Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | GERMANA FERREIRA LOPES | ||
Descritores: | CONTRAORDENAÇÃO SANÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO ADMOESTAÇÃO ATENUAÇÃO ESPECIAL | ||
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Nº do Documento: | RP20250203125/24.7T8PNF.P1 | ||
Data do Acordão: | 02/03/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | PROCESSO CONTRAORDENACIONAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO (SOCIAL) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – Em processo relativo à prática de contraordenações laborais e de segurança social só é aplicável sanção de substituição (caução de boa conduta) se estiver prevista na lei da contraordenação sectorial, caso contrário, só existe a sanção de substituição prevista no RGCOLSS e no RGCO, que é a admoestação. II – O regime da atenuação especial só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar, sendo princípio regulativo da sua aplicação a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena/coima e, portanto, das exigências de prevenção. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | PROCESSO Nº 125/24.7T8PNF.P1-RECURSO PENAL (CONTRAORDENAÇÃO SEGURANÇA SOCIAL) Secção Social Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo do Trabalho de Penafiel -J2 Relatora - Germana Ferreira Lopes 1º Adjunto – António Luís Carvalhão 2ª Adjunta – Teresa Sá Lopes Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto I – Relatório 1. A..., Lda., impugnou judicialmente a decisão administrativa proferida pelo Centro Distrital do Porto do Instituto da Segurança Social, IP, que lhe aplicou a coima de € 20.000,00, pela prática, a título negligente, de uma contraordenação muito grave, relativa ao funcionamento de estabelecimento com a resposta social de creche sem possuir licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento, em violação do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de março, na versão republicada do anexo ao D.L. n.º 33/2014, de 4 de março, prevista no artigo 5º e na alínea a) do artigo 39.º-B, e punida ao abrigo da alína a) do artigo 39.º-E, alínea a), do mesmo diploma legal. Em sede de tal impugnação, concluiu: - Pela extinção do processo com fundamento em prescrição do procedimento contraordenacional; Sem prescindir, - Pela substituição da coima aplicada por uma caução de boa conduta em montante e prazo a determinar pelo Tribunal, mas nunca superior a um montante de € 1.000,00 a vigorar durante um ano; Novamente sem prescindir, - Pela redução da coima aplicada para o valor mínimo de € 5.000,00; Por fim, e mais uma vez sem prescindir - Pela redução da coima aplicada para o valor mínimo de € 10,000,00. A impugnação foi recebida, tendo sido designada data para julgamento. 2. Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença, concluída com o dispositivo seguinte: «Pelo exposto, julgo parcialmente procedente o presente recurso contraordenacional e, consequentemente, condeno a arguida A..., Lda. na coima no montante de €10.000,00 (dez mil euros), pela prática, com negligência, de uma contraordenação muito grave, relativa ao funcionamento de estabelecimento com a resposta social de creche sem possuir licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento, em violação do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do D.L. nº 64/2007, de 14 de março, na redação do D.L. nº 33/2014, de 4 de março, prevista no artigo 5º e na alínea a) do artigo 39º-B, e punida ao abrigo da alínea a) do artigo 39º E, do mesmo diploma legal. Custas pela arguida. Notifique e deposite. Comunique oportunamente à autoridade administrativa, nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro.». 3. Discordando desta decisão a Impugnante interpôs recurso, nos termos da motivação junta e que sintetizou com as seguintes conclusões (transcrição[1]): «I. A Ré, ora Recorrente, ficou absolutamente atónita com o teor da sentença proferida pelo Tribunal a quo, já que a decisão recorrida é, com todo o respeito, errada, desproporcional e desconsideradora de vários normativos legais que ao caso caberiam aplicar, tendo pressente os factos dados como provados e que constam no acervo de documentos juntos aos autos. II. Decidiu a Douta Instância recorrida indeferir os pedidos da Recorrente relativos à aplicação da caução de boa conduta ao abrigo do art. 90.º-D do Cód. Penal (ex vi art. 32.º do RGCO) e, outrossim, indeferiu a aplicação do regime da atenuação especial nos termos do disposto nos arts. 18.º n.º 1 e 3 do RGCO e 71.º e 72.º do Cód. Penal, o que, com todo o respeito, carece de plausibilidade legal. III. Em primeiro lugar, no que diz respeito ao indeferimento da aplicação da caução de boa conduta, não se aceita a decisão da Douta Instância Recorrida porquanto dúvidas não existem que a Recorrente foi condenada pela prática de uma contraordenação e, como refere o Professor Figueiredo Dias em O Movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social in Direito Peal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Vol. I, Coimbra Editora-1998, p. 28, o direito das contraordenações se não é direito penal é, em todo o caso, um direito sancionatório de caráter punitivo, o que abrange a generalidade da matéria relativa à punição, que encontra na parte geral do C. Penal a sua sede. IV. Como realçam os Senhores Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra, “1. Quando um acto de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um acto administrativo e um acto integrador de um processo de contraordenação, o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime do processo penal (…), Ac. do TRC de 09.02.2011 em www.dgsi.pt. V. Com base nesse pensamento jurídico o nosso legislador previu no art. 60.º na Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro relativo ao regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social que sempre que o contrário não resulte da presente lei, são aplicáveis, com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contra-ordenação previstos no regime geral das contra-ordenações. E o art. 32.º do Regime Geral das Contra-Ordenação estipula que em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal. E o art. 90.º-D do Cód. Penal determina do seu n.º 1 que se à pessoa colectiva ou entidade equiparada dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 600 dias, pode o tribunal substituíla por caução de boa conduta, entre (euro) 1000 e (euro) 1 000 000, pelo prazo de um a cinco anos. VI. Não se vislumbram quaisquer razões substanciais e processuais para que o regime da caução da boa conduta não possa ser aplicável ao caso sub judice, não colhendo os argumentos aduzidos pelo Tribunal recorrido constantes na sentença e que acima se transcreveram pois a verdade é que o recurso aos mecanismos da subsidiariedade do RGCO e do Cód. Penal nas contra-ordenações laborais e de segurança social (Lei 107/2009) emergem de remissões constantes nas próprias leis para, exatamente, colmatar as situações em que o legislador não fixou os institutos jurídicos e mecanismos previstos nas leis cujas remissões determinou. VII. Por um lado, é evidente que a Lei 107/2009 e o RGCO não se opõem à aplicação do regime da caução de boa conduta prevista no art. 90.º-D do Cód. Penal, não existindo qualquer norma específica sobre esse tema e, se o legislador pretendesse excluir, tê-lo-ia referenciado; por outro lado é inquestionável que uma pessoa singular ou coletiva que pratique contra a mesma entidade, Segurança Social, por exemplo, um crime punível com uma pena de multa decorrente da prática de um crime (fraude contra a segurança social, abuso de confiança contra a segurança social, etc) lhe possa ser aplicado o instituto da caução de boa conduta prevista no art. 90.º-D do Cód. Penal. Mais: tem ainda essa pessoa singular ou colectiva a possibilidade de socorrer-se, durante o inquérito ou da instrução, do regime jurídico da suspensão provisória do processo a que alude o art. 281.º do Cód. de Processo Penal. VIII. Mas, estranhamente no entendimento da Instância Recorrida, no caso de praticar um mero ilícito contraordenação está a aqui Arguida/Recorrente impedida de se socorrer de mecanismos legais que existem para condutas mais graves e atentórias da comunidade e que merecem uma censura criminal? Ou seja, tendo presente os princípios do “quem pode o mais, pode o menos” e, também, o regime da aplicação da lei mais favorável tal entendimento é aceitável? Com todo o respeito pela Douta Instância Recorrida: a resposta tem que ser negativa face ao sistema jurídico existente. IX. Pelo que, deverá ser revogada a sentença recorrida, sendo esta substituída por outra que fixe uma caução de boa conduta no valor de € 1.000,00 em substituição da coima a ser aplicada pelo mínimo legal nos termos do disposto no art. 90.º do Cód. Penal. X. Isto porque, atentos os factos dados como provados, designadamente, o facto provado 7, a prática da contraordenação sub judice foi uma conduta isolada e não repetida na vida da empresa, tendo decorrido 06 anos desde a prática do facto sem que alguma infração tenha sido praticada, ficando ainda demonstrado que a Recorrente, quando notificada da prática da infração, cessou imediatamente a actividade, o que lhe causou enormes prejuízos, não se desconsiderando que a Recorrente é uma empresa e uma instituição respeitada e respeitadora e que a Recorrente não mais irá reincidir na prática do ilícito na medida em que tem já autorização de funcionamento e autorização de utilização por parte da entidade pública competente. XI. E, por isso, as circunstâncias de prevenção geral e especial ao caso concreto são determinadoras, s.m.o., de aplicação de caução de boa conduta, o que expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos, pelo que ao julgar como julgou o Tribunal recorrido violou, entre outras, as disposições dos arts. 90.º-D do Cód. Penal, art. 32.º do RGCO e o art. 60.º na Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro. XII. Em segundo lugar, e sem prescindir, sempre se dirá que não se compreendem as razões aduzidas na decisão em crise para não aplicar o regime da atenuação especial, tendo presente o direito positivo, a doutrina e a jurisprudência pois, como é sabido, a atenuação especial da punição por contraordenação está consagrada no art. 18.º n.º 3 do RGCO (aplicável por força dp art. 60.º na Lei n.º 107/2009), podendo ter lugar nas situações previstas nos artigos 9.º n.º 2 (erro censurável); 13.º, n.º 2 (tentativa punível) e 16.º n.º 3 (cúmplice), do RGCO “ ex vi” do art.º 60.º do RPCLSS. XIII. É certo que o art.º 72.º do Código Penal (CP), aplicável por força do art. 32.º do RGCO, prevê a atenuação especial da pena quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores à infracção ou contemporâneas dela, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. Para que possa conceder-se o referido benefício da atenuação especial da pena é necessário que se provem factos que consubstanciem uma diminuição da ilicitude do facto, da culpa do arguido ou da desnecessidade da punição – cfr. entre outros, Ac. do TRL de 06.12.2017, processo n.º 746/17.4T8LSB.L1-4 em www.dgsi.pt. XIV. S.m.o. se ficou claro alguma coisa nestes autos foi o seguinte: a Arguida assumiu a prática da irregularidade, cessou a conduta assim que foi notificada com elevado prejuízo financeiro, reconheceu a irregularidade e encetou os procedimentos necessários a corrigir o problema, que foi corrigido, não tendo jamais reincidido na prática de qualquer outra irregularidade; assim o demonstram os factos provados, designadamente o facto provado n.º 7. XV. Mas, também, assim demonstram os autos e a própria decisão final proferida quanto à circunstância da prática da contraordenação sub judice ter sido uma conduta isolada e não repetida na vida da empresa, tendo decorrido 06 anos desde a prática do facto sem que alguma infração tenha sido praticada. XVI. Tendo ficado, também, demonstrado que a Recorrente, quando notificada da prática da infração, cessou imediatamente a atividade, o que lhe causou enormes prejuízos, não se podendo, também, desconsiderar que a Recorrente é uma empresa e uma instituição respeitada e respeitadora, sendo, ainda, de realçar um ponto essencial: a Recorrente não irá mais reincidir na prática de qualquer infração análoga à praticada na medida em que já tem autorização de funcionamento e autorização de utilização por parte da entidade pública competente. XVII. E, por isso, as circunstâncias de prevenção geral e especial ao caso concreto são determinadoras, s,m.o., de aplicação do regime de atenuação especial, que, nos termos do art. 18.º n.º 3 do RGCO consubstancia que os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade, isto é, a coima fixada de € 10.000,00 (dez mil euros) pelo Tribunal recorrido poderia, e deveria, ter sido reduzida para o montante de € 5.000,00 (cinco mil euros) de acordo com o regime de atenuação especial. XVIII. Frisando-se, apesar de tudo, que o valor de € 5.000,00 (cinco mil euros) é um valor elevado para a Recorrente, sendo, aliás, um valor elevado para qualquer sujeito, muito mais o é para uma pequena empresa que vive com parcos recursos financeiros, montante cujo pagamento irá implicar um esforço suplementar da Recorrente. XIX. Esforço esse que a Recorrente estaria disposta a suportar por ser o valor que se coaduna com a boa aplicação da lei e do mecanismo da atenuação especial, que, indevidamente, e com todo o respeito, a Douta Instância Recorrida não considerou, ao arrepio do direito, pelo que, ao julgar como julgou, o Tribunal recorrido violou, entre outros, o art. 32.º da CRP, o art. 18.º n.º 3 do RGC (aplicável por força do art. 60.º na Lei n.º 107/2009), pelo que a decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que aplique o regime da atenuação especial e, em conformidade, reduza a coima fixada para o montante de € 5.000,00 (cinco mil euros).». 1. No presente recurso, a arguida/recorrente discorda da medida da coima, aplicada pela prática, com negligência, de uma contraordenação muito grave relativa ao funcionamento de estabelecimento com a resposta social de creche sem possuir licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento, em violação do disposto no nº1 do artigo 11º do D.L. nº 64/2007, de 14 de março, na redação do D.L. nº 33/2014, de 4 de março, prevista no artigo 5º e na alínea a) do artigo 39º-B, e punida ao abrigo da alínea a) do artigo 39º E, do mesmo diploma legal. 2. Ora, por ter concordado parcialmente com a argumentação da arguida, despendida no recurso de impugnação judicial, a sentença em crise considerou que, na aplicação da coima concreta, se deve distinguir o comportamento doloso ou negligente do infrator, socorrendo-se ainda do disposto no nº 3 do art. 17º DL nº 433/82 de 27 de Outubro (RGCO) que estabelece que “(…) se a lei, relativamente ao montante máximo, não distinguir o comportamento doloso no negligente, este só pode ser sancionado até metade daquele montante.”, fixando assim a coima no montante de €10 000,00. 3. No entanto, a recorrente pretende que, à situação em apreço, se deve aplicar ainda o regime da atenuação especial da pena prevista no nº3 do art. 18º do Regime Geral das Contraordenações. 4. Ora, cotejados os factos provados (aceites pela recorrente), conclui-se que dos mesmos não resultam circunstâncias excecionais que permitam concluir pela diminuição considerável da ilicitude do facto e da culpa do agente, de forma a justificar a aplicação de tal regime legal. 5. De resto, nem mesmo os factos alegados pela recorrente para beneficiar da atenuação especial da coima seriam suficientes, em nosso entender, para alcançar tal desiderato. Assim, tais argumentos são ou redundam apenas no cumprimento de regras que sempre são exigíveis a uma pessoa coletiva ou, então, são conclusões genéricas sem qualquer precisão ou apoio factual. 6. A arguida/recorrente não pode, em definitivo, afirmar que não há risco de reincidência na prática de qualquer infração análoga à praticada porque, tal questão poderá colocar-se no futuro, caso a arguida pretenda, por exemplo, aumentar a capacidade de utentes ou abrir uma nova valência de carácter social e o faça sem a respetiva autorização ou licença. 7. As considerações de carácter financeiro realizadas pela arguida carecem totalmente de prova. Assim, dizer que a arguida sofreu elevados prejuízos, que é uma pequena empresa e que existe com poucos recursos, para além de conclusivo, são considerações que não estão vertidas nos factos provados e não tem suporte na prova realizada. * B) Conhecimento do recurso:1. Enquadramento prévio Como se enfatiza no Acórdão desta Secção Social da Relação do Porto de 9-01-2020[5], «existe uma nítida autonomia entre o direito de mera ordenação social e o direito penal, seja numa perspetiva da censura ético-penal, seja mesmo do bem jurídico protegido, mais precisamente da sua existência ou inexistência, a que se segue a gravidade das reações sancionadoras, através da aplicação de uma coima, no primeiro caso, ou de uma pena de prisão, no segundo, e, por último, ainda, a natureza distinta dos órgãos que são competentes para proferir a decisão, autoridades administrativas num caso e, no outro, os tribunais. O Supremo Tribunal de Justiça desde há muito que afirma essa autonomia[2], da qual, do mesmo modo, faz também eco o Tribunal Constitucional, quando afirma a “diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções”, na consideração, assim, de que os princípios e as regras do direito penal não se aplicam automaticamente ao direito de mera ordenação social[3].». Assim, expõe-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 336/2008[6] o seguinte: «(…) existem, desde sempre, razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contra-ordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção (vide FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 144-152, da ed. de 2001, da Coimbra Editora). A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade. É que “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos constitutivos, no seu conjunto, suportam imediatamente uma valoração – social, moral, cultural – na qual se contém já a valoração da ilicitude. No caso das contra-ordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante ser assim, se verifica que o direito valora algumas destas condutas como ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal.” (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit., pág. 146). Da autonomia do ilícito de mera ordenação social resulta uma autonomia dogmática do direito das contra-ordenações, que se manifesta em matérias como a culpa, a sanção e o próprio concurso de infracções (vide, neste sentido, Figueiredo Dias na ob. cit., pág. 150). Não se trata aqui “de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima” (FIGUEIREDO DIAS em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in “Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, I, pág. 331, da ed. de 1983, do Centro de Estudos Judiciários). E por isso, se o direito das contra-ordenações não deixa de ser um direito sancionatório de carácter punitivo, a verdade é que a sua sanção típica “se diferencia, na sua essência e nas suas finalidades, da pena criminal, mesmo da pena de multa criminal (…) A coima não se liga, ao contrário da pena criminal, à personalidade do agente e à sua atitude interna (consequência da diferente natureza e da diferente função da culpa na responsabilidade pela contra-ordenação), antes serve como mera admoestação, como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas; e o que esta circunstância representa em termos de medida concreta da sanção é da mais evidente importância. Deste ponto de vista se pode afirmar que as finalidades da coima são em larga medida estranhas a sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização.” (FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 150-151, da ed. de 2001, da Coimbra Editora). Daí que, em sede de direito de mera ordenação social, nunca há sanções privativas da liberdade. E mesmo o efeito da falta de pagamento da coima só pode ser a execução da soma devida, nos termos do artigo 89.º, do Decreto-lei n.º 433/82, e nunca a da sua conversão em prisão subsidiária, como normalmente sucede com a pena criminal de multa. Por outro lado, para garantir a eficácia preventiva das coimas e a ordenação da vida económica em sectores em que as vantagens económicas proporcionadas aos agentes são elevadíssimas, o artigo 18.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 433/82 (na redacção dada pelo Decreto-lei n.º 244/95), permite que o limite máximo da coima seja elevado até ao montante do benefício económico retirado da infracção pelo agente, ainda que essa elevação não possa exceder um terço do limite máximo legalmente estabelecido, erigindo, assim, a compensação do benefício económico como fim específico das coimas. Estas diferenças não são nada despiciendas e deverão obstar a qualquer tentação de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social.» [fim de transcrição]. Para apreciar as questões colocadas, recorde-se que, nos presentes autos, a Recorrente foi condenada pela prática negligente de uma contraordenação muito grave relativa ao funcionamento de estabelecimento com a resposta social de creche sem possuir licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento, em violação do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de março, na redação do Decreto-Lei n.º 33/2014, de 4 de março, prevista no artigo 5.º e na alínea a) do artigo 39-B, e punida ao abrigo da alínea a) do artigo 39.º-E, do mesmo diploma legal. O Tribunal a quo considerou não se estar perante um caso excecional que justificasse o uso do instituto da atenuação especial da coima e não se verificarem “as condições da aplicação subsidiária da substituição da coima a aplicar por caução de boa conduta prevista no CP”. * A Recorrente defende, em substância, que não se vislumbram razões substanciais e processuais para que o regime da caução de boa conduta não possa ser aplicável ao caso sub judice, sendo que as circunstâncias de prevenção geral e especial ao caso concreto são determinadoras de aplicação dessa caução, pelo que refere que a sentença recorrida deve ser substituída por outra que fixe uma caução de boa conduta no valor de € 1.000,00 em substituição da coima a ser aplicada pelo mínimo legal. Refere que ao não aplicar tal regime o Tribunal recorrido violou, entre outras, as disposições dos artigos 90.º-D do Código Penal[7], artigo 32.º do RGCO e o artigo 60.º do RGCOLSS. Argumenta, em síntese, que o recurso aos mecanismos da subsidiariedade do RGCO e do Código Penal nas contraordenações laborais e de segurança social emergem das remissões constantes nas próprias legais para colmatar as situações em que o legislador não fixou os institutos jurídicos e mecanismos previstos nas leis cujas remissões determinou, sendo que o RGCOLSS e o RGCO não se opõem à aplicação do regime da caução de boa conduta prevista no artigo 90.º-D do Código Penal, nem existe qualquer norma específica sobre esse tema e se o legislador pretendesse excluir teria referenciado tal. O Ministério Público defende o julgado, argumentando, em substância, que, tal como entendeu o Tribunal recorrido, a omissão de previsão legal sobre a substituição da coima a aplicar por caução de boa conduta aqui em causa tem o sentido de regular a questão, não existindo anologia substancial entre os regimes primário e subsidiário. Consta da sentença recorrida, a propósito da pretendida substituição da coima a aplicar por caução de boa conduta, o seguinte (transcrição): «Por fim, pretende a arguida, invocando o disposto no nº1 do artigo 90º-D do Código Penal que se determine a substituição da coima a aplicar por caução de boa conduta em montante e prazo a determinar pelo douto tribunal, considerando a arguida, desde já, a determinação da caução pelo montante de EUR. 1000,00 a vigorar durante um ano como justa e adequada à situação em apreço, o que requer e invoca para todos os devidos e legais efeitos. A este propósito, o Tribunal começa por sublinhar que o regime sectorial aplicável à contraordenação da segurança social aqui em causa não prevê a substituição da coima a aplicar por caução de boa conduta. Com tal, o Tribunal só poderá aplicar essa substituição se isso estiver previsto no regime primário geral (RGCO) ou, na sua falta, no regime subsidiário previsto no Código Penal, aplicável por força do disposto no artigo 32.º do RGCO, se se verificarem as condições exigidas para essa aplicação subsidiária do Código Penal. Neste contexto, a aplicação subsidiária do Código Penal é um meio para colmatar os espaços deixados vazios pela regulamentação primária (sectorial ou geral). A dificuldade que se apresenta ao Tribunal consiste em saber se, existindo uma omissão da regulamentação primária, essa ausência de regra expressa (sobre a substituição da coima a aplicar por caução de boa conduta) tem o sentido de regular a questão. A este propósito, perante uma remissão, como a do artigo 32.º do RGCO, para normas do Código Penal que foram pensadas para outro sector e para outra realidade, para que o regime previsto no Código Penal seja aplicável subsidiariamente é necessário que se verifique uma analogia substancial de regimes, sob pena de se desvirtuar a regulamentação primária (vide, no mesmo sentido, para o sector das contraordenações da concorrência, Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense, 2.ª Edição, Almedina, páginas 281 e 282). Ora, afigura-se não existir analogia substancial entre o regime da substituição da coima a aplicar por caução de boa conduta previsto no CP e o regime contraordenacional aqui em causa, capaz de justificar a aplicação subsidiária do CP para determinar tal substituição. Na verdade, a omissão de previsão legal sobre a substituição da coima a aplicar por caução de boa conduta aqui em causa tem o sentido de regular a questão, não existindo analogia substancial entre os regimes primário e subsidiário. Em consequência, não se verificam as condições da aplicação subsidiária da substituição da coima a aplicar por caução de boa conduta previsto no CP, motivos pelos quais improcede este segmento da argumentação do recorrente.». Vejamos. Nesta consonância, na falta de previsão especial sobre a caução de boa conduta no regime primário, sectorial, das contraordenações da Segurança Social, o Tribunal só poderá aplicar a substituição em referência se isso estiver previsto no regime primário geral (RGCO) ou, na sua falta, no regime subsidiário previsto no CP, aplicável por força do disposto no artigo 32.º do RGCO, se se verificarem as condições exigidas para essa aplicação subsidiária do CP. “Neste contexto, a aplicação subsidiária do CP é um meio para colmatar os espaços deixados vazios pela regulamentação primária (sectorial ou geral). A dificuldade que se apresenta ao Tribunal consiste em saber se, existindo uma omissão da regulamentação primária, essa ausência de regra expressa (sobre a substituição da coima a aplicar por caução de boa conduta) tem o sentido de regular a questão. A este propósito, perante uma remissão, como a do artigo 32.º do RGCO, para normas do Código Penal que foram pensadas para outro sector e para outra realidade, para que o regime previsto no Código Penal seja aplicável subsidiariamente é necessário que se verifique uma analogia substancial de regimes, sob pena de se desvirtuar a regulamentação primária (vide, no mesmo sentido, para o sector das contraordenações da concorrência, Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense, 2.ª Edição, Almedina, páginas 281 e 282).” Com efeito, a aplicação a título subsidiário do Código Penal só terá lugar quando no regime primário existir uma omissão não intencional ou lacuna. Como evidenciam Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa[9], “a aplicação subsidiária, porém, só se justifica perante a existência de um caso omisso, pelo que só deverá recorrer a ela quando se possa concluir que, para além de se tratar de um ponto não regulado no R.G.C.O. nem em lei especial, se está perante um caso que, em coerência, deveria ser regulamentado”. Concorda-se com a posição seguida na decisão recorrida no sentido de que a omissão de previsão legal sobre a substituição da coima a aplicar por caução de boa conduta no regime contraordenacional primário e setorial e no regime contraordenacional geral, ter o sentido de regular a questão, ou seja, trata-se de uma opção legislativa e não de uma omissão a carecer de integração, não existindo analogia substancial entre os regimes primário e subsidiário e, por isso, não se verificam as condições da aplicação subsidiária da caução de boa conduta como alternativa à aplicação da coima – substituição da coima por caução de boa conduta. Importa não olvidar que no âmbito contraordenacional não se fala em pena, mas sim em coima e em sanções acessórias [cfr. artigos 1.º e 21.º do RGCO e ainda artigos 39.º-A, 39.º-E e 39.º-H do Decreto-Lei n.º 64/2007 de 14 de março, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 33/2014 de 4-03-2014]. E, quando o artigo 32.º do RGCO, estabelece que «em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal», tal não significa que se apliquem às contraordenações todas as disposições deste, mas tão só aquelas que possam colmatar casos omissos. O já identificado regime sectorial aplicável à contraordenação aqui em causa, como dissemos, não prevê a substituição da coima a aplicar por caução de boa conduta, sendo certo que esse diploma regula expressamente no seu capítulo VIII o regime sancionatório aplicável (artigos 39.º-A a 39.º-K), prevendo que as infrações ao disposto nesse diploma constituem contraordenações (artigo 39.º-A), dividindo-as depois em infrações muito graves (artigo 39.º-B), graves (artigo 39.º-C) e leves (artigo 39.º-D), e, bem assim, definindo as coimas aplicáveis às diversas infrações (artigo 39.º-E). Nesse mesmo regime estabelece-se que os ilícitos de mera ordenação social previstos nesse capítulo são punidos a título de dolo e negligência e, bem assim, que a tentativa é punida nos ilícitos de mera ordenação social referidos nos artigos 39.º-B e 39.º-C. O seu artigo 39.º-G prevê que os limites máximos e mínimos das coimas previstas nesse Decreto-Lei se aplicam quer às pessoas singulares quer às coletivas, sendo reduzidas a metade quando aplicáveis a entidades que não tenham finalidade lucrativa e que, em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo são elevados em um terço do respetivo valor. No seu artigo 39.º-H estão previstas as sanções acessórias que, cumulativamente com as coimas previstas pela prática de infrações muito graves e graves, podem ser aplicadas ao infrator. Por sua vez, o artigo 39.º-I rege sobre a determinação da medida da coima, ao prever que a determinação da medida da coima se faz em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação (n.º 1), permitindo ainda que o limite máximo da coima seja elevado até ao montante do benefício económico retirado da infracção pelo agente, ainda que essa elevação não possa exceder um terço do limite máximo legalmente estabelecido (n.º 3). O artigo 39.º-J rege sobre o destino das coimas, prevendo que o produto das coimas reverte para a autoridade administrativa que as aplique. Por último, o artigo 39.º-K, sob a epígrafe regime processual, estabelece que às contraordenações previstas nesse decreto-lei é aplicável, com as devidas adaptações, o regime processual aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, alterada pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto. * 3. Saber se ocorrem os pressupostos da atenuação especial da coima.A Recorrente, sem prescindir, pugna pela atenuação especial da coima, ao abrigo dos artigos 72.º, do Código Penal, e 18.º, n.º 3, do RGCO. Argumenta, em substância, que: assumiu a prática da irregularidade, cessou a conduta assim que foi notificada com elevado prejuízo financeiro; reconheceu a irregularidade e encetou os procedimentos necessários a corrigir o problema, não tendo jamais reincidido na prática de qualquer outra irregularidade; é uma empresa e instituição respeitada e respeitadora; não irá mais reincidir na prática de qualquer infração análoga à praticada na medida em que tem já autorização de funcionamento e autorização de utilização por parte da entidade pública competente; é uma pequena empresa que vive com parcos recursos financeiros. O Ministério Público defende o julgado, sustentando que, cotejados os factos provados (aceites pela Recorrente), daí não consta qualquer elemento que permita a atenuação especial da coima nos termos legalmente admissíveis. Mais refere que a argumentação invocada pela Recorrente se reconduz apenas ao cumprimento de regras que sempre são exigíveis a uma pessoa coletiva ou, então são conclusões genéricas sem qualquer precisão ou apoio factual. Sobre esta questão consta da sentença recorrida o seguinte: «Para além disso, entende também a arguida que à situação em apreço se justifica, por uma questão de justiça, aplicar-se a atenuação especial da pena prevista no nº 3 do art. 18º do RGCO. A respeito desta pretensão, pode ler-se no despacho de sustentação da decisão administrativa, junto a fls. 5 e ss., que: “Prescreve o n.º 1, do art.º 72.º do CP, aplicável às contraordenações ex vi do art.º 32.º, do DL n.º 433/82, de 27/10 (RGCO), que "o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei. quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime. ou contemporâneas dele que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto. a culpa do agente ou a necessidade da pena.". É entendimento uniforme da jurisprudência que a atenuação especial da coima/pena só se compreende em face de circunstâncias excecionais que não possam deixar de ser valoradas no âmbito da moldura legal abstrata, aplicável ao caso em concreto, exteriores. posteriores ou contemporâneas do crime ou da contraordenacão praticados, que diminuem de forma considerável a ilicitude do facto. a culpa do agente e a necessidade da pena/coima. e que justificam que a pena/coima venha a ser especialmente atenuada (cfr.n.º 2, do art.º 72.º). Conforme refere o Professor J. Figueiredo Dias, "(...) o princípio subjacente à aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências de prevenção" (in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pág. 305, e AC. STJ de 07-09-2016, Proc. 232/14.4JABRG.P1 -SI, 3. a Secção, in www.dgsi.pt.). Critério decisivo é, segundo jurisprudência dominante, que aquelas circunstâncias pela sua especial intensidade, configurem um caso de gravidade tão acentuadamente diminuída. ao nível da ilicitude ou da culpa, ou da desnecessidade da pena, que tenham escapado à previsão do tipo de ilícito que o legislador definiu e que, por isso, seria injusto punir dentro da moldura penal já definida. Acrescenta ainda aquele Professor (op.cit, pg.306), que a diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto resultante da atuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo. Donde se conclui, que tem plena razão a nossa jurisprudência - e a doutrina que a segue -, quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar. Para a generalidade dos casos. para os casos "normais", lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios". Também no AC. do Supremo Tribunal de Justiça, de 18/11/2009, proc. 0 702/08.3GDGDM.P1.S1, se pode ler que, a atenuação especial da pena configura como que uma "válvula de segurança" apenas aplicável a situações que, "pela sua excecionalidade, não se enquadram nos limites da moldura penal aplicável ao respetivo crime (…). Cumpre decidir. A questão que urge, assim, ponderar é se, no caso em concreto, a conduta da entidade gestora arguida, ora recorrente, globalmente considerada. revela uma diminuição tão acentuada da sua ilicitude que implique a diminuição da gravidade da culpa, e justifique que, pela sua excecionalidade, o limite mínimo e máximo da moldura contraordenacional aplicável, possa ser colocado em causa, sendo como tal reduzido a metade. Desde logo, mantém esta Autoridade Administrativa, salvo melhor opinião, o entendimento de que tal não se verifica no caso. Na decisão administrativa, considerou esta A.A., face à prova produzida, inexistir na conduta da arguida, uma atuação dolosa e intencional, típica do dolo, mormente face às diligências que vinha efetuando com vista à obtenção da licença de funcionamento da creche, pelo que o incumprimento da lei ficou a dever-se a mera negligência. Nos pontos 26 a 28 d do requerimento de impugnação, a entidade gestora veio alegar que "(...) acabou por não obter benefícios com a prática da infração, porquanto, iá havia feito investimentos avultados na criação e preparação das suas instalações para funcionar como creche o que foi feito também com recurso a financiamentos bancários". Acrescentou, ainda, que "(...) devido à paragem voluntária da creche até à data em que lhe foi emitida a licença (maio de 2020) acabou por ter enormes prejuízos financeiros quer por perda de rendimentos quer por ter de continuar a pagar os custos suportados com obras e financiamentos, sem ter o respetivo retorno financeiro" (sublinhado nosso). Ora, conforme é sabido, a obrigatoriedade de legalização das atividades de apoio social do âmbito de segurança social, é uma forma de atestar a conformidade das condições de instalação e funcionamento dos estabelecimentos onde as mesmas são desenvolvidas, sendo também uma questão do domínio público, não sendo sequer controvertida, dispondo a Segurança Social de vários meios à disposição (presenciais e on line) para que os requerentes se informem corretamente e em tempo útil acerca dos requisitos necessários para o seu exercício de forma legal, os fundamentos expostos pela ora recorrente não justificam, de modo algum, o seu não cumprimento. De resto, a lei claramente prescreve no art.º11.º do DL n.0 64/2007 de 14/03, na redação do DL n.0 33/2014 de 04/03, que nenhum estabelecimento pode abrir ou funcionar sem ser portador da competente licença de funcionamento. ou de uma autorização provisória de funcionamento, sem prejuízo do disposto nos artigos 37.º e 38.º (cfr.n.º 1), relativos aos estabelecimentos desenvolvidos no âmbito da cooperação. A instrução do processo e a decisão sobre o pedido de licença são da competência do Instituto da Segurança Social, I.P. (cfr.n.º 2), constituindo o início da atividade sem a obtenção daquele título administrativo, uma contraordenação muito grave, nos termos já acima descritos, a que corresponde uma coima de €20.000,00 a €40.000,00. Ora, o instituto da atenuação especial, tal como já referido, deve ser aplicado apenas em situações excecionais que reclamam um tratamento diferenciado relativamente ao padrão que o legislador teve em conta na determinação da moldura abstrata. Ao ter promovido a paragem voluntária da creche até maio de 2020, data de emissão da licença de funcionamento da creche, isto é, cerca de 2 anos após a ação inspetiva, a entidade gestora arguida, ora recorrente, mais não fez do que a obrigação que sobre si impendia de cumprir a lei, não constituindo tal conduta. salvo melhor opinião. uma circunstância de tal sorte excecional, que configure um caso de gravidade tão acentuadamente diminuída, ao nível da ilicitude ou da culpa, ou da desnecessidade da coima, que tenha escapado à previsão do tipo de ilícito que o legislador definiu e que, por isso. seria injusto punir dentro da moldura penal já definida, sequer reduzindo os limites mínimos e máximos da mesma a metade do seu valor.” Concordamos na integra com tais considerações, que subscrevemos. Nessa medida, improcede a pretensão da recorrente nesta parte, porquanto concluímos não se estar perante um caso excecional, que justifique que se faça uso do instituto da atenuação especial da coima.». Cotejando o RGCO, verificamos que o legislador ponderou expressamente situações de atenuação especial como sendo a de erro sobre a ilicitude, tentativa, não prevendo expressamente, com caráter de generalidade, uma cláusula geral de atenuação especial de punição ope judicis (de modo similar ao artigo 72º do Código Penal). De todo modo, como se afirmou já no Acórdão desta Secção Social de 30-09-2024[13], o RGCO no seu artigo 32.º remete a título subsidiário para o Código Penal, sendo o regime previsto no artigo 72.º aplicável nas contraordenações e, concretamente, no que respeita à presente contraordenação, por força da remissão prevista no já citado artigo 39.º-K do Decreto-Lei nº 64/2007 de 14-03 e no artigo 60.º da RGCOLSS, conforme constitui entendimento jurisprudencial que se julga sedimentado[14]. Refira-se que RGCO não regula as condições de aplicação do instituto da atenuação especial da pena, apenas as suas consequências [artigo 18.º, n.º 3 - quando houver lugar à atenuação especial da punição por contraordenação, os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade], sendo naquele âmbito aplicável o dito regime previsto no artigo 72.º do CP. Quanto à atenuação especial da pena, dispõe o artigo 72.º do Código Penal que o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (n.º 1), enumerando o n.º 2 diversas dessas circunstâncias. Para o efeito do n.º 1 do artigo 72.º do Código Penal, prevê o seu n.º 2 que são consideradas, entre outras, as seguintes circunstâncias: “a) Ter o agente actuado sob influência de ameça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência; b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou provocação injusta ou ofensa imerecida; c) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados. d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta. Conforme ensina a doutrina, o legislador sabe estatuir, à partida, as molduras penais atinentes a cada tipo de factos que existem na parte especial do Código Penal e em legislação extravagante, valorando para o efeito a gravidade máxima e mínima que o ilícito de cada um daqueles tipos pode assumir. Todavia, entende, ainda, a doutrina, que o sistema só pode funcionar de forma justa e eficaz se contiver válvulas de segurança, vendo estas como circunstâncias modificativas. Para Figueiredo Dias, a atenuação especial da pena tem subjacente a necessidade de uma «válvula de segurança» do sistema para responder a situações especiais em que «existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao “complexo” normal de casos[15], sendo que o «princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e, portanto, das exigências de prevenção»[16] . Considerando a tendência dominante na nossa jurisprudência, que segue a par a mencionada doutrina, podemos afirmar que a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, uma vez que, para o padrão dos casos que o legislador teve em mente à partida – os chamados «casos normais» -, existem as molduras penais normais, com os seus limites máximos e mínimos próprios[17]. Com efeito, a jurisprudência tem sido exigente na aplicação do artigo 72.º do Código Penal, limitando a atenuação especial da pena a casos extraordinários ou excecionais de acentuada diminuição da ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. A acentuada diminuição, à luz do que vem de ser dito e no que respeita às contraordenações, significa que imagem global do facto se apresenta com uma gravidade tão diminuída em relação aos casos para os quais está prevista a fórmula da punição, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura abstracta da coima. No caso dos autos, salvo o devido respeito por opinião contrária, por referência ao apontado regime, não se pode concluir pela atenuação especial. Não pode olvidar-se que para o efeito apenas pode relevar a factualidade provada, sendo certo que da mesma, ou seja, da imagem global da conduta da Arguida/Recorrente, não emerge que a gravidade da conduta seja de tal forma diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tal hipótese quando estatuiu os limites normais da moldura abstrata da coima. Não pode afirmar-se que ocorram circunstâncias que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, mais precisamente da coima. Da matéria de facto provada, não ressaltam, pois, elementos que permitem o recurso à medida em apreciação. Em termos de exigências de prevenção remete-se para as considerações já acima tecidas ou transcritas. O alegado encerramento do estabelecimento por parte da arguida tem reduzida relevância, na medida em que tal encerramento revela-se inevitável perante a falta de licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento e a possibilidade de encerramento administrativo. Perante o quadro fáctico apurado, relembrando-se que a aplicação do instituto da atenuação especial opera apenas em casos excecionais, é nosso entendimento que a moldura abstrata prevista na lei é manifestamente adequada e o efeito preventivo que o caso requer só pode ser alcançado com a coima aplicada, na medida concreta em que o foi, já por si situada no mínimo da moldura abstrata que foi julgada como aplicável na decisão recorrida por estar em causa uma atenuação negligente [Sublinhe-se que tal moldura abstrata julgada aplicável não foi colocada em causa em recurso – o Ministério Público pugnou pela manutenção da sentença recorrida -, sendo ainda certo que, ressalvando o devido respeito por entendimento distinto, considera-se que no regime das contraordenações laborais constante da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro a proibição de reformation in pejus tem aplicação em sede de recurso da decisão do tribunal relativa à impugnação judicial][18]. Em face do exposto, e sem necessidade de outras considerações, carece de fundamento a pretensão da Recorrente, do que decorre a improcedência do recurso também nesta parte. * Resta concluir pela total improcedência do recurso. *** IV – DECISÃO: Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida. Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC`s (artigos 93.º, nº 3, do RGCOC e 513.º, nº 1, do Código de Processo Penal, ex vi artigo 60.º da Lei n.º 107/2009 de 14 de setembro, e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, bem como Tabela III anexa ao mesmo). Notifique. * (texto processado e revisto pela relatora, assinado eletronicamente) Porto, 3 de fevereiro de 2025 Germana Ferreira Lopes António Luís Carvalhão Teresa Sá Lopes __________________ [1] Consigna-se que em todas as transcrições será respeitado o original, com a salvaguarda da correção de lapsos materiais (v.g. de escrita) evidentes e de sublinhados/realces que não serão mantidos. [2] Adiante designado por RGCOLSS. [3] Adiante designado por RGCO. [4] Adiante designado por CPP. [5] Processo n.º 1204/19.8T8OAZ.P1, Relator Desembargador Nelson Fernandes, sendo que as notas de rodapé mencionadas no texto têm o seguinte teor: “[2] Assim o Assento 1/2003, de 28 de Nov. de 2002, sem prejuízo, diga-se, de ter optado pela aplicação subsidiária do Código Penal ao RGCO nos casos dos limites do prazo de prescrição (Acórdão 6/2001), nas situações que levam à sua suspensão (Acórdão nº 2/2002) ou quanto à aplicação da lei que em concreto se mostre mais favorável ao arguido (Ac. 11/2005); [3] Acs. 537/2011 e 85/2012.” Acórdão do Tribunal da Relação do Porto acessível in www.dgsi.pt, site onde se mostram disponíveis os demais Acórdãos infra a referenciar, desde que o sejam sem menção expressa em sentido adverso. [6] Acórdão de 19-06-2008, Relator Conselheiro João Cura Mariano, disponível in tribunalconstitucional.pt/tc/acordãos. [7] Adiante designado por CP. [8] Processo n.º 2490/22.1T8CSC.L1-4, Relatora Desembargadora Paula Pott. [9] In Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, Vislis Editores, 2.ª edição, 2002 Dezembro, pág. 243. [10] Processo n.º 307/24.1T8CBR.C1, Relatora Paula Maria Roberto. [11] Sobre a não aplicação do instituto da dispensa de pena prevista no artigo 74.º do Código Penal poderão ver-se, entre outros, os seguintes Acórdãos: do Tribunal da Relação do Porto de 18-09-2002 (Relatora Desembargadora Isabel Pais Martins, publicado na CJ, Ano XXVII, Tomo IV, págs. 203 a 205), de 22-09-2010 (processo n.º 2789/09.2TBVCD.P1, Relator Desembargador Coelho Vieira), de 30-03-2011 (processo 469/09.8TBBAO.P1, Relator Desembargador José Manuel Araújo Barros) e de 6-03-2024 (processo n.º 1056/23.3T9AVR.P1, Relatora Lígia Trovão); do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-05-2013 (processo n.º 661/12.8TBCBR.C1, Relator Luís Coimbra); do Tribunal da Relação de Évora de 6-02-2018 (processo n.º 3910/16.0T8LLE.E1, Relator João Amaro) e 26-11-2013 (processo n.º 3342/12.9TASTB.E1, Relator Desembargador Sérgio Corvacho); do Tribunal da Relação de Lisboa de 9-10-2019 (processo 2277/18.6T8BRR.L1-4, Relator Desembargador Alves Duarte). [12] Neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-01-2013 (processo n.º 58/11.7TBLNH-A.L1-5, Relator Desembargador Artur Vargues) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-07-2012 (processo n.º 15/11.3TBOHP.C2, Relatora Desembargadora Maria José Nogueira). No mesmo sentido, Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa (in ob. Citada, pág. 476). [13] Processo n.º 3352/23.0T8PNF.P1, relatado pela aqui Relatora e com intervenção como Adjunta da Desembargadora aqui 2.ª Adjunta Teresa Sá Lopes. [14] Cfr., entre muitos outros, os seguintes Acórdãos: do Tribunal da Relação de Coimbra de 4-03-2015 (processo n.º 162/14.0TBVIS.C1, Relator Fernando Chaves) e de 13-09-2024 (processo n.º 307/24.1T8CBR.C1, Relatora Desembargadora Paula Maria Roberto); do Tribunal da Relação do Porto de 12-09-2022 (processo n.º 1118/22.4T8MTS.P1, Relator Nelson Fernandes, também com intervenção como Adjunta da Desembargadora aqui 2.ª Adjunta Teresa Sá Lopes) e o já citado Acórdão de 30-09-2024. [15] Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, 1993, pág. 302. [16] Mesmo local, pág. 303. [17] Neste sentido, podem ver-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-07-2015 (processo n.º 32/14.1PEAMD.S1, Relator Conselheiro João Silva Miguel) e de 24-03-2022 (processo n.º 134/21.8JELSB.L1.S1, Relator Conselheiro Orlando Gonçalves). [18] Conforme entendimento que os aqui subscritores – Relatora e Adjuntos – tiveram já oportunidade de sufragar no Acórdão de 3-06-2024 (processo n.º 2308/23.8T9VLG.P1), em linha com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-04-2023 (processo n.º 9864/19.3T8LRS.L1-4, Relator Desembargador Leopoldo Soares). |