Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | LINA BAPTISTA | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS SISTEMAS MUNICIPAIS DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA E SANEAMENTO | ||
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Nº do Documento: | RP2018051563246/17.4YIPRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 05/15/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º828, FLS.195-204) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O contrato de prestação de serviços de abastecimento de água e saneamento, tendo por objeto o fornecimento de água para consumo doméstico e a correspondente contraprestação de pagamento do preço respectivo, é um contrato estruturalmente civil. II - Aliás, actualmente o próprio regime substantivo deste tipo de contratos tendo por objecto Serviços Públicos Essenciais obriga à sua caracterização como contrato de direito privado, por estarem regulados por regimes especificamente dirigidos à protecção dos consumidores, tais como a Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96, de 26/07) e a Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31/07). III - Por inerência, quaisquer litígios que surjam no decurso destes contratos serão da competência material dos Tribunais Comuns. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 63426/17.4YIPRT.P1 Comarca: [Juízo Local Cível de Ovar, Comarca de Aveiro] Relatora: Lina Castro Baptista Adjunto: Fernando Samões Adjunto: Vieira e Cunha * ...........................................................................SUMÁRIO ........................................................................... ........................................................................... ........................................................................... * “B…, S.A.”, sociedade como sede na …, n.º …, …, Aveiro, intentou procedimento de injunção, a prosseguir como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, contra C…, residente na Estrada …, …, Ovar, peticionando o pagamento da quantia de €254,39, correspondente ao capital de €132,22, juros de mora vencido no montante de €1,52, outras quantias no valor de €51,80 e taxa de justiça de €68,85.Acordam no Tribunal da Relação do Porto I - RELATÓRIO Alega, para tanto, que é uma sociedade fornecedora de serviços públicos essenciais de água e saneamento aos utilizadores finais. Afirma que, no âmbito desta sua atividade, foram emitidas várias faturas, no valor global de €133,74, incluindo juros de mora, além de despesas. O Requerido veio deduzir oposição, contrapondo – em síntese – que, reportando-se as referidas faturas a serviços de fornecimento de água prestados em datas anteriores a janeiro, fevereiro, março e maio de 2017, a dívida reclamada se encontra prescrita. Acrescenta que, não especificando a Requerente a que se referem as “outras quantias” cujo pagamento peticiona, o pedido sempre seria inepto relativamente a este pagamento. Conclui pedindo que sejam improcedentes os pedidos deduzidos, com a sua absolvição dos mesmos. Notificada a Autora para se pronunciar quanto à eventual incompetência material do Tribunal Comum, veio a mesma pugnar pela sua competência. Sequencialmente, foi proferido despacho, com a seguinte parte decisória: “Face ao exposto, nos termos previstos nas normas acima mencionadas e nos artigos 97.º e 98.º do Código de Processo Civil, julgo verificada a exceção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria e, em consequência, absolvo o réu da instância.” Inconformada com esta decisão, a Autora interpôs recurso, terminando com as seguintes CONCLUSÕES: 1. Conforme resulta do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), o âmbito da jurisdição administrativa em matéria contratual não depende do carácter jurídico-administrativo do contrato.2. Não se aplica o artigo 4.º, n.º 1, alínea o) do ETAF, dado não estarem perante relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores, praticados por sujeitos privados; 3. A relação material em litígio é de natureza manifestamente privada e contratual, pois é pedido a condenação do cliente/consumidor final no pagamento de determinado montante referente aos serviços prestados de água e saneamento, sendo a causa de pedir a violação da relação sinalagmática pelo não pagamento do preço acordado e não do foro administrativo, não se alicerçando no disposto no art.º 4, n.º 1 alínea o) da ETAF, estando excluída a sua aplicação; 4. O contrato dos autos (contrato de fornecimento de água), para efeitos de critério de justiciabilidade administrativa, é um contrato de consumo, regulado no âmbito do direito privado, de uma relação de consumo, que não se celebra em substituição de qualquer ato administrativo; 5. Apesar de ser objeto de uma regulação específica, está longe de se poder considerar uma regulação baseada em normas de direito público, antes tal regulação é, pelo menos nos anos mais recentes, claramente, a proteção do consumidor no contexto de uma relação de consumo de um serviço público essencial. 6. Sempre se dirá que o contrato de fornecimento de água seria qualificado como contrato de direito privado ainda que o fornecimento de água fosse efetuado por uma entidade pública. 7. O contrato dos autos não foi expressamente submetido pelas partes a um regime substantivo de direito público; 8. A competência dos tribunais administrativos em matéria de contratos da Administração (em sentido lato) não depende (apenas) da administratividade, mas antes de outros critérios que inspiram as alíneas do artigo 4.º do ETAF, sobre o âmbito da jurisdição administrativa relativa a contratos; 9. Os contratos de fornecimento de água por empresas como a da Recorrente não entram em nenhum dos preceitos constantes do ETAF, antes ordenam-se no âmbito do direito privado: são contratos de direito privado; 10. Da interpretação do ETAF resulta que, só a ordenação dos mesmos como contratos administrativos seria suscetível de os reconduzir à jurisdição dos tribunais administrativos. 11. Os contratos de fornecimento de água não são administrativos pela simples razão de que não são objeto de uma regulação baseada em normas de direito administrativo; trata-se de contratos de consumo, em parte regulados por normas que protegem precisamente os direitos dos consumidores/utentes - Lei n.º 23/96, de 26 de julho, Lei dos Serviços Públicos Essenciais; 12. Estamos perante uma simples cobrança de dívida civil, por uma empresa privada, regulada pelas regras do direito privado. 13. A Recorrente é uma empresa privada, que não atua munida de poder soberano na sua relação com o consumidor, antes atua, perante este, em situação de paridade. 14. Não está aqui em discussão nem consubstancia o pedido ou a causa de pedir tal qual foi apresentada pela ora recorrente, a relação entre a Recorrente e os entes públicos indicados no Contrato de Parceria, 15. Muito menos a correta ou incorreta determinação do preço ou das taxas devidas pela prestação dos serviços e/ou pela utilização do domínio público, está em apreço nos autos, 16. Ou sequer a validade das clausulas contratuais subjacentes à prestação do serviço não pago. 17. Estamos perante uma ação tem por objeto o pagamento de valores constantes de faturas, mais juros à taxa legal para juros cíveis e ou comerciais, nos termos da fruição do uso do contador e da água consumida, pela qual foram emitidas faturas que não se mostram pagas. 18. Uma ação que tem por base uma relação jurídica de direito privado, e consubstancia uma situação de incumprimento das obrigações contratuais assumidas, 19. Obrigações que tendo natureza civil, regem-se, pelas normas dos contratos civis, estando em causa a apreciação de pressupostos da responsabilidade e do incumprimento e mora contratuais nos termos da lei civil – arts. 762 e segs, 792 e segs, arte 806, todos do CC. 20. A sujeição à jurisdição civil em face do incumprimento contratual é similar à que resulta da falta de pagamento de uma fatura de eletricidade ou de uma fatura emitida por operadora de telemóveis ou de comunicações eletrónicas - Lei n.º 23/96, de 26 de julho, Lei dos Serviços Públicos Essenciais; 21. Aqui o interesse que se satisfaz, com o fornecimento do serviço é o interesse particular do consumidor, ainda que no âmbito da prestação de serviços públicos essenciais; 22. Ficando toda a entidade pública ou privada que o preste independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão, sujeita a um regime substantivo de direito privado que regula essa mesma prestação; 23. Num caso e noutro não se podem enquadrar as relações contratuais estabelecidas entre a empresa prestadora do serviço e o consumidor em realidade materialmente sujeita a jurisdição administrativa; 24. Não se confunda, a questão da determinação da qualificação da relação jurídica com a prestação de serviços essenciais, transversal aos serviços de fornecimento de água, eletricidade e comunicações telefónicas, entre outros; 25. Não se confunda, ainda, a prerrogativa de contratar ou não contratar e/ou negociar ou não negociar o preço do serviço com a aplicação de normas de direito público versus normas de direito privado; 26. Porquanto essa mesma questão, no âmbito dos contratos de adesão e do “monopólio” que certas empresas têm na distribuição de certos serviços (o caso da EDP, durante tanto tempo, entre outras) é questão distinta que em nada condiciona a atribuição da competência de um tribunal em razão da matéria; 27. Determinada e qualificada, que está, a relação jurídica tal qual foi configurada pelo Autor no processo; 28. Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram pelo que só será competente o tribunal judicial (comum) se a causa não estiver inserida por lei na competência dos tribunais administrativos; 29. Assim, é perante os termos em que é estruturada a petição inicial que se afere se, atentos os contornos objetivos (pedido e seus fundamentos) e subjetivos (identidade das partes) da ação, a sua apreciação se enquadra na competência dos Tribunais Administrativos ou na competência dos tribunais judiciais comuns; 30. Os atos de gestão privada são, de modo geral, aqueles que, embora praticados por órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares, são atos em que o Estado ou pessoa coletiva pública intervém como um simples particular, despido do seu poder de soberania ou do seu “jus imperium.” 31. O presente diferendo insere-se estritamente nas relações entre a ora Recorrente e os consumidores/utilizadores, pedindo aquela o pagamento das quantias devidas pelo fornecimento de água a que estava obrigada por força do contrato de fornecimento, centrando-se o diferendo no volume e pagamento do preço da água; 32. Baseando-se num contrato que se ordena no âmbito do direito privado. O Réu veio apresentar contra-alegações, pugnando pela confirmação da decisão recorrida, e terminando com as seguintes CONCLUSÕES: a) Decidindo como decidiu, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo fez uma correta interpretação dos factos.b) A Autora/Recorrente, por ser concessionária do serviço público de fornecimento de água, atua munida dos poderes que lhe são atribuídos nessa área, pelo que não pode deixar de entender-se que prossegue fins de interesse público, estando para tanto munida dos necessários poderes de autoridade. c) Assim, a natureza da relação material em litígio não é manifestamente privada, pois que regulada por normas de direito público que lhe são impostas e que de acordo com o estabelecido no artigo 4º nº 1 do ETAF, determinam que é à jurisdição administrativa que cabe o julgamento do caso concreto dos presentes autos. d) Concluímos, pois que a jurisdição administrativa e fiscal é competente para resolver o presente litígio, como bem decidiu o Tribunal a quo. e) Nesta conformidade, a Meritíssima Juíza a quo só poderia ter decidido como decidiu, pela incompetência material do tribunal, e em consequência, pela absolvição do Réu da instancia. O presente recurso foi admitido como recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos. Cumpre decidir. * A questão a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, é a de saber se o tribunal comum (Juízo Local Cível de Ovar) é competente, em razão da matéria, para conhecer da presente ação.II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO * Atento o disposto no art.º 607.º (declaração dos factos provados e não provados), aplicável por força do art.º 663.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil[1], importa enunciar todos os factos relevantes para a decisão que se encontram assentes nos autos, o que se passa a fazer:III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 1) A Autora “B…, S.A.” é uma sociedade comercial anónima de direito privado, que tem por objeto social a exploração e a gestão de serviços de águas relativos ao Sistema de Águas da Região de …. 2) Por Contrato de Parceria Pública, celebrado em 29/07/2009, o Estado Português e conjunto dos Municípios de …, …, …, …, …, …, …, … e …, decidiram agregar os referidos sistemas municipais de abastecimento de água para consumo público e de saneamento de águas residuais urbanas num sistema territorialmente integrado denominado B1… (“…”). 3) Por Contrato de Gestão, celebrado em 23/09/2009, estas partes e a “B…, S.A.” atribuíram à B2… (…), isto é, à “B…”, em regime de exclusivo, a exploração e gestão dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo público e saneamento de águas residuais urbanas. 4) Para efeitos da Parceria, os Municípios afetaram ao Contrato de Gestão as infraestruturas, os equipamentos e os contratos indispensáveis à gestão do Sistema, a favor da “B…”. 5) O Réu celebrou, em 11/12/1984, com os D…, à data entidade gestora, um contrato de fornecimento para o local sito no …, do concelho de Ovar. 6) No âmbito da acima referida atividade da Autora, foram emitidas várias faturas referentes a fornecimento de água, emitidas em 27 de janeiro, 25 de fevereiro, 29 de março e 04 de maio de 2017, bem como faturas de juros de mora emitidas em datas posteriores às referidas. * IV - COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL COMUM PARA CONHECER DA PRESENTE AÇÃOA competência é a medida de jurisdição de um tribunal e a infração das regras de competência em razão da matéria, da hierarquia ou de competência internacional gera incompetência absoluta (Cf. art. 64.º e ss. do CP Civil). Na apreciação da respetiva exceção, é pacífico que a competência, em razão da matéria, se deve aferir face à relação jurídica que se discuta na ação, tal como desenhada pelo autor. Nos presentes autos, a Autora peticiona o pagamento da quantia de €254,39, correspondente ao capital de €132,22, juros de mora vencidos no montante de €1,52, outras quantias no valor de € 51,80 e taxa de justiça de €68,85. Alega, para tanto, que é uma sociedade fornecedora de serviços públicos essenciais de água e saneamento aos utilizadores finais. Bem como que, no âmbito desta sua atividade, foram emitidas várias faturas, no valor global de €133,74, incluindo juros de mora, além de despesas. Apesar de não ter especificado o objeto das ditas faturas, o Requerido veio deduzir oposição, declarando, desde logo, que as referidas faturas se referem a serviços de fornecimento de água prestados em datas anteriores a janeiro, fevereiro, março e maio de 2017[2]. O tribunal recorrido julgou verificada a exceção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria e, em consequência, absolveu o réu da instância. A fundamentação jurídica deste despacho assente essencialmente nas seguintes considerações: “A exploração e a gestão dos sistemas municipais de distribuição de água para consumo humano e de recolha, drenagem e tratamento de águas residuais são serviços de interesse geral e visam a prossecução do interesse público, quer adotem o modelo de gestão direta, delegada ou concessionada – cf. os artigos 3.º e 7.º do regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto (…). Do exposto resulta que estas relações jurídicas (quer os contratos de concessão quer os contratos de fornecimento de água) não são pautadas pela liberdade contratual específica do direito privado, em particular do direito das obrigações. Pelo contrário, o interesse geral subjacente à exploração e à gestão dos sistemas de distribuição de água e de recolha e drenagem de águas residuais impõe que existam normas de direito público que disciplinem o seu regime substantivo (…). Face ao exposto, atento o disposto na alínea o) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, a jurisdição administrativa e fiscal é competente para resolver os litígios que se prendam com a execução dos contratos de fornecimento de água e saneamento. Aí se incluem as ações em que uma empresa concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água pretende obter coercivamente o pagamento de consumos de água e demais encargos relativos à disponibilização dum contador, por estarem em causa tarifas, taxas ou encargos resultantes de exigências impostas autoritariamente, em contrapartida do serviço público prestado.” A Recorrente sustenta – nas presentes alegações de recurso – que a relação material em litígio é de natureza manifestamente privada e contratual, pois é pedido a condenação do cliente/consumidor final no pagamento de determinado montante referente aos serviços prestados de água e saneamento, sendo a causa de pedir a violação da relação sinalagmática pelo não pagamento do preço acordado e não do foro administrativo, não se alicerçando no disposto no art.º 4, n.º 1 alínea o) da ETAF, estando excluída a sua aplicação. Acrescenta que, apesar de ser objeto de uma regulação específica, está longe de se poder considerar uma regulação baseada em normas de direito público, sendo antes tal regulação, pelo menos nos anos mais recentes, claramente, a proteção do consumidor no contexto de uma relação de consumo de um serviço público essencial. Concordamos, no essencial, com os argumentos apresentados pela Recorrente. Vejamos então. Tendo os Tribunais Comuns competência residual, o conceito de relação jurídica administrativa é o decisivo para determinar a repartição de competências entre estes e os Tribunais Administrativos e Fiscais. Esta definição deve buscar-se, desde logo, na Lei Fundamental, em concreto, no respetivo art.º 212.º, n.º 3, do seguinte teor: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.” Analisando este preceito, referem Jorge Miranda e Rui Medeiros quanto a tal critério definidor[3]: “O melhor critério parece ser, no entanto, aquele para que aponta o próprio sentido literal da expressão: são relações jurídicas administrativas e fiscais as relações de Direitos Administrativo e de Direito Fiscal, que se regem por normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal.” Descendo para a lei infraconstitucional, vemos esta noção replicada em vários diplomas legais. Assim, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro[4], estipula que “Os Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”(cf. Art.º 1.º), sendo que o artigo 4.º concretiza este princípio através de sucessivas enumerações, definindo os litígios nela incluídos, pela positiva. Por seu turno, o art.º 200.º do Código de Procedimento Administrativo[5], aprovado pelo D.L. n.º 4/2015, de 07 de janeiro, dispõe que: “1 - Os órgãos da Administração Pública podem celebrar contratos administrativos, sujeitos a um regime substantivo de direito administrativo, ou contratos submetidos a um regime de direito privado. 2 - São contratos administrativos os que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos ou em legislação especial.” Ou seja, em face das diretrizes legais, a relação jurídica administrativa deve considerar-se como aquela que tem por objeto a prossecução do interesse público e/ou a sujeição a uma disciplina administrativa. Por contraponto, sempre que os órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas intervenham sem poder soberano e celebrando meros contratos civis, ficam sujeitos às mesmas regras dos particulares. No caso em apreciação, existem dois diferentes e autónomos contratos: o contrato de Parceria Pública celebrado entre a Autora e o conjunto de Municípios da Região de … e o contrato celebrado entre a Autora e o Réu, enquanto utente-consumidor final. O primeiro contrato é – inquestionavelmente – um contrato administrativo, através do qual a Autora se obrigou a explorar um serviço de utilidade pública, na sequência de uma Parceria Pública, celebrada à luz de regras públicas e sujeito ao regime de direito público. A propósito deste tipo de contratos, refere Diogo Freitas do Amaral[6]: “Na esteira da nossa doutrina tradicional, temos definido o contrato de “concessão de serviços públicos” como aquele pelo qual um particular se encarrega de (montar e) explorar um serviço público.” No mesmo sentido, mais recentemente, Juliana Ferraz Coutinho[7] explica que: “A concessão configura-se, no fundo, como uma técnica indireta de gestão dos serviços públicos, implicando a transferência temporária do exercício (mas não já da titularidade), dos direitos e poderes da pessoa coletiva pública, necessários à gestão do serviço pelo concessionário.” Além disso, na perspectiva do objecto do contrato, decorre expressamente do regime jurídico dos Serviços Municipais de Abastecimento Público de Água, Saneamento e Resíduos Urbanos, aprovado pelo D.L. n.º 194/2009, de 20/08 que a exploração e gestão dos serviços municipais de abastecimento público de água consubstancia um serviço de interesse geral e visa a prossecução do interesse público, estando sujeita a obrigações específicas de serviço público. No entanto, este contrato administrativo não constitui causa de pedir da presente ação e, nessa medida, a sua caracterização não releva para a definição da competência material da causa. Já o segundo contrato, que só mantém do primeiro a origem subjetivamente pública do serviço, constitui a causa de pedir desta ação e é tipicamente um contrato de prestação de serviços de abastecimento de água e saneamento, tendo por objeto o fornecimento de água para consumo e a correspondente contraprestação de pagamento do preço respectivo, de acordo com o regime do direito civil. Não diz respeito a qualquer relação jurídica administrativa nem foi submetido a um regime substantivo de direito público. Por inerência, discordamos da opinião expressa na decisão recorrida, no sentido de que este contrato se deve considerar abrangido pelo art.º 4.º, n.º 1, alínea o) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. No único Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que encontramos a tratar esta questão, datado de 19/01/1994 e relatado por Carlos Caldas[8], decidiu-se precisamente que “Um contrato de fornecimento de água celebrado entre uma Câmara Municipal (fornecedora) e um particular, rege-se pelas normas dos contratos civis e não dos contratos administrativos. Quaisquer litígios que surjam no decurso de tal contrato são da competência dos tribunais comuns, por força do disposto no artigo 66 do Código de Processo Civil de 67.” Também os Tribunais da Relação têm vindo reiteradamente a decidir da mesma forma. Cita-se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão desta Relação de 06/02/2014, tendo como Relator Aristides Rodrigues de Almeida[9] onde ficou decidido: “É da competência dos tribunais comuns preparar e julgar uma ação declarativa instaurada por uma empresa privada gestora do serviço público de fornecimento de água e saneamento com vista a obter o pagamento do valor das faturas desse serviço prestado a um particular.” Bem como o Acórdão da Relação de Guimarães de 19/02/2013, tendo como Relator António Beça Pereira[10], onde se decidiu: “Os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para julgarem as ações em que uma sociedade, concessionária do abastecimento de água em certo concelho, reclama, daquele com quem contratou fornecer-lhe água, o pagamento relativo aos fornecimentos que alega ter realizado.[11]” Por outro lado, se dúvidas se mantivessem, o próprio regime substantivo do contrato em causa sempre obrigaria à sua caracterização como contrato de direito privado. Na verdade, nos últimos anos, tem-se assistido à transição de um Estado intervencionista para um Estado meramente regulador, designadamente com a crescente atribuição a privados da gestão de serviços públicos ou mesmo com a privatização definitiva deste tipo de serviços[12]. Neste contexto, surgiu a Lei dos Serviços Públicos Essenciais, aprovada pela Lei n.º 23/96, de 26/07[13], destinada a proteger o utente de serviços públicos essenciais. Citando as palavras de Fernando Dias Simões e Mariana Pinheiro Almeida[14]: “Está em causa a direito do consumidor à protecção dos seus interesses económicos, impondo-se nas relações jurídicas de consumo a igualdade material dos intervenientes, a lealdade e a boa fé, nos preliminares, na formação e ainda na vigência dos contratos.” Esta lei considera um dos serviços públicos aí abrangidos precisamente o “Serviço de fornecimento de água” (cf. Art.º 1.º, n.º 2, alínea a)), a par dos serviços de fornecimento de energia elétrica, de gás, de comunicações eletrónicas, de recolha e tratamento de águas residuais, de gestão de resíduos sólidos urbanos e dos serviços postais. Nesta mesma lei, considera-se prestador dos serviços, para além das entidades privadas, igualmente toda a entidade pública que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2 “independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão.” (n.º 4). Deve, portanto, entender-se que todas as entidades, públicas ou privadas, ficam sujeitas ao mesmo regime jurídico. Ora, o regime substantivo previsto nesta Lei n.º 23/96, de 26/07 é manifestamente um regime de direito privado, voltado para a proteção do consumidor, submetendo todos os contratos dessa categoria a um mesmo regime comum, de direito civil. Explica, a este propósito, Carlos Ferreira de Almeida[15], versando os contratos de serviços públicos: “Não são tão pouco contratos administrativos. Em primeiro lugar, porque a mesma lei eliminou todos os vestígios de poderes autoritários do fornecedor, substituindo-os por regras de proteção do utente. Em segundo lugar (para quem não aceite este critério como decisivo), porque as regras de organização, de funcionamento e de atuação concorrencial, próprias de alguns dos atuais fornecedores de serviços (máxime de gás e de telefone), são incompatíveis com a integração na atividade administrativa. (…) Em terceiro lugar, porque a natureza administrativa dos contratos não seria compatível com o princípio da neutralidade, que admitindo embora a natureza pública de alguns fornecedores, não pode conviver com certos princípios da atividade administrativa, tais como a tutela e o recurso hierárquico.” No mesmo sentido, referem Fernando Dias Simões e Mariana Pinheiro Almeida[16] que actualmente “entende-se que a fonte das prestações das partes não são nem regulamentos, nem atos administrativos, nem contratos administrativos. Diferentemente, os atos geradores das obrigações de prestação de serviço e de pagamento pelo utente são contratos de direito privado que, no essencial, se regem pelo Direito privado.” Por outro lado, a Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31 de julho[17] integra expressamente no âmbito da proteção dos consumidores os serviços prestados “pelos organismos da Administração Pública, por pessoas coletivas públicas, por empresas de capitais públicos ou detidas maioritariamente pelo Estado, pelas Regiões Autónomas ou pelas autarquias locais e por empresas concessionárias de serviços públicos.” (cf. Art.º 2.º, n.º 2). Ora, nesta Lei existe – da mesma forma – um conjunto de normas de índole privatística incompatíveis com uma relação jurídica administrativa, tais como a inserção contratual de mensagens publicitárias (art.º 7.º, n.º 5), o direito de retractação (art.º 8.º, n. º4) e a submissão ao regime das cláusulas contratuais gerais (art.º 9.º, n.º 3). Deve, pois, da mesma forma considerar-se um regime de direito privado, da mesma forma voltado para a proteção do consumidor. A conclusão é, portanto, a de os contratos de fornecimento de água são de índole estruturalmente civil e sendo atualmente qualificáveis como contratos de consumo e regulados por regimes especificamente dirigidos à protecção dos consumidores, tais como a Lei dos Serviços Públicos Essenciais ou a Lei de Defesa do Consumidor. Consequentemente, deve entender-se que, à luz da legislação vigente, a jurisdição comum é a competente para a apreciação de todas as questões relacionadas com o cumprimento do contrato de prestação de serviços outorgado entre a Autora e o Réu, na qualidade de utente ou consumidor final.A conclusão final é, portanto, a da procedência do recurso. * Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, e consequentemente, em revogar a decisão dos autos, declarando o tribunal recorrido materialmente competente para a ação e determinando o prosseguimento dos autos.V - DECISÃO * Custas pelo Recorrido (art.º 527.º do CP Civil).* Notifique e registe.* Porto, 15 de maio de 2018(Processado e revisto com recurso a meios informáticos) * Lina Baptista Fernando Samões Vieira e Cunha _____ [1] Doravante designado apenas por CP Civil. [2] Vindo a Autora reiterar tal alegação nas presentes alegações de recurso. [3] In Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, 2007, Coimbra Editora, pág. 148. [4] Objeto de sucessivas alterações, sendo a mais recente a introduzida pelo D.L. n.º 214-G/2015, de 02/10. [5] Na sequência da disposição legal do art.º 178.º do anterior Código de Procedimento Administrativo. [6] In Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2008, Almedina, pág. 537. [7] In O Público e o Privado na Organização Administrativa (da relevância do sujeito à especialidade da função), Coleção TESES, 2017, Almedina, pág. 172. [8] Proferido no Processo n.º 084535 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão. [9] Proferido no Processo n.º 65542/12.0YIPRT.P1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão. [10] Proferido no Processo n.º 353418/10.0YIPRT.G1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão. [11] Vejam-se ainda no mesmo sentido, e apenas em termos exemplificativos, os Acórdãos desta Relação de 07/11/2013, tendo como Relator Pinto de Almeida, proferido no Processo n.º 2338/12.5TBPRD-A.P1, de 10/07/2013, tendo como Relator Luís Lameiras, proferido no Processo n.º 99770/12.3YIPRT.P1, de 14/05/2013, tendo como Relator José Igreja Matos, proferido no Processo n.º 2946/12.4TBMTS.P1, e de 16/04/2013, tendo como Relatora Maria João Areias, proferido no Processo n.º 297266/11.7YIPRT.P1, disponíveis em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão. Em sentido contrário, encontram-se vários Acórdãos do Tribunal dos Conflitos, sendo o mais recente que recolhemos o proferido em 19/01/2017, no Processo n.º 014/16, disponível igualmente em www.dgsi.pt. [12] Para maior desenvolvimento veja-se Juliana Ferraz Coutinho, ob., cit., pág. 667. [13] E com várias alterações, sendo a redação atual a resultante da Lei n.º 10/2013, de 28/01. [14] In Lei dos Serviços Públicos Essenciais Anotada e Comentada, 2012, Almedina, pág. 8. [15] In “Serviços Públicos, Contratos Privados” in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Magalhães Collaço, Volume II, 2002, Almedina, pág. 122. [16] Ob. Cit. Pág. 16. [17] Com várias alterações, sendo a mais recente a introduzida pela Lei n.º 47/2014, de 28 de julho. |