Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ISABEL PEIXOTO PEREIRA | ||
| Descritores: | INSOLVÊNCIA VENDA EM ESTABELECIMENTO DE LEILÃO PAGAMENTO DA COMISSÃO DA LEILOEIRA LICITANTE ENCARGO DA ADJUDICAÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RP2025041018266/23.6T8PRT.P1 | ||
| Data do Acordão: | 04/10/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA A SENTENÇA | ||
| Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A prática em processo de insolvência de fazer recair diretamente sobre o interessado licitante o encargo de pagamento da comissão da leiloeira, enquanto auxiliar do liquidatário judicial, cujo valor é previamente definido, antes da adjudicação, constituindo, aliás, “condição” da adjudicação ao interessado comprador, sendo a venda publicitada nesses termos, não ofende regime legal imperativo (do CIRE), não sendo violadora dos interesses dos credores da insolvência. II - Nesse caso, o valor da comissão devida em nada é implicado pelas disposições da insolvência, dado não estar em causa um valor ou montante susceptível de afectar a massa, assumindo natureza estritamente contratual. III - Em causa já a actuação pessoal e ilícita da leiloeira ao beneficiar-se ilegitimamente com um montante de comissão superior ao que o Regulamento do Leilão concretamente lhe permitia, pagando dessa forma o adquirente/adjudicatário mais do que devia haver pago. IV - A inexistência de estabelecimento comercial, patenteada já no anúncio da venda, ainda quando se lhe reconduzindo, reconduz a comissão devida pelo adquirente adjudicatário a um valor inferior, nos termos do anúncio mesmo e, assim, dos termos da proposta pela Ré leiloeira. V - E não se obste que a leiloeira se limitou a publicitar um estabelecimento por ter sido esse o objecto cuja venda foi ordenada nos autos de insolvência, em termos de não ser susceptível de reconhecimento a realidade mesma de que não se vendeu nenhum estabelecimento, mas uma série de bens que integraram o activo de um, entretanto extinto. VI - Não tendo sido vendido um estabelecimento comercial a comissão a satisfazer não pode ser calculada segundo a percentagem correspondente, pelo que não era devida a que foi cobrada como condição da adjudicação. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo: 18266/23.6T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Central Cível do Porto - Juiz 6
Relatora: Isabel Peixoto Pereira 1º Adjunto: Isabel Silva 2º Adjunto: Isabel Rebelo Ferreira * Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto: I. A..., S.A., com sede no Edifício ..., ..., 5º A ... Santo Tirso, intentou a presente acção declarativa comum contra B..., S.A., com sede na Rua ... ... Porto, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de €48.698,41, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal para as obrigações comerciais, desde 8 de Junho de 2022, até completo pagamento. Alega que, em leilão realizado no âmbito de processo de insolvência, adquiriu um conjunto de bens cuja venda foi promovida pela ré, tendo esta cobrado uma comissão de valor superior às características dos bens vendidos, uma vez que não existia, à data, nenhum estabelecimento comercial.
A ré foi citada e veio contestar, pronunciando-se pela improcedência da acção.
Os autos prosseguiram os seus regulares termos e, realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, a qual julgou totalmente improcedente a acção, em consequência absolvendo a ré do pedido.
É dessa decisão que vem interposto o presente recurso, formulando a recorrente Autora as seguintes conclusões[1]: A. O presente recurso versa sobre a douta sentença proferida que julgou a ação movida pela recorrente totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a recorrida do pedido condenatório no pagamento da quantia de 48.698,41€ (capital), acrescida de juros de mora; B. O douto Tribunal “a quo” decidiu com o devido louvor a apreciação da matéria de facto, cuja factualidade dada por provada deveria conduzir, atento o objeto do litígio e os temas de prova à subsequente procedência da ação em apreço. C. Porém, ao arrepio da factualidade dada por provada e do objeto do litígio (e temas de prova), o Tribunal apreciou de modo errado o caso sub Júdice e procedeu a errónea interpretação e aplicação jurídica, cuja decisão padece ainda de nulidade, nos termos das alíneas c) e d) do Código de Processo Civil. D. O objeto do litígio sustenta-se no “Reconhecimento do direito de crédito da A.” e possui, como temas de prova, “Temas da prova: 1) Saber do leilão electrónico e bens adquiridos pela A.. 2) Saber se a R. cobrou uma comissão de venda superior àquela que era devida, atentas as condições de venda aplicáveis ao leilão e ao facto dos bens adquiridos não se poderem considerar um estabelecimento comercial.”. E. O thema decidendum dos autos consiste assim em apurar se foi ou não objeto da venda judicial por leilão eletrónico realizada pela recorrida um estabelecimento comercial que determine o direito à mesma auferir a comissão que veio a aplicar à recorrente, ou seja, se a mesma é ou não excessiva. F. A fatualidade dada por provada é inequívoca no sentido de não ter sido vendido à recorrente um estabelecimento comercial, considerando os pontos c), d), e), h), i), j), k) p), r) s), p) t), u) do rol de factos dados por provados. G. Tal conclusão sobressai de forma patente na motivação da douta decisão, onde se lê: “Ora, no caso dos autos, seria relevante dizer, desde logo, que sem alvará, não podia o local em causa funcionar como posto de combustível, pelo que não poderíamos falar, efectivamente, num estabelecimento comercial como objeto da venda judicial.” H. Designadamente, foi dado por provado que “c) Através de um leilão eletrónico organizado pela Ré no âmbito do processo de insolvência de pessoa coletiva 2321/18.7T8STS, do J1 do Juízo de Comércio de Santo Tirso, da Comarca do Porto, a Autora adquiriu um bem imóvel (prédio misto), um alvará (caduco desde 2017) e bens móveis, pelo valor global de 970.000,00€ (novecentos e setenta mil euros); d) Sendo que na divulgação da venda, feita pela ré, constava que se tratava de um “estabelecimento comercial”; e) Os bens em causa são os seguintes: i) Verba 1 - Um prédio misto, composto de edifício de rés do chão com 249 m2, logradouro com 1651 m2 e terreno com 900 m2, sito em .... Descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sobre o n.º ... e inscrito na matriz urbana artigo n.º ..., e na matriz rústica sob o artigo n.º ... da Freguesia ... (...), Concelho de Santo Tirso. ii) Verba 2- O Alvará n.º 3393/P do Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, emitido pela Direção Geral de Energia e Geologia, para explorar uma instalação de armazenagem de produtos, constituída por Posto de Abastecimento de Combustível, destinado a consumo público, associado (alvará de autorização n.º 190/16) da Câmara Municipal .... iii) Verba 3 – Diversos bens móveis.” I. Foi ainda dado por provado, designadamente, que “h) Uma vez concluído o leilão, a Ré imputou à Autora uma comissão do valor de €97.000,00 (noventa e sete mil euros), acrescida de IVA, no valor total de €119.310,00 (cento e dezanove mil trezentos e dez euros);” “i) Sendo esse valor correspondente a 10% do valor global da venda realizada, acrescido de IVA. j) Percentagem que correspondia à venda, em leilão, de estabelecimento comercial”; “k) A ré aplica as seguintes comissões pelos serviços prestados: 1) Bens Imóveis: 5% sobre o valor proposto e IVA respetivo (à taxa legal em vigor); 2) Bens Móveis: 10% sobre o valor proposto e IVA respetivo (à taxa legal em vigor). 3) Estabelecimento Comercial: 10% sobre o valor proposto e IVA respetivo (à taxa legal em vigor).4) Casos específicos serão indicados nas condições específicas do leilão e/ou na área de informação dedicada ao leilão eletrónico e/ou ao produto em concreto.” J. Foi também dado por provado que “ p) Os bens em causa foram avaliados no âmbito do aludido processo de insolvência, da seguinte forma: i) Verba 1, supra descrita, no valor de €791.837,00 (setecentos e noventa e um mil oitocentos e trinta e sete euros), sendo o prédio urbano avaliado em €791.660,00 (setecentos e noventa e um mil seiscentos e sessenta euros) e o prédio rústico em €177,00 (cento e setenta e sete euros);ii) Verba 2, supra descrita, no valor de €59.388,00 (cinquenta e nove mil e trezentos e oitenta e oito euros); iii) Verba 3, supra descrita, no valor de €118.775,00 (cento e dezoito mil e setecentos e setenta e cinco euros); K. E deu-se ainda por provado que “q) à data da venda judicial dos bens supra identificados, e apesar de ter funcionado no imóvel em causa um posto de abastecimento de combustível e oficinas o mesmo já não funcionava naquela data; r) Encontrando-se encerrado e ao abandono, sem atividade comercial, sem produtos e sem trabalhadores; s) Sem casas de banho funcionais; t) E sem equipamento, para alem dos reservatórios enterrados no subsolo; u) Sendo que o alvará já estava caducado.” L. Em função da factualidade provada e a conclusão óbvia não ter sido vendido um estabelecimento comercial à recorrente, mal andou o Tribunal recorrido (com o devido respeito) ao não concluir pela procedência do pedido, condenando a recorrida em conformidade. M. De forma avessa aos autos, o Tribunal recorrido desconsiderou o facto de não ter sido vendido um estabelecimento comercial e assentou a sua motivação, erroneamente, num conjunto de considerações genéricas afetas à normal tramitação de um processo de insolvência, e respetiva liquidação de bens nessa sede, de um modo avesso aos autos. N. Por outro lado, o Tribunal recorrido pressupôs erroneamente o alegado conhecimento (e não reclamação) da recorrente em sede de processo de insolvência quanto à aplicabilidade de uma comissão de 10% à venda dos bens em causa, enquanto estabelecimento comercial, como assim fora anunciado. O. Se é certo que as condições de venda resultam do facto “k” dado por provado supra descrito e contemplam uma comissão distinta consoante a natureza dos bens (para bem imóvel, para bens móveis e para estabelecimento comercial), é igualmente certo que foi de facto vendido à recorrente foram três bens distintos elencados nos factos “c)” e “e” dados por provados, de onde resulta que as condições de venda do leilão anunciavam diferentes comissões devidas consoante a natureza dos bens vendidos (!) e não resultava que a venda das verbas em causa determinaria a aplicabilidade de uma comissão de 10% correspondente à venda de um estabelecimento comercial (!). P. O facto de ter sido divulgada a venda de um lote intitulado “estabelecimento comercial” – facto provado “d)” - não poderá conduzir, por si só, à dita aplicabilidade de uma comissão de 10% como se se tratasse de um estabelecimento comercial quando, na verdade, o que foi vendido à recorrente não configura um estabelecimento comercial, cuja comissão de venda aplicável deverá ter correspondência com aquilo que é efetivamente vendido e não o modo como é apelidado. Q. A douta sentença é nula, nos termos da alínea c) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, por existir uma contradição entre as premissas de facto dadas por provadas e de Direito com a conclusão da sentença que determinou um resultado distinto da procedência da ação. R. A douta sentença é também nula, nos termos da alínea d), 2º parte, do artigo 615º do Código de Processo Civil na medida em que ignorou a matéria de facto dada por provada e a conclusão alcançada de não estar em causa um estabelecimento comercial, valorizando, em claro excesso de pronúncia, um conjunto de questões que extravasam os autos e são externas aos mesmos, mais a mais que não são conhecidos quaisquer elementos afetos ao dito processo de insolvência que permitissem uma valoração adequada no sentido de alcançar as conclusões perfilhadas pelo Tribunal “a quo”, salvo as conhecidas as condições de venda, supra descritas. Conclui, pedindo a revogação da decisão recorrida, substituindo-se por decisão que julgue a ação totalmente procedente.
Respondeu a Recorrida, pugnando pela improcedência do recurso, na medida em que foram contratados os serviços da Recorrida (na qualidade de auxiliar da Massa Insolvente) e fixadas as remunerações/comissões devidas, tendo a recorrida promovido o leilão eletrónico nas condições exaradas pela Massa Insolvente, prosseguindo assim o mandato que lhe havia sido atribuído, sendo que sempre a Recorrente teve uma participação activa no processo de insolvência, sem que nunca tenha levantado qualquer entrave, impedimento ou questão relativamente, tanto à modalidade de venda, como à contratação da Recorrida, mas essencialmente à remuneração da mesma; tentando, agora, obter uma vantagem perante os demais credores, numa demonstração clara de abuso de direito. Mais se reconduz à sua ilegitimidade, porquanto a responsabilidade convocada sempre terá de recair sobre a Massa Insolvente, que mandatou a Recorrida para proceder à venda, por via de leilão eletrónico, de um estabelecimento comercial.
Colhidos os vistos, cabe decidir.
II. Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são tão só de direito as questões a tratar. Assim: - a da nulidade da decisão recorrida, mediante um duplo fundamento, a verificação das hipóteses das alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC; - a do acerto ou correcção da solução jurídica da causa e, assim, a da natureza da comissão paga pela Autora e do seu pagamento indevido, em montante excedente ao merecido. Nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão: É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (artigo 615º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil). A este propósito, Alberto dos Reis refere «dois tipos de sentença viciada: a sentença injusta e a sentença nula. A primeira enferma de erro de julgamento; a segunda enferma de erro de actividade (erro de construção ou formação)»[2] Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica: se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial[3]. Na concepção de Antunes Varela «não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro de construção do silogismo judiciário»[4]. A nossa lei impõe que o silogismo da decisão se ache correctamente estruturado por forma a que a conclusão extraída corresponda às premissas de que ele emerge e a desconformidade não está no conteúdo destas mas no processo lógico desenvolvido. E essa oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta, pois quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento. Se, ao invés, ocorrer a assinalada desconformidade, a decisão é nula por contradição entre a fundamentação lavrada e o segmento decisório[5]. Está sedimentada na doutrina e na jurisprudência a ideia de que esta nulidade se verifica quando existe um vício real no raciocínio do julgador, na medida em que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue direcção distinta. Em síntese, a nulidade da sentença, por oposição entre os fundamentos e a decisão, só acontece quando aqueles conduzirem a uma decisão diferente. Analisada a estrutura da decisão e as conexões existentes entre os motivos de facto e de direito a que faz apelo e o veredicto final verifica-se que existe uma lógica na arquitectura da sentença e, dessa forma, a invocada nulidade não se verifica. Aliás, no conjunto de considerações e conclusões tiradas pela recorrente resulta até, não obstante o apelo ou recondução ao regime das nulidades da sentença, que a mesma não coloca em causa o erro de construção do silogismo judiciário mas antes se dirige claramente à injustiça do decidido. Se a interpretação e a relevância que a sentença deu ao facto de estar em causa uma venda acordada entre o Administrador de uma Insolvência e um seu auxiliar, publicitada agora como venda de um “estabelecimento comercial”, como à natureza da comissão correspondente a uma tal prestação de serviços, justamente em função das disposições legais que regem a venda em sede de processo de insolvência e se as conclusões que dos factos, disposições legais convocadas e jurisprudência chamada à colação se extraíram foram, ou não, as mais correctas, é questão que tem a ver com o mérito da decisão e com um eventual erro de julgamento, mas que não está associada à construção lógica da sentença, a qual se mostra correctamente formulada. Assim sendo, carece de fundamento a arguição efectuada ao abrigo do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
Nulidade por excesso de pronúncia Bem assim e manifestamente o carece com referência à alínea d) do n.º 1 do mesmo artigo 615º. Como se aduz no Acórdão do STJ de 06-03-2024, proferido no processo sob o número 4553/21.1T8LSB.L1.S1 e bem assim acessível na base de dados da dgsi, as nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa, como o mesmo Supremo Tribunal o tem reiteradamente declarado (v.g. Ac. do STJ de 10.12.2020, proc. n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, 7.ª Secção). Em matéria de pronúncia decisória, o tribunal deve conhecer de todas (e apenas) as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s), questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, sendo certo que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. A nulidade por excesso de pronúncia apenas se verifica quando o tribunal conheça de matéria situada para além das “questões temáticas centrais”[6], integrantes do thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções. O excesso de pronúncia ocorre quando se procede ao conhecimento de questões não suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, por força do disposto na 2ª parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 666º, nº 1, do mesmo diploma). Como se refere no Acórdão do STJ, de 2 de novembro de 2017, “o vício do excesso de pronúncia constitui um vício de limites. O juiz deve, por um lado, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão estiver prejudicada pela solução dada a outras; por outro lado, não pode ocupar-se senão das questões por elas suscitadas, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”, conforme decorre do artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. O convocado vício ocorre quando não existe congruência entre o objecto do processo – tal como as partes e a lei o delimitam –, e a decisão proferida. Ora, a sentença recorrida apenas se pronunciou quanto ao pedido deduzido, mediante consideração tão só dos factos oportunamente alegados, sendo que a recorrente discorda já do enquadramento jurídico da decisão quanto ao qual, nos termos expostos, é o tribunal livre. Não há qualquer “excesso” da sentença, assim, improcedendo também a arguição desta nulidade da sentença. São os seguintes os factos a atender[7]: a) A Autora é uma sociedade comercial que tem por objeto a comercialização por grosso e a retalho de produtos e soluções de energia, entre os quais produtos combustíveis; b) Por sua vez, a Ré é uma sociedade comercial que tem por objeto, entre o mais, a organização de leilões de venda de bens em sede judicial, utilizando a designação comercial “C...”. c) Através de um leilão eletrónico organizado pela Ré no âmbito do processo de insolvência de pessoa coletiva 2321/18.7T8STS, do J1 do Juízo de Comércio de Santo Tirso, da Comarca do Porto, a Autora adquiriu um bem imóvel (prédio misto), um alvará (caduco desde 2017) e bens móveis, pelo valor global de 970.000,00€ (novecentos e setenta mil euros); d) Sendo que na divulgação da venda, feita pela ré, constava que se tratava de um “estabelecimento comercial”; e) Os bens em causa são os seguintes: i) Verba 1 - Um prédio misto, composto de edifício de rés do chão com 249 m2, logradouro com 1651 m2 e terreno com 900 m2, sito em .... Descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sobre o n.º ... e inscrito na matriz urbana artigo n.º ..., e na matriz rústica sob o artigo n.º ... da Freguesia ... (...), Concelho de Santo Tirso. ii) Verba 2- O Alvará n.º 3393/P do Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, emitido pela Direção Geral de Energia e Geologia, para explorar uma instalação de armazenagem de produtos, constituída por Posto de Abastecimento de Combustível, destinado a consumo público, associado (alvará de autorização n.º 190/16) da Câmara Municipal .... iii) Verba 3 – Diversos bens móveis. f) Por declaração de 29/01/2023, a Sra. Administradora de Insolvência, nomeada no processo descrito em C), declarou que iria proceder à adjudicação à autora dos bens identificados em D); g) Tendo a escritura de compra e venda dos referidos bens sido outorgada em 29/03/2023, tendo nela intervindo a Sra. Administradora de Insolvência; h) Uma vez concluído o leilão, a Ré imputou à Autora uma comissão do valor de €97.000,00 (noventa e sete mil euros), acrescida de IVA, no valor total de €119.310,00 (cento e dezanove mil trezentos e dez euros), i) Sendo esse valor correspondente a 10% do valor global da venda realizada, acrescido de IVA. j) Percentagem que correspondia à venda, em leilão, de estabelecimento comercial; k) A ré aplica as seguintes comissões pelos serviços prestados: 1) Bens Imóveis: 5% sobre o valor proposto e IVA respetivo (à taxa legal em vigor). 2) Bens Móveis: 10% sobre o valor proposto e IVA respetivo (à taxa legal em vigor). 3) Estabelecimento Comercial: 10% sobre o valor proposto e IVA respetivo (à taxa legal em vigor). 4) Casos específicos serão indicados nas condições específicas do leilão e/ou na área de informação dedicada ao leilão eletrónico e/ou ao produto em concreto.” l) A autora manifestou à ré a oposição a esta percentagem; m) Sendo que a ré informou a autora que o negócio não se realizaria no caso de a Autora não pagar aquela taxa de 10% sobre todos os bens, adjudicando, nesse caso, os bens à segunda melhor oferta; n) Por esta razão, e porque queria concretizar a compra, a Autora entregou à Ré o valor por si peticionado, ou seja, o valor de €119.310,00 (cento e dezanove mil, trezentos e dez euros), mediante transferência bancária realizada em 8 de Junho de 2022; o) Tendo, contudo, feito a ressalva de que o valor em causa não seria devido na sua totalidade pois contradizia às condições estabelecidas pela Ré e as quais foram consideradas pela Autora na participação do leilão e na aquisição dos bens em causa; p) Os bens em causa foram avaliados no âmbito do aludido processo de insolvência, da seguinte forma: i) Verba 1, supra descrita, no valor de €791.837,00 (setecentos e noventa e um mil oitocentos e trinta e sete euros), sendo o prédio urbano avaliado em €791.660,00 (setecentos e noventa e um mil seiscentos e sessenta euros) e o prédio rústico em €177,00 (cento e setenta e sete euros); ii) Verba 2, supra descrita, no valor de €59.388,00 (cinquenta e nove mil e trezentos e oitenta e oito euros); iii) Verba 3, supra descrita, no valor de €118.775,00 (cento e dezoito mil e setecentos e setenta e cinco euros); q) à data da venda judicial dos bens supra identificados, e apesar de ter funcionado no imóvel em causa um posto de abastecimento de combustível, e oficinas) o mesmo já não funcionava naquela data; r) Encontrando-se encerrado e ao abandono, sem atividade comercial, sem produtos e sem trabalhadores; s) Sem casas de banho funcionais; t) E sem equipamento, para alem dos reservatórios enterrados no subsolo; u) Sendo que o alvará já estava caducado. v) A autora viu o seu crédito reconhecido no processo em causa.
Em termos de causa de pedir, a pretensão da A., reconduz-se ao comportamento da leiloeira nomeada em processo de insolvência, alegadamente ilícito, que consistiu na indevida exigência de determinada importância pecuniária, através da ilegal comissão por si cobrada e que foi superior à que constava do Regulamento do Leilão. A venda por leilão electrónico tem a sua disciplina jurídica repartida pelo art. 837.º, do CPC (incluindo a remissão que faz para o regime da venda em estabelecimento de leilão, no seu n.º 3), pela Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto, e pelo Despacho n.º 12624/15, de 09 de Novembro, da Ministra da Justiça; e aplicam-se, em primeiro lugar, as regras estabelecidas na Portaria n.º 282/13, de 29 de Agosto, e no Despacho n.º 12624/15, de 09 de Novembro, da Ministra da Justiça, e só em tudo o que não estiver especialmente aí regulado se aplicando as regras relativas à venda em estabelecimento de leilão. É obrigatória a publicitação da venda em leilão eletrónico na plataforma electrónica, isto é, www.e-leiloes.pt (art. 6.º, do Despacho n.º 12624/15, de 09 de Novembro, da Ministra da Justiça, que afasta as regras da publicidade da venda por propostas em carta fechada, previstas no art. 817.º, n.º 1, do CPC, já que a remissão feita no art. 837.º, n.º 2, do CPC, é apenas para os n.ºs 2 a 4 daquele preceito). Essa publicidade tem menções obrigatórias, destacando-se a natureza do bem, a pendência de oposição à execução ou à penhora, a pendência de recurso, a existência de ónus que não devam caducar com a venda e de eventuais titulares de direitos de preferência manifestados no processo (art. 6.º, n.º 2, do Despacho n.°12624/15, de 09 de Novembro, da Ministra da Justiça). Só podem ser aceites ofertas de valor igual ou superior ao valor base da licitação de cada bem a vender; e, de entre estas, é escolhida a proposta cuja oferta corresponda ao maior dos valores de qualquer das ofertas anteriormente inseridas no sistema para essa venda (art. 23.°, n.º 2, da Portaria n.º 282/13, de 29 de Agosto). Quanto já à responsabilidade pelo pagamento das despesas alusivas à venda, em processo de insolvência, no que concerne a leiloeira, nos termos do art. 51º, nº1, alínea c) do CIRE, “salvo preceito expresso em contrário”, são dívidas da massa insolvente, “[a]s dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente”. Quanto às dívidas emergentes de actos de liquidação particularizam-se aquelas que se prendem com despesas feitas e/ou relacionadas com a venda dos bens apreendidos, que constituíam o património do insolvente. Sabendo-se que compete ao administrador de insolvência a opção sobre a concreta modalidade de venda desses bens – art. 164º, nº1 –, sem prejuízo do formalismo exigido por lei em determinadas situações, mormente a obrigatoriedade de audição do credor – cfr. o nº 2 do mesmo artigo –, pode o administrador ser coadjuvado no exercício das suas funções “por técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, incluindo o próprio devedor, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão” - art.55º, nº3. A intervenção da leiloeira, em sede de liquidação, insere-se nesse contexto, enquadrando-se a sua actuação nesse âmbito, para o que são contratadas pelo administrador, entidade a quem incumbe avaliar da oportunidade dessa intervenção, ainda que sob controlo de outras entidades (comissão de credores ou juiz). Em princípio, as despesas respetivas devem, pois, ser pagas pela entidade contratante, isto é, pelo administrador de insolvência, em representação da massa, constituindo uma despesa ou encargo associado à liquidação, sendo uma dívida da massa insolvente que, à semelhança de outras – por exemplo, as custas do processo e as despesas de administração, em que se inclui a remuneração do administrador –, é paga à cabeça, antes do pagamento dos credores, nos moldes que resultam do art. 172º, nºs 1 e 2 do CIRE. Sem prejuízo do quadro legal assim fixado no CIRE, o certo é que, inúmeras vezes, se verifica que os vários intervenientes – nomeadamente o administrador de insolvência e a comissão de credores, com o assentimento das leiloeiras –, se abstraem desse regime e, colocando-se à margem do mesmo, consolidam prática diferente, a saber, fazem recair diretamente sobre o interessado licitante o encargo de pagamento da comissão da leiloeira, cujo valor é previamente definido, antes da adjudicação, constituindo, aliás, “condição” da adjudicação ao interessado comprador, sendo a venda publicitada nesses termos. Foi o que aconteceu no caso em apreço, como resulta da factualidade dada por assente. Concorda-se em que o comportamento negocial assim assumido – entre o administrador de insolvência, a leiloeira e o adjudicatário do bem – não ofende regime imperativo, não sendo violador dos interesses dos credores da insolvência, antes pelo contrário. Foi esse o entendimento sufragado pelo STJ, no acórdão de 15-01-2013, na base de dados da dgsi, no qual se entendeu, no que ao caso importa, que: «I - Tendo a ré agido como auxiliar do liquidatário judicial na venda por negociação particular com recurso a leilão de um imóvel pertencente ao património de massa falida, não é substancialmente nulo o acordo concluído entre a ré, o liquidatário judicial e a comissão de credores tendente à cobrança pela ré de uma comissão de 10% sobre o preço da venda efectuada, a exigir ao adquirente do bem. II - Considerando que foi dado prévio conhecimento ao autor das condições da venda, nelas incluído o pagamento da comissão à ré no valor de 10% do preço, e que o mesmo as aceitou, adquirindo voluntariamente o bem leiloado e procedendo ao pagamento da quantia estipulada àquele título, não há que restituir ao autor a importância paga. III - A intervenção da ré enquanto auxiliar do liquidatário judicial, independentemente da conclusão do acordo ao abrigo do qual pôde cobrar do autor a comissão ajuizada, não implicou a desresponsabilização do liquidatário, que não deixou nunca de ser o encarregado de venda e de responder perante a comissão de credores nos mesmos termos em que o comitente responde pelos actos do comissário e de estar sujeito, por isso, a responsabilidade civil e a destituição, nos termos do art. 137.º do CPEREF. IV - A comissão de 10% cobrada ao autor não deve ser considerada como remuneração do liquidatário judicial, mas sim como a retribuição dum terceiro que o liquidatário, licitamente e sob a sua responsabilidade, escolheu como auxiliar na venda que lhe competia levar a cabo. V - A regra da precipuidade fixada no art. 208.º do CPEREF significa que o pagamento das custas da falência deve ter lugar antes de todos os créditos, tendo como objectivo assegurar esse pagamento. VI - Tal desiderato da lei não é prejudicado ou inviabilizado pelo acordo em causa, pois ele significa, em termos práticos, não que as custas da falência tenham deixado de ser encargo da massa, mas sim que as partes retiraram das custas a remuneração estabelecida para a leiloeira que coadjuvou o liquidatário, colocando-a a cargo do adquirente, que aceitou comprar nessas condições. VII - Do art. 208.º do CPEREF, em conjugação com os arts. 133.º do mesmo diploma e 1.º do CCJ, resulta que é só a remuneração do liquidatário judicial que, como despesa da liquidação da massa, tem de sair precípua do respectivo produto; não a que ele, mediante prévia concordância da comissão de credores e sob sua responsabilidade, tenha pago à leiloeira que o auxiliou no exercício das suas funções. VIII - O comportamento negocial analisado situou-se dentro dos limites impostos pela lei à autonomia privada e não implicou a violação de nenhuma norma civil de natureza imperativa (arts. 280.º e 405.º do CC)» Sempre se nos afigura então que, neste caso, concluindo-se pela validade do estabelecimento do pagamento do valor/custo ou preço do trabalho realizado pela leiloeira, directamente pelo adjudicatário, por a tanto não se opor o regime legal da venda e pagamentos em sede de processo de insolvência, a solução da questão que nos ocupa tem de passar agora pelos termos da vinculação negocial do adjudicatário. É que, neste caso, a comissão paga à leiloeira não entra nas despesas da massa falida inerentes à venda dos bens. Não é, pois, caso de aplicação do n.º 2 do artigo 172 do CIRE, com o que as despesas com a venda dos bens não são imputadas aos rendimentos da massa. Da análise concatenada do conjunto normativo que se reporta à venda em processo de insolvência podemos concluir que o administrador da insolvência escolhe a modalidade de venda e pode contratar auxiliares, remunerados, em vista do benefício dos credores, sendo que esta remuneração do auxiliar é, em tese ou princípio, um custo da liquidação. Se o administrador contrata uma dada leiloeira, porque desta forma conseguirá vender melhor o bem, em benefício dos credores, a remuneração por aqueles combinada (a comissão) é um encargo da actividade de liquidação. Na realidade, como se disse, os actos da leiloeira inserem-se no âmbito duma relação de comissão e, por isso, são imputáveis ao comitente administrador. Em regra, a leiloeira cobrará do administrador uma vez que o serviço foi prestado a este, em representação da massa, sendo certo que se os credores são os beneficiários, naturalmente terão de suportar os respectivos custos, e daí que a lei defina que são dívidas da massa insolvente as emergentes dos actos de liquidação da massa insolvente. Ademais, porque o recurso aos auxiliares acarreta, normalmente, custos para a massa insolvente, a lei impõe a prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta daquela (artigo 55º, n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). Por outro lado, o acordo relativo à comissão de venda terá sido acordado entre a Sr.ª Administradora de Insolvência e a leiloeira em causa. E foi-o mediante o estabelecimento de que um tal pagamento o seria directamente pelo adjudicatário, na percentagem combinada e anunciada e a acrescer ao valor da venda (esse a integrar a massa). Como é sabido, a comissão de venda não está previamente definida na lei como encargo obrigatório da compra e venda a liquidar pelo comprador. Ora, sem imposição legal, o normal é que seja o vendedor a suportar o custo dela porque é o beneficiário da actividade de procura de interessados na compra, sendo que a referida comissão, remuneração de uma específica actividade, distingue-se dos legais e obrigatórios encargos da compra, como, por exemplo, as despesas da escritura e dos registos. Não é esse o caso sob consideração, como resulta. A referida comissão acordada no contexto referido, foi-o a repercutir na esfera jurídico-patrimonial do adjudicatário. Em causa, pois, uma questão jurídica muito particular e que constitui o único thema decidendi da presente acção, tal como se encontra estruturada a causa de pedir nos autos, e que temos para nós que não se insere no âmbito da temática própria do processo de insolvência, a cuja matéria é estranha, dado não estar em causa um valor ou montante susceptível de afectar a massa, não se reconduzindo, vista a sua natureza estritamente contratual, como se explicitará, a matéria insolvencial. Em causa já, parece-nos, uma pura e simples situação de enriquecimento sem causa, em que o pedido formulado pela A. tem a ver unicamente com a actuação pessoal e ilícita da identificada leiloeira ao beneficiar-se ilegitimamente com um montante de comissão superior ao que o Regulamento do Leilão concretamente lhe permitia, pagando dessa forma o adquirente/adjudicatário mais do que devia haver pago. Reconheça-se já que os potenciais compradores em processo de insolvência agem num quadro de racionalidade económica e acabam por oferecer, nestes casos de convenção de pagamento directo à leiloeira, uma quantia inferior pelos bens a alienar, dado que levam em conta a percentagem “cega” da remuneração a pagar à leiloeira contratada para a prestação de serviço de auxiliar. Basta, com efeito, pensar em bens alienados por centenas de milhares de euros e o reflexo de tal comissão no efectivo preço final a pagar pelo comprador. Contudo, essa questão permanece estranha à massa, na medida em que sempre aceite e integrado o maior (mais alto) valor oferecido pelos bens, não colhendo o argumento usado na sentença recorrida (e nas alegações da Recorrida) de que o deferimento da pretensão da A. corresponderia a uma “modificação” não permitida das condições (mormente de igualdade e lealdade) da venda nos autos de insolvência mesma. É que, para este efeito, o pagamento de um valor inferior de comissão à mediadora não determina que a receita da massa insolvente se veja diminuída, na medida em que foi publicitada como uma das condições de venda o pagamento da comissão à encarregada da venda, perfeitamente pré-definida. Ponto é saber se o valor exigido pela leiloeira o foi aquele a que tinha direito nos termos das condições de venda prévia e tempestivamente anunciadas. Objetivamente, quem se inscreve e participa no leilão está a dar o seu acordo às respetivas condições, ainda que subjetivamente não tome conhecimento dessas condições. Outrossim a declaração negocial é constituída pelo comportamento exterior do agente, tal como é visto por terceiros, tal como ele «aparece» aos olhos dos outros, considerado exteriormente. No caso, concordando-se inteiramente com a sentença recorrida no que concerne ao conceito de estabelecimento comercial, bem assim se tem por adquirido que na insolvência não foi, efectivamente, vendido um estabelecimento comercial… Admita-se já que um estabelecimento incompleto, que não está concluído mas em vias de formação, possa ser transacionado/vendido como estabelecimento, porquanto o que essencialmente importa para chegar à conclusão de que determinada organização constitui um estabelecimento comercial ou industrial é a prova da sua aptidão para entrar em funcionamento, como tal, ou seja, dentro do fim para que foi criado, e não a de que a sua exploração se tenha iniciado já. Neste sentido, vide Vasco Xavier, Locação de estabelecimento comercial e industrial, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 47, pgs. 759 e segs; Ferrer Correia, Contrato de Locação de estabelecimento, contrato de arrendamento de prédio rústico para fins comerciais, contrato inominado, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 47, pgs. 785 e segs. Em sede de quid susceptível de constituir-se como objecto de locação, já se entendeu bem assim poder sê-lo um estabelecimento cuja exploração ainda se não tenha iniciado ou esteja interrompida, conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02/07/92, CJ, Ano XVII, Tomo IV, pg. 231. A lei refere-se em várias normas ao estabelecimento, mas não o caracteriza expressamente. A noção mais concreta do conceito de estabelecimento decorre do artigo 782º do Código de Processo Civil, que se reporta à respectiva penhora, donde resulta que ele é susceptível de integrar bens e direitos de crédito e de outra natureza. Dir-se-á que o estabelecimento comercial ou industrial é a estrutura material e jurídica integrante, em regra, de uma pluralidade de coisas corpóreas e incorpóreas – coisas móveis e ou imóveis, incluindo as próprias instalações, direitos de crédito, direitos reais e a própria clientela ou aviamento - organizados com vista à realização do respectivo fim. A referida estrutura varia, como é natural, em função de circunstâncias diversas, desde logo em razão dos diversos ramos de actividade que operem. Por outro lado, o conjunto dos elementos de determinado estabelecimento comercial ou industrial é variável ao longo do tempo, consoante a vontade do respectivo titular, segundo os seus interesses, em regra condicionados, além do mais, pela evolução da tendência de mercado, pelas necessidades de reestruturação, de especialização ou de economia de meios. O próprio elemento humano que implementa a actividade de cada um dos estabelecimentos também é, naturalmente, susceptível de variar, além do mais, por virtude da utilização de novas tecnologias. Em síntese: organização económica, composta por um conjunto de bens de variada natureza (coisas corpóreas, móveis e imóveis, e incorpóreas ou imateriais), erigida pelo comerciante para esse fim. A essa organização, que é um valor novo, diferente da soma dos elementos integrantes, considerados atomisticamente, dá-se o nome de estabelecimento comercial (Ferrer Correia, «Reivindicação do Estabelecimento Comercial Como Unidade Jurídica», Estudos de Direito Civil, Comercial e Criminal, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 1985, p. 256). Neste sentido dizia-se, no § 3.º do art. 118.º, do Código da Propriedade Industrial aprovado pelo Decreto n.º 30 679, de 24.08.1940, para efeitos de transmissão de marcas registadas independentemente do estabelecimento, que este consistia na «universalidade constituída por loja, armazém, fábrica, adega ou local de exploração de qualquer indústria ou comércio e todo o seu activo e passivo, inclusive direito à locação, chave, nome, insígnia, clientela e outros valores». Esta era a mais perfeita noção que o nosso direito positivo continha do estabelecimento comercial, havendo mesmo quem lhe atribuísse validade geral (cf. Pupo Correia, Direito Comercial, 3.ª ed., Lisboa, 1994, p. 184, e Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, Coimbra: Almedina, 1996, p. 486). Um estabelecimento comercial é, ao fim de contas, uma empresa. Ora, como desde logo salientava Orlando de Carvalho (Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Ferrer Correia, pag. 4 a 31), depois de anotar que a empresa é, antes de tudo, um processo produtivo, a empresa é necessariamente uma estrutura, isto é, um complexo organizado de meios ou de factores com o mínimo de racionalidade e estabilidade que lhe garanta o mínimo de autonomia funcional (ou técnico-produtiva) e financeira (ou económico-reditícia) que lhe permita emergir na intercomunicação das produções (ou no mercado, lato sensu). Paulo Tarso Domingues (Revista de Direito e Economia, Anos XVI a XIX, 1990 a 1993, pag. 547) explicita ainda: “… Se é verdade que a empresa é uma organização (enquanto reunião, combinação e coordenação de factores produtivos que permite e visa, nos termos atrás referidos, a conclusão de um determinado processo produtivo), ela não se configura como uma organização abstracta. Ela é uma organização concreta, realizada, de factores produtivos que não têm necessariamente de ser bens corpóreos, muito embora ela suponha normalmente um conjunto, mais ou menos amplo, de elementos (mobiliário, máquinas, etc.) que a corporizam e sensibilizam, sendo, por isso, incorrecto concebê-la, num puro plano organizatório, como um bem incorpóreo puro. A segunda nota é que se empresa/organização supõe normalmente, como se disse - um determinado lastro corpóreo, (maior ou menor), i.e., um certo número de bens que a corporizam (que têm ou podem ter autonomia económica e jurídica, podendo por isso, isoladamente serem negociados), ela, contudo, não se confunde nem se identifica com tais bens, nem sequer, com a soma dos mesmos. A empresa tem outros elementos (despidos de autonomia jurídico-económica, como sejam o crédito, o bom nome, etc.), que são valores novos, sui generis, próprios da empresa (que resultam da complementaridade e da combinação dos diversos factores que a constituem) que se impõem, no mercado, como valores de acreditamento diferencial (valor de acreditamento enquanto valor de confiança pública, de confiança do público naquela empresa; diferencial, porque marca a diferença e diferencia aquela empresa relativamente a outras) e que, nesta medida, afirmam a empresa como um valor de posição no mercado. (...).” O estabelecimento, que no plano jurídico é também designado, em sinonímia, como empresa é, pois, um complexo organizado de bens ou serviços, juridicamente uma universalidade, actuante ou apta a entrar em movimento, relacionando-se com o público, a sua clientela, apta a gerar lucros.” Diverge-se na doutrina quanto à consideração do estabelecimento como universalidade de facto, de direito, ou mista. E este respeito, Antunes Varela (RLJ, Ano 115, pag. 252, nota 1.) afirma que “o termo “estabelecimento” tem um duplo significado: na linguagem corrente ou popular, significa a loja, o imóvel, as instalações materiais em que as mercadorias são colocadas para venda ao público: quando usada no seu sentido técnico-jurídico, aquela palavra designa a unidade ideal, complexa e abstracta, inserida em qualquer sector da actividade industrial ou comercial que abrange, além da sede, muitos outros elementos, corpóreos e incorpóreos, as mercadorias, os utensílios e equipamentos que, em cada momento se encontrem nas instalações próprias ou arrendadas”. Os mais relevantes juristas portugueses têm considerado o estabelecimento como “unidade jurídica”. (Assim Pinto Coelho, in Trespasse do Estabelecimento e a Transmissão das Letras, Coimbra, 1946, pp. 11-12, 19-23, Barbosa de Magalhães e Ferrer Correia, in Reivindicação...pag.. 206 e segs). Pode haver lugar a transmissão, mormente venda, de estabelecimento mercantil desde que à data do contrato ainda exista um valor negociável como estabelecimento e, portanto, distinto do prédio ou equipamentos, e que tenha sido esse o valor que as partes quiseram efectivamente negociar. Dando por resolvido o problema do critério definidor do que seja um estabelecimento comercial, a transmissão deste implica a determinação do âmbito mínimo e necessário da respectiva entrega. Por outro lado, tendo o estabelecimento comercial uma compreensão elástica, o âmbito mínimo é constituído pelos elementos (bens ou conjuntos de bens) cuja presença é essencial para que se possa falar de estabelecimento em termos de, na respectiva ausência, a transmissão se restringir aos concretos bens ou conjuntos de bens, não ao estabelecimento. Um estabelecimento comercial implica a reunião de certos elementos imprescindíveis ou essenciais - o seu âmbito mínimo ou necessário - que funcionam como limite à liberdade de exclusão das partes em todas as circunstâncias e que, se forem ultrapassados (isto é, se as partes no exercício da sua liberdade e autonomia negocial o não respeitarem, excluindo da negociação do estabelecimento certos dos seus elementos) não haverá estabelecimento nem transmissão. Só esse âmbito mínimo do estabelecimento é que tem de ser transferido para que o estabelecimento (ou a sua exploração) se transfira; "caso contrário, inexiste a própria essência do estabelecimento e, por via disso, a sua idoneidade para prosseguir uma certa finalidade, para cumprir um determinado destino. São, pois, os essentialia do estabelecimento" (Cfr. Remédio Marques, Direito Comercial, 1995, p. 486). Para além do âmbito mínimo, o estabelecimento pode ser transmitido com outros bens ou valores que ele naturalmente abrange; o âmbito natural ou normal do estabelecimento é integrado pelos bens ou valores que o estabelecimento transporta naturalmente consigo, sem dependência de uma concreta enunciação. São os naturalia do estabelecimento porque o acompanham sempre que o respectivo titular dele dispõe, sem qualquer outra reserva ou exclusão. E também o âmbito máximo quando, para além do âmbito mínimo e natural, o estabelecimento é integrado também por bens ou valores que são elementos acidentais e excepcionais expressamente referidos para serem abrangidos pela transmissão. (Cfr. Orlando Carvalho, Critério e Estrutura do Estabelecimento Comercial, vol. I, p. 478 e segs; Remédio Marques, op. cit, p.486-487). Com efeito, o estabelecimento não é apenas um conjunto atomístico de bens e meios (factores produtivos) de que um comerciante se serve para exercer a sua actividade comercial, mas sobretudo a organização desses bens e meios para intervir no mercado, quer a montante (relações com fornecedores) quer a jusante (relações com a clientela) e gerar lucros através da combinação óptima daqueles bens e meios. Como escreve o Prof. Cassiano Santos: "o estabelecimento é a um tempo organização de meios dirigida ao mercado e valor de relação nesse mercado, mas esses dois aspectos ligam-se umbilicalmente: a organização é estabelecimento na medida em que é organização preparada para a relação com o exterior, e o valor na intercomunicação produtiva só existe na medida em que é referido à concreta organização. Só nessa dupla qualidade ele adquire um valor diferente dos demais no mercado" (Cfr. Direito Comercial Português, voI. I, 2007, p. 287). Importando, para o nosso caso, saber até quando existe um estabelecimento comercial, pode responder-se que tal ocorre quando, apesar da cessão da actividade actividade, se mantém a projecção para o exterior da organização com autonomia no tráfico económico. "Quando a organização eficiente se projecta para o exterior e se apresenta na intercomunicação produtiva, havendo já uma percepção do novo actor no tráfico, ainda que difusa, surge o aviamento-organização, que é uma qualidade do estabelecimento incindível dele e não é, pois, um factor produtivo (mas um resultado já da conjugação por certo modo dos factores produtivos). O aviamento-organização não implica necessariamente aptidão para funcionar, isto é, para actuar de imediato a actividade produtiva: ele existe logo que é reconhecível no mercado um novo sujeito-organização com certa eficiência, organização essa que não tem que ser completa ou sem falhas - podem faltar alguns bens para que a empresa possa de facto funcionar. E a empresa pode até não ter ainda entrado em funcionamento ou estar encerrada - ponto é que assuma já uma identidade no mercado ou a não tenha perdido, conforme os casos" (Cfr. Filipe Cassiano dos Santos, ob cit, p. 290). Volvendo ao nosso caso, implicando a venda ou transmissão do estabelecimento uma prestação que se analisa numa obrigação de entrega de algo, o que importa apurar é a dimensão e extensão desta prestação, ou seja, saber se esse "algo" pode ser constituído apenas pelo direito de propriedade quanto a um, rectius, dois prédios e múltiplos equipamentos, nos quais e com os quais funcionou, mas já não funcionava, um estabelecimento comercial, apresentando-se ele sem licença administrativa de funcionamento/utilização, caduca e insusceptível de renovação sem a realização de uma série de obras tendentes a dotar os imóveis de condições legalmente exigidas para a actividade em apreço (assim casas de banho, desde logo); por outras palavras, se o estabelecimento pode ser constituído apenas pelo espaço em bruto onde vai funcionar e por uns quantos equipamentos... Só por ironia se pode afirmar que uma realidade destas constituía um estabelecimento comercial... Sem dúvida que o espaço e equipamentos integram o âmbito mínimo do estabelecimento, mas não basta; é necessário que o local estivesse preparado e predisposto para "receber" o estabelecimento e para reiniciar aí a actividade, o estabelecimento não é só um valor de organização; é também um valor de posição e de relação no mercado. O que seguramente não acontece no caso em apreço. Por isso, concordamos com a sentença recorrida, no que à descaracterização do objecto da venda efectivamente realizada na insolvência como reconduzível a um estabelecimento comercial. Se no local funcionou, mas já não funciona e não pode funcionar sem modificações estruturais e de monta, um estabelecimento comercial, sendo o activo transmitido insuficiente a uma exploração mercantil, de modo algum é lícito configurar tal realidade como um estabelecimento susceptível venda/transmissão, pois que tal realidade, só por si, não representa nem configura qualquer optimização de factores produtivos; como se disse, é um dos elementos mínimos do estabelecimento, mas não é um estabelecimento. A tese de que o estabelecimento não deixa de existir pela interrupção da actividade está correcta se ponderarmos que o local continua adequado e apto para retomar a actividade, dispondo ou podendo dispor facilmente dos meios e bens normalmente utilizados nesta; é o caso do estabelecimento temporariamente encerrado em que o encerramento não equivale a um "nada". Como refere - e bem - o Prof. Ferrer Correia, já referido, não é essencial para que determinada organização seja havida como estabelecimento comercial que a respectiva exploração se tenha inciado já, bastando que tal organização se encontre apta a funcionar como tal. Mas, no caso em apreço, o local, atento o seu descrito, na matéria assente, estado e situação jurídica, o alvará ou licença caduco, não estava apto a funcionar como estabelecimento. A inexistência de estabelecimento reconduz a comissão devida pelo adquirente adjudicatário a um valor inferior, nos termos do anúncio mesmo e, assim, dos termos da proposta pela Ré leiloeira… E não se obste que a leiloeira se limitou a publicitar um estabelecimento por ter sido esse o objecto cuja venda foi ordenada nos autos de insolvência, em termos de não ser susceptível de reconhecimento a realidade mesma, nos termos expostos, a de que não se vendeu nenhum estabelecimento, mas uma série de bens que integraram o activo de um, entretanto extinto. Com efeito, a qualificação dos contratos assenta nas prestações a que efectivamente as partes se obrigaram e não no nomen iuris com que os sujeitos o designaram; este, quando muito, constituirá o ponto de partida, mas nunca o critério decisivo, da interpretação. Certo que, literal e enunciativamente, como tal foi anunciada a venda, i.é., como venda de estabelecimento comercial/armazém/equipamentos. Contudo, os próprios termos do anúncio, da responsabilidade já da leiloeira, excluíam essa realidade, como emerge da menção mesma à caducidade do alvará… Reconheça-se também que a própria identificação das verbas e a admissão (não obstante a menção à venda de estabelecimento comercial) da venda em separado das verbas em que o estabelecimento estava afinal “desintegrado” revela o conhecimento por todos de não ser objecto da venda um/o estabelecimento, como um todo autónomo e funcional, mas as diferentes e autonomizadas verbas que o tinham composto ou constituído. E sempre a pertença da adjudicatária ao universo dos credores reclamantes e, com isso, o previsível conhecimento da situação de extinção/evicção/morte do estabelecimento não determina que, por não ter oportunamente “reclamado” ou suscitado a questão nos autos de insolvência mesmos tivesse reconhecido a existência de um estabelecimento… Pense-se ad absurdum no anúncio da venda de um veículo Ford anunciado como um Ferrari, mas cuja matrícula e fotografias do anuncio revelassem a sua real marca… Não teria a leiloeira a veleidade de se reconduzir à venda de um veículo de luxo, certamente. É que, finalmente, não se verifica também que a realidade de não estar em causa uma venda de um estabelecimento (pese embora a alusão genérica a ela) fosse do desconhecimento da leiloeira, vistos agora os termos e as fotos constantes do anúncio. Todos, administrador, leiloeira e propoente/adjudicatário, como demais proponentes, sabiam, por emergir agora do anúncio da venda mesma, o que estava a ser vendido e que não era já um estabelecimento comercial. Sempre a leiloeira se dedica profissionalmente à actividade da venda em leilão, com o que sobre si recaindo o ónus de se informar/inteirar e verificar da natureza dos bens cuja venda anuncia, como condição aliás de uma publicitação honesta e leal, que não faça perigar a validade da venda insolvencial, designadamente por erro ou vícios da vontade dos proponentes. Tem-se, consequentemente, por excessivo, por não se reconduzir ao preço por si mesma anunciado para o serviço, o valor de comissão cobrado pela Ré. Perante esta factualidade essencial, a Autora era a titular passiva das obrigações que o leilão colocava sobre quem participasse no leilão, entre as quais constava o pagamento da comissão da leiloeira, nos precisos termos ali anunciados. Não tendo sido vendido um estabelecimento comercial a comissão a satisfazer não pode ser calculada segundo a percentagem correspondente, pelo que não era devida a que foi cobrada como condição da adjudicação. Por outro lado e finalmente, a A., entidade adjudicatária, não obstante ter procedido ao pagamento da comissão exigida pela leiloeira, não pode, em face da matéria provada e vistas as comunicações juntas aos autos, dizer-se aceitou pagar essa comissão, sendo que sempre questionou ter-se vinculado nesses termos. O comportamento agora assumido, no sentido de que não é devida a comissão, não se vislumbra, pois, contraditório com aquele que anteriormente tomou no processo sendo, por isso, merecedor de proteção jurídica, não se apresentando como violador do princípio da confiança, na vertente do venire contra factum proprium. O credor adjudicatário não manifestou ou exteriorizou o seu assentimento, perante o administrador de insolvência e o seu auxiliar, no pagamento da comissão exigida pela leiloeira, suscitando até, juridicamente e com insistência, a questão da natureza do objecto da venda, com o que não pode haver-se o pagamento sob protesto quanto à matéria alusiva à comissão devida à leiloeira, como uma situação objetiva apta a gerar confiança no administrador de insolvência ou no seu auxiliar, a leiloeira, de que não viria a reclamar a restituição do que entendia estar a ser-lhe exigido indevida e ilegitimamente. Ora, É sabido que o enriquecimento sem causa constitui, no nosso ordenamento jurídico, uma fonte autónoma de obrigações e que assenta na ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se à custa alheia. Ou seja, na base desse instituto encontram-se situações de enriquecimento sem causa, de enriquecimento injusto ou de locupletamento à custa alheia. Instituto esse que entre nós encontra a sua consagração legal no artº 473 do C. Civil, ao dispor-se que “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou” (nº 1) e que “a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou” (nº 2). Como decorre do princípio geral ínsito no citado o citado artº 473, nº 1, do CC, e na esteira do que escrevem os profs. Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., págs. 427/431), a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à coisa alheia pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes três requisitos: a) É necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento. Enriquecimento esse que consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, tanto podendo traduzir-se num aumento do activo patrimonial, como numa diminuição do passivo, como, inclusive, na poupança de despesas. Enriquecimento (injusto) esse que tanto poderá ter a sua origem ou provir de um negócio jurídico, como de um acto jurídico não negocial ou mesmo de um simples acto material. b) Em segundo lugar, a obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa (quer porque nunca a tenha tido, quer porque, tendo-a inicialmente, a haja entretanto perdido). É sabido que o conceito de causa do enriquecimento não se encontre definido e que a causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do acto que lhe deu origem. Devendo, todavia, funcionar como directriz geral, em todos os casos, a ideia de que o enriquecimento carece de causa justificativa quando, segundo a lei, deve pertencer a outra pessoa. Ou seja, e por outras palavras, o enriquecimento carecerá de causa sempre que o direito não o aprove ou consente, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida (a favor do enriquecido e à custa do empobrecimento de alguém), isto é, que legitime o enriquecimento. Numa definição mais formal, e nas palavras do prof. A. Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina Coimbra, 4ª ed., pág. 408) o enriquecimento será injusto quando, segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito, ele deve pertencer a outra pessoa. Dado que a lei não define tal conceito, e dada a natureza diversa da fonte de que pode emergir, tal significa que o enriquecimento injusto terá sempre que ser apreciado e aferido casuisticamente, interpretando e integrando a lei à luz dos factos apurados. c) Por fim, e em terceiro lugar, a obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição. A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduz-se, como regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro. O benefício obtido pelo enriquecido deve, pois, resultar de um prejuízo ou desvantagem do empobrecido. Daí que se postule a necessidade de existência de um nexo (causal) entre a vantagem patrimonial auferida por um e o sacrifício sofrido por outro. A propósito deste último requisito, tem gerado controvérsia o saber se se torna ou não ainda necessário que a vantagem económica do enriquecido deva ser obtida imediatamente à custa do empobrecido. Questão essa que resulta do facto de a relação entre o enriquecimento e o seu suporte por outrem poder ser directa ou indirecta, dado que a deslocação patrimonial para o enriquecido tanto poder ocorrer ou ser conseguida por via directa ou com via indirecta/reflexa. Vem, contudo, ganhando predominância a corrente doutrinal que amplia o referido requisito no sentido de exigir que, além de uma vantagem obtida à custa de outrem, se torna ainda indispensável, para que haja lugar à obrigação de restituição, que haja uma unidade do processo de enriquecimento, ou seja, uma deslocação patrimonial directa – no sentido de que entre o acto gerador do prejuízo do empobrecido e a vantagem conseguida pela outra parte não deve existir qualquer outro acto jurídico. Ou seja, para que haja à obrigação de restituir torna-se ainda necessário que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga ao direito à restituição, por forma a não dever haver de permeio, entre o acto gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro qualquer acto jurídico. A isso designa a doutrina alemã por carácter imediato da deslocação patrimonial[8]. Por sua vez, dispõe o artigo 474 do CC que “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”. Resulta, pois, de tal normativo que a acção baseada nas regras do instituto do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, só podendo a recorrer-se a ela quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reacção (o que, no fundo, funcionará como um novo pressuposto ou requisito legal para o recurso à acção de restituição com base no instituto do enriquecimento sem causa) Como escrevem os profs. Pires de Lima e Antunes Varela (Ob. cit., pág. 433) “a subsidiariedade da acção de enriquecimento tem, no entanto, de ser entendida em termos hábeis. Pode originariamente a lei não permitir o exercício da acção de enriquecimento, em virtude de o interessado dispor de outro direito e, posteriormente, facultar o recurso àquela acção, em consequência da caducidade desse direito”. Por fim, dir-se-á que constitui entendimento claramente prevalecente no sentido de que, à luz do artº 342, nº 1, é sobre o autor (alegadamente empobrecido) que impende o ónus de alegação e prova dos correspondentes factos que integram cada um daqueles requisitos, ou seja, de todos aqueles pressupostos legais que integram o referido instituto. (Vide, por todos, o Ac. do STJ de 14/7/2009, proc. 07B2156, na base de dados da dgsi). Estão in casu, verificados os requisitos e/ou pressupostos legais do instituto do enriquecimento sem causa. Assim é que a Ré recebeu da Autora quantia a que não tinha direito nos termos do anúncio/condições da venda que publicitou e levou a cabo, como auxiliar do liquidatário da insolvência, posto que em percentagem superior à anunciada para os bens efectivamente transmitidos/vendidos. Mediante a exigência daquela quantia, como condição para a outorga da venda, a Autora viu consequente e necessariamente, o seu activo diminuído, sem causa justificativa. É assim, a nosso ver, patente que, in casu, ocorreu um enriquecimento da ré à custa de um correlativo e imediato/directo empobrecimento da autora. E tal vantagem patrimonial obtida pela ré mostra-se totalmente injustificada, isto é, carece causa de justificativa. Por fim, afigura-se-nos que in casu nenhum outro mecanismo legal está reservado à A. para obter da Ré a restituição de tal quantia. Face ao exposto, é de concluir, assim, mostrarem preenchidos todos os requisitos ou pressupostos legais que permitem à A. obter da ré, com base no instituto do enriquecimento sem causa, a restituição da quantia de €48.698,41 de que ficou privada, e de que, sem causa legítima, aquela beneficiou (cfr. ainda artº 479 do CC). Para além da restituição dessa quantia pede ainda a autora que ela seja ainda acrescida de juros, à taxa supletiva legal civil, contabilizados desde a data de 08.06.2022, data esta que considerou como sendo aquela que a ré se enriqueceu à sua custa. Certo já que a autora tem direito a juros (de mora), face ao que se encontra, a esse propósito, especial e expressamente, consagrado no corpo do artº 480 do CC. Todavia, o direito ao recebimento dos juros só ocorrerá, nos termos do estipulado nesse normativo, depois de se verificar algumas das seguintes circunstâncias: a) Ter sido o enriquecido citado judicialmente para a restituição; b) Ter ele conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento ou da falta do efeito que se pretenda obter com a prestação. (Vide ainda, a propósito, e entre outros, Acs. do STJ de 27/9/99 e de 2/5/1985, in, respectivamente, “CJ, Acs. do STJ, Ano VII, T2, pág. 127”; e “BMJ nº 347 – 370”). Ora, manifesto que a Ré não estava convencida da falta de causa do seu enriquecimento quando exigiu o pagamento da comissão em excesso, os juros só são devidos – à taxa supletiva legal estipulada para os juros civis – a partir da data da sua citação para esta acção. Termos, pois, em que por tudo o exposto, se terá, no parcial provimento do recurso, de revogar a, aliás, douta sentença da 1ª instância, e condenar a ré nos termos sobreditos.
III. Assim, em face do exposto, e no parcial provimento do recurso, acorda-se em: a) Revogar a sentença da 1ª instância. b) Julgar parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenar a Ré a pagar/restituir ao autor, a quantia de €48.698,41, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal dos juros das obrigações civis, vencidos desde a data da sua citação para a acção e vincendos e até ao seu integral pagamento/restituição. Custas da acção e do recurso pela ré/apelada e pelo autor/apelante, na proporção do respectivo decaimento (quanto aos juros vencidos desde 08.06.2022). Notifique. |