Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2241/22.0T8PRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: DESPEJO IMEDIATO
INCIDENTE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DIREITO DE DEFESA
Nº do Documento: RP202404092241/22.0T8PRT-B.P1
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A procedência do incidente de despejo imediato implica, como pressuposto, que se tenha como assente a existência e validade do contrato de arrendamento e a obrigação de pagamento das rendas invocadas.
II - A evolução do direito equaciona-se, cada vez mais, em torno da proteção da dignidade da pessoa humana, de onde ressalta todo um reforço dos direitos de defesa, do contraditório e da amplificação dos meios de prova.
III - É atualmente pacífico que o Requerido do incidente tem a possibilidade de, à luz do princípio do contraditório, usar dos meios de defesa que tenha ao seu dispor, designadamente justificando que as rendas vencidas na pendência da ação não são exigíveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2241/22.0T8PRT-B.P1
Comarca: [Juízo Central Cível do Porto (J7); Comarca do Porto]


Juíza Desembargadora Relatora: Lina Castro Baptista
Juíza Desembargadora Adjunta: Anabela Andrade Miranda
Juiz Desembargador Adjunto: Fernando Vilares Ferreira




SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

AA, residente na Travessa ..., Porto; BB e CC, residentes na Avenida ..., ..., ..., Maia,  intentaram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum declarativo, contra “ASSOCIAÇÃO ...”, com sede na Praceta ..., Matosinhos, e DD, residente na Rua ..., n.ºs ...15, Porto, entretanto falecida e habilitada pelos seus herdeiros, pedindo que:

A. Seja reconhecida e decretada a cessação do contrato de arrendamento por resolução comunicada pelo senhorio por falta de pagamento de rendas previsto nos n.º 1 e 3 do art.º 1083.º do Código Civil[1];

B. A 1,ª Ré seja condenada a entregar imediatamente o locado ao Autor livre de pessoas e bens, e nas condições em que o recebeu e

C. Sejam ambas as Rés condenadas, solidariamente, a pagar-lhes a quantia correspondente às rendas vencidas no valor de EUR 30.525,00, acrescida de EUR 1.052,00, relativa aos juros de mora vencidos, tudo no montante de EUR 31.577,00, bem como nas rendas vincendas e respetivos juros de mora, até efetiva entrega do locado.

Alegam, para tanto e em síntese, que a Autora AA é dona do prédio urbano sito na Rua ... com entrada pelos números ...15, Porto, sendo os demais Autores usufrutuários de ¼ do mesmo prédio.

Dizem que, por contrato de arrendamento com prazo certo de cinco anos, celebrado em 10/12/2014, deram de arrendamento à primeira Ré, o referido prédio, para nele desenvolver o seu objeto social - apoio social em todas as suas vertentes - como lar de idosos e aluguer de quartos, o que vem fazendo desde o seu início, em 15/01/2015, mediante o pagamento da renda anual de EUR 11.100,00, a pagar em duodécimos mensais de EUR 925,00, todos os dias  10 do mês antecedente, por meio de transferência bancária para o NIB que lhe foi indicado.

Afirmam que a 1.ª Ré apenas procedeu ao pagamento regular e atempado das quantias devidas a título de renda nos primeiros meses de vigência do contrato, estando em divida a renda respeitante ao mês de maio de 2019 e todas as rendas subsequentes, num total de 33 rendas, no valor global de EUR 30.525,00.

Acrescentam terem endereçado à 1.ª Ré cartas, uma para o local arrendado, e outra para a sede social, a comunicar-lhe a resolução de contrato de arrendamento fundada na falta de pagamento de rendas, bem como a solicitar o pagamento dos valores em divida.

Alegam, por fim, que a 2.ª Ré interveio no contrato na qualidade de fiadora, tendo assumido com a arrendatária o cumprimento de todas as obrigações decorrentes do contrato, renunciando, expressamente, ao benefício da excussão prévia. Bem como que a mesma foi igualmente interpelada para o pagamento dos valores em dívida.

Os Réus vieram contestar, excecionando litispendência relativamente a ação pendente neste momento neste Tribunal da Relação como Processo: 4002/20.2T8PRT-A.P1, 2ª Secção e relativamente a ação que deu entrada com o Processo n.º 11270/21.0T8PRT que corre termos no Juízo Local Cível do Porto - Juiz 1.

Mais exceciona a nulidade da declaração de resolução, alegando que a forma usada pelos Autores para declarar tal resolução não foi feita pela forma legal.

Exceciona igualmente ocorrer mora do credor, alegando que as rendas apenas não foram pagas por recusa do credor em receber os valores e recusa em emitir os recibos correspondentes.

Contrapõe ainda que a 2.ª Ré não tinha tido consciência nem voluntariamente aceitou assumir a qualidade de fiadora a par do 1.ª Réu.

Os Autores vieram pronunciar-se sobre as exceções invocadas, impugnando as matérias de facto alegadas como fundamento das mesmas.

Entretanto, os Autores vieram alegar que a 1.ª Ré arrendatária nunca efetuou qualquer pagamento de rendas no âmbito deste processo, embora continue a usufruir o arrendado, sem o entregar.

Pede que, face ao incumprimento da 1.ª Ré quanto ao pagamento de rendas na pendencia da acção, seja dado cumprimento ao disposto no artigo 14.º, n.ºs 4 e 5 do NRAU.

Sequencialmente foi proferido despacho com o seguinte teor: “Notifique os RR. para comprovarem nos autos o pagamento de rendas vencidas na pendência da presente ação, acrescidas, se for o caso, da indemnização devida nos termos do n.º 4 do art.º 14.º do NRAU sob pena de despejo imediato nos termos do n.º 5 do mesmo preceito legal.”

A 1.ª Ré veio responder ter invocado, a seu favor, duas exceções que prejudicam a aplicação da norma em causa, designadamente a nulidade da declaração de resolução e a mora do credor.

Foi proferida decisão final do incidente com o seguinte teor resumido: “(…)Nos presentes autos, pretendem os AA. que: a) seja reconhecida e decretada a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas; b) seja a 1.ª R. condenada a restituir o locado livre de pessoas e bens; c) serem as RR. condenadas a pagar as rendas vencidas de € 30.525,00 e juros vencidos de € 1052,00, bem como as rendas vincendas e respectivos juros até à entrega do locado.

Por sua vez, a 1.ª R. não contesta a existência e validade do contrato de arrendamento. Começa a 1.ª R. por se defender invocando a nulidade da declaração de resolução formulada extra-judicialmente pelos AA.Quanto a este ponto, entende-se não assistir razão à 1.ª R.. Na verdade, o que os AA. fazem neste processo é justamente pedir a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, sendo, pois, despiciendo e irrelevante discutir-se, naquele âmbito, a regularidade (ou não) de anterior interpelação resolutiva promovida pelos AA. Mais a mais, é consabido que o dever legal do arrendatário pagar as rendas em nada fica beliscado na hipótese de se ter anteriormente verificado uma qualquer irregularidade na interpelação resolutória encetada pelos AA.

De seguida, vem a 1.ª R. invocar a recusa dos AA. em receberem as rendas. Entendemos, igualmente, que carece de fundamente a defesa nessa parte. De facto, no art, 5.º da PI os AA. referem que a renda era paga por transferência bancária para NIB (dos AA.) que foi indicado aos RR., facto que não se vislumbra ter sido impugnado. Assim, qualquer iniciativa que possa ter sido promovida pela 1.ª R. no sentido de pagar a renda na pessoa ou directamente à pessoa de algum dos A., não prejudica nem afasta a forma de pagamento contratualmente estabelecida (transferência bancária para NIB dos AA. que lhe foi indicado). Note-se que a 1.ª R., por remissão para o art. 18.º da Contestação, alude à recusa dos AA. passarem recibo para justificar a falta de pagamento das rendas.

(…)Pelo exposto, não tendo os RR. efectuado o depósito das rendas vencidas no decurso desta lide acrescidas da respectiva indemnização, cumpre julgar procedente o incidente deduzido, deferindo-se o despejo imediato.

Custas o incidente a cargo dos RR., contadas a final (art. 14.º, n.º 4 do NRAU).”

Inconformada com esta decisão, a 1.ª Ré apresentou o presente recurso de apelação, terminando com as seguintes

CONCLUSÕES:

A. O recorrente defendeu-se por excepção invocando a nulidade da declaração de resolução e a mora do credor/recorrido, por este se ter recusado a receber as rendas.

B. A eventual procedência da mora do credor por recusa em receber as rendas é facto impeditivo para a aplicação do 14.º, n.ºs 3 a 5 do NRAU

C. Não pode o senhorio valer-se de uma situação que criou, em especial numa norma que é, em si mesma, altamente restritiva do direito de acesso aos tribunais e a uma decisão judicial de mérito.

D. Violaria o princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção sem que se apreciasse a dedução pelo arrendatário de qualquer meio de defesa, em especial quando a defesa do inquilino é, precisamente, a recusa do senhorio em receber as rendas

E. O recorrido vem procurar aproveitar-se da situação que intencional e ilicitamente criou, assim integrando o instituto do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium

F. A interpretação na norma é inconstitucional por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 14.º n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, na interpretação segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia se as rendas são ou não devidas se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida.

G. O douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos art. 14º n.º 4 e 5 da NRAU e, artºs 2º, 9º,13º, 18º e 20º da CRP

H. O douto despacho deve ser revogado e ser julgado improcedente o pedido de despejo imediato, por inaplicabilidade do art. 14.º, n.ºs 3 a 5 do NRAU ao caso em apreço na medida em que o recorrente contestou excepcionando a nulidade da resolução e a mora do credor (recorrido) por recusa em recebimento das rendas.,

I. Assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!

Os Autores vieram apresentar contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida, rematando com as seguintes

CONCLUSÕES:

A. A apelante, insurge-se contra o douto Despacho recorrido por entender que o Tribunal a quo, ao não apreciar os meios de defesa deduzidos pelo arrendatário, fez uma errada interpretação e aplicação da lei violando, entre outros o princípio da proibição da indefesa consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa

B. Não faz qualquer sentido alegar a irregularidade da interpelação da declaração de resolução feita extrajudicialmente pelos apelados quando o efeito que os apelantes pretendem obter por intermédio desta acção é, entre outros, que o Tribunal declare a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as partes, por falta de pagamento de rendas, pelo que este argumento não deverá ser atendido.

C. Carece de fundamento a mora do credor invocada na contestação à acção e na oposição ao incidente, dado que nunca houve da parte da apelante qualquer tentativa de “chegar à fala” com AA., fosse para o que fosse, e menos ainda para pagar qualquer renda, assim como a alegação de que tal ocorreu quando os apelados a tentaram despejar da primeira vez (Proc. 4002/20.2T8PRT do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 5, intentada em 21-02-2020), data em que já havia 8 (oito) meses de rendas em atraso.

D. Em momento algum a apelante alega que tenha tentado em vão pagar, no tempo e lugar próprios, ou seja, conforme o contratualmente estabelecido, integralmente, o montante exigível a título de renda e que esse pagamento tenha sido recusado pelos recorridos.

E. Como resulta do contrato de arrendamento junto aos autos a renda deve ser paga por meio de transferência bancária para a conta com o NIB que lhe foi indicado pelos recorridos, e foi sempre por transferência bancária que a recorrente, desde o início do contrato, 1 de janeiro de 2015, até abril de 2019, data em que cessou os pagamentos procedeu, sendo que as que posteriormente se venceram, (57 X 925,00= 52.725,00), deveriam ter sido pagas por essa via.

F. A alegação de que a apelante quis pagar a renda diretamente a um apelado e que este se recusou a recebê-la não colhe, nem afasta a forma de pagamento da renda contratualmente estabelecida pelas partes, ou seja, a transferência bancária para o NIB indicado pelos apelados, razão pela qual deverá improceder a alegada excepção do não cumprimento do contrato.

G. A limitação dos meios de defesa oponíveis pelo inquilino ao incidente do despejo imediato têm sido objeto de discussão, sendo hoje incontroverso que o despejo imediato do arrendatário com base na falta de pagamento das rendas vencidas na pendencia da acção não é automático. Ele pode opor quaisquer outros meios de defesa, de forma ampla, e directamente relacionados com a obrigação de pagamento da renda, para poderem ter a virtualidade de impedir, modificar o extinguir obrigação durante a pendência da acção.

H. A apelante teve oportunidade de se opor à pretensão dos apelados. Foi-lhe concedida ampla possibilidade de dedução de meios de defesa ao incidente para além da prova do pagamento ou depósito das rendas em falta, e apresentou oposição ao requerimento de despejo imediato.

I. A decisão recorrida foi proferida no âmbito de um incidente que reveste a forma duma acção autónoma e independente da acção principal, e é em função dos meios de defesa opostos pela apelante que deve ser apreciado se pode ocorrer despejo imediato, sem sujeição dos argumentos de defesa a julgamento.

J. A apelante limitou-se a invocar a nulidade da declaração de resolução e a mora do credor sem que indicasse quaisquer meios de prova tendentes a provar os factos alegados. A mera invocação de que o A. se recusou a receber as rendas e a emitir o recibo carece de ser provada, sendo que o ónus da prova dos factos tendentes a demonstrar a mora do senhorio no recebimento das rendas, compete ao inquilino, e essa prova não foi feita, inexistindo, assim, qualquer violação do princípio da indefesa.

K. Não se vislumbra, que, em momento algum, os apelados tenham violado o princípio da boa-fé e da confiança, ou criado quaisquer expectativas à Ré no sentido do não exercício do direito, carecendo de razão de ser a alegação de que houve da parte do apelado abuso do direito e menos ainda na vertente venire contra factum proprium.

L. Os Recorridos louvam-se na douta sentença sob recurso, considerando que não merece reparo ou censura, devendo, por isso, e em nome da justiça, ser mantida em toda a sua plenitude.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito suspensivo.


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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[2], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.

Nos presentes autos, a questão a dirimir, delimitada pelas conclusões do recurso, prende-se com a legalidade e constitucionalidade da decisão de decretamento do despejo imediato da 1.ª Ré do locado.


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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade relevante resume-se aos trâmites processuais atrás consignados no Relatório e ao teor da decisão recorrida, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.


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IV – LEGALIDADE E CONSTITUCIONALIDADE DA DECISÃO DE DECRETAMENTO DO DESPEJO IMEDIATO

O tribunal recorrido decretou o despejo imediato do locado justificando, em síntese, que a 1.ª Ré não contesta a existência e validade do contrato de arrendamento; que é despiciendo e irrelevante discutir-se a regularidade (ou não) de anterior interpelação resolutiva promovida pelos Autores e que qualquer iniciativa que possa ter sido promovida pela 1.ª Ré no sentido de pagar a renda na pessoa ou directamente à pessoa de algum dos Autores, não prejudica nem afasta a forma de pagamento contratualmente estabelecida (transferência bancária para NIB dos AA. que lhe foi indicado).

A Recorrente, não concordando com esta decisão, contrapõe, em resumo, que a eventual procedência da mora do credor por recusa em receber as rendas é facto impeditivo para a aplicação do 14.º, n.ºs 3 a 5 do NRAU.

Advoga que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção sem que se apreciasse a dedução pelo arrendatário de qualquer meio de defesa, em especial quando a defesa do inquilino é, precisamente, a recusa do senhorio em receber as rendas, violaria o princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.

Emite a opinião de que o Recorrido vem procurar aproveitar-se da situação que intencional e ilicitamente criou, assim integrando o instituto do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

A disposição legal do art.º 14.º da Lei n.º 6/2006, de 27/02 (NRAU), é do seguinte teor:

“3 – Na pendência da ação de despejo, as rendas que se foram vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais. 4 – Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova nos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final. 5 – Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, devendo, em caso de deferimento do requerimento, o juiz pronunciar-se sobre a autorização de entrada no domicílio (…).”

Este incidente foi sendo incluído nos vários regimes jurídicos da locação que se sucederam no tempo, designadamente no art.º 979.º do CP Civil de 1961 e no art.º 58.º do RAU.

A teleologia do legislador foi sempre a de obstar à manutenção de uma situação de ocupação do locado sem pagamento de rendas na pendência da ação judicial.

Tratou-se sempre, e continua a tratar-se, de um incidente processual enxertado na ação de despejo.

Esquematicamente, temos que o fundamento deste tipo de ação de despejo é o não pagamento das rendas vencidas antes da propositura da ação. Por sua vez, o fundamento do despejo imediato é o não pagamento das rendas vencidas na pendência da ação de despejo.

No passado já se defendeu que a única defesa possível do arrendatário era a de documentalmente comprovar nos autos o depósito das rendas vencidas na pendência da causa.

Esta limitação dos meios de defesa oponíveis ao arrendatário suscitou dúvidas quanto à sua constitucionalidade.

Ainda na vigência do RAU o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 673/2005[3] julgou “inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual, mesmo que na ação de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da ação, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida”[4].

Estas orientações constitucionais tornaram incontestável que a interpretação do preceito no art.º 14.º do NRAU tem que ser feita à luz do sistema jurídica na sua globalidade e, principalmente, dos princípios constitucionais.

O direito como ordenamento pressupõe uma coerência e integridade estrutural.

A evolução do direito equaciona-se, cada vez mais, em torno da proteção da dignidade da pessoa humana, de onde resulta todo um reforço dos direitos de defesa, do contraditório e da amplificação dos meios de prova.

Concretizando, a procedência do incidente de despejo imediato implica, como pressuposto, que se tenha como assente a existência e validade do contrato de arrendamento e a obrigação de pagamento das rendas invocadas.

Assim sendo, é atualmente pacífico que o Requerido do incidente tem a possibilidade de, à luz do princípio do contraditório, usar dos meios de defesa que tenha ao seu dispor, designadamente justificando que as rendas vencidas na pendência da ação não são exigíveis.

São casos típicos a alegação de celebração de um contrato diverso do contrato de locação ou um acordo de não pagamento temporário das rendas.

É exatamente um caso com estes contornos o apreciado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/07/17, tendo como Relatora Maria da Graça Trigo[5] indicado pela Recorrente em sua defesa: “O incidente de despejo imediato tem como fundamento o não pagamento das rendas vencidas na pendência da ação. A razão de ser deste regime consiste em evitar que o arrendatário mantenha o gozo da coisa locada durante a pendência da ação sem a correspondente remuneração do locador. (…) Alegando a Ré na contestação a inexigibilidade das rendas em atrasos – incluindo as vencidas na pendência da ação – por as partes terem acordado nesse sentido, uma vez que não se encontra ainda assente a sua exigibilidade, não pode o pedido de despejo imediato proceder.”

Descendo ao caso dos autos, as partes aceitam, de comum acordo, a existência e validade do contrato de arrendamento invocado pelos Autores.

Por outro lado, é pacífico que a 1.ª Ré não pagou as rendas vencidas na pendência da presente ação.

A Recorrente, em contestação ao incidente dos autos, invocou, a seu favor, duas exceções que, no seu entendimento, prejudicavam a aplicação da norma em causa, designadamente a nulidade da declaração de resolução e a mora do credor.

No presente recurso, abandonou a tese da nulidade da declaração de resolução, tendo que se concluir que se conformou com a decisão do incidente neste particular.

A outra tese alicerçada na mora do credor não procede como fundamento justificativo para o não pagamento de tais rendas não procedem.

Como se referiu acima, a Recorrente apenas contrapõe que a eventual procedência da mora do credor por recusa em receber as rendas é facto impeditivo para a aplicação do 14.º, n.ºs 3 a 5 do NRAU.

Não concretiza a forma como os senhorios recusaram receber as rendas, o que se impunha fosse especificado tendo em conta que o acordo era que o pagamento das rendas fosse efetuado por meio de transferência bancária para o NIB que lhe foi indicado.

Ou seja, no presente incidente não se encontram alegadas as circunstâncias de tempo, lugar e modo de oferecimento das rendas e a forma de recusa concreta de recebimento das mesmas.

Apenas uma alegação concretizadora seria idónea a permitir apreciar da invocada mora do senhorio no recebimento das rendas.

De qualquer modo, dificilmente a mora do credor no recebimento das rendas vencidas antes da interposição da ação legitimaria igualmente o seu não pagamento na pendência de tal ação.

Por outro lado, não tem qualquer cabimento a tese da violação do princípio do contraditório, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.

O Recorrente teve a possibilidade de responder, nos termos legais, ao incidente contra si deduzido e veio defender-se da forma que entendeu mais adequada.

Não tendo vindo apresentar uma alegação fáctica completa, como lhe era imposto pelo n.º 1 do art.º 574.º do CP Civil, ficou vedado ao tribunal recorrido apreciar de forma mais completa do que aquela que fez: “(…) os AA. referem que a renda era paga por transferência bancária para NIB (dos AA.) que foi indicado aos RR., facto que não se vislumbra ter sido impugnado. Assim, qualquer iniciativa que possa ter sido promovida pela 1.ª R. no sentido de pagar a renda na pessoa ou directamente à pessoa de algum dos A., não prejudica nem afasta a forma de pagamento contratualmente estabelecida (transferência bancária para NIB dos AA. que lhe foi indicado).”

A conclusão é necessariamente a de que os fundamentos aduzidos pela Recorrente não o desoneravam do pagamento das rendas vencidas na pendência da ação.

Mais se conclui, por inerência, que o presente incidente foi bem decidido, não se justificando a restrição do direito dos Autores em ver prolongar-se a ocupação do locado pela 1.ª Ré sem o pagamento da devida contrapartida monetária.

Finalmente, face à indicada indefinição factual não temos qualquer suporte fáctico para apreciar o igualmente invocado abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

Tal como se decidiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 09/01/24, tendo como Relator José Capacete[6] “O incumprimento do dever principal do arrendatário, de pagamento da renda, mantém-se no decurso da ação de despejo, independentemente do fundamento (ou fundamentos) dessa ação, constituindo-se, assim, como um novo fundamento resolutivo, tornando-se, por isso, desnecessária a prossecução da ação para se conhecer da concreta causa de pedir.”

A conclusão necessária é a da total improcedência do presente recurso.


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V - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pela 1.ª Ré, confirmando-se a decisão recorrida.


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Custas a cargo da Recorrente (art.º 527.º do CP Civil).

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Notifique e registe.

Porto, 8-4-2024
Lina Baptista
Anabela Miranda
Fernanda Vilares Ferreira
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[1] Doravante apenas designado por C Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] Doravante apenas designado por CP Civil.
[3] Publicado no Diário da República n.º 25/2006, Série II, de 03/02/2006.
[4] O Tribunal Constitucional voltou a decidir no mesmo sentido no Acórdão n.º 327/2018.
[5] Proferido no Processo n.º 83/16.6T8ALM-A.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[6] Proferido no Processo n.º 1443/21.1T(TVD.L1-7 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.