Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11593/23.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA PINTO DA SILVA
Descritores: RESPONSABILIDADE POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO PELA PERDA DO DIREITO À VIDA
Nº do Documento: RP2025011311593/23.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Provando-se que a vítima, à data da morte, tinha 77 anos, era uma pessoa autónoma e independente e participava na vida familiar, deverá ser fixado no valor de €60 000,00 a indemnização pela perda do direito à vida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 11593/23.4T8PRT.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Central do Porto – Juiz 4

Recorrente: A..., S.A.

Recorridos: AA e BB

Relatora: Juíza Desembargadora Teresa Pinto da Silva

1º Adjunto: Juiz Desembargador Carlos Gil

2ª Adjunta: Juíza Desembargadora Teresa Fonseca


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Acordam os Juízes subscritores deste acórdão, da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

Em 21.06.2023, AA e BB intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A..., S.A., pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia global de €75.000 (setenta e cinto mil euros), sendo €50.000,00 pelo dano causado ao direito à vida da falecida mãe dos Autores, do qual caberá apenas a quantia de €33.333,33 a dividir pelos dois Autores; €15.000,00, pelos danos morais causados ao Autor AA; €15.000,00, pelos danos morais causados ao Autor BB e €10.000,00, pelo sofrimento da falecida mãe dos Autores entre o momento do embate e a sua morte, danos esses sofridos em consequência de acidente de viação cuja ocorrência imputam a condutor de veículo seguro na Ré.

Em 18 de setembro de 2023, a Ré apresentou contestação, invocando a exceção da ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário ativo, porquanto apenas dois dos três filhos da vítima figuram como Autores. Acresce que, ainda que assim se não entenda, sempre os Autores carecerão de legitimidade para parte dos pedidos, pois que deveriam cingir o seu pedido à quota-parte a que têm direito.

Sustentou que os Autores devem prestar esclarecimentos quanto à divergência entre o valor atribuído à ação na parte final da petição inicial (€73.333,33) e aquele que indicaram no formulário (€77.333,33), impugnou a dinâmica do acidente, atribuindo a culpa do sinistro única e exclusivamente à vítima mortal e defendeu ser excessiva a indemnização pedida pelos Autores para a reparação dos danos invocados na petição inicial.

Na sequência de despacho proferido em 11 de outubro de 2023 para se pronunciarem quanto à matéria de exceção invocada pela Ré na contestação, vieram os Autores fazê-lo por articulado de 20 de outubro de 2023, pugnando pela improcedência da exceção dilatória da ilegitimidade ativa, considerando tratar-se de uma situação de litisconsórcio voluntário, esclarecendo ainda que apenas peticionaram a parte que lhes cabe (1/3) na indemnização dos danos que descrevem, motivo pelo qual vêm corrigir o valor atribuído à ação, sustentando que deve fixar-se na quantia de €69.999,99.

Por decisão de 15 de novembro de 2023, o Tribunal recorrido dispensou a audiência prévia e proferiu despacho saneador, no qual fixou o valor da causa em €73.333,33, julgou improcedente a exceção da ilegitimidade dos Autores e fixou o objeto do litígio e os temas da prova.

Foram admitidos os requerimentos probatórios, entre eles o requerido pela Ré quanto à solicitação da remessa, a título devolutivo, do processo de inquérito que, sob o nº ..., correu termos do DIAP – 2ª Secção do Porto, por forma a que toda a documentação que do mesmo consta possa servir de prova documental.

Foi designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento, que, após algumas vicissitudes, veio a realizar-se no dia 9 de maio de 2024.

Em 15 de maio de 2024, foi proferida sentença, da qual consta o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto julga-se a acção parcialmente procedente por provada e em consequência condena-se a Ré a pagar:

a) Ao Autor AA a quantia de € 20.000,00 pelo dano vida;

b) Ao Autor AA a quantia de € 10.000,00 pelos danos morais sofridos;

c) Ao Autor BB a quantia de € 20.000,00 pelo dano vida;

d) Ao Autor BB a quantia de € 10.000,00 pelos danos morais sofridos;

e) Absolver a Ré do demais peticionado.

f) Custas a cargo dos Autores e Ré na proporção do decaimento”.


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Inconformada com esta sentença, veio a Ré dela interpor o presente recurso, pretendendo a revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra que absolva a Recorrente do pedido, para o que apresentou alegações, culminando com as seguintes conclusões:

1. Não se pode conformar a Recorrente com o sentenciado, uma vez que não existe matéria fáctica que o suporte, devendo os factos 12.º e 16.º a 19.º dados como provados ser expurgados da respetiva listagem.

2. Tal afere-se da análise do depoimento da testemunha CC, nos minutos 0:54 a 18:45, da testemunha DD nos minutos 3:17 a 5:28, dos documentos n.ºs 1 e 2 da petição inicial e do documento n.º 2 da contestação.

3. O que forçosamente se retira dos elementos dos autos é que a Falecida tenha sido embatida logo no início da travessia, pela frente esquerda do veículo, o que a fez desequilibrar, tendo a mesma caído e ficado prostrada à frente do carro [com a cabeça já mais perto do lado direito], na sequência do qual começou a sangrar do nariz. O sangramento ficou acumulado no pavimento a uma distância de dois metros do passeio, correspondendo esta distância à altura da Falecida [a qual se desconhece por não constar do relatório de autópsia, mas que sempre será inferior a dois metros], à qual se soma o espaço percorrido pela mesma antes do embate, seja um ou dois passos.

4. Por essa razão, a responsabilidade pela produção do sinistro cabe in totem à Falecida ou, pelo menos, na proporção de 80%.

5. Sem prejuízo, a indemnização decretada pelo Tribunal a quo é excessiva, por comparação a valores considerados razoáveis por Tribunais Superiores, seja para vítimas de igual idade e até mais novas do que a mãe dos Recorridos, tendo a sentença, por isso, violado o princípio da equidade.

6. Pelo vindo de referir, não pode ser mantida a sentença à qual ora se reage.


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Os Autores/Apelados responderam às alegações, sustentando a improcedência do recurso e a manutenção da sentença recorrida, com as seguintes conclusões:

I. Não pode a pretensão da Recorrente proceder, quer relativamente à responsabilidade pelo sinistro e consequências do mesmo, quer relativamente ao quantum indemnizatório decidido pelo tribunal a quo.

II. Os factos 12.º e 16.º a 19.º foram provados em sede de audiência, sustentados ainda pela prova documental junto aos autos.

III. Decisão diferente da tomada seria, nas palavras do depoimento do agente da PSP, contra a dinâmica do acidente (12:22), uma vez que a vítima foi atropelada pelo veículo segurado pela Ré quando já se encontrava a meio da faixa de rodagem.

IV. Não tendo o condutor se apercebido da sua presença, nas suas próprias palavras (08:07, 8:11, 9:17).

V. Esta falta de perceção da presença da peã, pelo condutor, antes e durante o sinistro, é inexplicável e incompatível com uma condução atenta, violando claramente o dever de cuidado a que está adstrito.

VI. Conduta que merece censura e que corresponde à causa única e exclusiva da produção do sinistro, não cabendo, no caso em juízo, proceder a qualquer divisão de responsabilidades, não podendo proceder a pretensão da Recorrente.

VI. Ainda, a indemnização decretada pelo Tribunal a quo como vimos, à luz de vários exemplos e à luz do princípio da equidade, é razoável e equitativa, tendo até em casos semelhantes sido decretadas indemnizações bem superiores em casos análogos.

VII. Pelo que também relativamente a este ponto não pode proceder a pretensão da Recorrente.


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Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e com efeito devolutivo.

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Recebido o processo nesta Relação, emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


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Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido.

Mercê do exposto, da análise das conclusões vertidas pelo Recorrente nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

1ª - Se foi validamente deduzida e procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença quanto aos pontos 12.º e 16.º a 19. dos factos provados e, em caso afirmativo,

2ª - Da repercussão dessa alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso e, independentemente disso,

3ª Se deve ser alterada, por excessiva, a indemnização fixada aos Autores.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto

É o seguinte o teor da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida (transcrição):

Factos provados

1.ºNo dia 26 de novembro de 2021, por volta das 12:40h, na Rua ..., ..., ocorreu um acidente de viação.
2.ºForam intervenientes no referido acidente a falecida mãe dos aqui Autores, que se deslocava a pé, e o sr. EE, que se deslocava no veículo de passageiros com a matrícula ..-DB-.., da marca ..., modelo ..., identificado como proprietário do veículo, residente na Rua ..., Porto.
3.ºPor contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...69, válido e eficaz à data do sinistro, a responsabilidade civil por danos provocados a terceiros, emergente da circulação rodoviária do referido veículo ligeiro de passageiros, encontrava-se transferida para a seguradora Ré - doc. 1, que se junta e se dá como reproduzido para todos os legais e devidos efeitos.
4.ºAquando do acidente, estava bom tempo e o piso encontrava-se seco e em razoável estado de conservação.
5.ºA Rua ... é uma via ladeada, em ambos os lados, por edificações, casas de habitação e estabelecimentos comerciais, todos com saída direta para a via.
6.ºA mencionada rua é uma estrada sem separador central, composta por 2 faixas de rodagem afetas a cada sentido de marcha, com piso betuminoso e encontrava-se, na altura do acidente, seca e em razoável estado de conservação.
7.ºO local onde se verificou o acidente – em frente ao n.º ...20 – trata-se de uma reta, com ampla visibilidade.
8.ºOra, nas circunstâncias de tempo e de lugar já referidas, a falecida mãe dos Autores, deu início à travessia daquela via.
9º A via no local tem 6,80 metros de largura e possui duas hemi-faixas de rodagem, uma para cada sentido de trânsito.
9.ºNo local a passadeira mais próxima situa-se a 53,40 metros.
10º No dia e hora do sinistro encontrava-se mais do que um veículo estacionado na Rua ... no mesmo sentido em que seguia o condutor do veículo seguro.
10.º O DB iniciou a manobra de ultrapassagem aos referidos veículos.
12.º E quando já se encontrava a terminar a travessia da faixa de rodagem onde circulava o veículo referido, percorridos cerca de 3 metros desta, a falecida foi abalroada pelo veículo seguro na Ré.
13º. A falecida procedeu à travessia da faixa de rodagem fora da passadeira e da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo.
14.ºO veículo DB em questão teve de contornar os veículos que estavam estacionados na hemifaixa da direita e que ocupavam parte da via em que circulava.
15.ºAtenta a largura de cada uma das vias (cerca de 3,3 metros), para os contornar, teve de invadir a hemifaixa da esquerda, de sentido inverso ao que seguia.
16.ºFê-lo sem verificar se naquele momento se encontrava a atravessar a faixa de rodagem qualquer peão, uma vez que a falecida já se encontrava a atravessá-la.
17.ºA força principal de impacto foi na parte frontal do veículo DB, no seu lado direito.
18º Na fase final desta manobra, o veículo abalroou a mãe dos Autores, colhendo-a com a frente direita do seu veículo.
19.ºEsta colisão, por sua vez, ocorreu a cerca de 3/4 metros da berma que, do lado direito, atento o sentido de marcha do veículo seguro, margina a via.
22.ºA vítima foi inicialmente assistida pelo INEM, que se encontrava apoiada pela Dra. FF, Cédula Profissional n.º ...38, da VMER do Hospital de S. João, em virtude da extensão e da gravidade dos danos que sofreu, e logo aí foi sedada.
23.ºPosteriormente, foi transportada para o serviço de urgência do Hospital de S. João, no Porto, onde acabou por falecer em função das lesões sofridas no acidente, no estado civil de viúva, deixando como únicos herdeiros os aqui Autores e ainda GG, também seu filho - doc. 4, que se junta e se dá como reproduzido para todos os legais e devidos efeitos.
24.ºÀ data do acidente, a mãe dos Autores tinha 77 (nasceu em ../../1944), era uma pessoa autónoma e independente, participativa na vida familiar, principalmente com os seus filhos, aqui Autores.
25.ºNa sequência do acidente em juízo, a mãe dos Autores acabou por falecer horas mais tarde, às 17:18 minutos, no Hospital de S. João.
26.ºCom a morte da sua mãe, os Autores sofreram tristeza e abalo emocional.
27º.O veículo DB circulava a cerca de 30/40 km h.

Factos não provados

- A peã efectuou a travessia da faixa de rodagem de forma inopinada, sem atentar à aproximação do DB.

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Fundamentação de direito

1 – Se foi validamente deduzida e procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença quanto aos pontos 12.º e 16.º a 19. dos factos provados

Pretende a Apelante a reapreciação da decisão da matéria de facto, por entender que foi feita uma incorreta apreciação da prova quanto à matéria considerada provada pela 1ª instância nos pontos 12º e 16º a 19º dos factos provados.

A Recorrente cumpriu os pressupostos de ordem formal para se proceder à reapreciação da decisão da matéria de facto, mais precisamente o ónus de impugnação a que alude o artigo 640º, do Código de Processo Civil, porquanto:

- Indicou claramente os concretos pontos de facto constantes da decisão que considera afetados por erro de julgamento: pontos 12º e 16º a 19º dos factos provados.
- Fundamentou as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios, tendo invocado como motivos da sua divergência o depoimento das testemunhas CC e DD, bem como os documentos nºs 1 e 2 juntos com a petição inicial e o documento nº 2 junto com a contestação.
- Discriminou as passagens da gravação em que funda o seu recurso, uma vez que os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tinham sido gravados, procedendo à transcrição dos excertos que considerou relevantes.

- Enunciou qual a decisão que, em seu entender, deveria ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas: eliminação dos pontos 12º e 16º a 19º dos factos provados e darem-se como provados os seguintes factos: a Falecida foi embatida logo no início da travessia, pela frente esquerda do veículo, o que a fez desequilibrar, tendo a mesma caído e ficado prostrada à frente do carro [com a cabeça já mais perto do lado direito], na sequência do qual começou a sangrar do nariz. O sangramento ficou acumulado no pavimento a uma distância de dois metros do passeio, correspondendo esta distância à altura da Falecida [a qual se desconhece por não constar do relatório de autópsia, mas que sempre será inferior a dois metros], à qual se soma o espaço percorrido pela mesma antes do embate, seja um ou dois passos.
Mostra-se, por conseguinte, cumprido por parte da Recorrente o ónus que sobre si impendia ao pretender a alteração da matéria de facto, previsto no artigo 640º, do Código de Processo Civil, e, consequentemente, preenchidos todos os pressupostos necessários para a Relação proceder à reapreciação da prova.
Cumpre salientar que essa reapreciação deve conter-se dentro dos seguintes parâmetros:
i) O Tribunal da Relação só tem de se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pela Recorrente (a menos que se venha a revelar necessária a pronúncia sobre facticidade não impugnada para que não haja contradições);
ii) Sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem de realizar um novo julgamento;
iii) Nesse novo julgamento, o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Dentro destes limites, o Tribunal da Relação está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pela Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto à imediação e oralidade.
Diga-se ainda que a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do Código de Processo Civil), que está atribuído quer ao Tribunal da 1ª instância quer ao Tribunal de recurso, embora se reconheça que na formação da convicção do julgador podem intervir elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade permitem apreender.
Recorrendo aos ensinamentos de António Santos Abrantes Geraldes[1], diremos que “É inegável que a gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (vídeo) nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reações perante as objeções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de perceção das referidas reações que, porventura, influenciaram o juiz de 1ª instância.”
Como é referido por aquele autor em nota de rodapé (547), na obra citada, página 348, «Já no Preâmbulo do Decreto nº 12.353, de 22-9-1926, se assinalava, com toda a pertinência, que “a psicologia judiciária ensina que um dos elementos a que deve atender-se para apreciar o valor de um depoimento é a atitude da testemunha, o modo como ela se apresenta, a forma por que depõe, o tom de firmeza ou de embaraço que imprime às suas declarações. Não é exagerado afirmar-se que mais do que aquilo que a testemunha diz vale o modo por que o diz”.
E nas Ordenações (Livro 1º, título 86, parágrafo 1º), determinava-se aos inquiridores que “atentem bem com que aspeto e constância falam (as testemunhas) e se variam, ou vacilam, ou mudam de cor, ou se torvam na fala, em maneira que lhes pareça que são falsas ou suspeitas…».
Por estas razões, está, em princípio, em melhor situação para apreciar os depoimentos prestados o julgador de primeira instância, uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos que não transparecem na gravação dos depoimentos, devendo, contudo, esclarecer, na decisão, os elementos considerados que entendeu de relevo.
Não obstante essas dificuldades com que o Tribunal da Relação se defronta, a verdade é que deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando, analisando devidamente todos os meios de prova, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, conseguir concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação por parte do Tribunal de 1ª Instância relativamente aos concretos pontos de facto impugnados pela Recorrente. De salientar que pode, também, dar-se o caso de, mesmo que o erro na apreciação da prova se não verifique, o Tribunal da Relação, usando da sua autonomia decisória, entender que deve introduzir as alterações solicitadas pelo Recorrente no compósito fáctico da causa, por diversa convicção sobre as provas, pois que o princípio da livre convicção de julgador vigora não só no julgamento de facto em 1ª instância, como também no julgamento de facto da Relação, não estando este Tribunal vinculado à livre convicção do julgador do Tribunal inferior.
Partindo destas premissas, passa-se a efetuar o julgamento da matéria de facto por parte deste Tribunal da Relação, para o que foram ouvidos, na sua integralidade, os registos fonográficos indicados e analisada devidamente toda a prova documental junta aos autos, em particular os documentos que foram exibidos às testemunhas no decurso dos seus depoimentos (auto de participação de acidente e respetivo croquis e as fotos do Relatório de Inspeção Judiciária de Acidente de Viação).

De notar que a censura que a Recorrente dirige aos factos que o Tribunal de primeira instância considerou provados sob os pontos 12º e 16º a 19º será tratada em conjunto, pois que aquela indicou os mesmos meios de prova para sustentar a sua pretensão sem discriminar, em relação a cada um dos pontos da matéria de facto que pretende ver alterados, os concretos meios de prova que devem servir de suporte para essa alteração. O que se compreende, porquanto todos os factos que a Recorrente quer ver alterados se relacionam com a dinâmica do acidente de viação objeto dos autos. Como tal, a indicação em conjunto dos meios de prova para a pretendida reapreciação e consequente alteração de cada um daqueles pontos está justificada pela própria natureza desses factos, pois que se trata de várias alegações respeitantes à mesma matéria, tendentes a descrever a dinâmica do sinistro.

A Recorrente pretende a eliminação dos pontos 12º e 16º a 19º do elenco dos factos provados, quais sejam:
12º E quando já se encontrava a terminar a travessia da faixa de rodagem onde circulava o veículo referido, percorridos cerca de 3 metros desta, a falecida foi abalroada pelo veículo seguro na Ré.
16º Fê-lo sem verificar se naquele momento se encontrava a atravessar a faixa de rodagem qualquer peão, uma vez que a falecida já se encontrava a atravessá-la.
17º A força principal de impacto foi na parte frontal do veículo DB, no seu lado direito.
18º Na fase final desta manobra, o veículo abalroou a mãe dos Autores, colhendo-a com a frente direita do seu veículo.
19º Esta colisão, por sua vez, ocorreu a cerca de 3/4 metros da berma que, do lado direito, atento o sentido de marcha do veículo seguro, margina a via.
Entende a Recorrente que, se se fizer um esforço de traçar uma dinâmica do sinistro como a que o Tribunal a quo defendeu, a posição final da falecida nunca seria a que na realidade foi, nem os vestígios de sangue se encontrariam onde se encontram. Isto porque não vislumbra como poderia a falecida ter sido embatida pela frente direita do veículo – conforme concluiu o Tribunal a quo – se é precisamente nesse local de embate (considerado na sentença) que se encontram os vestígios de sangue. Sustenta que tal hipótese não considera o espaço para onde o corpo caiu nem a posição da cabeça da falecida face ao veículo e em relação à posição inicial da mesma imediatamente antes do embate. Defende que o Tribunal a quo foi confrontado com mais do que uma versão do sucedido, tendo ficado convicto de uma versão que não foi capaz de defender, acabando por atender à narração da testemunha HH, cujo depoimento está manifestamente inquinado por lapsos de memória e que efetuou uma descrição dos factos que não encaixa nas regras da experiência, regras da física nem nos elementos dos autos, em particular o auto da PSP. Salienta que essa testemunha HH referiu, nos minutos 3:19 a 3:45, que pese embora seguissem veículos na via que o condutor do veículo seguro queria ocupar para concretizar a ultrapassagem, o mesmo teve espaço suficiente para passar, pelo que não parou nem teve de parar antes de dar início à manobra. Resulta dos autos que a faixa de rodagem tem 6,80 metros de largura, um veículo ligeiro tem uma largura, em média, de 2 metros, a que acrescem os espelhos retrovisores, pelo que questiona a Recorrente como teria o condutor do veículo seguro espaço suficiente para fazer uma ultrapassagem entre dois veículos ou duas filas de veículos naquele arruamento. Mais alega que, aos minutos 8:35 a 8:45, a testemunha HH refere que a falecida ficou prostrada paralelamente ao eixo da via, o que se sabe que não corresponde à verdade, pelos elementos do processo, em função do local onde se registaram os vestígios de sangue, tendo a falecida ficado perpendicular ao eixo da via, em frente ao veículo com que se cruzou. Embora reconheça que esta testemunha não tenha faltado à verdade no seu depoimento, entende que a perceção que a mesma tem do acidente já sofreu o efeito do decurso do tempo, o que se atesta pela incapacidade da testemunha se aperceber, por exemplo, que é inviável que o veículo seguro não tenha de aguardar pela passagem de veículos antes de invadir a via em sentido oposto. Não obstante, o depoimento dessa testemunha foi determinante na convicção do Tribunal a quo, já que aquela referiu “com plena convicção que a senhora já estava no meio da rua quando foi apanhada”.
Sustenta a alteração desses factos com base no depoimento da testemunha CC que, no seu entendimento, também depôs com plena convicção, afirmando que a falecida iniciou a travessia ao mesmo tempo que o veículo iniciou a marcha, tendo aquela sido embatida pela frente esquerda do veículo. Tal afirmação tem suporte e confirmação pelos elementos dos autos, pois que, após o embate, – como ambas as testemunhas oculares, aliás, o referem – a falecida bateu com a cabeça, tendo começado a sangrar. Ora, existem, de facto, vestígios de sangue a dois metros do passeio – cfr. declarações da testemunha DD e croquis elaborado pelo mesmo. Assim sendo, fica perfeitamente claro que a falecida tenha sido embatida logo no início da travessia pela frente esquerda do veículo, o que a fez desequilibrar, tendo a mesma caído e ficado prostrada à frente do carro [com a cabeça já mais perto do lado direito], na sequência do que começou a sangrar do nariz. O sangramento ficou acumulado no pavimento, a uma distância de dois metros do passeio, correspondendo esta distância à altura da falecida [a qual se desconhece por não constar do relatório de autópsia, mas que sempre será inferior a dois metros], à qual se soma o espaço percorrido pela mesma antes do embate, seja um ou dois passos.
A sentença recorrida baseou a prova dos factos respeitantes à dinâmica do sinistro, onde se incluem aqueles que a Recorrente impugna (e o facto não provado), nos seguintes termos: “(…), quanto à dinâmica do acidente cumpre referir o seguinte: O tribunal começou por atender, naturalmente, à participação do acidente, que nos situa quanto aos seus intervenientes, local e suas características, estado do tempo, e descrição do acidente pelo interveniente e testemunhas. Atendeu-se igualmente ao relatório de inspecção judiciária de acidente de viação, que atesta o estado do veículo, e inexistência de rastos de travagem, e confirma a existência de vestígios de sangue no local bem como parte da peça de vestuário do peão atropelado (as ilustrações 4, 7 e 9 elucidam sobre a sua localização).
Posto isto, e face à dinâmica do acidente traçada pelas partes nos articulados respectivos, o Tribunal ficou convencido de que o acidente ocorreu pela forma descrita pelos autores. Para tal contribuiu os depoimentos da testemunha HH, CC e do condutor do Veiculo automóvel. Este ultimo começa por referir com relevância, e depois de alguma confusão nas declarações, que não sabe de que lado vinha a peã, pois só viu a senhora no chão, ouviu gritar e não chegou a ver a senhora de pé. O depoimento da HH indica-nos a localização da peã aquando do embate, pois refere com plena convicção que a senhora já estava no meio da rua quando foi apanhada, e tanto foi assim que a roda do carro do lado direito apanhou as calças da peã. Lembra-se inclusive que o carrinho de compras que levou ficou ao lado dela e da forma como a senhora caiu. Confirma a velocidade do veiculo automóvel, como aliás as restantes testemunhas presenciais do acidente. Neste contexto, o tribunal criou a convicção de que a falecida procedeu à travessia da faixa de rodagem fora da passadeira e da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veiculo.
Por sua vez o veículo DB em questão teve de contornar os veículos que estavam estacionados na hemifaixa da direita e que ocupavam parte da via em que circulava e atenta a largura de cada uma das vias (cerca de 3,3 metros), para os contornar, teve de invadir a hemifaixa da esquerda, de sentido inverso ao que seguia.
Só podemos concluir que fê-lo sem verificar se naquele momento se encontrava a atravessar a faixa de rodagem qualquer peão, uma vez que a falecida já se encontrava a atravessá-la, tanto que a força principal de impacto foi na parte frontal do veículo DB, no seu lado direito.
Assim, na fase final desta manobra, o veículo abalroou a mãe dos Autores, colhendo-a com a frente direita do seu veículo.
Esta colisão, por sua vez, ocorreu a cerca de 0,4 metros da berma que, do lado direito, atento o sentido de marcha do veículo seguro, margina a via.
Quanto ao facto não provado o mesmo resulta da ausência de prova sobre o mesmo”.
Impõe-se dizer, antecipando desde já a nossa conclusão, que os argumentos apresentados pela Apelante não justificam alterar a decisão de facto quanto aos pontos 12º e 16º a 18º dos factos provados.
Dito de outro modo, considerando a prova indicada pela Apelante e após análise de toda a restante prova produzida, concluímos que a mesma não é suficiente para dar uma resposta diversa aos factos impugnados sob os pontos 12º e 16º a 18º, pelo que a impugnação da decisão de facto tem necessariamente de improceder quanto a tais pontos pelas razões que, de seguida, se passam a expor.
* Em primeiro lugar, não colhe a argumentação da Recorrente quando sustenta que, perante a dinâmica do sinistro dada como provada pelo Tribunal recorrido, a posição final da falecida nunca seria a que, na realidade, foi, nem os vestígios de sangue se encontrariam onde se encontram.
Fazendo uma breve resenha dos pontos mais relevantes dos depoimentos prestados em sede de julgamento quanto à dinâmica do acidente, evidencia-se que:
- O condutor do veículo seguro, EE, começou por afirmar que estava de regresso a sua casa, depois de ter levado o filho ao colégio, tendo entrado na Rua ... após atravessar o “túnel” da ... em direção ao .... É habitual haver veículos estacionados na Rua ..., do lado direito, atento o sentido de marcha em que seguia - “praticamente a outra via é que está aberta” - e naquele dia também estavam lá estacionados vários veículos, não conseguindo precisar quantos. “Fiz a manobra para desviar dos carros que estavam estacionados, estava com uma velocidade muito baixa, e de repente atropelei a senhora que estava a atravessar fora da passadeira. Quando aconteceu o embate imobilizei o carro. A senhora saiu do lado onde estavam estacionados os carros, ela saiu de trás dos carros que eu estava a contornar, estava tapada por eles, ela aparece de trás dos carros. Parei logo quando bati na senhora”. Depois, quando questionado sobre se a senhora caiu para cima do capot, afirmou “Muito sinceramente eu só senti pessoas a gritar e não vi a senhora. Não cheguei a ver a senhora de pé. Só depois, quando saí do carro, vi-a no chão, encostada à roda direita do carro; não sei de que lado vinha a senhora, não a vi, só senti os gritos das pessoas”.
Do auto de participação do acidente consta que o condutor EE descreveu o acidente ao órgão de polícia criminal da seguinte forma: “Pelas 12h40 circulava na Rua ... no sentido ..., ultrapassava os veículos estacionados e de repente atravessa uma senhora fora da passadeira da minha esquerda para a minha direita não me dando hipótese de evitar o atropelamento. É de salientar que circulava com velocidade baixa”.
- A testemunha DD, agente da PSP, elaborou o auto de participação de acidente, o relatório de inspeção judiciária e o relatório fotográfico anexo a esse relatório de inspeção, juntos com a petição inicial, tendo, em sede de julgamento, confirmado na íntegra o teor de tais relatórios e esclarecido o seu conteúdo. Em concreto, quando confrontado com o croquis e com as medidas de 2,00 m e 0,40m, ali indicadas, esclareceu que os 0,40 m se referem à distância entre o ponto fixo (indicado no relatório de inspeção, ilustração 4, como sendo a ombreira esquerda da porta do imóvel nº ...20) e a frente do veículo interveniente no acidente, e os dois metros devem ser medidos do passeio para o meio da via. Da conjugação destas duas medidas resulta, como afirmou a identificada testemunha, que os vestígios de sangue da vítima existentes na via tinham o seu início a dois metros da guia do passeio do lado esquerdo (atento o sentido de marcha do veículo) e 40 centímetros à frente do local onde o veículo se imobilizou após o acidente e estendiam-se em direção ao meio da faixa de rodagem, como se pode ver na ilustração 7 anexa ao relatório de inspeção. Havia ainda uma concentração menor de vestígios de sangue na lateral direita do veículo (considerando o sentido de circulação deste), junto à roda da frente desse lado direito, conforme assinalado na ilustração 7 do relatório de inspeção (aí já cobertos por pó), bem como parte de uma peça de vestuário da vítima, presa nessa roda da frente do lado direito, conforme também se mostra assinalado na ilustração 7. Embora quando esta testemunha lá chegou a vítima estivesse a ser assistida no interior da ambulância, a posição desta após o acidente ficou materializada nos vestígios de sangue existentes na faixa de rodagem e já indicados. O sentido de atravessamento da estrada por parte da vítima apurou-o através das declarações do condutor e das testemunhas cuja identificação consta do auto de participação, resultando de tais declarações que a vítima atravessa da esquerda para a direita, atento o sentido de circulação do veículo seguro. Afirmou assertivamente que, pelos vestígios que viu no local, a vítima foi embatida pela parte frontal do lado direito do veículo, sendo atropelada quando já se encontrava a meio da faixa de rodagem, “tinha que ser, é a dinâmica. Se estivesse a iniciar a travessia da faixa de rodagem o embate tinha que ser do lado esquerdo do veículo”.
- A testemunha CC afirmou que estava no passeio do lado direito, atento o sentido de marcha do veículo seguro. Mais referiu que havia carros estacionados “e o senhor estava parado, à espera que os carros que vinham em sentido contrário passassem. Quando os carros passaram o senhor avançou e ultrapassou e nesse momento que ele passa é quando a senhora atravessa a rua e, claro, não tem visibilidade porque ele estava a ver os carros para fazer a ultrapassagem e a senhora, como desce do passeio para atravessar, o senhor não viu e foi aí que ocorreu o atropelamento. A senhora estava do outro lado, atravessou da esquerda para a direita. Estavam muitos carros estacionados, ele tinha mais carros para ultrapassar”, mas o atropelamento “foi logo no primeiro carro que ele ultrapassou, foi logo no início, logo no arranque, ele estava quase parado. A senhora não chegou a ir para cima do capot, ela ficou à frente do carro, para o lado direito do carro, ficou uma peça de roupa na roda do carro do lado direito. Ao bater a senhora cai para a frente. Foi ao mesmo tempo – ela a atravessar e ele a passar. Ao mesmo tempo que ele inicia a ultrapassagem ela põe o pé no chão. O primeiro contacto da senhora com o veículo foi do lado esquerdo. O condutor se calhar estava mais preocupado com os carros que vinham e a senhora achou, se calhar, que era mais um carro parado e atravessou. Acha que ambos não viram nem um nem outro. O senhor apanhou a senhora quando ela estava no início da travessia e não no meio da faixa”. No entanto, quando, em contra-interrogatório, foi confrontada com a fotografia 7 anexa ao relatório de inspeção, e com a circunstância de a sua versão não ser coerente com o croquis da PSP, a localização dos vestígios de sangue na faixa de rodagem e a existência da peça de roupa da falecida presa na roda da frente do lado direito, a identificada testemunha CC, após algum silêncio, acabou por se limitar a proferir um lacónico “Sim, percebo”. E perante a insistência quanto à circunstância de, caso o embate tivesse sido sobre o lado esquerdo do veículo, como afirmou, não fazer sentido a peça de roupa e a poça de sangue estarem do lado direito, a testemunha CC continuou apenas a verbalizar um “Sim, percebo”.
- A testemunha HH, mãe da testemunha CC, afirmou que se encontrava juntamente com esta no passeio do lado direito, atento o sentido de marcha do veículo seguro. Segundo o seu depoimento, a vítima estava a atravessar a estrada do lado esquerdo para o lado direito (atento o sentido de marcha do veículo), e “ela já estava no meio da rua quando o senhor a apanhou. Ele apanhou-a mesmo a meio da estrada, ela já estava a meio da estrada, ela não estava na berma da estrada nem sequer na ponta do passeio; a roda da frente do lado direito apanhou um bocado das calças pretas que a senhora trazia vestidas. Ela já vinha a meio da estrada quando ele a apanhou” Mais referiu que havia carros estacionados do lado direito, atento o sentido de circulação do veículo e, por isso, ele teve de invadir a hemifaixa de rodagem contrária para os ultrapassar, o que fez sem parar, “ele não parou para ultrapassar os carros que estavam parados, ele foi logo”, porquanto “vinham carros em sentido contrário, vindos do ..., mas ainda algo distantes, pelo que ele pode fazer a manobra e ía devagar”. A senhora, ao ser atropelada, caiu e bateu com a cabeça no chão, ficando com o carrinho de compras ao lado dela, no meio da estrada, em posição paralela ao eixo da via. Mais referiu que o condutor do veículo o imobilizou logo após o atropelamento e não mexeu mais nele até as autoridades aparecerem. Houve quem dissesse “puxe o carro atrás que a senhora está debaixo do carro” e a testemunha afirmou logo no local “não, não está, as calças estão trilhadas mas não está de forma nenhuma debaixo do carro. Só mesmo o tecido é que ficou agarrado ao pneu, não a perna”.
Perante estes depoimentos e elementos probatórios, importa desde logo salientar que não assiste qualquer razão à Recorrente quando sustenta que o depoimento da testemunha HH está manifestamente inquinado por lapsos de memória, efetuando uma descrição dos factos que não encaixa nas regras da experiência, regras da física nem nos elementos dos autos. Diferentemente, da audição que efetuamos, o seu depoimento revela-se claro e coerente, demonstrando ter bem presente os factos em discussão nos autos, encaixando perfeitamente nas regras da experiência e da física e sendo consentâneo com os demais elementos dos autos, em particular com o auto de participação do acidente e o relatório de inspeção judiciária.
Note-se que de uma audição atenta do depoimento da identificada testemunha HH não se retiram as conclusões sustentadas pela Recorrente. Do que aquela testemunha referiu relativamente aos veículos que circulavam na via que o condutor do veículo seguro queria ocupar para concretizar a ultrapassagem (ou seja, aqueles que seguiam no sentido ... – ...) o que se conclui é que esses veículos, quando o condutor Bubacar iniciou a ultrapassagem dos carros que estavam estacionados no lado direito da via (atento o seu sentido de marcha), ainda vinham distantes e, por isso, ele teve tempo de iniciar a ultrapassagem, tanto que nem parou antes de iniciar essa manobra. Por outro lado, a ilustração 7 anexa ao relatório de inspeção é consentânea com a afirmação efetuada pela testemunha HH segundo a qual a vítima, após o atropelamento, ficou caída paralelamente ao eixo da via. De notar que existem vestígios de sangue junto da roda direita do veículo seguro, onde inclusivamente ficou presa uma parte de uma peça de vestuário da falecida, e os maiores vestígios de sangue localizam-se 40 cms à frente do veículo, mostrando-se mais extensos precisamente quase em linha reta com os que estão junto à roda, não havendo vestígios de sangue no espaço que separa os existentes junto à roda e aqueles que são visíveis à frente do lado direito do veículo, o que indicia que esse espaço corresponderá à distância entre a perna da vítima (posicionada junto à roda da frente do lado direito) e a sua cabeça (posicionada à frente do lado direito do carro) onde terá sangrado mais, face às lesões que sofreu. De salientar que, de acordo com o relatório de autópsia, a falecida apresentava no membro inferior direito resguardo de cor branca trespassado de sangue, a envolver a sua perna e edema pronunciado ao nível do joelho e área de escoriação e esfacelo dos tecidos da face lateral do terço distal da perna e face dorso-lateral do pé, envolvendo os 3º, 4º e 5º dedos, numa área de 20 por 12 cm de maiores dimensões, e no membro inferior esquerdo apenas tinha sinais de picadas da região enguinal compatíveis com atitude terapêutica recente de acesso vascular. Ou seja, é legítimo concluir que a perna atingida na colisão foi a direita, não apresentando a perna esquerda quaisquer lesões compatíveis com uma colisão.
Já nos ossos da cabeça apresentava, entre outras lesões, fratura linear de orientação vertical com 6 cm de comprimento e nas meninges hemorragia subdural envolvendo a convexidade e base dos lobos frontais (mais pronunciada à esquerda), convexidade do lobo temporal esquerdo e base de ambos os temporais e face inferior do cerebelo, formação de coágulos de sangue envolvendo a região frontotemporal esquerda e cisterna interpeduncular com hemorragia subarabnoideia generalizada.
Todas estas lesões são claramente compatíveis com a descrição do acidente efetuada pela testemunha HH, com o que resulta do auto de participação do acidente, o croquis, os vestígios de sangue encontrados no local e com a posição que aquela testemunha indica como sendo a da falecida após o acidente, paralela ao eixo da via e com parte das calças presas na roda da frente do lado direito do veículo seguro. (Com efeito, como já acima referimos, a perna atingida na colisão foi a direita, não apresentando a perna esquerda quaisquer lesões compatíveis com uma colisão. Ora, num atravessamento da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo que colide com o peão, normalmente é a perna direita do peão a primeira a ser atingida pelo veículo. Além disso, em termos de normalidade, não havendo projeção do peão, a queda deste dá-se no sentido de marcha do veículo que colide com o peão, ou seja, para a frente do veículo, precisamente como sucedeu in casu).
Diferentemente, a testemunha CC, no seu depoimento, coloca a vítima em posição perpendicular ao eixo da via, com embate primeiro do lado esquerdo do veículo e com queda para a frente em direção àquele eixo, deixando à evidência por explicar, com essa dinâmica do acidente por ela descrita, como é que uma parte da peça de vestuário da vítima se encontrava agarrada na roda da frente do lado direito juntamente com vestígios de sangue nesse local.
Impõe-se, por conseguinte, concluir que a descrição do acidente efetuada pela testemunha CC, essa sim, é que não encaixa nas regras da física nem nos demais elementos constantes dos autos, o que, aliás, aquela testemunha deve ter percebido na parte final do seu depoimento, quando, como acima se explanou, confrontada com a falta de sustentabilidade da sua descrição do sinistro se limita a responder “Sim, percebo”.
Ou seja, os elementos objetivos que decorrem do auto de participação, do relatório de inspeção judiciária do acidente de viação e do relatório fotográfico a este anexo, como acima melhor explicitado, não corroboram a versão dos factos apresentada pela testemunha CC, antes apontam para a sua manifesta improbabilidade.
Como tal, improcede o recuso da matéria de facto quanto aos pontos 12. e 16. a 18. dos factos provados.
Já quanto ao ponto 19., por tudo o exposto, impõe-se alterar esse ponto, passando a ter a seguinte redação “Esta colisão ocorreu a cerca de 3 metros da berma que, do lado esquerdo, atento o sentido de marcha do veículo seguro, margina a via”.
Importa ainda assinalar a falta de cuidado que houve por parte da decisão recorrida quer na numeração dos factos provados (passando do 10º para o 12º, do 19º para o 22º e com indicação de dois 9º e dois 10º), quer quanto à ordenação lógica desses factos, em particular no que respeita ao facto 10º e 12º, pelo que, na ordenação que a seguir se fará dos factos provados se irá alterar a ordem dos mesmos e a sua numeração.

*

Em função do supra decidido o elenco dos factos provados e não provados passa a ser o seguinte, já com a numeração correta:
1. No dia 26 de novembro de 2021, por volta das 12:40h, na Rua ..., ..., ocorreu um acidente de viação.
2. Foram intervenientes no referido acidente a falecida mãe dos aqui Autores, que se deslocava a pé, e o sr. EE, que se deslocava no veículo de passageiros com a matrícula ..-DB-.., da marca ..., modelo ..., identificado como proprietário do veículo, residente na Rua ..., Porto.
3. Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...69, válido e eficaz à data do sinistro, a responsabilidade civil por danos provocados a terceiros, emergente da circulação rodoviária do referido veículo ligeiro de passageiros, encontrava-se transferida para a seguradora Ré - doc. 1, que se junta e se dá como reproduzido para todos os legais e devidos efeitos.
4. Aquando do acidente, estava bom tempo e o piso encontrava-se seco e em razoável estado de conservação.
5. A Rua ... é uma via ladeada, em ambos os lados, por edificações, casas de habitação e estabelecimentos comerciais, todos com saída direta para a via.
6. A mencionada rua é uma estrada sem separador central, composta por 2 faixas de rodagem afetas a cada sentido de marcha, com piso betuminoso e encontrava-se, na altura do acidente, seca e em razoável estado de conservação.
7. O local onde se verificou o acidente – em frente ao n.º ...20 – trata-se de uma reta, com ampla visibilidade.
8. Ora, nas circunstâncias de tempo e de lugar já referidas, a falecida mãe dos Autores deu início à travessia daquela via.
9. A via no local tem 6,80 metros de largura e possui duas hemifaixas de rodagem, uma para cada sentido de trânsito.
10. No local a passadeira mais próxima situa-se a 53,40 metros.
11. No dia e hora do sinistro encontrava-se mais do que um veículo estacionado na Rua ..., no mesmo sentido em que seguia o condutor do veículo seguro.
12. O DB iniciou a manobra de ultrapassagem aos referidos veículos.
13. A falecida procedeu à travessia da faixa de rodagem fora da passadeira e da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo.
14. E quanto já se encontrava a terminar a travessia da faixa de rodagem onde circulava o veículo referido, percorridos cerca de 3 metros desta, a falecida foi abalroada pelo veículo seguro na Ré.
15. O veículo DB em questão teve de contornar os veículos que estavam estacionados na hemifaixa da direita e que ocupavam parte da via em que circulava.
16. Atenta a largura de cada uma das vias (cerca de 3,3 metros), para os contornar teve de invadir a hemifaixa da esquerda, de sentido inverso ao que seguia.
17. Fê-lo sem verificar se naquele momento se encontrava a atravessar a faixa de rodagem qualquer peão, uma vez que a falecida já se encontrava a atravessá-la.
18. A força principal de impacto foi na parte frontal do veículo DB, no seu lado direito.
19. Na fase final desta manobra, o veículo abalroou a mãe dos Autores, colhendo-a com a frente direita do seu veículo.
20. Esta colisão ocorreu a cerca de 3 metros da berma que, do lado esquerdo, atento o sentido de marcha do veículo seguro, margina a via.
21. A vítima foi inicialmente assistida pelo INEM, que se encontrava apoiada pela Dra. FF, Cédula Profissional n.º ...38, da VMER do Hospital de S. João, em virtude da extensão e da gravidade dos danos que sofreu, e logo aí foi sedada.
22. Posteriormente, foi transportada para o serviço de urgência do Hospital de S. João, no Porto, onde acabou por falecer em função das lesões sofridas no acidente, no estado civil de viúva, deixando como únicos herdeiros os aqui Autores e ainda GG, também seu filho. - doc. 4, que se junta e se dá como reproduzido para todos os legais e devidos efeitos.
23. À data do acidente, a mãe dos Autores tinha 77 (nasceu em ../../1944), era uma pessoa autónoma e independente, participativa na vida familiar, principalmente com os seus filhos, aqui Autores.
24. Na sequência do acidente em juízo, a mãe dos Autores acabou por falecer horas mais tarde, às 17:18 minutos, no Hospital de S. João.
25. Com a morte da sua mãe, os Autores sofreram tristeza e abalo emocional.
26. O veículo DB circulava a cerca de 30 / 40 km h.

Factos não provados

- A peã efetuou a travessia da faixa de rodagem de forma inopinada, sem atentar à aproximação do DB.
*

2ª Da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso

Em sede de enquadramento jurídico, e uma vez que apenas se procedeu à alteração da redação do primitivo facto 19, haverá desde já que afirmar que essa alteração não tem qualquer repercussão na solução jurídica do caso.

Na sentença recorrida consignou-se “Quanto à dinâmica do acidente apurou-se que a falecida procedeu à travessia da faixa de rodagem fora da passadeira e da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veiculo.

Por sua vez o veículo DB em questão teve de contornar os veículos que estavam estacionados na hemifaixa da direita e que ocupavam parte da via em que circulava e atenta a largura de cada uma das vias (cerca de 3,3 metros), para os contornar, teve de invadir a hemifaixa da esquerda, de sentido inverso ao que seguia.

Só podemos concluir que fê-lo sem verificar se naquele momento se encontrava a atravessar a faixa de rodagem qualquer peão, uma vez que a falecida já se encontrava a atravessá-la, tanto que a força principal de impacto foi na parte frontal do veículo DB, no seu lado direito.

Assim, na fase final desta manobra, o veículo abalroou a mãe dos Autores, colhendo-a com a frente direita do seu veículo.

Portanto, o condutor do veiculo DB efectuou uma manobra de ultrapassagem sem observar os deveres de cuidado, por referência aos peões que circulam na vi, violando o disposto no artº 11º e 38º do C.Estrada, sendo que o acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor do veiculo ao iniciar a manobra de ultrapassagem sem verificar se se encontrava a atravessar a faixa de rodagem um peão.”

Esta decisão está inteiramente estribada na subsunção dos factos apurados às normas que regulam a responsabilidade civil extracontratual, que levaram o Tribunal a concluir que o acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor do veículo DB, sendo, por isso, de confirmar tal sentença nesta parte.

Improcede, por conseguinte, a apelação quanto à pretensão da Recorrente de ser reconhecido que a responsabilidade pela produção do sinistro cabe in totum à falecida ou na proporção de 80%.


*

3ª Se deve ser alterada, por excessiva, a indemnização fixada aos Autores

A Recorrente insurge-se contra a decisão do Tribunal que fixou o dano pela perda do direito à vida da falecida em €60.000,00 (sessenta mil euros), pretendendo que essa indemnização seja fixada em €20.00,00 (vinte mil euros), atenta a idade da falecida.

Para fundamentar a sua decisão, após considerações de ordem geral relativamente à indemnização de danos não patrimoniais, o Tribunal recorrido sustentou a sua decisão nos seguintes termos: “Consolidou-se, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, situa-se, em regra e com algumas oscilações, entre os €50 000,00 e €80 000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a €100.000,00 (cfr, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2012, de 10 de Maio de 2012 (processo 451/06.7GTBRG.G1.S2), de 12 de Setembro de 2013 (processo 1/12.6TBTMR.C1.S1), de 24 de Setembro de 2013 (processo 294/07.0TBETZ.E2.S1), de 19 de Fevereiro de 2014 (processo 1229/10.9TAPDL.L1.S1), de 09 de Setembro de 2014 (processo 121/10.1TBPTL.G1.S1), de 11 de Fevereiro de 2015 (processo 6301/13.0TBMTS.S1), de 12 de Março de 2015 (processo 185/13.6GCALQ.L1.S1), de 12 de Março de 2015 (processo 1369/13.2JAPRT.P1S1), de 30 de Abril de 2015 (processo 1380/13.3T2AVR.C1.S1), de 18 de Junho de 2015 (processo 2567/09.9TBABF.E1.S1) e de 16 de Setembro de 2016 (processo 492/10.0TBB.P1.S1), todos acessíveis através de www.dgsi.pt.).

No caso vertente, o dano morte da falecida deverá ser fixado pelo valor peticionado de 60.000,00 €uros, valor esse situado claramente dentro das margens definidas em tais arestos e respeita o padrão referencial que vem sendo seguido pela jurisprudência dos tribunais superiores e atendendo ainda à idade da falecida.

No caso dos autos, à data do sinistro a vítima tinha 77 anos de idade, era uma pessoa independente e que participava na vida familiar dos Autores.

Atentas estas circunstâncias e aquela que temos como sendo a mais razoável da jurisprudência mais recente, dentro das regras da equidade, corrigimos para € 60.000,00 o valor do dano morte e correspondente perda do direito à vida da vítima.”

Adiante-se, desde já, que entendemos esse valor como justo e adequado, tendo por base os critérios legais norteados pelas decisões jurisprudências mais recentes que têm vindo a ser proferidas.

De salientar que o legislador se mostrou ciente da natureza dos danos não patrimoniais, relativamente aos quais não se pode falar propriamente de uma indemnização – cujo objetivo é preencher uma perda verificada no património do lesado – mas antes de uma reparação através da qual se pretende atribuir um valor adequado capaz de proporcionar um determinado grau de satisfação que minore ou faça esquecer as dores, sofrimentos e incómodos sentidos.

Por isso, o artigo 496º, do Código Civil determina que a fixação da indemnização de tais danos deve ser efetuada com recurso à equidade, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º, do citado diploma fundamental, quais sejam, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, tudo numa ponderação das realidades da vida de acordo com as regras do senso prático.

Obstando a que não se confunda equidade com a subjetividade do julgador, devemos ater-nos a uma aplicação mais ou menos uniforme do direito (artigo 8º, nº3, do Código Civil), como forma de reduzir a margem de subjetividade do julgador, na procura da justiça relativa em casos que se afiguram sempre de difícil decisão quanto à fixação de uma quantia monetária.

Como se evidencia no Acórdão do STJ, de 21.01.2016[2], “mais do que discutir e reconstruir a substância do casuístico juízo de equidade que esteve na base da fixação (…) do valor indemnizatório arbitrado, em articulação incindível com a especificidade irrepetível do caso concreto, plasmada nas particularidades singulares da matéria de facto fixada, importa essencialmente verificar, num recurso de revista, se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios são passíveis de ser generalizados para todos os casos análogos – muito em particular, se os valores arbitrados se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, devem sendo seguidos em situações análogas ou equiparáveis – (…).

Sobre o tema, permitimo-nos transcrever aqui a resenha jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça efetuada no acórdão de 08/06/2021, no processo nº 2261/17.7T8PNF.P1.S1, Relatora Maria João Vaz Tomé: «- segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de setembro de 2020 (Rijo Ferreira), proc, n.º 9/14.7T8CPV.P2.S1, “(…) VIII - Não é de censurar a fixação em € 54.000,00 e € 16.000,00 a indemnização pela perda do direito à vida e demais danos morais pela morte de indivíduo com 75 anos que foi sujeito a várias hospitalizações durante 1 mês e a 3 meses de tratamento ambulatório, não recuperou a marcha, viveu os últimos 4 meses de vida entre a cama e a cadeira de rodas dependendo de terceiros quando antes era pessoa autónoma, daí decorrendo afectação funcional, do bem-estar físico e psíquico, da autonomia pessoal e liberdade ambulatória, da capacidade de afirmação pessoal, da imagem perante os outros e si próprio, e o inerente sofrimento físico e psíquico”;

- conforme o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de maio de 2019 (Pinto de Almeida), proc. n.º 1580/16.4T8AVR.S1, “(…) II - Provando-se que a vítima, à data da morte, tinha 72 anos, era uma pessoa activa, gozava de boa saúde, era sociável e alegre, dedicava-se a uma agricultura para consumo familiar, sendo estimado e considerado no meio onde vivia, fazendo parte de uma tuna, e era bom marido, pai e avô, deverá ser fixado em € 70 000,00 o montante (anteriormente fixado em € 60 000,00) pela perda do direito à vida. (…)”;

- no acórdão de 19 de dezembro de 2018 (Távora Victor), proc. n.º 1178/16.7T8VRL.L1, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que “(…) III - Na fixação da indemnização decorrente da perda do direito à vida pesam as circunstâncias de cada caso, sendo que, no caso de uma vítima de 61 anos de idade, estimada e inserida no meio em que vivia e susceptível de ganhar o seu sustento, mostra-se adequado fixar a indemnização a título do dano morte no montante de € 60.000,00.

- segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de junho de 2018 (Salreta Pereira), proc. n.º 370/12.8TBOFR.C1.S2, “(…) II - Os valores de € 65.000 e de € 30.000 fixados a título de indemnização pelo dano morte e pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um dos filhos da vítima, estão em consonância com os critérios praticados pelo STJ. (…)” - no caso apreciado por este acórdão, a vítima tinha, à data da morte, 44 anos de idade».

Para além deste, podemos ainda citar outros arestos, mais atualizados, todos do STJ:

Acórdão de 11/02/2021, processo 625/18.8T8AGH.L1.S1, Relator Abrantes Geraldes, vítima com 7 anos de idade, onde se refere: «Destaca-se para o caso a apreciação que foi feita no Ac. do STJ, de 3-11-16, 6/15, no qual foi considerado que a quantia de € 100.000,00 constituía um valor equitativo, nele se fazendo uma resenha de outros acórdãos anteriores nos termos que se reproduzem:

Acórdão de 03/03/2021, proferido no processo 3710/18.2T8FAR.E1.S1, Relatora Maria do Rosário Morgado, atribui-se € 80.000,00 a uma vítima com 33 anos de idade.

Acórdão de 10/11/2022, processo 239/20.2T8VRL.G1.S1, Relatora Maria da Graça Trigo, mantiveram-se os € 70.000,00 fixados pela Relação a uma vítima com 63 anos.

Acórdão de 27/09/2022, processo 253/17.5T8PRT-A.P1.S1, Relator Isaías Pádua, mantiveram-se os € 95.000,oo fixados em 1ª instância (a Relação havia reduzido para 85 mil) a uma vítima com 41 anos de idade.

Acórdão de 15/09/2022, processo 2374/20.8T8PNF.P1.S1, Relatora Fátima Gomes, mantiveram-se os € 85.000,00 fixados pela Relação (a 1ª instância havia fixado 130 mil), a uma vítima com 33 anos e 2 filhos menores.

Acórdão de 13/05/2021, processo nº 10157/16.3T8LRS.L1.S1 – vítima com “45 anos de idade e um bom relacionamento com o seu único filho”, o STJ manteve os € 80.000,00 atribuídos pela Relação.

Acórdão de 19/02/2014 (processo 1229/10.9TAPDL.L1.S1) – atribuiu-se € 100.000,00 numa situação de uma vítima de 49 anos, “um profissional de nível superior e de reconhecido mérito como também um pai e um marido extremoso”, gozando de excelente saúde.

Acórdão de 11/02/2015 (processo 6301/13.0TBMTS.S1) – estava em causa um jovem adulto de 31 anos, tendo-se a indemnização cifrado em € 70 000,00.

Acórdão de 30/04/2015 (processo 1380/13.3T2AVR.C1.S1) – sendo a vítima um jovem de 19 anos de idade, o STJ manteve os € 80.000,00 fixados pela Relação.

Acórdão de 18/06/2015 (processo 2567/09.9TBABF.E1.S1) – “vítima com 20 anos, solteiro, vivia com os pais e uma irmã, tinha começado a trabalhar recentemente como motorista, se encontrava numa fase pujante da vida e que foi embatido na sua faixa de rodagem por um veículo que se pôs de imediato em fuga, é adequado o montante indemnizatório de € 80.000, pela perda do direito à vida, tal como fixado pela Relação”.

No caso, a vítima DD tinha 36 anos de idade, casado e com uma filha de 5 anos, numa vivência harmoniosa, trabalhador. Desconhecendo-se outras circunstâncias da sua vida, sabe-se, contudo, do alto grau de culpa do lesante (dirigindo o seu automóvel deliberadamente contra as pessoas que se encontravam na via pública, que nenhum mal lhe tinham causado, e atropelando-as).»

A análise ponderada de tais critérios, bem como os padrões jurisprudenciais para casos similares (que supra elencamos) levam-nos, por conseguinte. a concluir que o valor fixado pelo Tribunal a quo não se afasta efetivamente e de forma notória dos padrões jurisprudenciais habituais, pelo que é de manter o valor atribuído de €60.000,00 a título de indemnização pela perda do direito à vida da mãe dos Autores, de acordo com a orientação atualista e evolutiva defendida pela jurisprudência.

Improcede, por conseguinte, nesta parte o recurso da Recorrente.

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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527º do Código de Processo Civil, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, pelo que, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade da Recorrente.

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Síntese conclusiva (da exclusiva responsabilidade da Relatora – artigo 663º, nº7, do Código de Processo Civil):
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III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida, sem prejuízo da decisão relativa à alteração do primitivo ponto 19 dos factos dados como provados na sentença recorrida, passando a ter a redação que consta do ponto 20 dos factos dados como provados neste acórdão.

Custas pela Recorrente.



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Porto, 13 de janeiro de 2025

Os Juízes Desembargadores

Teresa Pinto da Silva
Carlos Gil
Teresa Fonseca

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[1] Cf. Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, p. 348.
[2] Cf. Processo 1021/11.3TBABT.E1.S1, Relator: Lopes do Rego), disponível em www.dgsi.pt.