré a imputabilidade do acidente ao próprio Autor, por não ter travado diligentemente o veículo, o que levou a que o mesmo descaísse, e por ter tentado imobilizar o veículo em movimento, o que exclui a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º, nos termos do disposto no art.º 505.º.
O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel é um seguro de responsabilidade, destinando-se a cobertura do seguro obrigatório a garantir a responsabilidade daquele que possa ser civilmente responsável pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais ou materiais causados a terceiros por veículos, nos termos do art.º 4.º, n.º 1, do DL. n.º 291/2007.
Esta é a regra geral, que comporta as exceções previstas no art.º 14.º do mesmo diploma legal.
No que para o caso releva, de acordo com o disposto no n.º 1 do referido normativo, “Excluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles.”, e no seu n.º 2, “Excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas: a) Condutor do veículo responsável pelo acidente”.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/12/2015, Recurso de Revista n.º 529/11.5TBPSR.S1, «Este conceito de “condutor” do veículo não tem um conteúdo restrito ao exercício da pilotagem ao volante do veículo, como preconiza a decisão impugnada. “Condutor” é não só quem está ao volante no exercício da direcção do veículo, mas também aquele que esteve nesse desempenho até à sua imobilização (paragem ou estacionamento).
Se o conceito fosse tão restrito quanto se entendeu na sentença proferida, com a concordância das recorrentes/autoras, então o condutor do veículo perderia essa condição sempre que saísse para o abastecer, substituir uma roda, levar ou buscar uma criança ou pessoa com dificuldades de locomoção, retirar uma criança do sistema de retenção no banco da retaguarda, examinar algum dos componentes do motor, remover um obstáculo na faixa de rodagem, ou se dirigir pelo exterior ao porta bagagens para tirar um qualquer objecto. Nomeadamente, por exemplo, o condutor de veículo avariado ou acidentado numa auto-estrada, enquanto aguardasse no exterior do mesmo pela chegada dos serviços de ajuda, seria considerado como peão, com a natural consequência de cair em desrespeito ao disposto no art. 72.º, nº 1 do Código da Estrada.
É como “condutor” que o legislador o considera e responsabiliza, por exemplo, quando, em caso de imobilização forçada de um veículo em consequência de avaria ou acidente, lhe impõe que promova a sua rápida remoção da via pública, e, enquanto o veículo não for devidamente estacionado ou removido, adopte as medidas necessárias para que os outros se apercebam da sua presença, usando para tanto os dispositivos de sinalização (art. 87.º, nºs 1, 3 e 5 e 68.º, nº 1 do Código da Estrada), e quando efectua uma paragem (ex. para carga ou descarga) ou estacionamento proibidos (arts. 48.º a 50.º do Código da Estrada).
Todas estas situações correntes estão marcadamente conexionadas com a pilotagem do veículo, com a sua circulação, por isso que o seu agente não perde a condição de “condutor” do veículo que detinha até elas ocorrerem. Com isso se harmoniza o art. 135.º, nº 3, al. a) do Código da Estrada ao determinar que a responsabilidade pelas infracções nele prevista e na legislação complementar recai no “Condutor do veículo, relativamente às infrações que respeitem ao exercício da condução”.
No caso vertente, verifica-se que no dia 4/12/2017 o Autor estacionou o veículo “GV”, que trazia a si atrelado a galera com matrícula L - ....4, no parque de estacionamento do Restaurante B..., sito à E.N. 101, Concelho ....
Considerando, na esteira do entendimento jurisprudencial supra enunciado, que “condutor” é não só quem está ao volante no exercício da direção do veículo, mas também aquele que esteve nesse desempenho até à sua imobilização (paragem ou estacionamento), conclui-se que o Autor era, à data, o condutor do veículo seguro.
Discorda-se, assim, do conceito restrito de condutor adotado pelo Autor, segundo a qual «condutor é aquele que tem a direção efetiva do veículo, o controlo e domínio do mesmo, durante o exercício da condução», «E o Autor, nas circunstâncias em que ocorreu o acidente, não tinha essas funções, ou seja, não tinha o domínio, o controlo e a direção do veículo.»
Como vem sendo entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, vd. o Acórdão de 01/12/2015, supra referido, o contrato de seguro obrigatório automóvel exige a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil.
É para este regime da responsabilidade civil que remetem as disposições dos artigos 4.º, n.º 1, 11.º, n.º 1 e 15.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21/08, diploma legal aplicável em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em vigor à data do acidente.
Particularmente, dispõe-se naquele artigo 11.º, n.º 1, alínea a), que “O seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º abrange: a) Relativamente aos acidentes ocorridos no território de Portugal a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil”, e no artigo 15.º, n.º 1, que “O contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 4.º e dos legítimos detentores e condutores do veículo”.
O regime regra da responsabilidade civil extraobrigacional encontra-se previsto no art.º 483.º.
Dispõe o n.º 1, do art.º 483.º, que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Por sua vez, estabelece o n.º 2, do referido normativo, que “Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.”
Decorre do referido normativo que a responsabilidade objetiva, ou pelo risco, é excecional.
Conforme escrevem Maria da Graça Trigo e Rodrigo Moreira, em anotação ao art.º 499.º, in Comentário ao CCivil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 383 e 384, «A regra no nosso direito é que a imputação de danos a outrem que não o lesado depende de um juízo de censura sobre a sua conduta, por força da culpa ou dolo que o animou».
(…) «A responsabilidade pelo risco não é definida por meio de uma clausula geral, como acontece com a responsabilidade por factos ilícitos e culposos (artigo 483.º, n.º 1), mas sim por via de numerus clausus. Comum a todos os casos de responsabilidade pelo risco é a inexistência de um juízo de culpa como requisito para se adstringir alguém ao dever de indemnizar.»
Da exegese do n.º 1, do citado art.º 483.º, resulta, tal como tem sido generalizadamente considerado pela doutrina, cf., por todos, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, p. 525 e ss.; Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 367 e ss. e Galvão Teles, Direito das Obrigações, p. 215 e ss., que os pressupostos, requisitos ou elementos da responsabilidade civil por factos ilícitos são o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Assim, para que exista obrigação de indemnizar, baseada em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, torna-se mister que se verifiquem todos os referidos pressupostos, sendo certo que, por força do critério geral estabelecido no art.º 342.º, complementado neste particular pelo disposto no art.º 487.º, incumbe a quem invoque a seu favor o direito à indemnização alegar e provar os factos pertinentes.
Ora, da matéria de facto apurada resulta, desde logo, que não se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, desde logo, a prática de um facto ilícito, entendido tal conceito, como deriva do citado art.º 483.º, como infração de um direito subjetivo de outrem, na medida em que o direito violado com a atuação do Autor, foi o direito à sua própria integridade física, não sendo, assim, possível a imputação de danos a outrem que não o lesado.
No âmbito da responsabilidade objetiva ou pelo risco, dispõe o art.º 503.º, n.º 1, que “Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.”
Conforme ensina Raul Guichard, em anotação ao art.º 503, Obra citada, p. 401, «A responsabilidade instituída no artigo 503.º configura uma responsabilidade objetiva do «utilizador» ou «detentor» do veiculo (pelo acréscimo de perigo que este representa e como contrapartida dos benefícios auferidos por quem dele tira partido – ubi commodum, ibi incommodum).»
No caso, infere-se da matéria de facto apurada que a entidade patronal do Autor (a dona ou proprietária do veículo) tinha a direção efetivado veículo e utilizava-o no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário (condutor), pelo que respondia pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo.
Mesmo que o Autor fosse um comissário, não seria aqui aplicável a presunção de culpa prevista no art.º 503.º, n.º 3, 1.ª parte, a qual opera no domínio das relações externas, entre condutor/comissário, como lesante, e lesados), como resulta do Assento n.º 1/83, de 14/04/1983, publicado em DR, 1.ª Série, de 28/06/1983, hoje com valor uniformizador de jurisprudência.
A responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º é, no entanto, afastada se o acidente for imputável ao próprio lesado, culposo ou não, tal como decorre do disposto no art.º 505.º.
Conforme ensina ainda Raul Guichard, em anotação ao artigo 505.º, Obra citada, p. 415, «o termo «imputável» é utilizado no sentido (…) de o acidente se apresentar como consequência de facto «atribuível» ou «devido» à vítima ou a terceiro, causado por estes.»
(…) «Nesta ordem de ideias, afastarão ainda a responsabilidade comportamentos automáticos, ditados por medo invencível ou reações instintivas (fuga desordenada, natural instinto de defesa, impulso incontrolável».
Acrescenta o mesmo autor que «Quando houver concorrência de causalidade, em relação ao dano, entre o facto (não culposo) do lesante – a condução do veículo, se se quiser – e a do lesado, embora a lei não o expresse, a responsabilidade não estará arredada. Ou, dito de outro modo (com as palavras de ANTUNES VARELA), e mais genericamente, o facto do lesado só afasta a responsabilidade pelo risco se quebrar ou interromper «o nexo de causalidade adequada entre a actuação do condutor do veículo e o acidente» (e, na medida em que o quebre, poderá juntar-se).»
Escreve-se, por sua vez, no Acórdão do tribunal da Relação de Guimarães de 13/10/2022, Proc. 1793/19.7T8GMR.G1, que «Em tese geral, vem sendo perfilhado pela doutrina e jurisprudência mais recente o entendimento de que o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos artºs 505º e 570º do Código Civil deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa. Segundo a “tese actualista ou progressista”, o artº. 505º do Código Civil consagra a regra do concurso da culpa do lesado ou terceiro com o risco próprio da circulação do veículo, ou seja, a responsabilidade objectiva do detentor pode permanecer não obstante o evento danoso ter sido devido a facto do lesado ou de terceiro, havendo a esse concurso que aplicar, supletivamente, o disposto no artº. 570º do Código Civil; logo, essa responsabilidade só resulta excluída quando tal evento for de atribuir unicamente ao próprio lesado ou a esse terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do dito veículo.»
Ora, no caso vertente, o Autor reparou que o seu veículo estava a deslocar-se sozinho, correu em direção ao mesmo, subiu à cabine e agarrou-se à porta do lado do condutor, com o intuito de a tentar abrir de forma a aceder ao interior do trator, comportamento este destinado a tentar parar a circulação do veículo. E assim continuou o Autor, agarrado ao exterior da porta do condutor, num veículo pesado em movimento, que continuou a sua marcha, invadindo a E.N. 101, em flexão para a esquerda face à inclinação da via, e de seguida a berma esquerda, atento o seu sentido de marcha, passados que foram mais de 136 metros desde o início da sua circulação, altura em que a lateral esquerda do trator e consequentemente também o Autor vieram a embater num sinal vertical existente no terreno adjacente à berma, embate que provocou a queda do Autor e fez com que os rodados do veículo passassem por cima/colhessem ambas as pernas do Autor, provocando-lhe graves lesões, que determinaram a amputação de ambas as pernas.
Não fora a sua atuação, o acidente/atropelamento do Autor seguramente não teria ocorrido, o que permite concluir que o acidente resultou unicamente do comportamento do próprio Autor, o que, por sua vez, afasta a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º.
Concomitantemente, conclui-se que foi o Autor, lesado, o responsável pelo acidente, e nessa medida, verifica-se a causa de exclusão da garantia do seguro prevista no art.º 14.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do DL. n.º 291/2007.
É que, nos termos do art.º 4.º, do mencionado diploma legal, a obrigação de seguro recai sobre toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela “reparação de danos (…) causados a terceiros” por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico.
Conforme se escreve no Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 12/07/2017, Proc. 2078/12.5TBPBL.C1, «a noção de terceiros tem vindo a sofrer progressivos alargamentos no campo do seguro obrigatório automóvel, de molde a cada vez mais, ante a função social deste seguro, incluir todas as vítimas dos acidentes de viação, garantindo-lhes a correspondente indemnização. Porém, há que atender aqui a um princípio básico dos seguros de responsabilidade civil, traduzido na oposição irredutível entre os conceitos de responsável, por um lado, e vítima, por outro lado, de modo a que ou se esteja abrangido pelo primeiro ou já pelo segundo desses conceitos, não podendo ser-se responsável e vítima ao mesmo tempo.
É, pois, na conjugação do critério postulado por este princípio básico e originário com a ideia, mais recente, de progressivo alargamento da abrangência do seguro obrigatório automóvel, ante a sua cada vez mais marcada função social, a qual leva ao paulatino estender da esfera de proteção a todos os que, sofrendo danos, são lesados – centrando o enfoque, já não tanto na relação contratual de seguro, em si, mas sobretudo na relação de responsabilidade decorrente do acidente –, que se alcança hoje, afinal, o recorte jurídico da figura dos “terceiros”.
Mas esta figura conceitual complexa tem ainda limites decorrentes das exclusões a que alude o citado art.º 14.º da LSOA, levando, nesta vertente, a uma definição pela negativa (“excluem-se da garantia do seguro…”), como ocorre, desde logo, com o condutor do veículo.
Este não é terceiro, estando totalmente afastada, quanto a si, a indemnização de quaisquer danos ao abrigo do seguro obrigatório automóvel. Na verdade, o condutor do veículo não tem direito, ao abrigo da garantia do seguro obrigatório, a indemnização por danos corporais, nem por quaisquer danos materiais – cfr. art.º 14.º, n.ºs 1 e 2, al.ª a), da LSOA (anterior art.º 7.º, n.ºs 1 e 2, al.ª a), do DLei n.º 522/85).
Compreende-se a razão de ser desta exclusão: trata-se de danos sofridos pelo próprio condutor do veículo seguro, isto é, o condutor responsável pelo acidente e pelos decorrentes danos. Ora, sendo o responsável pelo sinistro, não é terceiro. Os seus danos, a si próprio imputáveis, sendo da sua responsabilidade pessoal, não são passíveis de indemnização pelo seguro obrigatório automóvel.
É que o seguro obrigatório automóvel, como seguro de responsabilidade civil que é, encontra-se estabelecido sobre a ideia de relação de oposição irredutível entre responsável e lesado, entre causador do sinistro e vítima dele, sendo a proteção do seguro dirigida aos lesados/vítimas e não aos condutores/responsáveis, cujos danos a si próprios são imputáveis, não se podendo ser, como dito, responsável e vítima”.

II. 3. Vejamos, as questões suscitadas pelo autor pela sua ordem de precedência lógica e processual, que não coincide, com a por si seguida no recurso.
Com efeito, primeiro devemos apreciar se se verificam os alegados pressupostos da responsabilidade extra-contratual, no caso pelo risco, em que o autor sustenta a sua pretensão e, depois apenas, depois, a questão da responsabilidade pela indemnização pelos danos sofridos, reportada aqui à transferência da responsabilidade civil emergente do veículo acidentado para a ré, por força do contrato de seguro.
Com efeito, previamente às normas do seguro obrigatório haverá que indagar da ressarcibilidade dos danos à luz das regras do regime da responsabilidade civil extra-contratual, já que excluído o direito de indemnização em sede geral, não há que indagar concretamente em que termos é que o mesmo vem equacionado em matéria daquele seguro.
E sendo o condutor culpado no acidente que o vitimou, não haverá lugar a qualquer indemnização em virtude dos danos que ele próprio sofreu.
Mas sendo certo que estamos, como seria normal perante 1 só acidente de viação, o caso sub judice apresenta a particularidade de ter apenas um veículo como interveniente e, da mesma forma, 1 pessoa como lesada – o condutor que o havia estacionado cerca de meia hora antes.
Assim sendo e, tendo presente que a causa de pedir numa acção de responsabilidade civil com base em acidente de viação se afigura como complexa, a questão da culpa entronca, quer na questão da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil – apesar de a causa de pedir vir estruturada em teros de responsabilidade pelo risco, quando é certo que agora em sede de recurso o autor pretende ver afirmada uma situação de concorrência de culpa, sua e de risco da circulação do veículo – quer na de saber se estaremos perante um caso de exclusão da garantia do seguro, traduzida na exclusão dos danos do condutor do veículo responsável.
Donde, depois de se decidir da primeira questão - não obstante, em tese, poder ficar prejudicado o conhecimento da segunda, se, afinal, se concluir pela não verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil – ainda assim, abordaremos a questão da cobertura, ou não, da cobertura da responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo acidentado, que a sua proprietária transferiu para a ré, que, da mesma forma, tem subjacente a questão da identificação “do condutor do veículo responsável pelo acidente”.
Quando se alude a acidente imputável ao próprio autor, condutor, lesado, ou condutor do veículo responsável pelo acidente, quer-se dizer, antes de mais nada, acidente devido a facto culposo do lesado, acidente causado pela conduta censurável do autor, condutor, lesado.
Isto é, ambas as questões têm um ponto comum, de contacto, intimamente interligado, a saber, a quem pode ser assacada a, responsabilidade, a culpa do acidente.
E, no segundo caso ainda, é certo saber se o autor pode ser considerado como o condutor do veículo acidentado.
Importa assim, desde logo, saber até que ponto terá cabimento na nova situação de concurso entre a culpa do lesado e a responsabilidade pelo risco derivada da circulação do veículo, a indemnização pelos danos sofridos pelo autor – até independentemente da qualidade de condutor – vítima, acidentada, com a exclusão de qualquer outro interveniente.
E, só depois, surge a questão do seguro de responsabilidade civil, no caso obrigatório, do ramo automóvel.
Com efeito, só se verificados os pressupostos da responsabilidade civil - culpa/dolo/risco, violação do direito de outrem, dano e nexo de causalidade entre o facto e dano – se coloca a questão da responsabilização, ou não, pelo ressarcimento dos danos causados, a cargo a seguradora.

II. 3. 1. Os pressupostos da responsabilidade civil.

Entende o autor que,
- ainda que se entendesse que era condutor e tendo presente que não estaria excluído da garantia do seguro, sempre a ré terá responder nos termos do artigo 503.º/1 CCivil;
- a proprietária do veículo e segurada da ré, utilizava o veículo no seu próprio interesse, além disso o sinistro ocorreu por avaria do veículo, sem qualquer responsabilidade do autor;
- admitindo o concurso de responsabilidades, entre o risco próprio do veículo e a actuação do autor, sempre a ré teria que ser condenada ao abrigo do artigo 505.º CCivil, norma que se entende actualmente acolher a regra do concurso de culpa do lesado com o risco do próprio veículo;
- tese, que contudo é afastada dado que se entendeu que a culpa é exclusivamente sua;
- a decisão recorrida está em manifesta oposição com a tese que passou a ser acolhida na jurisprudência, não tendo feito uma interpretação actualista e progressista do artigo 505.º;
- que no caso deve conduzir à subsunção de uma situação de concurso de causas de dano à norma da repartição do dano, do artigo 570.º CCivil, repartição que deve ser efectuada em igual proporção de 50% para o lesado e 50% para o risco do veículo;
E, daqui defende a violação, por errada interpretação e aplicação, do disposto nos artigos 503.º, 505.º e 570.º CCivil.
Diz a ré ser manifesto que existiu culpa do autor, por violação do seu dever de cuidado perante um veículo em movimento, o que levou à produção dos danos, razão pela qual o dever de indemnização se encontra excluído, nos termos do disposto nos artigos 505.º e 570.º CCivil, para o que alinha o seguinte raciocínio:
- as lesões que o autor sofreu decorreram unicamente do seu comportamento temerário, ao subir para um veículo pesado em movimento, com portas fechadas e num local com acentuado declive;
- o artigo 505.º CCivil dispõe que a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo;
- acidente imputável ao próprio lesado quer significar acidente a ele atribuível, devido a facto por ele praticado, culposo ou não e, no caso, não existe nenhuma dúvida que o acidente se verificou exclusivamente pela conduta do autor, que tentou travar a marcha do veículo em movimento numa acentuada descida;
- veículo, pesado de mercadorias articulado, com um acesso ao fecho das portas muito elevado, o que implica desde logo que se tenha de subir a uma altura considerável, com a perda de tempo que tal necessidade implica e o autor, ao se aproximar do veículo estacionado, não tinha como não saber que a porta trancada impedia o acesso ao interior da viatura;
- veículo que veio a adquirir velocidade suficiente para continuar a marcha, invadir a berma a mais de 136 metros desde o início da sua circulação, a embater num sinal vertical e ainda assim apenas se imobilizar a 25 metros daquele ponto;
- nunca o autor deveria ter tentado entrar dentro do seu veículo quer pelas dimensões do mesmo, quer pelas características do local, quer pela dificuldade e risco que tal possibilidade implicava – o que contribuiu exclusivamente para as lesões e sequelas que sofreu;
- está assim preenchida a exclusão prevista no artigo 505.º, com o facto de o autor ter tentado entrar dentro de uma viatura em movimento, o que foi determinante para o resultado final - não fosse o seu comportamento temerário, a colocar-se numa situação de manifesto e evidente risco, jamais teria sofridos os danos que sofreu.
Vejamos.
Não há margem para dúvida que estamos, no caso, perante um acidente de viação na noção comummente aceite de acontecimento fortuito, súbito e anormal ocorrido na via pública em consequência da circulação rodoviária, de que resultem vítimas ou danos materiais, quer o veículo se encontre ou não em movimento.
O autor intentou a presente acção com base na responsabilidade pelo risco, como vimos. Tendo-se concluído ser de imputar o acidente a culpa sua, recorre agora pretendendo ver afirmada uma situação de concurso entre a culpa e o risco.
Provado vem que,
- no dia 04/12/2017, o Autor tinha estacionado o veículo “GV”, o qual trazia a si atrelado a galera com matrícula L - ....4, no parque de estacionamento do Restaurante B..., sito à E.N. 101, Concelho ..., do lado direito da via atento o sentido ... – ... e direcionado nesse sentido;
- ao estacionar o veículo no referido parque de estacionamento, o Autor travou devidamente o veículo;
- o local, atento o sentido em que o veículo se encontrava direcionado, é de acentuado declive descendente e inclinação para a esquerda, atento o sentido supra referido;
- o Autor, ao sair do referido estabelecimento de restauração, reparou que o seu veículo estava a deslocar-se sozinho, pelo que correu em direção ao mesmo;
- entre o estacionamento e a saída do restaurante mediaram, pelo menos, 30 minutos, durante os quais o veículo permaneceu imóvel;
- durante o lapso de tempo em que o veículo ficou estacionado verificou-se uma avaria mecânica no sistema de travagem, a qual foi a causa do início da marcha do veículo;
- o autor subiu à cabine, agarrando-se à porta do lado do condutor, com o intuito de a tentar abrir de forma a aceder ao interior do trator, comportamento este destinado a tentar parar a circulação do veículo;
- o “GV”, com o autor agarrado à porta do condutor, apesar de ter embatido na lateral esquerda do veículo pesado de mercadorias com matrícula ..-IE-.., que se encontrava também ele estacionado no parque do Restaurante B..., continuou a sua marcha, fletindo à esquerda e invadindo a E.N. 101, com o autor agarrado ao exterior da porta esquerda, em flexão para a esquerda, face à inclinação da via nesse sentido;
- o “GV” conseguiu passar por uma curva que se desenrolava para a esquerda atento o seu sentido de marcha, aproximando-se cada vez mais da berma esquerda;
- o autor não largou a porta a que estava agarrado, facto que implicou que, quando o “GV” invadiu a berma esquerda, atento o seu sentido de marcha, passados que foram mais de 136 metros desde o início da sua circulação, veio a lateral esquerda do trator e consequentemente também o autor a embater num sinal vertical existente no terreno adjacente à berma;
- embate que provocou a queda do autor;
- os rodados do pesado, o qual só se imobilizou a 25 metros daquele ponto de embate, passaram por cima/colheram ambas as pernas do autor.
São estes os factos com base nos quais há que apreciar a matéria atinente com a responsabilidade civil extra-contratual no âmbito do verificado acidente de viação.
A responsabilidade por factos ilícitos, com base na culpa, é a regra, na medida em que só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei, cfr. artigo 483.°/2.
E, então, há que distinguir, desde logo, entre responsabilidade civil por factos ilícitos, cfr. artigo 483.º e ss. CCivil e responsabilidade pelo risco, cfr. artigos 499.° a 510.°.
Isto sem embargo de na regulamentação desta última, constarem frequentes apelos à culpa, cfr. artigos 500.°/3, 503.º/3 e 506.°.
Por outro lado, é ao lesado que incumbe provar todos os pressupostos fixados no artigo 483.°/1, designadamente, a culpa, salvo quando haja presunção legal de culpa, cfr. artigo 487.°/1, isto porque, quem tem a seu favor presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz, cfr. artigo 350.°/1.
Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, cfr. artigo 487.°/2.
O elemento básico da responsabilidade é o facto do agente - um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana - pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia da ilicitude, o requisito da culpa e a obrigação de reparar o dano nos termos em que a lei a impõe, neste sentido, Antunes Varela, in, Das Obrigações em Geral, I, 9.ª edição, 545, mas, fundamental na responsabilidade por factos ilícitos, por culpa, além da ilicitude (elemento objectivo, o autor agiu objectivamente mal), é essencial concluir que a conduta do lesante se pode considerar reprovável, censurável.
Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo, neste sentido, ob. e loc. citados, 582.
Culpa efectiva, provada, e culpa presumida são uma e a mesma coisa, designadamente para afastar a indemnização devida pela responsabilidade pelo risco, pois, as presunções, enquanto “ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”, cfr. artigo 349.°, podem resultar tanto da lei, cfr. artigo 350.º, como das regras da experiência e da vida do julgador, cfr. artigo 351.º, reconhecendo-se que a prova da inobservância de leis ou regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência.
Feitas estas considerações - apesar de a causa de pedir em que o autor estrutura a sua pretensão, não se basear na culpa, mas pertinentes, porque a decisão recorrida imputa ao autor, lesado, a culpa exclusiva no acidente – há, então, que ter presente que a responsabilidade civil, no domínio dos acidentes de viação, não se esgota com a verificação do dolo ou culpa dos intervenientes, pois que ela é objectiva no caso de risco – em que se prescinde do elemento subjectivo da culpa.
Estatui o artigo 499.º, a abrir a subsecção da responsabilidade pelo risco, que “são extensivas aos casos de responsabilidade pelo risco, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos”.
O fundamento da responsabilidade pelo risco não reside, então, na verificação de um acto culposo, mas sim no controle de um risco, no controle de potenciais danos, aliado ao princípio da justiça distributiva, segundo a qual quem tiver o lucro ou em todo o caso, o benefício de uma certa coisa, deve suportar os correspondentes encargos - ubi commodum ibi incommodum.
E, assim, dispõe o artigo 503.º/1 que, “aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.
Por isso, é ao proprietário que cabe a direcção efectiva do veículo, que o vê a circular no seu próprio interesse, gozando de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição do veículo.
Dito isto, a questão aqui em apreciação centra-se em saber se, como se decidiu, a culpa do acidente é exclusiva do próprio lesado, ou se é caso, como agora defende o autor, de concorrência entre a culpa do lesado e o risco da circulação do veículo acidentado.
Afastada a possibilidade de imputação de culpa a qualquer outro interveniente – que não existiu - então seria caso de fazer operar a apontada presunção judicial, a presunção legal de culpa prevista no artigo 503.º/3, dada a provada relação de comissão entre o condutor do veículo e a sua proprietária.
A responsabilidade pelo risco, no caso de veículo de circulação terrestre, repercutir-se-ia na esfera jurídica da ré/seguradora por força do contrato de seguro que cobre os riscos inerentes à circulação do dito veículo.
E, assim, prima facie reconhecer-se-ia a responsabilidade pelo risco – afastada, como vimos, na decisão recorrida.
Importa, assim, enfrentar a situação, delineada no recurso, com especial enfoque na questão da exclusão da responsabilidade objectiva, prevista no artigo 503.º.
Com efeito, dispõe o artigo 505.º que, “sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.
E, então, numa aproximação à questão trazida, agora, pelo autor – que recorde-se, na petição inicial estruturou a sua pretensão indemnizatória na responsabilidade pelo risco, tendo alegado, que durante o lapso de tempo em que o veículo ficou estacionado se verificou uma avaria mecânica no sistema de travagem, a qual foi a causa do início da marcha do veículo (facto provado, de resto) - vinha-se entendendo que não era legalmente admissível o concurso da culpa do lesado com o risco próprio da circulação do veículo, invocando-se, para o efeito, o regime jurídico decorrente do artigo 570.º/2.
Só que a partir do acórdão do STJ de 4.10.2007, consultado no site da dgsi, passou a admitir-se, à luz de uma nova leitura do artigo 505.º, a viabilidade de um concurso de culpa do lesado com o risco próprio do veículo, sempre que ambos tenham contribuído para a produção do dano.
Com efeito, por maioria, entendeu-se que, “o artigo 505.º CCivil deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.
Pelo seu inegável interesse e impacto, aqui se reproduz o sumário: “I - A causa de pedir, nas acções de indemnização por acidente de viação, é o próprio acidente, e abrange todos os pressupostos da obrigação de indemnizar. Se o autor pede em juízo a condenação do agente invocando a culpa deste, quer presuntivamente que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar. E assim, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu.
II - De acordo com a jurisprudência e a doutrina tradicionais, inspiradas no ensinamento de Antunes Varela, em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505º do CC – maxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado – exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade: a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado.
III - Esta corrente doutrinal e jurisprudencial, conglobando na dimensão exoneratória do art. 505º, e tratando da mesma forma, situações as mais díspares – nas quais se englobam comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por medo ou reacção instintiva, factos das crianças e dos inimputáveis, comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, etc. – e uniformizando as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados, conduz, muitas vezes, a resultados chocantes.
IV - Mostra-se também insensível ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário, do âmbito da responsabilidade pelo risco, e da expressa consagração da hipótese da concorrência entre o risco da actividade do agente e um facto culposo do lesado, que tem tido tradução em recentes diplomas legais, que exigem, como circunstância exoneratória, a culpa exclusiva do lesado, bem como à filosofia que dimana do regime estabelecido no CT para a infortunística laboral.
V - O texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
VI - Ao concurso é aplicável o disposto no art. 570º do CC.
VII - A este resultado conduz uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que tal norma é aplicada, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça.
VIII - Ademais, na interpretação do direito nacional, devem ser tidas em conta as soluções decorrentes das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, já que as jurisdições nacionais estão sujeitas à chamada obrigação de interpretação conforme, devendo interpretar o respectivo direito nacional à luz das directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas.
IX - Não pode, no caso concreto, concluir-se que o acidente é unicamente ou exclusivamente imputável à menor, condutora do velocípede, e que o veículo automóvel foi para ele indiferente, isto é, que a sua típica aptidão para a criação de riscos não contribuiu para a eclosão do acidente.
X - Na verdade, não obstante a actuação contravencional da menor, que manifestamente contribuiu para o acidente, a matéria de facto apurada permite também concluir que a estrutura física (as dimensões, a largura) do veículo automóvel, na ocasião timonado por uma condutora inexperiente, habilitada há menos de seis meses, está inelutavelmente ligada à ocorrência do acidente.
XI - Na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela menor deve, depois de determinado o seu valor, de acordo com a equidade, fazer-se funcionar o critério da repartição do dano, nos termos do art. 570.º do CC, não se perdendo de vista a própria condição da vítima, decorrente da sua idade, ao tempo da produção do dano, não podendo valorar-se a sua conduta causal por critério igual ao que seria aplicável a um ciclista adulto”.
Acórdão anotado por Calvão da Silva na RLJ, 137.º, 3946, 35 e ss., com o título “Concorrência entre risco do veículo e facto do lesado: o virar da página?” onde refere que interpreta assim o artigo 505.º CCivil, “sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Equivale isto a admitir o concurso da culpa da vítima com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. Afora o caso de o facto do lesado (como o facto de terceiro) ter sido a causa única do dano, a responsabilidade fixada pelo nº 1 do art. 503º não é afastada, admitindo-se que a indemnização seja totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
(…)
Não faz sentido interpretar a 1ª parte do artigo 505.º (“sem prejuízo do disposto no artigo 570.º”) como aplicável «havendo culpas de ambas as partes», pois a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º não assenta na culpa do detentor do veículo e o concurso da conduta culposa do detentor/condutor como um facto culposo do lesado está previsto directamente no artigo 570º”.
Entretanto esta questão atinente ao concurso do risco do responsável com a culpa do lesado gerou um reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia pedindo que se pronunciasse sobre a interpretação a dar à 3.ª Directiva Automóvel – artigo 1.º-A - e se ela se opõe ao segmento do direito nacional interpretado no sentido de impedir assim que concorresse com a culpa do menor a responsabilidade pelo risco por parte do veículo ligeiro, tendo, a propósito, sido proferido Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 9 de Junho de 2011 (a merecer comentários de Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandes, in, Cadernos de Direito Privado, nº 34, Abril/Junho 2011, páginas 3 a 19, outrossim, como sequela do aludido reenvio foi proferido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 2012 (Processo n.º 100/10.9YFLSB, in, www.dgsi.pt), em cujo dispositivo se enunciou: “A Directiva 72/166/CEE do Conselho de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título de seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”.
E, assim, a partir de então, numa interpretação actualista esta passou a ser a orientação, quer da doutrina, quer da jurisprudência, a traduzir uma interpretação não mecânica do artigo 505.º, no sentido de que não implica “uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa”, neste sentido, cfr. acórdãos do STJ de 14.12.2017, de 11.1.2018 e de 17.10.2019, consultados no site da dgsi.
Está, pois, actualmente firmada no STJ esta orientação, cfr. entre os mais recentes, os acórdãos de 26.5.2021, “a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem admitido que uma interpretação atualista das normas conjugadas dos artigos 505.º e 570.º, n.º 2, ambas do Código Civil, comporta a possibilidade de, em determinados quadros fácticos, se aceitar um concurso entre responsabilidade pelo risco do veículo e culpa do lesado”, de 22.6.2021, “I - A jurisprudência do STJ vem-se firmando actualmente no sentido da admissibilidade da concorrência entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo e a culpa do lesado (ou imputação do acidente ao lesado), devendo interpretar-se o artigo 505.º CCivil no sentido de que a responsabilidade pelo risco só deve ser afastada quando o acidente for imputável exclusivamente ao próprio lesado ou a terceiro ou resultar exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
II - Ocorrendo um acidente que consistiu num embate entre um veículo pesado de mercadorias e um velocípede sem motor – em que este se atravessou à frente daquele, não permitindo evitar a colisão; que tal ocorreu depois de o velocípede ter entrado na faixa de rodagem, de forma desgovernada, em ziguezague, em direcção ao eixo da via, em consequência de desequilíbrio anterior da tripulante, provocado por razões não apuradas; que não houve culpa do condutor do veículo pesado – deve considerar-se que, nessas circunstâncias, apesar da acentuada relevância causal da conduta da tripulante do velocípede, a gravidade da sua culpa é reduzida, concorrendo com os riscos próprios da circulação do veículo pesado para a eclosão do acidente” e de 9.3.2022, “I - O artigo 505.º CCivil deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
II - Um veículo automóvel em marcha contribui, devido à força cinética resultante da sua velocidade, o volume e a massa (tudo riscos próprios da circulação do veículo), para a violência da projeção decorrente do embate, tendo aptidão para provocar lesões potencialmente letais”.
Na doutrina, por absolutamente paradigmático, citamos, tão só, Brandão Proença que na sua tese de doutoramento do ano de 1997, “A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual”, 275-276, defende que “a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece, hoje, que, por exemplo, o peão e o ciclista (esse «proletariado do tráfego» de que alguém falava) são vítimas de danos, resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas» vias) ou de «condutas» sem consciência do perigo (maxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução”, de tal modo que bem pode dizer-se “que esse risco da condução compreende ainda esses outros «riscos-comportamentos» ou que estes não lhe são, em princípio, estranhos”.
Ou, como refere Graça Trigo, in “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação”, in Estudos de homenagem ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, vol. II, UCP, 2015, 486-487 que, “sempre que o veículo se encontre em circulação, a respectiva força cinética faz com que seja causa adequada dos danos ocorridos, mesmo que a conduta do lesado, culposa ou não, tenha sido concausal em relação ao acidente de que resultaram os danos”.
Isto é, há que ter presente o risco da circulação estradal de um qualquer veículo automóvel, não sendo irrelevante na ocorrência do acidente a dinâmica própria da sua circulação.
Ao veículo automóvel em marcha se fica a dever, devido à força cinética resultante da sua velocidade (ainda dentro do limite máximo permitido para a circulação dentro da localidade), o volume e a massa (tudo riscos próprios da circulação do veículo), a violência da projecção decorrente do embate e a sua aptidão para provocar lesões potencialmente letais.
Como bem reconhece o apelante, de resto, a decisão recorrida ao concluir que a culpa na produção do acidente lhe coube, na totalidade, a si próprio, arredou a possibilidade da tese progressista, ou seja, a concorrência entre o risco e o facto lesado, que nem sequer equacionou ou apreciado.
Questão que apenas se colocaria, pertinentemente, como vimos já, se não fosse caso de culpa exclusiva do autor.
Como se refere, de resto, na jurisprudência, pacífica, citada pelo apelante – que a apelada tem como não aplicável ao caso concreto,
- o artigo 505.º acolhe a regra do concurso de culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo;
- donde, a simples culpa ou mera contribuição do lesado para a consecução do dano não é de molde a excluir a responsabilidade pelo risco.
E, assim, se na decisão recorrida se afastou a responsabilidade com base no risco, por se ter concluído pela culpa exclusiva do lesado, não ocorre qualquer contradição com a jurisprudência, que vem aceitando a mencionada tese do concurso de culpa e risco em sede de acidentes de viação.
Com efeito.
Uma vez que nem sequer vem configurada a responsabilidade pela culpa de qualquer outro interveniente - que não existiu, de resto - caberia aferir se a obrigação de indemnizar se fundamenta em facto danoso gerador de responsabilidade objectiva, porque incluído na zona de riscos a cargo de pessoa diferente do lesado.
Cremos bem, contudo, como de resto alegou e provou, o autor que desde logo se verifica uma situação de exclusão da responsabilidade pelo risco - e, por isso, da possibilidade de concorrência, que agora, tardiamente, no recurso, defende, quando alegara na petição inicial que o acidente se ficou a dever a uma avaria no sistema de travagem do veículo, a traduzir, assim, uma causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Situação, esta, que, desde logo e, só por si, conduz à exclusão, primeiro, da responsabilidade pelo risco e, agora, como vimos, da possibilidade de concorrência entre a culpa do lesado e o risco da circulação do veículo.
Mas, também, se verifica a outra circunstância de exclusão da responsabilidade pelo risco e, agora, também da possibilidade de concorrência entre a culpa do lesado e o risco da circulação do veículo – seja, a afirmada culpa exclusiva do lesado.
Com efeito, como se demonstrou na decisão recorrida, os factos provados patenteiam um caso paradigmático de culpa do lesado.
E, cremos bem, que, no caso, se não verifica, desde logo, a violação ilícita de qualquer direito do autor. Isto porque, a ilicitude - que é sempre algo contrário ao Direito, traduzida em actos ou omissões, que violem disposições da lei, do interesse e ordens públicas, ou normativos destinados a proteger interesses de terceiros – aqui, reside na sua própria conduta.
Esta ilicitude emerge directamente da sua apurada conduta violadora das mais elementares e básicas regras de segurança, a que está obrigado e de que era capaz.
Ninguém duvidará que as normas que disciplinam a circulação rodoviária, designadamente as do Código da Estrada, visam prevenir, desde logo, o dano da vulneração da vida e da integridade física dos que circulam nas estradas, bem como os bens materiais inerentes.
A apurada conduta do autor, bem evidencia um comportamento que quebra o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e os danos, excluindo a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, na medida em que o dano deixa de ser um efeito adequado do risco desse veículo.
Com efeito,
- depois de ter estacionado o veículo, que trazia a si atrelado a galera, depois de o ter, devidamente, travado, no parque de estacionamento de um restaurante, num local de acentuado declive descendente e inclinação para a esquerda,
- ao sair do restaurante, pelo menos, 30 minutos depois, reparou que o veículo estava a deslocar-se sozinho, pelo que correu na sua direcção ao mesmo,
- durante o lapso de tempo em que o veículo ficou estacionado verificou-se uma avaria mecânica no sistema de travagem, a qual foi a causa do início da marcha do veículo,
- subiu à cabine, agarrando-se à porta do lado do condutor, com o intuito de a tentar abrir de forma a aceder ao interior do tractor, comportamento este destinado a tentar parar a circulação do veículo,
- o veículo, com o autor agarrado à porta do condutor, apesar de ter embatido na lateral esquerda do veículo pesado de mercadorias com matrícula ..-IE-.., que se encontrava também ele estacionado no parque do Restaurante B..., continuou a sua marcha, flectindo à esquerda e invadindo a EN, com o autor agarrado ao exterior da porta esquerda, em flexão para a esquerda, face à inclinação da via nesse sentido,
- conseguiu passar por uma curva que se desenrolava para a esquerda atento o seu sentido de marcha, aproximando-se cada vez mais da berma esquerda,
- o autor não largou a porta a que estava agarrado, o que implicou que, quando o veículo invadiu a berma esquerda, atento o seu sentido de marcha, passados que foram mais de 136 metros desde o início da sua circulação, veio a lateral esquerda do tractor e consequentemente também o autor a embater num sinal vertical existente no terreno adjacente à berma, o que provocou a queda do autor, tendo os rodados do pesado, o qual só se imobilizou a 25 metros daquele ponto de embate, passado por cima/colheram ambas as pernas do autor.
Daqui resulta, manifesto, que os danos sofridos pelo autor devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto, por si, praticado.
A sua conduta é absolutamente censurável.
Os danos que sofreu com o acidente, a si próprio, se ficaram a dever.
O que o autor se predispôs a fazer foi tentar impedir a marcha do veículo, pesado com semi-reboque, em movimento, num plano com acentuada inclinação.
E, antes que tivesse acesso ao seu interior, quando estava agarrado à porta veio a cair e a ser atropelado pelo próprio veículo.
Passe a imagem, o que o autor fez, foi tentar parar o vento com as mãos.
Trata-se de uma conduta violadora das mais elementares regras de cuidado e diligência, de uma conduta perfeitamente temerária e que foi, sem qualquer dúvida, causa adequada das lesões que sofreu.
Com efeito, não é conforme ao princípio de diligência, de boa prudência, às regras de segurança, impostas ao bom pai de família, a conduta de alguém que vê o veículo que conduzira até ali, a deslocar-se, sozinho e, num acto absolutamente inconsciente e irreflectido, interiorize que a ela deve tentar aceder, para evitar a marcha desgovernada e, e, agarrado à porta, com ele seja arrastado, pela estrada abaixo, até que caia e seja atropelado pelo próprio veículo.
Na verdade, não interessa a diligência que costuma ser usada. Interessa, sim, compará-la com a diligência do homem médio, do ponto de vista deontológico que é um padrão ideal, isento de defeitos de actuação tão frequentes no homem comum, neste sentido, entre outros, Oliveira Matos, in, Acidentes de Viação, 339.
Por outras palavras, é o nexo de imputação ético-jurídico que liga o facto jurídico ilícito à vontade do agente, ou seja, a actuação deficiente, censurável, reprovável, abstraindo da pessoa do destinatário do dever violado, neste sentido, Antunes Varela, in, RLJ, ano 102.º, 60.
Foi o autor que aderiu, entrou na dinâmica do que configurou como iminente acidente, de que veio a ser a principal vítima, ao sofrer as lesões que sofreu, sem que se possa atribuir aos riscos próprios do veículo, qualquer contribuição na respectiva produção, o que traduz circunstância excludente da responsabilidade objectiva da proprietária do veículo.
Não fora a sua temerária actuação e o atropelamento, seguramente, não teria ocorrido.
Com efeito, o risco inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, não concorreu para a eclosão do acidente que vitimou o autor, em termos de causalidade adequada, na medida em que a potencialidade de perigo que envolve a sua circulação foi, completamente, estranha ao acidente.
O comportamento do lesado quebrou o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e os danos, excluindo a responsabilidade objectiva da proprietária e, consequentemente, da ré, enquanto seguradora do veiculo interveniente no sinistro.
Se estamos a falar da violação de direitos de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, no caso o que temos é que foi o próprio condutor e vítima quem agiu com culpa.
O legislador teve o cuidado de afastar expressamente uma situação de possível ressarcibilidade de danos advindos para o responsável culposo do acidente, isto é, de danos para si resultantes em consequência de uma sua conduta culposa, portanto, afastando uma possível obrigação de indemnizar, já que se configuraria, originariamente, a violação ilícita do direito de outrem gerador de direito a indemnização do próprio lesante.
E, assim, por força da mencionada interpretação actualista e sistemática, tendo em conta a actual conjuntura de crescente perigosidade e frequência de acidentes de viação e a necessidade de protecção dos lesados, bem como a própria unidade da ordem jurídica - atente-se nos lugares paralelos do sistema no regime da responsabilidade do produtor, responsabilidade por acidentes de trabalho e por acidentes causados por aeronaves e embarcações de recreio - muito embora entendamos ser de aderir à aludida orientação, que admite a concorrência entre o risco próprio do veículo e a culpa do lesado, o certo é que no caso concreto, por um lado, como alegou o autor, uma vez que o veículo automóvel estava imobilizado, iniciou o movimento por avaria do sistema de travagem e, por outro, como se entende, ser caso de culpa exclusiva do autor, não se verifica aquela situação de valorar o facto de a circulação automóvel, mormente de um pesado de mercadorias com semi-reboque, criar um especial risco de acidente, pelo que não tem cabimento a tese da concorrência da culpa com o risco.
E, assim, atento todo o exposto, não merece qualquer censura a decisão recorrida, pelo que, improcedem as conclusões do recurso, neste segmento.

II. 3. 2. As causas de exclusão no seguro de responsabilidade civil obrigatório, do ramo automóvel.

II. 3. 2. 1. A caracterização do autor como condutor.

Discorda o autor, neste segmento, do entendimento de que sendo o condutor do veículo, acidentado, estaria excluído do âmbito da garantia do seguro obrigatório.
Para o que alinha o seguinte raciocínio:
- conduziu o veículo pesado até ao local do acidente, estacionou o veículo – não parou momentaneamente – estacionou o veículo e esteve fora do veículo mais de 30/40 minutos;
- o veículo iniciou a marcha sem qualquer intervenção do Autor;
- o início da marcha teve origem numa avaria do sistema de travagem do veículo;
- ainda que se considere que o conceito de “condutor” é um conceito amplo que abrange a pessoa que, encontrando-se a dirigir o veículo, o imobiliza para abastecer ou retirar um obstáculo da estrada – ainda assim discutível - tal amplitude não pode, de modo algum, abranger alguém que conduziu o veículo o estacionou devidamente, saiu do mesmo por mais de 30/40 minutos e sem entrar no veículo e assumir a sua direcção efectiva, seja atropelado pelo mesmo;
- considerar que a qualidade de condutor acompanha a pessoa que dirigiu o veículo e o estacionou nas horas seguintes a tais actos, é abusivo e inadmissível à luz da legislação portuguesa e das directivas europeias, violando os direitos e garantias das vítimas de acidentes de viação – questionando se na eventualidade de por exemplo existir uma troca de condutores, comum neste tipo de transportes, estando o autor no local também ele continuaria a ser o condutor do veículo, respondendo que tal possibilidade não pode sequer ser equacionada, já que nem sequer entrou no veículo.
Por seu lado, a esta tese - de que uma vez que no momento em que foi colhido pelo veículo o autor não tinha a sua direcção efectiva e, por isso, não pode ser considerado o seu condutor – contrapõe a ré o seguinte:
- vigora na nossa jurisprudência um conceito amplo de condutor que abrange quer a pessoa que está ao volante do veículo a conduzi-lo, quer a pessoa que desempenhou essa tarefa, mas que o imobilizou e/ou estacionou;
- o conceito de condutor do veículo não pode ter um conteúdo restrito ao exercício da condução ao volante, sob pena de o condutor perder essa qualidade quando saísse para abastecer o veículo, substituir uma roda, remover um obstáculo que estava na via, etc.;
- o legislador considera como condutor, e responsabiliza-o, quando em caso de imobilização forçada do seu veículo, impondo-lhe que promova a sua rápida remoção da via publica e, enquanto esta não se verificar, adopte as medidas necessárias para que os outros se apercebam da sua presença usando todos os dispositivos de sinalização;
- no caso concreto, foi o autor que estacionou o veículo e foi o autor que voluntariamente subiu à cabine, agarrando-se à porta do lado do condutor, com o intuito de a tentar abrir de forma a aceder ao interior do tractor, comportamento este destinado a exercer a direcção do veículo - comportamentos, ambos, nas vestes de condutor.
Vejamos.
Não obstante a questão colocada pelo autor sobre a verificação de uma situação de mudança de turno, por parte do condutor, durante a imobilização do veículo. Sobre se em tal situação ainda continuaria a ser ele o condutor, diremos o seguinte.
Diremos mais, assente o conceito amplo da noção de condutor.
Estamos perante uma situação de imobilização que pode ter durado 30 minutos.
Mas o que aqui se passou poderia bem ter acontecido durante a noite, com uma imobilização de 8 horas.
E, mais com a retoma da marcha no dia seguinte por parte de outro condutor. Que não o que conduziu o veiculo até à imobilização. Até ao estacionamento.
Ainda aqui, pela própria natureza das coisas e, por definição, atento sentido amplo que deve ser concedido ao termo “condutor”, sempre se teria que considerar como condutor aquele que, afinal, o conduziu antes, do momento em que desgovernado começou a descair.
Não teria perdido essa qualidade, não seria descaracterizado como tal, enquanto não fosse substituído por outra pessoa.
Seria o autor, por exemplo, o responsável se o tivesse estacionado em local proibido.
Nem se diga, como faz o autor, que se tivesse existido uma troca de condutores, comum neste tipo de situações, estando ele, ainda, no local também ele continuaria a ser o condutor do veículo.
E, que tal não poderia acontecer, no caso, porque nem sequer entrou no veículo.
É claro que ficaria a subsistir uma zona de fronteira, uma zona cinzenta, se já tivesse terminado o seu turno de condução e se já tivesse “passado a pasta a outro”. Se já tivesse entregado as chaves, a quem o fosse substituir na função.
E, se não obstante, ainda assim, tivesse tido a actuação e a postura que teve no caso concreto.
A entrega das chaves assume aqui mais do que um acto simbólico, pois que traduz a formalização da transferência, jurídica da “posse” do veículo.
Aqui teria que valer, como critério decisivo, a operada, jurídica e de facto, transferência de função.
Só que esta possibilidade, teórica, aqui não tem qualquer cabimento, nem fornece qualquer contributo para auxiliar a resolver a questão sub judice.
Se dúvidas existissem, então, na mente do autor - que não terão existido - estavam dissipadas pelo simples facto de ele próprio, ter interiorizado a qualidade de condutor, quando se apercebeu do veículo em movimento descendente e, reagiu, instintivamente, como sendo a, única, pessoa que tinha a disponibilidade, a direcção actual, real e efectiva do mesmo no momento.
Era a pessoa que tinha as chaves do veículo e, que, com elas poderia ter acesso ao interior e poderia tentar deter a marcha do veículo. Mais ninguém podia assumir esse papel.
Desastradamente, digamos e, desafortunadamente, não o conseguiu.
Não se poderá, pois, entender que não era o autor quem, naquela ocasião, tinha a função da direcção efectiva do veículo, o controlo e domínio sobre o veículo.
E terá sido, naturalmente, esta sua percepção da realidade que o levou a actuar como actuou.
Mais ninguém que presenciasse o que ele presenciou, teria tido a sua atitude. Desde logo, porque não estava na posse das chaves – elemento simbólico da sua qualidade de condutor.
Nenhuma censura merece, também, neste segmento a decisão recorrida.

II. 3. 2. 2. As causas de exclusão do artigo 14.º/1 e 2 alínea a) do Decreto Lei 292/2007.
Diz o autor que,
- a exclusão a que se refere o artigo 14.º do Decreto Lei 291/2007 se refere aos danos sofridos pelo individuo que se encontre no exercício da condução, ao volante do veículo, detendo o controlo da marcha, velocidade e direcção do mesmo e, que, como se viu, no momento em que foi colhido pelo veículo, não tinha a sua direcção efectiva, não estava a conduzi-lo, nem sequer estava no seu interior;
- o veículo iniciou a sua marcha sem qualquer intervenção do autor, mas sim como resultou provado de uma avaria no sistema de travagem do referido veículo, sem qualquer acção ou omissão da sua parte;
- se dúvidas restassem de que o artigo 14.º não tem aplicação ao caso em discussão, o n.º 2 afasta claramente essa possibilidade, já que se a exclusão do condutor estivesse prevista no n.º 1 “tout court”, o legislador não teria necessidade de prever a exclusão do condutor no caso de existir responsabilidade do mesmo;
- e, como ficou provado não existiu qualquer responsabilidade do autor, o acidente deu-se sem margem para dúvidas devido à avaria do sistema de travagem do veículo.
Vejamos o actual regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, através do Decreto Lei 291/2007, de 21 de Agosto, cujo artigo 94.º/1 alínea a) revogou o Decreto Lei 522/85, de 31/12 – que não estabelecia regime substancialmente diferente do actual, quanto à questão concreta que ora nos ocupa.
A inquestionável função social e económica do contrato de seguro obrigatório automóvel, no actual quadro normativo, não afasta, desde logo e, pelo contrário exige, a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil.
E, por isso começamos a apreciação idas razões do apelante, por aqui.
A evolução do regime do seguro por acidentes de viação evidencia uma preocupação crescente de garantia da indemnização das vítimas e que essa preocupação deve ser ponderada na interpretação da lei. Pense -se na imposição do seguro obrigatório ou na criação do Fundo de Garantia Automóvel, chamado a indemnizar mesmo quando se torna impossível aferir da verificação de todos os pressupostos clássicos da responsabilidade civil, maxime por se ignorar a identidade do causador do acidente.
A indemnização tem sido efectivada, nomeadamente no direito infortunístico estradal, entre outros expedientes, através do mecanismo do seguro obrigatório da responsabilidade civil cuja abrangência tem vindo a ser ampliada ao logo dos anos, à medida que se vem acentuando a socialização do risco, facto a que não tem sido estranho o princípio da publicização do direito privado.
No entanto a densificação do tráfego automóvel, potenciadora de acidentes, veio acentuar a necessidade de socialização do risco, transferindo o acento tónico do segurado para a condução em sentido lato.
Nos termos do artigo 4.º/1 do Decreto Lei 291/2007, “toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei”.
Se o seguro de responsabilidade civil obrigatório, por definição, tem por escopo garantir a responsabilidade do lesante para com terceiros, é da maior importância, desde logo, caracterizar o conceito de terceiro nesta matéria.
Para tal acolhe-se sem reserva o entendimento do Prof. Diogo P. Leite de Campos que refere serem “terceiros em relação a um contrato todos aqueles que por si, ou por intermédio de outrem, não participem na sua celebração”, ou seja, todos os que não possam ser classificados de parte”, apud “Seguro de Responsabilidade Civil Fundada em Acidentes de Viação — Da Natureza Jurídica”, 66.
Aliás quando este diploma e o que o antecedeu, Decreto Lei 522/82, entraram em vigor, encontravam-se de há muito vigentes as normas de direito civil, atinentes com a responsabilidade civil por factos ilícitos, a que acima se fez referência.
Mormente, os artigos 483.º ss que, sem prejuízo do artigo 570.º, excluem a indemnização em caso de culpa do lesado.
Este diploma legal após ter haver estabelecido a obrigação quase universal de segurar — bem como os respectivos sujeitos — artigo 4.º — enumera no artigo 14.º vários casos de exclusão da cobertura do seguro.
E, assim,
- “1. excluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles;
- 2. excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas:
a) Condutor do veículo responsável pelo acidente;
(…)”.
Estão, assim excluídos,
- pelo n.º 1, os danos corporais do condutor do veículo seguro responsável pelo acidente;
- pelo n.º 2, os danos materiais do condutor responsável pelo acidente.
Aqui, a par, de resto, dos sofridos pelo tomador do seguro, alínea b) e por todos cuja responsabilidade esteja garantida pelo contrato, alínea c).
Como refere Maria Manuela Sousa Chichorro, O Contrato de Seguro Obrigatório Automóvel, no que tange às lesões materiais, ficam excluídos os que forem causados ao condutor responsável pelo acidente, ao tomador do seguro, a todos aqueles cuja responsabilidade esteja garantida pelo contrato, explicando tal exclusão do seguinte modo: “está subjacente a estas exclusões a ideia de compropriedade e co-responsabilidade traduzida em ambos os casos num interesse directo no seguro, embora este não seja aquele que é primeiramente tutelado pelo contrato, mas apenas de modo mediato”.
E acrescenta: “dado que o referido interesse tem uma natureza patrimonial, não faria sentido que os danos patrimoniais sofridos pelas mencionadas pessoas pudessem ser ressarcidos por um contrato que visa ressarcir os danos de terceiros e não daqueles que de alguma forma, poderão vir a ter que responder concomitantemente ou subsidiariamente com o condutor”.
Dado que a cobertura do seguro obrigatório se destina a garantir a responsabilidade daquele que possa ser civilmente responsável pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais ou materiais causados a terceiros por veículos, não pode esse responsável ser considerado simultaneamente terceiro e beneficiário para efeito de ressarcimento de danos do próprio.
O texto legal não deixa, nesta matéria, margem para dúvidas.
Apesar de o autor dizer, em abono da sua tese, de não exclusão do condutor, que se dúvidas restassem de que o artigo 14.º não tem aplicação ao caso, o n.º 2 afasta claramente essa possibilidade, já que se a exclusão do condutor estivesse prevista no n.º 1 “tout court”, o legislador não teria necessidade de prever a exclusão do condutor no caso de existir responsabilidade do mesmo.
Inusitado erro de enfoque. Com efeito, o âmbito do n.º 1 reporta-se aos danos corporais e o âmbito do n.º 2 aos danos materiais. A previsão do n.º 1 sem a previsão do n.º 2 poderia existir e faria sentido. Assim, como a previsão do n.º 2 sem a previsão d n.º 1 da mesma forma. Reportam-se, cada uma delas, a objectos distintos.
Não há qualquer sobreposição, nem prejudicialidade. Apenas e só, complementaridade – uma norma refere-se a danos corporais e a outra a danos materiais.
E, compreensivelmente aquela apenas exclui o condutor do veículo seguro responsável pelo acidente e, esta, por sua vez, tem 7 alíneas:
“a) Condutor do veículo responsável pelo acidente;
b) Tomador do seguro;
c) Todos aqueles cuja responsabilidade é garantida, nos termos do n.º 1 do artigo seguinte, nomeadamente em consequência da compropriedade do veículo seguro;
d) Sociedades ou representantes legais das pessoas colectivas responsáveis pelo acidente, quando no exercício das suas funções;
e) Cônjuge, ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) a c), assim como outros parentes ou afins até ao 3.º grau das mesmas pessoas, mas, neste último caso, só quando elas coabitem ou vivam a seu cargo;
f) Aqueles que, nos termos dos artigos 495.º, 496.º e 499.º do Código Civil, beneficiem de uma pretensão indemnizatória decorrente de vínculos com alguma das pessoas referidas nas alíneas anteriores;
g) A passageiros, quando transportados em contravenção às regras relativas ao transporte de passageiros constantes do Código da Estrada”.
Grosso modo, podemos afirmar que o seguro obrigatório cobre a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros além do condutor e por danos materiais de todos os que não tenham nenhuma das qualidades referidas nas restantes alíneas do n.º 2.
No nosso caso estamos perante uma absoluta falta de lesante, de outro interveniente no acidente, a quem o autor pudesse imputar o facto danoso. Daí a sua invocação, sempre, da responsabilidade, da proprietária, pelo risco derivado da circulação do veículo.
E, assim, estão excluídos da garantia do seguro de responsabilidade civil obrigatório, os danos sofridos pelo autor, que era simultaneamente condutor do veículo acidentado.
Não são abrangidos pela garantia do seguro os danos sofridos pelo condutor do veículo, quando ele é o causador do mesmo.
Não está a ré obrigada a indemnizar os danos que sofreu.
No caso, o condutor, porque causador com culpa da produção do acidente, não foi lesado (vítima) de conduta ilícita de outrem. Apenas da sua.
Daí que, inexistindo a obrigação de indemnizar o dano por este não resultar da violação ilícita de um direito de outrem - princípio transversal a todo o regime da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, como vimos – não existe, por parte da ré, qualquer obrigação de indemnizar decorrente do facto danoso, na medida em que resulta de conduta culposa do próprio lesado.
E, como vimos, a indemnização, quer, a prevista no artigo 483.º, quer a prevista no artigo 503.º não deixa de ter presente um dano que exige a verificação de indemnizar por outrem que não da própria vítima (lesado).
A culpa da vítima, sem que o acidente tenha tido outro interveniente, afasta o direito a qualquer indemnização pelos danos, corporais e materiais que sofreu.
Se no primeiro segmento do recurso, vimos que ao autor estava subtraído o direito a qualquer indemnização, por ser o exclusivo culpado do sinistro.
Aqui concluímos que os dânios corporais e materiais sofridos pelo condutor do único veículo interveniente e, por isso responsável, pelo acidente, da mesma forma, estão excluídos do âmbito da garantia do seguro obrigatório.
Aliás, num contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por isso que se trata de um seguro de responsabilidade e não de um seguro de danos, como escreveu, na obra citada, Diogo Leite de Campos, é evidente que “sendo o condutor beneficiário da garantia do seguro para com terceiros lesados não pode simultaneamente ser beneficiário da indemnização, isto é terceiro, para efeito de receber ele próprio, qualquer indemnização”.
Tendo o condutor da viatura garantida contratualmente a sua responsabilidade em relação a terceiros, não pode, ao mesmo tempo, ser considerado terceiro para se ver ressarcido por danos sofridos com o acidente.
Não pode reunir na mesma pessoa a qualidade de condutor e a de terceiro.
Este entendimento é tributário do ideário inicialmente adoptado pelo Código Civil, reflectindo a posição segundo a qual não há responsabilidade civil sem culpa, dolo ou risco, devendo o ressarcimento ter lugar, aqui à custa da seguradora do veículo conduzido pelo responsável do acidente, perante aquele que foi por ele lesado.
Com efeito, pelos danos a si causados, o autor, condutor, no caso, não teria direito a qualquer indemnização, ainda que não fosse culpado, pois o seguro obrigatório tem como objecto garantir a responsabilidade em relação a terceiros.
E, nesta medida, sempre estariam excluídos quaisquer danos que tivesse sofrido o autor, condutor, por ter sido o único interveniente e, por isso, responsável pelo acidente.
É, assim, evidente que os danos decorrentes do sinistro para o condutor lesado não poderão ser ressarcidos pela seguradora que garantia a sua responsabilidade civil, na condução do veículo objecto do contrato.
Sendo o autor o beneficiário dessa garantia, não pode ao mesmo tempo ter a qualidade de terceiro.
Claro que tal não impede todavia que os danos do condutor possam ser cobertos pela seguradora, mas através de contrato facultativo, que vá além da protecção do seguro obrigatório.
Situação, que, de resto, ocorre com muita frequência já que através de cláusulas adicionais se contemplam no contrato os danos sofridos pelo condutor da viatura ou pelo tomador do seguro.
E, assim, improcede, também, este segmento e, com ele a totalidade do recurso.


III. Sumário – artigo 663.º/7 CPCivil.
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IV. Decisão.

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em negar, total, provimento à apelação, em função do que se confirma a decisão recorrida nos segmentos impugnados.

Custas pelo apelante, atentas as regras do decaimento, contidas no artigo 527.º CPCivil.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário.





Porto, 6/6/2024

Ernesto Nascimento

António Paulo de Vasconcelos

Isabel Silva - [Voto de vencida: Considerado que a conduta o autor foi um “acto absolutamente inconsciente e irreflectido” e que os actos inconscientes não podem ser apelidados de culposos, na medida em que estes exigem a consciência, ainda que negligente, considero que seria de perspectivar a decisão em temos de concorrência de risco.].