Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | CARLA CARECHO | ||
Descritores: | CRIME DE BURLA CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PRESUNÇÕES JUDICIAIS ENRIQUECIMENTO PREJUÍZO PATRIMONIAL TRIBUNAL CRIMINAL DECISÕES JUDICIAIS RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS FUNDAÇÃO PEDAGÓGICA PRINCÍPIO DA SUBSIDARIEDADE | ||
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Nº do Documento: | RP20250108205/22.3T9PFR.P1 | ||
Data do Acordão: | 01/08/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO. | ||
Indicações Eventuais: | 4. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Há que afastar a tentação, aliás proibida pelos princípios da dignidade humana e da presunção de inocência (artigos 1º e 32º, n.º 2 da CRP), de dar como provados os factos atinentes ao elemento subjectivo do crime imputado a partir da “falta de verdade” do arguido. A mentira do arguido não faz prova da verdade do facto contrário. II - O enriquecimento injusto terá sempre que ser apreciado e aferido casuisticamente, interpretando e integrando a lei à luz dos factos apurados. III - O prejuízo patrimonial não se confunde com a indisponibilidade imediata e momentânea sobre uma qualquer quantia monetária. IV - Importa que os tribunais criminais, em certas situações particulares, assumam (também eles) uma “função pedagógica” e em consonância afastem a aplicação do direito penal da resolução dos conflitos que se geram na sociedade, tendo na mira o princípio da subsidiariedade do direito penal, sobretudo quando os pretensos ofendidos omitem condutas proactivas na resolução dos problemas. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 205/22.3T9PFR.P1
(Recurso Penal)
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo Local Criminal de ...
Relatora: Juíza Desembargadora Carla Carecho 1ª Adjunta: Juíza Desembargadora Maria João Lopes 2ª Adjunta: Juíza Desembargadora Maria Dolores da Silva e Sousa *** Sumário …………………………………………. …………………………………………. ………………………………………….
*** Acordam, em conferências, as Juízas Desembargadoras da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO Nos autos de Processo Comum Singular nº 205/22.3T9PFR, do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo Local Criminal de ..., por Sentença de 23.05.2024, foi decidido condenar o arguido AA a) na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 10,00€ (dez euros), pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 1, “ex vi” artigo 202.º, al a), todos; b) na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 10,00€ (dez euros), pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.º, al. a) e 256.º, n.º 1, al. d), e) e f), do Código Penal; c) operar o cúmulo jurídico das penas referidas em a) e b) e, em consequência, fixar a pena única em 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 10,00€ (dez euros), o que perfaz o total de 1.800,00€ (mil e oitocentos euros); d) condenar o arguido no pagamento das custas processuais, cuja taxa de justiça se fixa em 2 UC’s, nos termos do artigo 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa. - Não se conformando com o teor da Sentença condenatória, da mesma interpôs Recurso, extraindo das motivações apresentadas, as seguintes Conclusões (transcrição): “(…) 2. O presente recurso tem como objeto o reexame da matéria de facto e de direito, considerando o recorrente que o Tribunal a quo ponderou, a seu ver, incorretamente, a prova produzida em audiência de julgamento bem como fez uma errada interpretação/aplicação desses tipos legais – arts. 410º, nºs 1 e 2 Alíneas A), B) e C) do C.P.P.. 3. É mister que a valoração (livre) da prova produzida em Tribunal atenda à envolvente social, histórica, pessoal e económica do caso concreto, recorrendo, em primeira mão, às regras da experiência comum, ao bom senso, à diligência do homem médio e, bem assim, às presunções judiciárias para integrar as declarações e prova documental que sirva, pelo menos, como princípio de prova. 4. Nesse trabalho integrativo e lógico-racional, a dúvida do julgador não pode funcionar em prejuízo do arguido, prevalecendo o princípio in dubio pro reu como afloramento do princípio da presunção de inocência (art. 32º CRP) 5. A persistência da dúvida razoável após produção de prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir sempre à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido – neste sentido, Acórdão Relação Porto 6/1/2010, P. 60/09.9AGRD.C1, relator Jorge Dias, in www.dgsi.pt) 6. O princípio in dubio pro reu aplica-se sem qualquer limitação e portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação mas também às causas de exclusão de ilicitude (vg. legítima defesa, convicção do exercício de um direito) e de exclusão de culpa. Este princípio é o correlator processual da exclusão do ónus da prova. 7. Ressalta, de forma límpida, do texto da sentença não ter o Tribunal, após reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, adquirido a certeza (convicçãopositiva ou negativa) sobre os seguintes factos: a) “ficando, assim, este tribunal sem saber quando ocorreu a aludida conversa [em que a ofendida terá dito ao arguido que “quem paga é quem perde”], se em 2020, se antes do requerimento de alteração do iban, se depois, se apenas em 2021 ou noutra data, daí que se tenha dado como não provados os factos B a F”- cfr. pág.14 sentença; b) “Não se ignora que, de facto, é de estranhar que a ofendida não tenha recebido a carta na morada indicada a fls. 48 e pelos motivos por si expostos em audiência de julgamento, desde logo pelo facto de a queixa apresentada que deu origem a estes autos, nela se fazer constar a mesma morada, quando a ofendida disse que já lá não morava desde 2016” – cfr. pág. 14 sentença; c) Em pormenor quanto ao facto I, “este Tribunal ficou com dúvidas se efetivamente a carta foi devolvida, por recusa em receber da parte da ofendida, tanto mais que a própria referiu que já lá não residia desde 2016. Assim, na dúvida, não tinha este tribunal outra solução que não fosse considerar como não provado.” -cfr. pág. 18 sentença 8. Por sua vez, ressalta do mesmo texto, a convicção do mesmo sobre os factos imputados, apesar da dúvida razoável sobre os anteriores. 9. Duvidando o Tribunal a quo que a ofendida não tivesse recebido as cartas na morada que indicou na participação crime, e, o momento temporal em que ela proferiu a expressão “quem paga é quem perde” (que a própria confirmou que disse), o depoimento da ofendida – meio de prova que clamou de coerente e seguro, “apesar da animosidade” (cfr. pág. 14 sentença) – saiu fragilizado, pelo que não poderia ter sido valorado em desfavor do arguido, mas, ao contrário, conduzir à consequência imposta por se ter logrado a prova completa dos factos provados de 22 a 29, circunstâncias favoráveis ao arguido, extraindo daí as devidas ilações, ou seja, a provados pontos B a G dos factos não provados e retirados dos factos provados os pontos 6, 10 parte final do no segmento “fazendo-as suas, apesar destes as terem reclamado”, e pontos 10 a 21 dados como não provados. 10. As contradições encontradas no depoimento da ofendida e as dúvidas levantadas pelo próprio Tribunal quanto a alguns pontos relevantes do mesmo não podem servir, isoladamente (já que nenhum outro meio de prova o corroborou) para a base da formação da convicção do Tribunal, sobretudo quando vão contra as regras da experiência comum. 11. No caso concreto, é essencial saber, não só como se desenvolveu a ação, mas sobretudo a motivação por detrás dos acontecimentos, e o grau de lesão dos bens jurídicos protegidos. 12. As declarações do arguido revelaram-se perfeitamente consentâneas com as regras da normalidade e da experiência comum. O arguido colocou em causa o depoimento da ofendida, tendo as suas declarações sido corroboradas, no essencial, pelas do seu colaborador, testemunha BB, e pelas testemunhas CC e DD, tendo todos devidamente circunstanciado, ao contrário da ofendida que o fez de forma vaga e incoerente, o tempo, modo e lugar das conversas havidas com a ofendida por referência às suas vivências profissionais, dinâmica processual do mandato e documentos processuais, mais referindo, sem hesitação, saberem que a ofendida se havia recusado a pagar o que quer que fosse. 13. Por sua vez, conforme bem traduzem as transcrições das declarações da ofendida, a mesma dá, várias vezes, “o dito pelo não dito”, com sinopses nos acontecimentos e na sua cronologia, verificando-se confusão na cronologia dos factos, das conversas (e do seu teor) que teve com cada um dos intervenientes – vg. Tanto disse que pediu como não pediu contas (porque nada devia), que falou com o “Dr.” Ao telefone e afinal não, foi com a solicitadora, podendo-se questionar até com que “Dr. “a mesma falou, já que procurou outro advogado em 2019, numa altura em que osprocessos não estavam acabados e não tinha revogado a procuração. 14. O seu depoimento é, pois, falso, inconsistente e, por isso, não credível para ser valorado isolada e primordialmente como meio de prova único para sustentar a acusação. 15. As transcrições trazidas ao presente recurso, em interpretação harmonizada com o constante nos pontos 22 a 29 dos factos provados, a que acrescem as dúvidas explanadas na motivação da sentença suscitam, assim, as seguintes incoerências e/ou contradições insanáveis: a) a sentença, por um lado, declara provado que o arguido manifestou à ofendida, por escrito, pelo meio habitual de contacto entre os dois, e por mais de uma ocasião, a sua intenção em não ter em seu poder a quantia transferida e, que o arguido reconheceu, nas suas declarações, que efetivamente quis criar as condições para exercer o direito de retenção e que agiu sempre com o fito de ver as quantias monetárias “do seu lado”, de modo a sentir-se garantido quanto à falta de pagamento de honorários (cfr. pág. 12 sentença) e, a final, dá como provada a intenção do mesmo em enganar astuciosamente e enriquecer ou obter um benefício patrimonial com a transferência, considerando não provadas as alíneas B, I, J dos Factos não provados, dando como provados, assim, dois factos manifestamente contrários entre si; b) a sentença por um lado, declara que a ofendida admitiu que disse ao arguido, via telefone, “quem paga é quem perde” (cfr. pág. 14 sentença) e, a final, vem dar como não provado as alíneas C e F dos F. não provados, existindo assim contradição entre a fundamentação e a decisão de facto; c) é ininteligível a resposta “não provada” às alíneas B, C, D, E, F, G dos Factos não provados, porquanto resultam contradições das declarações da ofendida: tendo aquela declarado que falou, em 2019, com o arguido - momento em que, alegadamente, soube por ele que tinha que esperar o desfecho dos processos para receber €5.000 – bem como declarado que, em 2019, procurou outro advogado que lhe disse que os processos tinham terminado em 2018 (cfr. declarações da ofendida – minutos 15:24 e 58:23) e, só em 2021 (pág. 13 sentença) e, em ato deliberado e pré orientado, sem cuidar de falar previamente com o arguido (como declarou), tenha, como primeiro e imediato ato, procurado o Banco para saber se existia alguma transferência e, logo a seguir, a solicitadora de execução, daqui decorre que, tal como declarou o arguido, em 2019, aquela nunca esteve no escritório e o arguido nunca lhe poderia ter dito que nada tinha a pagar porquanto, como comprovam os documentos do processo executivo, em Dezembro 2019 o passeio ainda ia ser reconstruído e o processo apenas se extinguiu formalmente por despacho da solicitadora de execução de julho de 2020, a saber, a seguir aos telefonemas de Abril e Maio de 2020 e ao envio das cartas em julho 2020. d) Ora, de duas, uma: a) ou a ofendida recebeu as cartas e emails onde se referia a retenção do dinheiro, ou, b) a ofendida falou, em maio de 2020, com o arguido. E, em qualquer destas situações, só se pode concluir que o arguido informou a ofendida dos honorários e da retenção do dinheiro! e) é inverosímil que, uma cliente informada e avisada pelo próprio advogado de que tinha dinheiro a receber – e necessariamente, uma conta de honorários a pagar – mas, sobretudo, “sendo habitual e frequente” falar por telefone e/ou email com o seu advogado (o aqui arguido), não tenha tido o cuidado de informar de novo email e de se informar de honorários a pagar ou esclarecer as suas dúvidas junto do arguido no seu escritório ou por telefone – já que o pôde fazer, presencialmente, junto do Banco e da Solicitadora de Execução. f) é inverosímil que uma cliente, de boa-fé, em nenhum momento diligenciasse em procurar o seu advogado e, ao invés, se fosse inteirar com o Banco e com a Solicitadora se existia alguma transferência em seu nome, quando a última informação que alegadamente havia tido era a de que teria que aguardar o desfecho dos processos para receber €5.000. g) Tendo resultado provados os pontos 26 a 29 é mais verosímil e convincente, à luz da experiência feita mas, sobretudo, dos usos e costumes ou “envolvência social, histórica e pessoal” destas pessoas em concreto (que trataram durante mais de 20 anos de vários processos judiciais “à distância”) o comportamento de quem envia, para a mesma morada que a ofendida deu na queixa apresentada nos presentes autos (e para o email trocado entre ela e o advogado durante anos seguidos), cartas que vieram devolvidas mas onde expressamente se afirma que se têm retidos em seu poder €5.000 do que a declaração da ofendida que afirma não viver, desde 2016, na mesma morada que indicou na queixa crime e nunca procurou o advogado após uma pandemia durante a qual, alegadamente, não teve “qualquer notícia da parte do arguido quanto ao aludido processo” mas que ao mesmo tempo reconhece que foi por ele avisada que tinha direito a €5.000??? h) Existe contradição entre a resposta à matéria de facto e a prova produzida como quando a sentença declara provado o facto 10 provado e não resulta da prova que a ofendida tenha reclamado as quantias ao arguido já que nunca ao escritório se deslocou e ela própria declarou que nunca exigiu contas porque não tinha nada a pagar – cfr. gravação áudio depoimento assistente momento 01:08:36. 16. A sentença proferida pelo Tribunal a quo ao concluir pela condenação do arguido, fez, ainda, tábua rasa de presunções óbvias e vários elementos de prova concretos produzidos em julgamento. Na realidade, as testemunhas CC, BB e DD revelaram consistência, detalhando os episódios por si e pelo arguido vivenciados de forma substancialmente coerente, e, por referência a factos ligados à vivência profissional e/ou a documentos designadamente cartas, emails e cópias extraídas, via Cítius, do processo executivo. 17. Documentos e declarações essas que, no limite, funcionariam como princípio de prova para adquirir ou se admitir a realidade de um facto não diretamente demonstrado, na convicção determinada pelas regras da experiência e do ofício, deque normal e tipicamente certos factos são a consequência de outros. 18. Por sua vez, os factos não provados não resultam de contraprova segura às declarações da ofendida, mas encontram sustentação nas declarações do arguido, das testemunhas e, sobretudo, nos documentos juntos, designadamente cartas, emails e cópias extraídas, via Cítius, do processo executivo. 19. As dúvidas manifestadas pelo próprio Tribunal deveriam conduzir à valoração do depoimento do arguido ou, no limite, à valoração do princípio in dúbio pro reu e não à valorização das declarações da ofendida, apesar das dúvidas razoáveis e por ausência de prova objetiva e segura. 20. Veja-se que a motivação do tribunal a quo é toda construída em função da apreciação jurídica que se fez acerca de um instituto civil - direito de retenção – que considerou inexistente nos seus pressupostos e não, em função da verdade histórica que se captou pela produção das provas durante o processo, designadamente dos documentos juntos e das declarações concretamente prestadas pelo arguido que afirmou, ele próprio, a sua motivação e que a sua intenção de não era de se apropriar e enriquecer. 21. A este propósito importa ressaltar um elemento documental de prova existente nos autos- extratos bancários da conta do arguido para onde foi transferido o valor pela gente de execução – que o Tribunal recorrido não deu a devida atenção e que demonstra à saciedade a falta de intenção de apropriação da apropriação por parte do arguido, pois que a conta do arguido sempre apresentou um saldo de valor superior aquele que foi transferido pelo agente de execução. 22. A retenção do aludido montante até podia ser considerada ilegítima à luz do instituto civil do direito de retenção, mas essa constatação não pode levar a uma criminalização da conduta que teve por único objetivo o exercício de direito de retenção enquanto meio de garantir o pagamento dos honorários devidos à arguida pela assistente. 23. Transformar esta atuação eventualmente ilícita, sob o ponto de vista civil, numa atuação criminosa é extravasar o âmbito de aplicação do direito penal cuja pena tem em vista situações intoleradas e repudiadas pela sociedade segundo os padrões ético-jurídicos dominantes, o que não será certamente o caso. 24. Sendo este o contexto da atuação do arguido em relação à solicitadora de execução e à ofendida, não vemos que ela possa integrar os conceitos típicos de falsificação de documento e, muito menos, de burla simples e/ou qualificada, porquanto, ademais, resulta da prova produzida que: 24.1. Não há engano /erro astucioso provocado pelo arguido: a) a solicitadora não foi enganada, já que a ordem gerada é automática e não vai verificar de quem é o iban; admitiu que sabia que estava a transferir para o iban do arguido as taxas de justiça que ele tinha efetivamente pago, constando prova respetiva desse pagamento no processo; admitiu, ainda que “é comum” e até resultou de um acordo de classe, os solicitadores pagarem aos mandatários que depois fazem contas com os clientes. Ou seja, não se provou que a solicitadora ficasse convicta que a conta era, inequivocamente, dos exequentes, e só por isso (conditio sine qua non) ordenou o pagamento. No mais relevante, referiu que o arguido comentou com ela “a questão da cliente não lhe pagar”; b) a ofendida não atuou com a diligência mínima exigível ao tráfego comercial e na relação de mandato e nenhuma informação relevante lhe foi omitida, sendo adquirido que ela própria é que violou a relação estabelecida ao procurar outro advogado sem revogar, previamente, a procuração, e desinteressar-se por esclarecer e resolver a questão dos honorários ao abrigo das regras civis e do Estatuto da Ordem dos Advogados, existindo em curso a pertinente ação de honorários; 24.2. Não há enriquecimento ilegítimo porque a conduta do arguido foi, no limite, praticada na errada convicção de que era titular de um direito de retenção, circunstância essa que exclui o dolo do tipo (16º/1 C.P.). Acresce que a quantia retidaestá e sempre esteve em condições de ser entregue pelo arguido à ofendida e o facto de o arguido não a ter devolvido não legitima concluir pela intenção de enriquecer porque essa intenção tem que ser prévia e pressuposto do ato enganoso, por forma a pré-determinar a vontade do agente e não, aferida por referência ao presente domínio da coisa. 24.3. A Solicitadora assumiu até como erro que lhe era imputável o facto de ter inicialmente transferido para a ofendida a quantia de 119,60€, quando devia ter transferido para a conta do mandatário, porque tinha no processo o comprovativo de que ele é que tinha pago a taxa justiça inicial. Assim, uma vez que aquele valor transferido de €5.000, é o que verdadeiramente está em causa, e nunca a devolução ao arguido daquilo que já era seu (os demais €119,60) e não dos exequentes, aquele valor não ultrapassou as 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto, ou seja, €5.100, nos termos da al. a) do artigo 202º do C. Penal, que considera tratar-se dum valor elevado aquele que exceder as mesmas 50 Uc's, pelo que, como sereferiu, não foi o presente caso. 24.4. O formulário constante do programa informático Cítius denominado “iban do exequente”, sobretudo considerado o disposto em 21.1 supra, não pode ser considerado “declaração idónea a provar facto juridicamente relevante” na aceção dos arts. 255º e 256º do C.P. 25. A intervenção penal é subsidiária, logo, ainda que se entenda que o arguido não exerceu legitimamente qualquer direito ou laborasse em erro quanto ao preenchimento dos seus pressupostos, isso sempre configuraria, apenas, um ilícito civil sem dignidade penal. 26. A falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso de obrigações assumidas em resultado do patrocínio judiciário não consubstancia a prática do crime de burla – Ac. Rel. Lisboa de 24.05.2023, proc. nº 6266/19.5T9LSB-A.L1 27. Mostram-se assim violados, os artigos 16º/1, 217º/1, 218º/1 ex vi 202º a) e 255º a) e 256º/1 d), e) e f) todos do C. Penal, e 32º da CRP, entre outros. Nestes termos, e pelo muito que, como sempre, não deixará de ser proficientemente suprido por V. Exas., deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, absolvendo o arguido de todos os crimes, com o que se fará, desse modo, Justiça”. (fim de transcrição) - O recurso foi admitido por despacho de 02.07.2024 (ref.ª Citius n.º 95784567), a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo. - O Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância apresentou Resposta (ref.ª Citius n.º 26616), pugnado pelo não provimento do recurso, porquanto não se verificam os alegados vícios: - de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (pois que da factualidade dada como provada na sentença não se retira que faltem quaisquer elementos que, podendo e devendo ser indagados fossem necessários para formular um juízo seguro de condenação ou absolvição) e - de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, tanto mais que o recorrente não especifica os segmentos da sentença que considera enformarem o alegado vício; - de erro notório na apreciação da prova, que o recorrente igualmente não identifica os segmentos concretos da sentença que evidenciem tal vício; porquanto não se verifica erro de julgamento, sendo que também aqui o recorrente não discorre sobre a concreta censura que merece a motivação de facto da sentença, pretendendo antes contrapor a sua convicção á do tribunal ad quo; porquanto não se verifica a alegada violação das normas contidas nos artigos 16º, n.º 1, 217º, n.º 1, 218º, n.º 1, ex vi artigo 202º, al. a) e artigos 255º, al. a) e 256º, n.º1, als. d), e) e f), todos do Código Penal, pois que não se afigura consentâneo o arguido, advogado de profissão, aventar que tenha actuado em defeito do conhecimento de circunstâncias dos tipos de ilícito que lhe foram imputados e pelos quais o Tribunal a quo proferiu juízo condenatório. Da prova produzida resulta inequivocamente que o arguido dolosamente ao comunicar/fazer constar, por via de uma declaração ao processo executivo, de uma nova conta bancária dos exequentes, quando bem sabia que tal não correspondia à verdade, tanto mais que a conta indicada inclusive era a sua. O arguido agiu com a intenção de que os exequentes não recebessem as quantias monetárias em causa, sabendo que à data lhes causava prejuízo, tanto mais que à data sabia que ainda não tinha apresentado qualquer nota de despesas ou honorários ou de que tinha qualquer direito de retenção sobre estes. Resulta inequívoco que o arguido sabia que por via da sua actuação, à data, causava um prejuízo aos exequentes e que, por seu lado, obtinha um benefício ilegítimo. - Também a assistente apresentou a sua Resposta, pugnando pela não verificação dos invocados vícios decisórios, nem tão pouco se verifica qualquer erro de julgamento, inexistindo, consequentemente, violação do princípio in dubio pro reo, pelo que deve ser negado provimento ao Recurso interposto. - Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer, acompanhando a Resposta apresentada pelo Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, sublinhando ainda que o recorrente, ao pretender impugnar o julgamento da matéria de facto não indicou especificamente a prova que, em concreto, permitiria concluir pela incorrecta apreciação dos factos, devendo, por tal, o recurso não obter provimento. - Foi dado cumprimento ao estabelecido no artigo 417º, nº 2 do CPP, tendo o arguido apresentado o seu desacordo quanto ao Parecer apresentado, “(…) já que, entre outros aspectos, concretizou e transcreveu as concretas passagens dos diversos depoimentos que considerou relevantes para a reapreciação dos factos, bem assim, concretizou a prova documental também relevante para o efeito (cfr. pág. 11 e ss. da motivação de recurso e pontos 9, 12, 13, 15, 16 das Conclusões)”. Terminou propugnando pela procedência do recurso interposto. - Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência. - Nada obsta ao conhecimento do mérito. Cumpre apreciar e decidir. *** II – Fundamentação Do âmbito do recurso e das questões a decidir De acordo com o preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º, n.º 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (cfr. Germano Marques da Silva in “Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques in “Recursos Penais”, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061). Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, nº 2 e 410º, nº 3 ambos do CPP e dos vícios previstos no artigo 410,º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (assim se decidiu no Ac. do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, Iª Série-A, de 28.12.1995 e no AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005). Olhando então para as conclusões do recorrente, as questões a apreciar são: a. Vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão b. Erro de julgamento da matéria de facto e violação do princípio in dubio pro reo c. Qualificação jurídica dos factos - É o seguinte o teor da Sentença recorrida na parte atinente aos factos julgados provados e à respectiva motivação (transcrição): 1. O arguido AA exerce a profissão de advogado, com a cédula profissional n.º ...34..., com domicílio profissional na Rua ..., .... 2. Os ofendidos EE e FF intervieram, na qualidade de Exequentes, no processo executivo n.º ..., que correu termos no Juízo Central de Execuções ... – J2, da comarca do Porto Este. 3. O arguido interveio no referido processo, como mandatário forense dos ofendidos. 4. No dia 27-05-2020, no âmbito do referido processo executivo e no exercício do respectivo mandato forense, BB, funcionário do escritório onde labora o arguido e exclusivamente a mando deste, dirigiu um requerimento ao referido processo executivo, com a Ref.ª 35643198, por escrito que subscreveu, comunicando a alteração do IBAN dos ofendidos. 5. Com efeito, BB, a mando do arguido, nesse requerimento comunicou ao referido processo executivo que o IBAN dos ofendidos: ...05 seria substituído pelo IBAN ...84, respeitante a uma conta bancária da Banco 1... por si titulada, tendo em vista ver creditado na sua conta bancária a quantia exequenda e as custas processuais da responsabilidade do Executado e devidas aos ofendidos. 6. O arguido não deu conhecimento de tais factos aos ofendidos, pelo que estes não sabiam que os pagamentos da quantia exequenda e das custas processuais da responsabilidade do Executado seriam efectuados para a conta bancária titulada pelo arguido. 7. O Juízo Central de Execuções ... procedeu à alteração do IBAN dos Exequentes no referido processo executivo, aqui ofendidos, seguindo as instruções dadas pelo arguido, associando o IBAN da conta bancária titulada pelo arguido. 8. No dia 29-05-2020 a agente de execução CC, no âmbito do referido processo executivo, emitiu duas ordens de pagamento, que gerou, no programa informático dos agentes de execução GSEPE, transferindo as quantias de € 5000,00 e de € 119,60, para a conta titulada pelo arguido da Banco 1..., com o IBAN ...84, convencida que estava que o referido IBAN se tratava de uma conta titulada pelos ofendidos. 9. No dia 02-06-2020, os referidos montantes foram creditados na conta bancária, supra identificada, titulada pelo arguido. 10. Sucede que, não obstante o arguido ter recebido tais quantias no âmbito do referido processo executivo, este não as entregou aos ofendidos, fazendo-as suas, apesar destes as terem reclamado. 11. Em data não concretamente apurada, mas seguramente em meados de 2021, os ofendidos tiveram conhecimento que o arguido se tinha apoderado das aludidas quantias, na sequência de terem constituído novo mandatário. 12. O arguido fez sua a quantia global de € 5119,60, bem sabendo que a mesma pertencia aos ofendidos. 13. Com o dinheiro com que, assim, se apoderou, o arguido aplicou-o em seu próprio proveito, não entregando tal quantia aos seus clientes, aqui ofendidos, não obstante estes terem solicitado a sua entrega. 14. O arguido, através do requerimento supra referido, previu e quis dar instruções ao Juízo Central de Execuções ... no âmbito do referido processo executivo, comunicando-lhe a supra referida alteração do IBAN, bem sabendo que, ao efectuar essa comunicação, iria ver creditada a referida quantia global na sua conta bancária supra identificada. 15. Bem sabia o arguido que a supra referida alteração do IBAN dos ofendidos não correspondia à verdade, porquanto sabia que não estava autorizado pelos ofendidos para actuar da forma como actuou. 16. Com a descrita conduta, o arguido previu e quis impedir, como impediu, que a quantia global de €5119,60 fosse creditada na conta bancária dos ofendidos, logrando vê-la creditada na sua conta bancária, com o propósito de alcançar um benefício indevido para si. 17. Ao agir como descrito, o arguido causou uma diminuição patrimonial aos ofendidos pelo menos, em valor igual à quantia global de € 5119,60. 18. Bem sabia ainda que com a sua conduta punha em causa a segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório, valor essencial tutelado pelo Estado Português. 19. Ao apropriar-se das referidas quantias, o arguido bem sabia que as mesmas não lhe pertenciam e que não tinha o direito de delas dispor em proveito próprio, o que não o impediu de as fazer suas e aplicá-las em seu proveito, não comunicando previamente aos ofendidos que iria actuar da forma supra descrita, nem devolvendo aos ofendidos aquelas quantias, causando-lhes um prejuízo patrimonial. 20. O arguido agiu com o propósito concretizado de se apoderar da quantia global de €5.119,60, a qual lhe foi transferida pela agente de execução CC, no âmbito do referido processo executivo, que sabia não lhe pertencer, obtendo para si um benefício económico que sabia não ter direito, enganando-a de forma sagaz, fazendo-a crer falsamente que o IBAN por si indicado pertencia a uma conta bancária dos ofendidos, para, assim, determiná-la a realizar as supra referidas transferências bancárias, sabendo que dessa forma causava um prejuízo patrimonial aos ofendidos. 21. O arguido agiu, sempre, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal. Da contestação 22. O arguido foi mandatário da ofendida EE em diversos processos judiciais e extrajudiciais, por mais de 20 anos. 23. Durante os mais de cerca de 20 anos em que foi seu advogado, o arguido exerceu o patrocínio forense em sua representação, em diversos processos judiciais litigiosos (comuns declarativos, processos crime, execuções e recursos), contraordenacionais e outros, nomeadamente contra o seu ex cônjuge, o seu filho GG, contra a Câmara Municipal ..., e a Inspeção Geral da Administração Interna. 24. Muito desse patrocínio forense foi pelo arguido executado sem que a ofendida EE residisse, com permanência, em ..., porquanto a mesma apenas se deslocava a ... nos meses de Agosto e Setembro (meses de férias judiciais), pelo facto de viver, habitualmente, em França, ou, esporadicamente, uma a duas vezes e, por períodos curtos, fora do período de férias. 25. No entanto, o arguido e a assistente falavam, habitual e frequentemente, via telefone e/ou email, meios através dos quais a ofendida se mantinha totalmente a par das questões jurídicas em curso, designadamente, do estado e orientação dos processos, das quantias a pagar e/ou a receber relativas as taxas justiça, custas judiciais, honorários e outras despesas. 26. No dia 2 de Julho de 2020, através de carta registada com aviso de recepção, o arguido remeteu à assistente a nota de despesas e honorários, devidamente discriminada, relembrando-lhe, no texto que acompanhava a mesma, que tinha na sua posse a quantia de €5.119,60 transferida para o seu Iban pela A.E., referindo que, "conforme já pelo arguido lhe tinha sido informado", não queria ter essa quantia em seu poder e que sempre estaria na disponibilidade da ofendida utilizar ou servir-se da referida quantia para pagar s seus honorários e despesas. 27. A carta referida em 26 veio devolvida. 28. Na sequência da devolução da carta, nos meses seguintes, o arguido solicitou à ofendida o pagamento dos seus honorários, através de vários e-mails, num dos quais continuava a manifestar ter na sua conta a quantia de €5000,00 que colocava “à sua disposição” dada a sua intenção em não ter em seu poder a quantia transferida, assim que os seus honorários já reclamados, fossem regularizados, sob pena se se ver obrigado a reclamar os mesmos em Tribunal. 29. A nenhum dos emails enviado para o endereço eletrónico, através do qual sempre estabeleceu contato com a ofendida, teve o arguido resposta. Das condições pessoais do arguido 30. O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais registados. 31. O arguido exerceu funções como delegado do Ministério Público. 32. O arguido é advogado e aufere o salário de cerca de 1.500,00€/2.000,00€ por mês. 33. O arguido beneficia ainda de pensão de reforma no valor de 2.500,00€ por mês. 34. O arguido é casado, sendo que a sua esposa foi professora e encontra-se actualmente reformada, auferindo uma pensão de reforma no valor de cerca de 1.700,00€. 35. O arguido reside em casa própria. 36. O arguido tem uma filha maior de idade, também advogada de profissão. 37. O arguido é licenciado em Direito. 38. O arguido é considerado pelos seus pares como um advogado sério, competente e cordial. ** IV – Factos não provados A. Os ofendidos apenas tiveram conhecimento que o arguido se tinha apoderado das aludidas quantias no dia 26-09-2021, na sequência de terem constituído novo mandatário. B. O arguido contactou a ofendida, no início do mês de Maio de 2020, via telefone, informando-a, ainda, de que tinha sido elaborada a nota de despesas e honorários e do seu valor. Mais a informou de que o Município ... tinha sido condenado a pagar-lhe a quantia de €5.000, a título de danos morais. C. Nessa mesma ocasião, quando o arguido a informou que tinha que pagar os honorários e despesas, a pronta resposta da ofendida foi: “eu não tenho nada que pagar, porque quem paga é quem perde!”. D. Àquela observação da ofendida, o arguido logo lhe deu a explicação que tinha que dar, isto é, que as eventuais custas de parte não abrangem os honorários dos advogados, que sempre incorrerão por conta do cliente. E. E mais lhe disse o arguido que a nota de despesas e honorários devidamente discriminada com IVA, conforme teria oportunidade de verificar quando a recebesse, importava em cerca de €9.500,00. F. De parte da ofendida, a resposta foi a mesma: “Eu não tenho nada que pagar, quem paga é quem perde”, ao que o arguido respondeu que ficava a aguardar pelo pagamento integral dos honorários. G. Entretanto os dias foram passando, sem que o arguido tivesse obtido qualquer resposta, apesar de inúmeros telefonemas que lhe fazia e aos quais aquela não terá atendido. H. Perante esta inesperada atitude da ofendida, consubstanciada nas suas palavras manifestamente evidenciadoras da intenção de não pagar a nota de honorários, e, única exclusivamente, com vista a constituir garantia do pagamento da mesma, o arguido entendeu, no início do mês de junho de 2020, contactar a Agente de Execução D. CC, nomeada no processo executivo em causa, dando conhecimento destes factos e solicitando-lhe que transferisse os €5.000,00 para o seu IBAN, cujo número lhe indicou em comunicação para o efeito. I. A carta referida em 26 e 27 veio devolvida uma vez que a ofendida se recusou a recebê-la. J. O arguido agiu, como agiu, convicto de que exercia, de forma legítima, o direito de retenção sobre as referidas quantias, para se ver ressarcido dos honorários devidos pelos ofendidos. K. A intenção e o motivo subjacente à comunicação da alteração do IBAN foi previamente comunicada à Agente de Execução, e tinha em vista tornar efectivo o exercício do direito de retenção da quantia que estava a ser paga no processo executivo patrocinado pelo arguido. L. O valor de 119,60€, que foram transferidos à parte daqueles €5.000, foi a devolução da taxa de justiça inicial (€25,50) e da fase I (€94,10) no processo de execução 631/15.4T8PFR (que posteriormente, após distribuição devida, deu origem ao processo ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo de Execução ... - Juiz 2) que o mandatário dos exequentes, aqui arguido, pagou do seu bolso e directamente da sua conta bancária. ** Motivação À luz do princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, este Tribunal valorou os seguintes meios de prova: a) Declarações do arguido; b) Declarações da assistente EE; c) Depoimentos testemunhais prestados por CC, HH, II, BB, DD; d) Documental: Denúncia e documentos de fls. 4/12, Certidão do processo executivo n.º ... de fls. 21/43, Documentos de fls. 5 e 48 em que o arguido condiciona a devolução da quantia de que se apropriou à circunstância de lhe pagarem honorários e despesas, Informações bancárias da conta titulada pelo arguido de fls. 65/75, Certidão do processo executivo n.º ... de fls. 93/96, certificado de registo criminal, documentação junta com RAI, documentação junta em audiência de julgamento, certificado de registo criminal; Concretizando: O arguido optou por prestar declarações em audiência de julgamento, tendo reconhecido como verdadeira toda a factualidade exposta em 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 (com excepção da parte final em que se diz que a Agente de Execução agiu, desse modo, convencida de que o referido IBAN se tratava de uma conta titulada pelos ofendidos), 9, 10, 22 a 29, tendo este Tribunal, em confronto com a documentação relativa à certidão do processo n.º ... junta aos autos e, bem assim, os documentos de fls. 4/12, 5 e 48 e a documentação junta com o requerimento de abertura da instrução, considerado tal factualidade como provada. De facto, se bem compreendemos as declarações apresentadas pelo arguido em audiência de julgamento, não foram apresentadas quaisquer reservas à factualidade objectiva apresentada na acusação, porquanto o arguido reconheceu ter sido advogado da assistente, ter efectivamente dado instruções ao seu funcionário BB para introduzir um requerimento de alteração do IBAN no processo n.º ..., o que foi feito, tendo sido alterado o IBAN inicialmente comunicado, efectivamente correspondente à conta bancária dos ofendidos, para o IBAN correspondente à conta do arguido, com o claro objectivo de receber as quantias aí devidas aos ofendidos, na sua própria conta bancária. As únicas reservas apresentadas pelo arguido à acusação prenderam-se, outrossim, com a factualidade vertida em 11 a 21, porquanto negou qualquer vontade de enganar quem quer que fosse, seja a Senhora Agente de Execução, seja os ofendidos, assim como negou qualquer vontade de apropriação ilegítima das aludidas quantias, porquanto apenas agiu convicto de que retinha, desse modo, a seu favor, os referidos montantes para se ver ressarcido dos honorários devidos pelos ofendidos que não se encontravam pagos. Ora, as declarações prestadas pelo arguido, nessa parte, não lograram convencer este Tribunal, por afrontarem as regras da experiência comum, por não terem merecido conformidade com a actuação global do arguido no caso sub judice e por não terem tido conforto na prova testemunhal produzida em audiência. De facto, o arguido começou por dizer que, em meados Abril de 2020, ligou à assistente a informar que efectivamente tinha direito a receber, entre o mais, a quantia de 5.000,00€, mas que também tinha que pagar os seus honorários, tendo, assim, informado qual o valor que era devido, com pormenor. Nesse telefonema, segundo o arguido, a ofendida disse que ia pensar e que voltava a contactar. Uma vez que não foi efectuada qualquer tentativa de contacto, o arguido disse que decidiu contactar novamente a assistente, voltando a lembrá-la do valor que estava em dívida a título de honorários, tendo a ofendida respondido que “quem paga é quem perde”, negando-se, assim, a pagar qualquer valor pelos serviços prestados pelo arguido. Ora, em face da postura assumida pela ofendida, o arguido disse que estudou um conjunto de pareceres da Ordem dos Advogados sobre o direito de retenção que se encontra previsto no Estatuto da Ordem dos Advogados e decidiu contactar a Senhora Agente de Execução titular do aludido processo executivo, dando-lhe conta de que efectivamente a ofendida estava em falta com o arguido, quanto aos seus honorários, tendo o arguido referido que a Senhora Agente de Execução, pessoa da sua confiança há vários anos, lhe sugeriu alterar o IBAN no processo executivo dos exequentes (aqui ofendidos) para o IBAN do arguido e, desse modo, as quantias seriam transferidas para o arguido. Assim, sempre convicto de que estava a agir segundo o Estatuto da Ordem dos Advogados decidiu alterar o IBAN no processo executivo e, assim que recebeu as quantias aludidas na sua conta bancária, logo informou a assistente, quer por carta, quer por e-mail, voltando a solicitar o pagamento dos honorários, colocando à disposição as quantias que foram depositadas na sua conta bancária, por conta do aludido processo executivo. Ora, as declarações prestadas pelo arguido, em si mesmas, não lograram convencer este Tribunal, porquanto se mostraram contraditórias e desconformes com as regras da experiência comum. Em primeiro lugar, veja-se que mal se compreende como pode o arguido, advogado de profissão há vários anos, entender que, ao agir como agiu, informando falsamente uma alteração do IBAN no processo executivo, à revelia da vontade dos ofendidos, tanto mais que confirmou que não teve autorização, nem informou os ofendidos previamente dessa alteração, estava a cumprir o Estatuto da Ordem dos Advogados, mais concretamente a exercer um direito de retenção. De facto, veja-se que a procuração forense outorgada pelos ofendidos ao arguido não conferia quaisquer poderes especiais para o arguido receber as aludidas quantias monetárias (cfr. fls. 94, o que, aliás, o arguido reconheceu), em nome dos ofendidos no aludido processo executivo, sendo que, em caso algum, poderia o arguido considerar que estava legitimamente a reter quantias para saldar os seus honorários, quando o próprio bem sabia que as aludidas quantias não lhe foram entregues pelos ofendidos, mas resultaram precisamente da alteração do IBAN efectuada no processo executivo. Não fora essa alteração do IBAN, em caso algum as aludidas quantias entravam na posse do arguido, pelo que não merece qualquer crédito a tese segundo a qual o arguido estava efectivamente convicto de que agia segundo o direito de retenção previsto no Estatuto da Ordem dos Advogados. Em segundo lugar, veja-se que o arguido não avisou previamente os ofendidos que introduziu no processo executivo uma alteração do IBAN, indicando o seu próprio IBAN para receber as quantias aí devidas aos ofendidos, atitude esta que não é minimamente compatível com a vontade de nada esconder dos ofendidos e de colocar à disposição destes das aludidas quantias, como quis o arguido convencer este Tribunal. Em terceiro lugar, é certo que o arguido afirma que sempre contactou a assistente e que, inclusive, em Abril de 2020 a elucidou quanto aos honorários em falta, dizendo com pormenor a que título eram devidas as quantias. Contudo, como infra melhor se aflorará, a ofendida negou ter recebido qualquer telefonema nesse sentido na referida data, assim como também negou ter recebido qualquer nota discriminativa dos honorários peticionados pelo arguido. Ora, analisada a prova documental junta aos autos, inclusive a que foi junta pelo arguido, constata-se que toda a alegada correspondência (por carta e por e-mail) que foi enviada pelo arguido supostamente para a ofendida ocorreu sempre em datas posteriores à da alteração do IBAN operada pelo arguido no processo executivo, sendo que, se é certo que, por um lado, a ofendida, em audiência de julgamento, disse nunca ter recebido qualquer carta e/ou qualquer e-mail, não deixa também de ser verdade que, em nenhuma dessas comunicações, o arguido reconhece que efectivamente recebeu o valor de 5.000,00€, por conta da alteração do aludido IBAN no processo executivo sem o consentimento dos ofendidos, reconhecendo apenas que tem na sua posse a aludida quantia e que está à disposição da assistente para que decida o que fazer quanto aos honorários. Mais se constata que a carta na qual se mostra anexa a nota de honorários é datada de Julho de 2020 (fls. 48 e seguintes), sendo certo que a mesma foi devolvida, conforme fls. 46, merecendo, assim, crédito, aquilo que foi dito pela ofendida quanto ao desconhecimento da aludida nota de honorários. Em quarto lugar, veja-se que o arguido incorreu, durante as suas declarações, em manifestas contradições, as quais apenas apontam, salvo melhor entendimento, para o seu comprometimento in casu. A título de exemplo, veja-se que, num primeiro momento, o arguido livremente assumiu que efectivamente não informou os ofendidos, previamente ao requerimento de alteração do IBAN, da sua pretensão de fazer constar o seu IBAN no processo executivo. Contudo, ao longo das suas declarações, acabou por afirmar que efectivamente numa conversa telefónica em Abril de 2020, avisou a ofendida que, caso não quisesse pagar os honorários que se ia ver obrigado a alterar o IBAN no processo executivo. Confrontado com a evidente contradição, o arguido acabou por se retratar e dizer que apenas avisou a ofendida que, caso não pagasse, ia lançar mão dos meios legais que se encontravam ao seu dispor. Em quinto lugar, pese embora, analisada a correspondência por e-mail enviada pelo arguido à assistente, na qual se faz constar que efectivamente pretendia que os honorários fossem pagos, aflorando a questão de que tinha quantias monetárias ao seu dispor, não deixa também de ser verdade que, analisada a nota de honorários de fls. 49 e seguintes, nela estão reflectidas as taxas de justiça pagas no processo executivo e demais encargos, mas não é feita qualquer referência ao desconto do valor de 5.000,00€ que o arguido recebeu na sua conta bancária. Em sexto lugar, pese embora o arguido tenha assumido que estava convicto de que, ao agir como agiu, estava simplesmente a exercer o direito de retenção que lhe é garantido no Estatuto da Ordem dos Advogados, confiando, assim, que toda a sua conduta era lícita, a verdade é que, no final do seu depoimento, acabou por reconhecer que efectivamente quis criar as condições para exercer o direito de retenção e que agiu sempre com o fito de ver as quantias monetárias “do seu lado”, de modo a sentir-se garantido quanto à falta de pagamento de honorários, o que é apenas conforme com a vontade de obter benefício patrimonial, inequivocamente, ilegítimo, porquanto não autorizado pelos ofendidos, nem pela lei. Em sétimo lugar, ainda a propósito do suposto convencimento quanto ao exercício de um legítimo direito de retenção sobre as aludidas quantias, importa notar que tal tese também não merece o acolhimento deste Tribunal, desde logo pelo facto de o arguido ser advogado há vários anos, ser, portanto, pessoa especialmente habilitada a saber as concretas situações em que é legítimo o exercício desse direito de retenção previsto no Estatuto da Ordem dos Advogados e ainda pelo facto de, os supostos pareceres da Ordem dos Advogados que foram consultados pelo arguido, os quais foram juntos com o Requerimento de Abertura da Instrução, demonstrarem situações inequivocamente distintas da que se encontra sub judice e, por esse motivo, se o arguido consultou, com o diz, os referidos pareceres, então tinha que saber que a sua conduta não lhe era permitia por lei, desde logo pelo facto de as aludidas quantias supostamente retidas não terem sido entregues ao arguido pelos ofendidos, mas antes resultaram da transferência efectuada pela Senhora Agente de Execução, no referido processo executivo, após o requerimento de alteração do IBAN subscrito pelo arguido. Em oitavo lugar, sempre se dirá que muito estranha este Tribunal que o arguido não tenha ainda devolvido as aludidas quantias à ofendida, mantendo-se, ainda, actualmente, na sua posse. De facto, estivesse o arguido efectivamente convicto de que estava a agir licitamente, com a pendência destes autos, tendo pelo menos sabido da suspeita de que não estaria a agir de forma legítima, caso não tivesse qualquer vontade de arrecadar vantagem patrimonial, então já podia perfeitamente ter devolvido as quantias à ofendida e aguardar o desfecho da acção de honorários que reconheceu ter instaurado. O arguido mantém-se, ao invés, na posse das aludidas quantias, o que é bem revelador, salvo melhor entendimento, da vontade de manter a garantia do pagamento dos seus honorários que diz estarem em dívida. Perante todo o exposto, as declarações prestadas pelo arguido apresentaram incoerências, inconsistências e contradições, as quais não foram dissipadas, nem compreendidas, à luz da experiência comum e, por esse motivo, não convenceram este Tribunal. Sem prejuízo, a verdade é que as declarações prestadas pelo arguido não mereceram qualquer conforto nas declarações prestadas pela assistente e, bem assim, pela Senhora Agente da Execução CC. De uma forma simples, objectiva e espontânea, a ofendida EE confirmou que efectivamente o arguido lhe prestou serviços de advocacia durante vários anos, sendo que, a propósito da acção em crise nos autos, disse que, em Setembro de 2019, o arguido lhe confidenciou que tinha a receber cerca de 5.000,00€ por conta de uma indemnização, mas que tinha que aguardar o desfecho dos processos. Segundo a assistente, decorreu o ano de 2020, em que o seu marido foi, aliás, infectado com o vírus COVID-19, não tendo tido qualquer notícia da parte do arguido quanto ao aludido processo. Assim, em 2021, em data que não se recorda (daí o facto não provado A e o facto provado 11), decidiu saber junto do Banco se tinha recebido alguma quantia monetária, tendo descoberto que não. Assim, decidiu falar com a Senhora Agente de Execução encarregue do processo executivo e aí foi informada de que o dinheiro já tinha dado entrada na conta bancária. Tendo estranhado, solicitou que informasse qual era o IBAN informado e apercebeu-se que não era o seu, mas de outra pessoa. Decidiu, assim, ligar ao arguido a questionar o sucedido, tendo sido perguntado pelo arguido senão pretendia deixar esse dinheiro ao arguido, o que a ofendida negou, porquanto se tinha apropriado daquele montante à revelia da sua vontade e sem o seu consentimento. A ofendida negou ter dado qualquer autorização ao arguido para receber a aludida quantia de 5.000,00€, assim como também negou ter tido qualquer conhecimento, em data anterior a 2021, quanto à aludida transferência no processo executivo. A ofendida também negou que, até 2021, tenha recebido qualquer pedido de dinheiro ou de honorários da parte do arguido, sendo que, até à data não recebeu qualquer valor. A ofendida negou a recepção dos e-mails constantes dos autos, assim como negou a recepção da carta junta aos autos pelo arguido, tendo inclusive referido que já não morava na aludida residência há vários anos, pelo menos desde 2016. A ofendida disse que nunca lhe foram apresentadas contas por parte do arguido e, por esse motivo, nunca procedeu ao pagamento dos honorários devidos. A ofendida disse que efectivamente, numa chamada telefónica com o arguido disse “quem paga é que perde”, mas negou que tal conversa tenha sido encetada em 2020, tendo dito que foi antes em 2021. Uma vez que foram identificadas várias contradições entre as declarações prestadas pela assistente e pelo arguido, designadamente quanto à aludida conversação, foram ambos acareados, nos termos do artigo 146.º do Código de Processo Penal, tendo o arguido e a assistente mantido na íntegra as suas declarações, ficando, assim, este Tribunal sem saber quando ocorreu a aludi da conversa, se em 2020, se antes do requerimento de alteração do IBAN, se depois, se apenas em 2021 ou noutra data, daí que se tenha dado como não provados os factos B a F. É certo que das declarações apresentadas pela assistente foi sentida alguma animosidade, mas tal sentimento foi entendido por este Tribunal como perfeitamente consentâneo com a revolta e incómodo sentidos inequivocamente pela ofendida, pelos actos praticados pelo arguido, ou seja, perfeitamente coerentes com o sentimento de fraude e de engano revelados pela ofendida, o que é compreensível e não colocou em crise a espontaneidade e descomprometimento das suas declarações, designadamente quanto à essencialidade do seu depoimento e quanto à factualidade em crise na acusação pública deduzida. Não se ignora que, de facto, é de estranhar que a ofendida não tenha recebido a carta na morada indicada a fls. 48 e pelos motivos por si expostos em audiência de julgamento, desde logopelo facto de a queixa apresentada que deu origem a estes autos, nela se fazer constar a mesma morada, quando a ofendida disse que já lá não morava desde 2016. Contudo, a verdade é que, independentemente do motivo que levou à não recepção da carta (ou por recusa da ofendida ou por efectivamente já lá não residir), a verdade é que a carta foi devolvida e, mesmo que tivesse sido recebida, era apenas datada de Julho de 2020, ou seja, já após a transferência dos montantes para a conta do arguido e após o requerimento de alteração do IBAN junto do processo executivo, pelo que tal pormenor em nada inquina a tese vertida na acusação. O mesmo se diga em relação aos e-mails. É certo que o arguido referiu que os enviou para o endereço de e-mail que sempre foi utilizado com a ofendida, mas também não deixa de ser verdade que não se mostra junta aos autos qualquer prova documental que ateste a efectiva recepção e leitura dos e-mails alegadamente enviados pelo arguido. Assim, as declarações prestadas pela ofendida não podem ser arredadas com base em prova objectiva e segura, sendo certo que tais e-mails foram todos enviados já após a transferência dos montantes para a conta do arguido e após o requerimento de alteração do IBAN junto do processo executivo, pelo que tal pormenor também em nada inquina a tese vertida na acusação. Perante todo o exposto, analisado o depoimento prestado por EE, constata-se que não confirmou os telefonemas referidos pelo arguido e, por outro lado, confirmou, na íntegra, o seu desconhecimento da aludida transferência, em data anterior a 2021, tendo tomado conhecimento disso mesmo por sua iniciativa e não da parte do arguido. As declarações do arguido não mereceram também conforto no depoimento testemunhal prestado por CC, Agente de Execução titular do aludido processo executivo. Ora, de uma forma absolutamente descomprometida, tanto mais que disse conhecer o arguido desde 1980 e com ele trabalhar há vários anos, tendo sido, aliás, evidente a relação de proximidade mantida entre ambos, começou por circunstanciar os documentos de fls. 9 a 11, identificando-os e confirmando-os. Disse que o processo executivo decorreu de forma normal, tendo procedido à transferência dos montantes para o IBAN actualizado, como faz em milhares de processos, sem qualquer suspeita ou dúvida. O processo já estava arquivado quando foi procurada pela ofendida no seu escritório para explicar como foram feitos os pagamentos no aludido processo executivo. Não sabendo concretizar em que data é que foi procurada pela assistente, certo é que tal aconteceu já após o processo executivo estar arquivado, ou seja, seguramente após a realização da aludida transferência bancária. Ora, nesse contexto, a testemunha foi-se inteirar do processo e explicou à assistente que já tinham sido pagas todas as quantias devidas, sendo que a ofendida revelou-se surpreendida e disse que ia falar com o arguido. A testemunha tentou perceber o que se tinha passado e constatou que tinha havido uma alteração do IBAN e que muito provavelmente aí residia o problema. Questionada sobre se tinha sido contactada pelo arguido e se tinha sugerido ao arguido alterar o IBAN para que o arguido se visse pago quanto aos honorários em falta pela assistente, a testemunha negou peremptoriamente, revelando-se genuinamente surpreendida pela questão efectuada, demonstrando, assim, inequivocamente que não correspondia à verdade o que havia sido dito pelo arguido nesta parte. Certo é que, atenta a referida contradição, foi a testemunha e o arguido acareados, nos termos do artigo 146.º do Código de Processo Penal, e o arguido retratou-se, dizendo ao Tribunal que, afinal, não correspondia à verdade que tivesse sido sugerido, em algum momento, pela testemunha CC a alteração do IBAN para o seu, de modo a que fossem para si transferidas as quantias devidas aos ofendidos. Ora, da aludida acareação ficou, assim, patente que o arguido, quando prestou declarações, não disse a verdade quanto à conversa que foi encetada com CC, tendo assumido uma clara postura de desresponsabilização, dando a entender ao Tribunal que tinha agido apenas porque tal foi sugerido pela Senhora Agente de Execução, o que não foi a verdade dos factos. Em face de todo o exposto, por não terem merecido respaldo nas declarações prestadas pela assistente e, bem assim, da Senhora Agente de Execução, as declarações prestadas pelo arguido não convenceram este Tribunal, desde logo na parte em que tentou infirmar a factualidade vertida em 11 a 21. De facto, ao contrário do que tentou o arguido convencer este Tribunal, as regras da experiência comum apenas apontam para a veracidade da factualidade vertida em 11 a 21, por todos os motivos supra expostos. Veja-se que o arguido não se mostrava munido de qualquer procuração forense com poderes especiais para receber quantias monetárias nos processos em nome dos ofendidos, o arguido não avisou os ofendidos da sua intenção de alterar o IBAN no processo executivo para o seu IBAN, de modo a que para a sua conta fossem transferidas as quantias aí devidas aos ofendidos, o arguido não tinha qualquer autorização nesse sentido da parte dos ofendidos e, não obstante, apercebendo-se que, da parte dos ofendidos, não se encontrava a ser pago o valor que julgava ser devido a título de honorários, decidiu criar um esquema para, pelo menos, garantir o pagamento dos referidos honorários. Assim, decidiu dar entrada nos autos de um requerimento para alterar o IBAN dos ofendidos para o seu IBAN, sabendo que desse modo a Senhora Agente de Execução ia transferir as aludidas quantias para a sua conta bancária, integrando, assim o seu património e retê-las a seu favor, como fez. As regras da experiência comum validam, assim, a vontade de arrecadar vantagem patrimonial inequivocamente ilegítima e, por inerência, a vontade de causar prejuízo patrimonial aos ofendidos, desde logo através da apresentação do aludido requerimento, o qual corporiza, inequivocamente, uma informação falsa, porquanto o arguido bem sabia que o IBAN em Maio de 2020 indicado não pertencia aos exequentes, mas antes à sua própria conta bancária e mais sabia que não estava autorizado pelos ofendidos a fazê-lo. Assim, as regras da experiência comum e a prova produzida referida apenas validam a factualidade vertida em 11 a 21 e não confirmam, por todos os motivos expostos supra, a factualidade vertida em G a K. Atendendo às declarações prestadas pela Senhora Agente de Execução soçobra, pois, a tese avançada pelo arguido na contestação apresentada no presente processo, porquanto, ao contrário do que foi por si alegado, CC não estava consciente de que o IBAN para o qual transferiu as quantias era do arguido. Bem pelo contrário, CC não sabia que o IBAN era do arguido, não conversou com o arguido anteriormente ao requerimento de Maio de 2020 nesse sentido, nem foi elucidada pelo arguido de que efectivamente tinha alterado o IBAN para a sua conta bancária. A Senhora Agente de Execução, como confirmou em audiência, agiu em claro erro, erro esse que foi sagazmente provocado pelo arguido através do requerimento por si subscrito. Perante todo o exposto, este Tribunal considerou como provados os factos n.ºs 1 a 29 e como não provados os factos A a K. Em pormenor quanto ao facto I, atendendo às declarações prestadas pela ofendida e na ausência de qualquer outro elemento probatório objectivo, este Tribunal ficou com dúvidas se efectivamente a carta foi devolvida, por recusa em receber da parte da ofendida, tanto mais que a própria referiu que já lá não residia desde 2016. Assim, na dúvida, não tinha este Tribunal outra solução que não fosse considerar como não provado. Considerou-se ainda como não provado o facto L, porquanto, atendendo à documentação que foi junta em audiência de julgamento se constatou que o valor de 25,50€ não foi pago pela conta bancária do arguido, mas antes do seu funcionário judicial, como, aliás, foi confirmado pelo próprio BB em audiência de julgamento. Relativamente ao montante de 94,10€, analisado o documento comprovativo de pagamento (cfr. fls. 161 e documento junto em audiência), não é absolutamente legível o n.º de identificação de conta, portanto fica este Tribunal na dúvida se efectivamente foi pago pela conta bancária do arguido, com o mesmo alega. No que toca aos factos n.ºs 30 a 38 este Tribunal fundou-se nas declarações prestadas pelo arguido, no CRC junto aos autos e, bem assim, com base nas declarações que foram prestadas por HH, testemunha que abonou a favor da inserção social, familiar e profissional do arguido. No que diz respeito à restante prova testemunhal, este Tribunal entendeu que os testemunhos prestados por II, BB e DD não contribuíram de forma significativa para a descoberta da verdade material. II não revelou qualquer conhecimento directo dos factos em crise nos autos, tendo-se limitado a referir que foi funcionária da Senhora Agente de Execução CC durante 16 anos, sendo que era habitual haver requerimentos de alteração de IBAN, pelo que não considerou o que deu entrada nos autos de processo executivo em crise. Confirmou que efectivamente a assistente foi até ao seu escritório pedir satisfações quanto aos aludidos pagamentos, mas não revelou qualquer conhecimento directo quanto à factualidade em crise nos autos. BB, funcionário do arguido há 33/34 anos, para além de ter confirmado que, a mando do arguido, foi quem efectivamente deu entrada do requerimento de alteração do IBAN no processo executivo referido, pouco acrescentou com relevo para os autos, pois limitou-se a descrever aquilo que já tinha sido afiançado pelo próprio arguido. Aliás, a testemunha prestou um depoimento claramente comprometido, desde logo tendo em conta que afiançou uma alegada conversa com a Senhora Agente de Execução no sentido de ter sido discutido o exercício do direito de retenção por parte do arguido, o que, como já aflorado, não foi confirmado pela própria testemunha CC. Chamado a esclarecer, BB entrou em contradição, apresentando-se pouco rigoroso, dizendo que, afinal, nada foi sugerido pela Senhora Agente de Execução, tanto mais que não o poderia fazer. Instado a esclarecer o que pretendia dizer com tal expressão, mais uma vez, BB revelou-se pouco preciso e rigoroso, tentando escamotear o evidente: em caso algum poderia a Senhora Agente de Execução sugerir a transferência das quantias para a conta do arguido, porquanto tal não era legítimo. Contudo, esta conclusão a testemunha claramente não quis assumir em audiência. Sem prescindir, a verdade é que BB confirmou que, do seu conhecimento, foi a primeira vez que alteraram o IBAN para a conta do arguido, não sendo, assim, hábito comum, os montantes nos processos, devidos aos clientes, ser transferidos directamente para a conta do arguido, o que só abona a favor da tese da acusação. A testemunha revelou-se, ainda, manifestamente constrangida em relação às questões atinentes à visivelmente comprometido com a causa, desconfortável e, bem assim, partidário das “dores assumidas pelo arguido” nos presentes autos. Não foi, deste modo, um depoimento que lograsse contribuir para a descoberta da verdade material e muito menos que tenha tido a virtualidade de infirmar a convicção supra exposta. Por fim, DD, advogada de profissão e filha do arguido, também não contribuiu de forma decisiva para a descoberta da verdade material, visto que não revelou qualquer conhecimento directo dos factos em crise nos autos, mas apenas de ouvir dizer do próprio arguido, tendo, por fim, de forma subjectiva, transmitido ao Tribunal que estava convicta de que o seu pai nunca quis apropriar-se de qualquer quantia, o que, como vimos supra, não merece conformidade com a restante prova e as regras da experiência comum. Não foi, pois, um depoimento que lograsse contribuir para a descoberta da verdade material e muito menos que tenha tido a virtualidade de infirmar a convicção supra exposta. Por último apenas referir que a documentação junta pela defesa durante a audiência de julgamento não contribuiu também de forma decisiva para a descoberta da verdade material, desde logo pelo facto de ou extravasar o objecto do processo ou não ter a virtualidade probatória pretendida, como já aflorado supra a propósito dos valores pagos. (fim de transcrição) * Da conjugação alíneas a) e b) do artigo 15. das Conclusões apresentadas, resulta que o recorrente invoca existir o vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do CPP, porquanto: - se verifica contradição entre alguns dos pontos da fundamentação de facto julgada provada, mormente entre os pontos 26. a 29. e os também julgados provados nos pontos 11.a 21.; - se verifica ainda contradição entre aqueloutros julgados provados nos pontos 26. a 29. e os julgados não provados nos pontos B., I. e J.; - se verifica contradição entre a fundamentação da convicção, na parte em que refere que a assistente admitiu ter dito ao arguido, via telefone “quem paga é quem perde” e o vertido nos pontos C. e F. dos factos julgados provados. Vejamos. Como é consabido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do CPP, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma legal. No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios, cuja indagação, como decorre do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus da especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP. Estamos aqui no campo do erro de julgamento. A primeira das questões suscitadas leva-nos a olhar para o disposto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do CPP, que consagra o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. Trata-se, à semelhança das demais previsões do citado nº 2, de vício de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso e abrange, na verdade, dois vícios distintos: a contradição insanável da fundamentação e a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. No primeiro, incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível” Ac. do STJ de 18.02.1998, nº convencional JSTJ00034535, relator Conselheiro Andrade Saraiva, cujo sumário se encontra publicado em www.dgsi.pt ([1]). Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas. Relembra-se o que resulta da fundamentação de facto: - nos pontos 26. a 29., o tribunal ad quo considerou provado que “26. No dia 2 de Julho de 2020, através de carta registada com aviso de recepção, o arguido remeteu à assistente a nota de despesas e honorários, devidamente discriminada, relembrando-lhe, no texto que acompanhava a mesma, que tinha na sua posse a quantia de € 5.119,60 transferida para o seu Iban pela A.E., referindo que, “conforme já pelo arguido lhe tinha sido informado” não queria ter essa quantia em seu poder e que sempre estaria na disponibilidade da ofendida utilizar ou servir-se da referida quantia para pagar os seus honorários e despesas. 27. A carta referida em 26 veio devolvida. 28. Na sequência da devolução da carta, nos meses seguintes, o arguido solicitou à ofendida o pagamento dos seus honorários, através de vários e-mails, num dos quais continuava a manifestar ter na sua conta a quantia de €5000,00 que colocava “à sua disposição” dada a sua intenção em não ter em seu poder a quantia transferida, assim que os seus honorários já reclamados, fossem regularizados, sob pena se se ver obrigado a reclamar os mesmos em Tribunal. 29. A nenhum dos emails enviado para o endereço eletrónico, através do qual sempre estabeleceu contato com a ofendida, teve o arguido resposta.” (sublinhados nossos) Nos pontos 11. a 21. dos factos provados consta: “11. Em data não concretamente apurada, mas seguramente em meados de 2021, os ofendidos tiveram conhecimento que o arguido se tinha apoderado das aludidas quantias, na sequência de terem constituído novo mandatário. 12. O arguido fez sua a quantia global de € 5119,60, bem sabendo que a mesma pertencia aos ofendidos. 13. Com o dinheiro com que, assim, se apoderou, o arguido aplicou-o em seu próprio proveito, não entregando tal quantia aos seus clientes, aqui ofendidos, não obstante estes terem solicitado a sua entrega. 14. O arguido, através do requerimento supra referido, previu e quis dar instruções ao Juízo Central de Execuções ... no âmbito do referido processo executivo, comunicando-lhe a supra referida alteração do IBAN, bem sabendo que, ao efectuar essa comunicação, iria ver creditada a referida quantia global na sua conta bancária supra identificada. 15. Bem sabia o arguido que a supra referida alteração do IBAN dos ofendidos não correspondia à verdade, porquanto sabia que não estava autorizado pelos ofendidos para actuar da forma como actuou. 16. Com a descrita conduta, o arguido previu e quis impedir, como impediu, que a quantia global de €5.119,60 fosse creditada na conta bancária dos ofendidos, logrando vê-la creditada na sua conta bancária, com o propósito de alcançar um benefício indevido para si. 17. Ao agir como descrito, o arguido causou uma diminuição patrimonial aos ofendidos pelos menos, em valor igual à quantia global de 5.119,60 €. 18. Bem sabia ainda que com a sua conduta punha em causa a segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório, valor essencial tutelado pelo Estado Português. 19. Ao apropriar-se das referidas quantias, o arguido bem sabia que as mesmas não lhe pertenciam e que não tinha o direito de delas dispor em proveito próprio, o que não o impediu de as fazer suas e aplicá-las em seu proveito, não comunicando previamente aos ofendidos que iria actuar da forma supra descrita, nem devolvendo aos ofendidos aquelas quantias, causando-lhes um prejuízo patrimonial. 20. O arguido agiu com o propósito concretizado de se apoderar da quantia global de €5.119,60, a qual lhe foi transferida pela agente de execução CC, no âmbito do referido processo executivo, que sabia não lhe pertencer, obtendo para si um benefício económico que sabia não ter direito, enganando-a de forma sagaz, fazendo-a crer falsamente que o IBAN por si indicado pertencia a uma conta bancária dos ofendidos, para, assim, determiná-la a realizar as supra referidas transferências bancárias, sabendo que dessa forma causava um prejuízo patrimonial aos ofendidos. 21. O arguido agiu, sempre, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal.” (sublinhados nossos) Argumenta o recorrente, como vimos, que entre estes dois grupos de factos se verifica contradição. Mas sem razão. Com efeito, uma coisa é julgar-se provado que o arguido actuou com intenção de apropriação de uma certa e determinada quantia (pontos 11. a 21. dos factos provados); outra, é dar-se como provado que o arguido remeteu à aqui assistente determinadas missivas com um certo e determinado teor (pontos 26. a 29. dos factos provados), nos termos assinalados. Não se vislumbra, assim, qualquer incompatibilidade e contradição de julgamento. O que, no fundo, pretende o recorrente é, tanto quanto se extrai do seu argumentário recursivo, colocar em causa a assertividade do julgamento da matéria de facto no que tange à factualidade atinente ao elemento subjectivo, vertido nos pontos 11. a 21. da fundamentação de facto, pois, no seu entender, do teor das aludidas missivas, bem assim das declarações prestadas pelo arguido e de todas as “envolventes sociais, históricas, pessoais, económicas”, não poderia o tribunal ter julgado provada tal imputada factualidade. Mas tal pretensão, como vimos, não se alcança por via do vício decisório invocado, previsto na al. b) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, mas antes pela impugnação da matéria de facto, mecanismo previsto no artigo 412º do mesmo diploma legal. A seu tempo, então. Também não se descortina qualquer contradição entre o julgamento da matéria de facto vertido no ponto 27. dos factos provados e o ponto I. dos factos não provados, porquanto o que resulta da leitura conjugada de ambos, bem assim da respectiva Motivação, é que não se apurou, em concreto, o motivo pelo qual a carta referida em 26. dos factos provados foi devolvida ao remetente “(se por recusa da ofendida ou por efectivamente já não residir na morada aposta no local reservado ao destinatário)”. Salvo o devido respeito, não se vê igualmente que contradição se logra extrair do conjunto dos factos provados vertidos nos pontos 11. a 21. da factualidade julgada em confronto com o facto não provado constante do ponto B. – “O arguido contactou a ofendida no início do mês de Maio de 2020, via telefone, informando-a, ainda, de que tinha sido elaborada a nota de despesas e honorários e do seu valor. Mais a informou de que o Município ... tinha sido condenado a pagar-lhe a quantia de 5.000,00 € a título de danos morais.”. E o mesmo raciocínio se tece quanto à invocada contradição entre o julgamento positivo dos factos elencados nos pontos 11. a 21. e o julgamento negativo quanto ao alegado pelo arguido na sua contestação e vertido no ponto J. da fundamentação de facto – “O arguido agiu, como agiu, convicto de que exercia de forma legítima, o direito de retenção sobre as referidas quantias, para se ver ressarcido dos honorários devidos pelos ofendidos”. É antes caso para se dizer que o julgamento positivo do primeiro grupo excluiu o julgamento positivo que se pudesse fazer do facto alegado e vertido em J, sendo o inverso também verdadeiro. Por último, atentemos no que se pode ler nos pontos C. e F. dos factos não provados: “C. Nessa mesma ocasião, quando o arguido a informou que tinha que pagar os honorários e despesas, a pronta resposta da ofendida foi: “eu não tenho nada que pagar, porque quem paga é quem perde!”. (…) F. De parte da ofendida, a resposta foi a mesma: “Eu não tenho nada que pagar, quem paga é quem perde”, ao que o arguido respondeu que ficava a aguardar pelo pagamento integral dos honorários.”. Advoga o recorrente que na Sentença sob recurso, ao se ter afirmado que a assistente admitiu ter dito ao arguido, via telefone que “quem paga é quem perde”, entra em contradição com o juízo negativo quanto à apontada factualidade. Esquece, porém, o recorrente que o tribunal ad quo, a este propósito, disse mais do que o recorrente assinala. Escreveu-se na Sentença recorrida a este propósito: “A ofendida disse que efectivamente, numa chamada telefónica com o arguido disse “quem paga é quem perde”, mas negou que tal conversa tenha sido encetada em 2020, tendo dito que foi antes em 2021. Uma vez que foram identificadas várias contradições entre as declarações prestadas pela assistente e pelo arguido, designadamente quanto à aludida conversação, foram ambos acareados, nos termos do artigo 146.º do Código de Processo Penal, tendo o arguido e a assistente mantido na íntegra as suas declarações, ficando, assim, este Tribunal sem saber quando ocorreu a aludi da conversa, se em 2020, se antes do requerimento de alteração do IBAN, se depois, se apenas em 2021 ou noutra data, daí que se tenha dado como não provados os factos B a F.” Inexiste assim qualquer contradição consubstanciadora do vício decisório previsto na al. b) do n.º 2 do artigo 410º do CPP. Uma vez mais, o que aqui pretende o recorrente é um diferente julgamento da matéria de facto, mas tal cai já no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, como vimos, sendo essa a segunda questão recursiva a dilucidar. Não se concede assim provimento à primeira pretensão recursiva. - Erro de julgamento Decorre do artigo 428º, n.º 1 do CPP que as relações conhecem de facto e de direito, acrescentando-se no artigo 431º que “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.” Nesta conformidade e para se proceder à revisão da factualidade objecto de julgamento, deve o recorrente indicar os factos impugnados, a prova de que se pretende fazer valer, identificando ainda o vício revelado pelo julgador aquando da sua motivação na livre apreciação da prova. Considerando que a recorrente/assistente cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 412º, n.ºs 1 e 3 do CPP, apreciemos a sua pretensão de impugnação ampla da matéria de facto: o Tribunal de recurso deverá revogar o julgamento positivo feito dos pontos 6., 10. (parte final), 11. a 21., passando estes a integrar o elenco dos factos não provados e, por outra banda, julgar agora como provados os factos constantes dos pontos B. a G., J. e I. da fundamentação de facto (julgados não provados pelo tribunal ad quo). Relembremos que, julgando o Juiz do julgamento de acordo com as regras da experiência e a livre convicção (vide artigo 127º do CPP), quando o Tribunal de recurso é chamado a conhecer da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto está obrigado a fazer a reapreciação da prova indicada (que implica a sua audição, quando gravada,) e de outra que tiver como necessária para aquela concreta decisão, podendo ouvir outras passagens para além das indicadas e mesmo outros depoimentos, a fim de se poder pronunciar sobre os concretos pontos de facto apontados como incorrectamente julgados, como o impõe o n.º 6 do citado artigo 412º. Ou seja, sobre os concretos pontos de facto de que, segundo o(s) recorrente(s), foram incorrectamente julgados, e com assento nas provas indicadas por este(s), o tribunal de recurso deve fazer o seu juízo, um juízo crítico autónomo, um exercício crítico substitutivo do exame crítico realizado pela primeira instância, que pode ou não coincidir com o da 1.ª instância. Deve assim o tribunal de recurso fundamentar a sua própria apreciação, não bastando que reproduza os fundamentos do tribunal a quo ou que faça uma mera remição para eles (neste sentido, Ac. STJ de 14.09.2006, Proc. n.º 06P2669, relator Juiz Conselheiro Pereira Madeira e Ac. STJ de 23.03.2006, Proc. n.º 06P547, relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho ([2]), ambos in www.dgsi.pt) (sublinhados nossos). Diz-nos também Sérgio Poças, “Processo penal, Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, in Revista Julgar, n.º 10, 2010, pág.21 e ss.”: “Na decisão de fundo sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve ser claro que a Relação desde logo ponderou devidamente a motivação /argumentação da 1.ª instância e a fundamentação/argumentação do recorrente e recorrido sobre a prova dos concretos pontos de facto em questão; que ouviu a gravação das provas indicadas pelo recorrente e outras que teve como necessárias para conhecimento da concreta matéria impugnada, que apreciou devidamente aquelas provas de acordo com as regras da experiência e que a final, num juízo autónomo, concluiu ou não, por erro de julgamento, no que diz respeito àqueles concretos pontos de facto” (sublinhado nosso). Impõe-se então ponderar as provas coligidas nos autos bem assim as demais produzidas em audiência, tanto as indicadas pelo recorrente como outras que este Tribunal entenda pertinentes, conjugando-as com as regras da experiência e do normal ser das coisas, com vista a aferir se se justifica a alteração do julgamento da matéria de facto feita pelo tribunal ad quo nos concretos pontos assinalados pela recorrente. Neste âmbito, procedeu-se à audição das declarações prestadas tanto pelo arguido, como pela assistente, tendo-se ainda atentado no depoimento das testemunhas CC (agente de execução) e BB (funcionário do arguido) e nos vários documentos juntos aos autos. Comecemos pela prova documental pois cremos que será a partir da mesma que se logrará “construir” e/ou “desconstruir” a credibilidade atribuída pelo tribunal ad quo à prova pessoal na livre e conscienciosa apreciação que da mesma fez. 1. os presentes autos iniciaram com a queixa crime apresentada a 20.04.2022 pela aqui assistente, na qual se identifica como “EE, casada, residente em ... França”, estando a mesma por si assinada (vide fls. 4 a 6 dos autos); 2. com tal queixa foram juntos vários documentos, dos quais destacamos: a. o Auto de penhora (fls. 7-8), b. requerimento de “Comunicação/Alteração do IBAN”, com a ref.ª Citius n.º 35643198, assinado digitalmente pelo aqui arguido, remetido a 27.05.2020 aos autos de execução identificados nos presentes autos (n.º ...) (fls. 9 e replicado a fls. 96); c. a fls. 10 documento de suporte prévio à realização de transferência do valor de 5.000,00€ para a beneficiária EE, sendo a conta a creditar a correspondente ao novo IBAN comunicado - NIB ...84; d. a fls. 11 documento de suporte prévio à realização de transferência do valor de 119,60€ para a beneficiária EE, sendo a conta a creditar a correspondente ao novo IBAN comunicado - NIB ...84; e. a fls. 12 impressão de dois emails remetidos pelo arguido (do email ..........@.....) para “FF”, e.1.- um remetido a 24.07.2020, pelas 10:34, com o seguinte teor: “Ex.ma Senhora: De acordo com a nossa conversa telefónica de há bocado, anexamos a carta e a nota discriminativa de despesas e honorários que foram remetidas à senhora por carta registada c/ AR, mas que foi devolvida, renovando os n/ agradecimentos para que proceda ao pagamento da mesma com a maior brevidade possível. Muito obrigado” e.2. - outro remetido a 08.09.2020, pelas 16:01, com a menção em Anexos “Carta nota desp hon.pdf” e com o seguinte teor: “D. EE Votos de muita saúde, extensivo so seu marido. Muito gostaria que as relações profissionais de há muitos anos não viessem a ter um fim indesejável, o que, da minha parte, tudo farei para que tal não aconteça. Todavia, confrontado com a sua indiferença em resolver a questão dos honorários, para além de reafirmar ter na minha conta as quantias já indicadas e postas à sua disposição, se não manifestar vontade em proceder à regularização dos meus honorários já reclamados até ao final do corrente mês, levando em conta as quantias em meu poder, se assim o entender, ver-me-ei obrigado a reclamar os honorários em tribunal. Muito obrigado AA” 3. a fls. 21 v.º consta cópia da decisão do Agente de execução nos aludidos autos de Execução Sumária n.º ..., de extinção da execução datado de 02.07.2020; 4. a fls. 22 cópia do Requerimento executivo que deu início aos autos de execução referidos, onde a exequente (a aqui assistente, patrocinada pelo aqui arguido) requereu (ainda) a fixação de uma sanção pecuniária compulsória em montante não inferior a 5.000,00€; 5. a fls. 42 v.º cópia de DUC, com a indicação do montante a pagar de 25,50€ e a fls. 43 cópia de talão de MB comprovativo do respectivo pagamento efectuado a 25.05.2018, com cartão associado à conta n.º ...30; 6. a fls. 46 e ss. constam 10 (dez) documentos juntos pelo aqui arguido quando inquirido a 30.05.2022 nos Serviços do Ministério Público na qualidade de testemunha; a. a fls. 46-46 v.º fotocópia do sobescrito e do talão de AR alusivo a correspondência registada remetida na data de 02.07.2020 pelo aqui arguido à aqui assistente e marido, para a morada “... França”, a qual veio devolvida com a menção “Destinateire inconnu à l´adress”; b. a fls. 48 -52 cópia da carta remetida nos moldes descritos em 6.a., datada de 02.07.2020, com o seguinte teor: “Ex.mos Senhores: Junto remetemos a nota de despesas e honorários discriminados, cuja liquidação antecipadamente agradecemos. Entretanto, queremos relembrar-lhes que a Senhora Agente de Execução, D. CC, transferiu para o n/ IBAN as quantias de 5.000,00 € (cinco mil euros) e 119,60 € (cento e dezanove euros e sessenta cêntimos) relativas à indemnização por danos morais e custos da Fase 1 da Execução, em que foi condenado o Município .... Conforme já por nós foram informados, não queremos ter essas quantias em n/ poder, pelo que, fica na V/ disponibilidade servirem-se dessas importâncias para nos pagar os honorários e demais despesas, completando o que falta com a transferência para o n/ IBAN ...84 – ..., com a maior brevidade possível.”; c. Nota de despesas e honorários (fls. 49 a 52), com indicação do valor a pagar de 7.125,50€; 7. a fls. 53, cópia do mesmo email referido em e.1., remetido a 24.07.2020 pelo arguido (de ..........@.....) para “FF”, como a menção de Anexo “Carta nota desp hon.pdf”. 8. a fls. 54 novo email remetido a 17.08.2020, às 15:38, pelo arguido (de “..........@.....”) para “FF”, com o seguinte teor: “Dona EE Continuamos a aguardar a resolução do pagamento dos meus honorários, já por diversas vezes comunicado. Muito obrigado AA”; 9. a fls. 55, cópia dos emails referidos em e.1. (e 7.) e e.2. 10. a fls. 56 novo email, remetido a 06.10.2020, às 16:09, pelo arguido (de “..........@.....”) para “FF”, com o seguinte teor: “Ex.ma Senhora Votos de muita saúde. Pela última vez vimos notificá-la de que tem à sua disposição o dinheiro que nos foi transferido para Senhora Agente de Execução D. CC. De igual modo, pela última vez, queremos lembrar-lhe de que os meus honorários, reclamados por diversas vezes, se encontram por liquidar, sem quem me seja apresentada qualquer justificação. Deste modo, mesmo contra a minha vontade, não deve constituir para si qualquer surpresa a acção de honorários que entendo dever propor, face ao seu completo silêncio, o que muito me surpreende e de que não estava à espera. Muito obrigado”; 11. A fls. 65 a 75, constam os elementos bancários solicitado pelo MP à Banco 1..., dos quais resulta que a conta com o IBAN ...84, do tipo à ordem, com o número de conta ...30 e o NIB ...84 é titulada pelo aqui arguido, evidenciando o respectivo extracto bancário o recebimento de duas transferências por parte de CC, na data de 02.06.2020, dos montantes de 5.000,00 € e 119,60 €. 12. A acompanhar o RAI, juntou o arguido a fls. 147 a 161 os documentos que infra se elencam: a. cópia do envelope e talão de AR referidos em 6.a. (fls. 147); b. a fls. 148 a 153 quatro missivas remetidas via email pelo arguido uma a 11.10.2021, outra a 14.02.2022, a terceira a 22.02.2022 e a última a 03.03.2022, para “..........@.....”, (mandatário constituído da aqui assistente nos presentes autos - vide Procuração Forense junta a 28.11.2023, ref.ª Citius n.º 9227447), nas quais se pode ler: “(…) por diversas vezes, por telemóvel ou através de email, lhe solicitei o pagamento dos meus honorários, fazendo-lhe ver que caso não o fizesse os reivindicaria pela via judicial.(…) (…) sendo certo que ultimamente deixou de atender as minhas chamadas telefónicas” (fls. 148); “(…) Aproveito a oportunidade para relembrar ao Ex.mo Colega o que ficou a constar na m/ carta de 02 de julho de 2020 dirigida à D. EE e os demais emails de 24 de julho, 17 de agosto, 08 de setembro e 06 de outubro e documentos que anexei à minha resposta de 11 de outubro e cujo teor mantenho na íntegra.(…)” (fls. 149); no email de 22.02. (fls. 150-152), a dado passo lê-se: “(…) quero deixar bem claro que após terem sido transferidos para o meu IBAN as quantias de 5.000,00 € e 119,60 € dei de imediato conhecimento desse facto à D. EE, mais a informando de que não queria ter essas quantias em meu poder, as quais poderiam servir para pagar parcialmente os meus honorários e demais despesas, renovando esse esclarecimento e pedido nas sucessivas interpelações que seguidamente lhe dirigi, conforme cópias que fiz questão de juntar na resposta ao Ex.mo Colega. (…); no último dos emails: “(…) renovo a minha disponibilidade, como sempre fiz, para com a mesma discutir os valores em questão, sem prejuízo de que me seja garantido o pagamento dos honorários e reembolso das despesas que me são devidas.” c. dois Pareceres do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, um de 22.01.2021 e outro de 26.09.2019 sobre o exercício do direito de retenção. d. a fls. 160 cópia do DUC e talão de MB referidos em 5. e. a fls. 161 cópia do requerimento executivo referido em 4. e cópia de talão de MB comprovativo de pagamento efectuado a 28.05.2018, com cartão associado à conta n.º ...30, no valor de 94,10 €, entidade ...37, referência ...82; 12. Em sede de audiência de discussão e julgamento foi oficiosamente determinada a solicitação aos autos de Execução sumária n.º ... de certidão do requerimento executivo e do comprovativo da liquidação da taxa de justiça que o acompanhou (vide Acta de fls. 288 e ss.), o que se mostra junto a fls. 292 a 315. O aludido comprovativo, junto a fls. 314 v.º é no valor de 25,20 €, datado de 25.05.2018, efectuado com cartão bancário associado à conta n.º ...30 (já referido no ponto 5 do presente elenco documental); 13. Juntou o arguido, na fase de julgamento, 16 (dezasseis) documentos, os quais constam de fls. 317 a 340, extraídos dos identificados autos de execução sumária, nomeadamente: a. a fls. 321 constam os dados para pagamento dos honorários da Fase 1 ao AE designado no Proc. n.º ...: entidade ...37, referência 809512960, montante Fase 1: 94,10 € e como data limite de pagamento 20.09.2018, e respectivo talão comprovativo de pagamento por MB (este, ilegível). A par da elencada prova documental, importa ainda atentar no processado: a carta registada com AR remetida a 07.11.2022 pelos serviços do MP com vista à notificação da agora assistente da acusação deduzida (vide fls. 123), para a morada constante da queixa crime apresentada veio devolvida com a menção “destinataire inconnu à l´adresse” (vide fls. 162), na sequência do que foi determinado contacto com o ilustre advogado JJ com vista a aferir do actual paradeiro e contacto telefónico da agora assistente (fls. 163), ao que este, em contacto telefónico, informou que “apenas conhece a morada francesa de EE” (cfr. cota lavrada nos autos a 16.12.2022 (fls. 167)), solicitação essa feita posteriormente por escrito (vide notificação de fls. 172). Mais se determinou a notificação da identificada EE na morada “...” (fls. 163), o que foi feito, tendo sido a correspondência expedida assinada por terceira pessoa (vide fls. 174). Deste arrazoado desde logo questionamos a veracidade da declaração prestada em audiência pela assistente quando afirmou que já desde 2016 não residia na morada para qual o arguido remeteu a missiva referida no ponto 26. dos factos provados. Com efeito, se assim fosse, como explicar ter a assistente assinado pelo próprio punho a queixa que apresentou a 20.04.2022, na qual consta a aludida morada em França? Como explicar de igual forma que a 16.12.2022 essa era a única morada que o Il. Mandatário da assistente nos presentes autos conhecia? A resposta só pode ser uma: porque, efectivamente, a morada da assistente era até, pelo menos, às apontadas datas, aquela que se mostra registada na queixa apresentada e para a qual o arguido, na data de 02.07.2020, remeteu a missiva que lhe veio a ser devolvida. E se assim é, como entendemos que o é, pois tal o ditam as regras da experiência e da normalidade das coisas, só há uma razão para a assistente ter declarado o que declarou em audiência e bem assim ter sido a apontada missiva devolvida ao remetente, o aqui arguido. Essa razão é a que consta do facto não provado sob a letra I: a assistente não a quis efectivamente receber. Passamos a explicar. Não ignorando nós que a menção aposta pelos serviços postais na referida correspondência é “endereço desconhecido”, a verdade é que “Há muitas formas de apanhar pulgas!” - adoptando a ilustrativa expressão de que o arguido se socorreu nas declarações que prestou. A assistente tinha as suas razões para recusar receber a missiva em causa: não desejava ser confrontada com a nota de despesas e honorários que o arguido, em prévio contacto telefónico, lhe havia transmitido que lhe iria necessariamente remeter, em virtude do trabalho desenvolvido no âmbito do identificado processo de execução sumária, valores esses que a assistente, nesse mesmo contacto telefónico, manifestou não pretender pagar. Só assim se compreende e justifica o teor da aludida missiva, do qual sublinhamos o recurso às expressões “(…) querendo relembrar-lhes (…)”, “Conforme já por nós foram informados (…)”, e dos sucessivos emails remetidos pelo aqui arguido à assistente: “De acordo com a nossa conversa telefónica de há bocado (…) renovando os n/ agradecimentos para que proceda ao pagamento da mesma com a maior brevidade possível.”; “(…) confrontado com a sua indiferença em resolver a questão dos honorários (…)”; “Continuamos a aguardar a resolução do pagamento dos meus honorários, já por diversas vezes comunicados.” Dir-se-á que inexiste, nos autos, prova (directa) para alinharmos pela verificação do contexto dos factos apresentado pelo arguido. É certo. Mas já ninguém discute a possibilidade do tribunal se socorrer de prova indiciária para a prova dos factos objecto dos autos – sejam os vertidos na acusação pública deduzida, sejam os elencados na contestação apresentada em juízo pelo arguido. Com efeito, a prova por presunções constitui um meio de prova legalmente previsto no artigo 349º do Código Civil (doravante CC). Nos termos do citado preceito “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”. Esclarecendo o artigo 351º do mesmo diploma que “As presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal”. Assim, não sendo afastada a sua relevância no processo penal por qualquer disposição legal, constituirá meio de prova permitido em processo penal, dentro do princípio geral do artigo 125º do CPP: “São admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei.” Ora as presunções legais ou de direito resultam da própria lei. Enquanto as presunções de facto - judiciais, naturais ou hominis – fundam-se nas regras da experiência comum. Na expressão de Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, edição de 1985, pág. 502, “é no saber de experiência feito que mergulham as suas raízes as presunções continuamente usadas pelo juiz na apreciação de muitas situações de facto”. Diz-nos ainda a doutrina espanhola, pela pena de Carlos Climent Durán, in “La Prueba Penal, Doctrina e Jurisprudência”, ed. Tirant Blanch, Barcelona, pág. 578-579: “O seu fundamento já não assenta no juízo de probabilidade, mas antes no juízo de certeza (certeza moral), como qualquer outro meio probatório ao qual a presunção se parifica. (…) Toda a presunção consiste, dizendo em poucas palavras, em obter a prova de um determinado facto (facto presumido) partindo de um outro ou outros factos básicos (indícios) que se provam através de qualquer meio probatório e que estão estreitamente ligados com o facto presumido, de maneira tal que se pode afirmar que, provado o facto ou factos básicos, também resulta provado o facto consequência ou facto presumido”. Diga-se até, que a associação entre elementos de prova objectivos e regras objectivas da experiência, leva alguns autores ([3]) a afirmarem a sua superioridade perante outros tipos de provas, nomeadamente a prova directa testemunhal, onde também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será mais perigoso de determinar, qual seja a credibilidade do testemunho. A utilização de presunções exige, todavia, da parte do tribunal, um particular esforço de fundamentação. Desde logo porque estas apresentam uma estrutura mais complexa que os restantes meios de prova. Com efeito, não só há-de resultar provado o(s) facto(s) básico(s), mas há-de determinar-se, ainda, a existência ou conexão racional entre esse(s) facto(s) e o(s) facto(s) consequência(s). Além de se permitir, em concreto, a análise de toda a prova produzida em sentido contrário com vista a desvirtuar quer os indícios, quer a conexão racional entre esses indícios e o(s) facto(s) consequência(s). Daí que, para a valoração de tal meio de prova (também chamada circunstancial ou indiciária), devam exigir-se, os seguintes requisitos: - pluralidade de factos-base ou indícios; - precisão de tais indícios estejam acreditados por prova de carácter directo; - que sejam periféricos do facto a provar ou interrelacionados com esse facto; - racionalidade da inferência; - expressão, na motivação do tribunal de instância, de como se chegou à inferência ([4]). O Tribunal Constitucional já por várias vezes se pronunciou pela não inconstitucionalidade do artigo 127º do CPP, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal – vide Ac. TC n.º 391/2015. Esta jurisprudência veio a ser posteriormente reiterada nos Acs. n.ºs 578/2016, 197/2017, 149/2018, 541/2018 e 717/2019, todos consultáveis em tribunalconstitucional.pt, que confirmaram decisões sumárias que haviam remetido para a fundamentação de tal aresto. Posteriormente, no Ac. n.º 521/2018, consultável também em tribunalconstitucional.pt, o TC foi chamado a pronunciar-se sobre dimensão normativa semelhante, extraída do artigo 125º do CPP, tendo concluído que tal preceito, na interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal, não viola os princípios da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo penal, consagrados nos n.ºs 2 e 5 do artigo 32.º da Constituição. No que respeita à alegada violação do princípio da presunção de inocência, este aresto, depois de reiterar a argumentação do Ac. n.º 391/2015, acrescentou o seguinte: “Ao contrário do que afirma o recorrente nas suas alegações, o juízo firmado no citado aresto, a propósito da admissibilidade constitucional do recurso a presunções judiciais em processo penal, não está delimitado às fases processuais do inquérito ou da instrução, valendo antes para todas as fases, nomeadamente para o julgamento. Assim é porque, no plano probatório, o que distingue essas fases não é o universo dos meios de prova que podem ser considerados para a formação da convicção subjacente às decisões finais que os encerram. É o estalão probatório exigido em cada uma delas que é radicalmente diferente nas fases de inquérito e instrução, por um lado, e na fase de julgamento, por outro. (…) 9. Acresce que a distinção entre prova direta e indireta não se baseia num predicado epistemológico – a idoneidade ou o valor do meio de prova −, mas num predicado lógico – a relação entre a prova e o facto. A distinção justifica-se, essencialmente, por razões de comodidade analítica. Possui ainda a virtude metodológica de permitir discriminar processos inferenciais de complexidade diversa, na medida em que a prova indireta implica, por natureza, uma cadeia de raciocínio entre o facto probatório e o facto probando, ao passo que a prova direta do facto probando decorre imediatamente da adesão do julgador ao facto probatório. Porém, tal distinção nada de relevante encerra sobre a força probatória dos meios de prova que através dela se classificam, como se demonstra através da comparação entre o depoimento de uma testemunha de credibilidade duvidosa no sentido de que o arguido estava em determinado local a determinada hora e a inferência de que tal não é possível porque o arguido integra a lista de passageiros de um voo que decorria a essa hora. A solidez do raciocínio probatório não é uma função da tipologia da prova, senão da verosimilhança dos factos e da validade das inferências deles extraídas. Nesta medida, só perante os contornos do caso concreto e os elementos probatórios disponíveis no processo se poderá aferir da maior ou menor força dos meios de prova diretos e indiretos que se tenham produzido, nada obstando à prevalência de uns sobre os outros e mesmo à possibilidade de uma prova indireta constituir fundamento suficiente para a demonstração judicial da verdade. Indispensável é que a prova indireta atinja o limiar de certeza exigível para uma condenação em processo penal. (…) Importa, pois, concluir que o recurso a prova indiciária, designadamente a presunções judiciais, não contende com o princípio da presunção de inocência do arguido.” ([5]) Refira-se ainda que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já se pronunciou sobre a admissibilidade do recurso a prova indireta em processo penal, designadamente no caso John Murray v. Reino Unido, decidido por Ac. de 08.02.1996. A formulação de juízos de inferência incriminatórios encontra-se, segundo o TEDH, condicionada à verificação de determinados pressupostos: (i) a acusação deverá estabelecer previamente, através de prova direta, as circunstâncias que permitem o juízo de inferência; (ii) estas deverão permitir que nelas se apoie a conclusão inferida; e (iii) a conclusão inferida (de que se encontram provados os elementos essenciais do crime) deverá ser estabelecida para além de dúvida razoável. A estes requisitos devem acrescer garantias processuais destinadas a assegurar que o juízo de inferência seja racionalmente exposto e sindicável por via de recurso. Onde tais exigências se mostrem cumpridas – como é o caso do ordenamento processual penal português −, a prova indireta é perfeitamente admissível à luz do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Assim, radicando a presunção concreta no sentido explanado, assente em meios de prova objectivos, concretos, devidamente analisados e explicitados na motivação da decisão, com efectivo exercício do contraditório, nada impede a sua utilização em processo penal. Foi o que fizemos: acaso o tema da necessidade de pagamento de honorários fosse totalmente desconhecido para a assistente, e não pretendendo esta proceder ao respectivo pagamento, teria a mesma necessidade de se tornar e manter incontactável, evitando todas as formas de contacto efectuadas pelo arguido, todas elas de forma similar ao que até então havia feito – telefone, carta e correio electrónico? Estamos em crer que não. Mais: não se crê que a assistente desconhecesse as várias e insistentes tentativas de contacto desenvolvidas pelo arguido, tanto mais que junto com a queixa apresentou prints de duas comunicações via email que lhe foram pelo arguido remetidas, prints esses que só lograria ter obtido se tivesse recebido, como recebeu, e lido, como leu, tais missivas electrónicas. E ainda: se a assistente, como declarou, aguardava o recebimento da quantia de 5.000,00 € que a Câmara Municipal lhe haveria de pagar no âmbito do processo executivo em curso, conforme lhe havia sido transmitido pelo arguido em Setembro de 2019 – segundo declarou -, porque razão não contactou o arguido, no decurso do ano de 2020, para se inteirar do desenrolar do aludido processo? Pode dizer-se que os problemas de saúde do marido poderão ser uma das razões. Contudo, uma outra questão se coloca: qual o motivo para a assistente, no ano de 2021, como referiu, ter diligenciado junto do Banco e da AE para saber do paradeiro da referida quantia e não junto do arguido? Qual o motivo para não o ter contactado, fosse por telefone, carta ou email, como até então o vinha fazendo – vide pontos 24. e 25. dos factos provados? E um só existe, como bem advoga o recorrente: a assistente não desejava enfrentar o arguido (ou ser por este confrontada), pois sabia que perante o mesmo se encontrava em falta, havendo que proceder a um “acerto de contas” por conta dos honorários em dívida, os quais eram em montante superior a 5.000,00 €, conforme lhe havia sido transmitido pelo arguido. A explicação dada em julgamento pela assistente de que havia ficado convencida que não havia nada mais a pagar – o arguido ter-lhe-á dito para ficar descansada que “não tinha que pagar mais nada” (sic) -, não convence, pois que ainda que seja verdadeiro o brocado por si invocado de “quem paga é quem perde”, é consabido que os honorários do advogado com quem se celebra um contrato de mandato forense são sempre suportados pelo mandante, in casu, a assistente. Aliás, a assistente não era estreante nestas “andanças” – veja-se ponto 2. dos factos provados - e não estamos em crer que convencida estivesse que o aqui arguido cumprisse as obrigações decorrentes de tal contrato pro bono. Acresce, dizemos nós, que a assistente tinha todo o interesse em, junto do arguido, “colocar tudo em pratos limpos” (se nos é permitido o uso da expressão), após ter, como afirmou, “descoberto” que o arguido se havia apropriado dos aludidos 5.000,00 €. O arguido era seu mandatário há mais de 20 anos, tendo cuidado dos mais variados processos judiciais, contraordenacionais e outros - vide ponto 2. dos factos provados -, pelo que não se compreende o comportamento da assistente em evitar confrontar o arguido com toda a situação aqui em discussão. Pelo exposto, o declarado pela assistente, a propósito de todos estes pontos vindos de sublinhar, não evidencia razoabilidade nem coerência lógica, sendo ademais contrariada pelos apontados documentos coligidos nos autos, não sendo ainda de ignorar a forma “esquiva” e titubeante com que muitas vezes respondeu às questões que lhe foram colocadas, mormente às instâncias do Il. Mandatário do arguido. Estamos assim em crer que a prova documental supra elencada permite alcançar uma outra verdade processual (que não se confunde, por impossibilidade, com a verdade ontológica) diversa daquela que alcançou o tribunal ad quo. Tais meios de prova, analisados criticamente e com recurso a presunções (judiciais), permitem uma outra reconstituição (possível) do passado. Como nos diz o Ac. STJ de 06.10.2010, Proc. n.º 936/08.JAPRT, relator Juiz Conselheiro Henriques Gaspar, consultável em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/91a6f4a69d88b0268025787f0050ce09?OpenDocument: “A verdade processual não é mais, nem pode ser diversa, da reconstituição possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos e princípios e regras estabelecidos. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos. Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras de experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais. A observação e verificação do homem médio constituem o modelo referencial. Na dimensão valorativa das “regras da experiência comum” situam-se as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.” Ainda com base em tal prova documental, lida e conjugada com as regras da experiência e da normalidade das coisas, e pelo que dito ficou, estamos em crer, e salvo o devido respeito pelo julgamento em consciência levado a cabo pelo Tribunal ad quo, que errado foi tal julgamento quanto à facticidade descrita nos pontos 10., in fine, 11., 12., 13., 16., 17., 19., 20. e 21., na parte em que aí consta que o arguido fez suas as quantias de 5.000,00 € e 119,60 €, que se apoderou das mesmas, que as aplicou em seu próprio benefício, que agiu com o propósito de alcançar um benefício indevido para si, que causou uma diminuição patrimonial aos ofendidos em valor igual. Passamos a explicar. Em primeiro lugar, o teor da missiva remetida pelo arguido à assistente, via CTT, em 02.07.2020 (vide o supra ponto 6.a.) é inequívoco: “não queremos ter essas quantias em n/ poder”; Em segundo lugar, nos posteriores contactos via email (vide, v.g., ponto 10. Supra indicado), o arguido insiste: “tem à sua disposição o dinheiro que nos foi transferido para Senhora Agente de Execução D. CC”. Em terceiro lugar, e mais recentemente, em missiva remetida pelo arguido ao mandatário da aqui assistente: “(…) quero deixar bem claro que após terem sido transferidos para o meu IBAN as quantias de 5.000,00 € e 119,60 € dei de imediato conhecimento desse facto à D. EE, mais a informando de que não queria ter essas quantias em meu poder, as quais poderiam servir para pagar parcialmente os meus honorários e demais despesas, renovando esse esclarecimento e pedido nas sucessivas interpelações que seguidamente lhe dirigi, conforme cópias que fiz questão de juntar na resposta ao Ex.mo Colega. (…)”. E no último dos emails: “(…) renovo a minha disponibilidade, como sempre fiz, para com a mesma discutir os valores em questão, sem prejuízo de que me seja garantido o pagamento dos honorários e reembolso das despesas que me são devidas.” Sendo estas as palavras escritas do arguido, tendo ainda o mesmo afiançado em sede de julgamento, bem assim a testemunha BB, que as aludidas quantias ainda se encontram depositadas na conta bancária do arguido identificada nos autos, resultando das referenciadas missivas que se encontrava pendente, à data, a questão do pagamento pela assistente ao arguido dos honorários, não se consegue alcançar o mesmo juízo probatório da Sentença sob recurso: os actos cometidos pelo arguido, são actos concludentes que revelam uma intenção de causar prejuízo à assistente e obter para si um enriquecimento ilegítimo. Com efeito, e como já acima aflorado, não resulta dos autos que o contrato de mandato forense ([6]) celebrado entre o arguido e a assistente fosse gratuito (nem tal se mostra consentâneo com as regras da experiência, nem com a própria natureza do contrato, como decorre do artigo 105º do Estatuto da Ordem dos Advogados, doravante EOA), estando ainda vedada a celebração por este mesmo Estatuto, no seu artigo 106º, de pactos de quota litis ([7]). Assim, se entendia o arguido, por decorrência do desenvolvimento e cumprimento pela sua parte do aludido contrato de mandato forense, ter direito a receber da assistente o pagamento dos invocados honorários, não se vislumbra como se pode julgar provada a facticidade imputada de que o arguido actuou com vista a obter um enriquecimento, ademais, ilegítimo. Ainda uma outra nota: também da prova documental supra elencada resulta claro que a quantia de 119,60 € que veio a ser depositada na conta do arguido corresponde ao somatório de duas parcelas pagas com cartão MB associado à supra identificada conta bancária titulada pelo arguido, pagamentos esses feitos por referência a DUC´s emitidos no âmbito dos aludidos autos de execução sumária – 25,50 € e 94,10 €. Desta feita, é-nos permitido equacionar se tais montantes foram adiantados pelo arguido (e por tal objecto de discriminação na Nota de Despesas e Honorários – vide fls. 49 e ss.), ou se estariam “cobertos” por alguma provisão prestada antecipadamente pela assistente. Ora, como tal dúvida se mostra inultrapassável, há que lançar mão do princípio in dubio pro reo e, dessa feita, considerar-se incorrecto o julgamento feito pelo tribunal ad quo quando, nos pontos 10., 11., 12., 13., 16., 17., 19., e 20., faz o somatório de tal quantia àquela outra de 5.000,00 €, sendo o valor global de 5.119,60 € o alegado prejuízo sofrido pelos ofendidos. Note-se que o vindo de dizer, nada tem a ver com o decidir-se se ao arguido assistia ou não o exercício de um direito de retenção, direito que o EOA consagra no seu artigo 101º, n.º 2. Ainda que invocado pelo recorrente, o certo é que nos colocamos num momento anterior a tal: emergindo do contrato de mandato forense obrigações recíprocas, impondo-se à assistente o pagamento dos correspondentes honorários, o eventual enriquecimento do património do arguido da forma que se encontra descrita nos pontos 4. a 10. dos factos provados não se pode ter por ilegítimo. Subjacente a tal imputado enriquecimento, sempre esteve o contrato de mandato forense que à data obrigava ambas as partes contraentes, afastando-se assim a ilegitimidade do imputado enriquecimento. De outra banda, não se logra entrever qual o concreto prejuízo patrimonial causado aos ofendidos, sabedores que eram da obrigação que sobre si impendia decorrente do aludido contrato de mandato forense celebrado com o arguido (o que não se confunde com o desconhecimento do montante em concreto em que tais honorários importariam). O prejuízo patrimonial não se confunde com a indisponibilidade imediata e momentânea sobre uma qualquer quantia monetária, mas antes significa todo o empobrecimento do património do ofendido, descontado o proveito que este tenha obtido em consequência da conduta do agente. Implica, o prejuízo patrimonial, um verdadeiro dano patrimonial, na medida em que incluiu a provocação de um prejuízo e a não obtenção de um ganho. Se é certo que a quantia de 5.000,00 € foi paga pelo exequente nos aludidos autos de execução sumária com vista ao ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pelos exequentes [e a demais quantia de 119,60 € se reporta ao reembolso de despesas “pagas” ([8]) a título de custas], não menos verdadeiro é, repete-se, que aqueles tinham sobre si uma obrigação: a de cumprir a sua parte no contrato de mandato celebrado com o arguido, procedendo ao pagamento dos respectivos honorários (e eventual reembolso de despesas adiantadas pelo aqui arguido). A não entrega da apontada quantia aos ofendidos, por parte do arguido, não teve como fito impedir a obtenção, por estes, de um ganho, mas sim, e mais uma vez se afirma, a de os “fazer sentar à mesa das negociações” (permitam-nos, uma vez mais o uso de expressão coloquial), constituindo tal quantia uma “garantia” do pagamento dos honorários devidos, resultando claro dos documentos supra apontados que o arguido não queria ter em seu poder tais quantias “(…) as quais poderiam servir para pagar parcialmente os meus honorários e demais despesas (…)”. Com efeito, quem tem intenção de causar prejuízo a outrem e age em conformidade com tal, não afirma: “(…) renovo a minha disponibilidade, como sempre fiz, para com a mesma discutir os valores em questão” [ainda que ressalvando “sem prejuízo de que me seja garantido o pagamento dos honorários e reembolso das despesas que me são devidas.”]. Um ponto mais: se é certo que o arguido procedeu conforme se mostra provado nos pontos 4. e 5. (o mesmo assumiu tal comportamento em sede de audiência de julgamento), resultou, porém, do depoimento da testemunha CC que a transferência das quantias em causa que fez para o “novo” IBAN, fê-lo “de forma automática”, por ser o IBAN que o programa Citius lhe indicava, sendo-lhe “indiferente” a que conta bancária correspondia o aludido IBAN – se aos exequentes, se ao aqui arguido. E esta afirmação da testemunha não gera surpresa de maior, conquanto várias situações da vida existem em que os exequentes podem até nem ter conta bancária para onde as quantias exequendas possam vir a ser transferidas, ou até, por variados motivos não pretendem ter quantias monetárias nas respectivas contas bancárias, fornecendo assim dados relativos a contas bancárias de terceiros, ou mesmo dos respectivos mandatários, com quem, posteriormente, procedem ao respectivo acerto de contas. Desta feita, e mais uma vez ressalvando o devido respeito, não poderia o tribunal ad quo fazer um julgamento positivo quanto à factualidade constante da segunda parte do ponto 20., nem tão pouco da constante no ponto 18. e bem assim da parte final do ponto 8., todos do elenco dos factos provados. Quanto a este último, pese embora não impugnado, importa que seja alterado, por força do disposto no artigo 403º, n.º 3 do CPP. Uma última observação: refere-se na Sentença sob recurso que o arguido “não disse a verdade” e que “as declarações prestadas pelo arguido não convenceram este Tribunal, desde logo na parte em que tentou infirmar a factualidade vertida em 11. a 21.” Há que, neste conspecto, afastar a tentação, aliás proibida pelos princípios da dignidade humana e da presunção de inocência (artigos 1º e 32º, n.º 2 da CRP), de dar como provados aqueles factos a partir da “falta de verdade” do arguido. Como é consabido, existe uma proibição de desfavorecimento, a partir do silêncio ([9]) e das falsas declarações, no momento da determinação da culpabilidade. Se é inadmissível, num Estado de Direito, inscrever na constelação de direitos do arguido em processo penal o direito à mentira, certo é que também não recai sobre ele um dever de verdade. Um e outro não constam desde logo da previsão do artigo 61º, n.ºs 1 e 6 do CPP. A este propósito ensina o Ac. STJ de 12.03.2008. Proc. n.º 08P694, relator Juiz Conselheiro Santos Cabral, consultável em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6082ccff48a8006980257421003b9252?OpenDocument): “não ressaltam quaisquer consequências práticas para o arguido que minta, uma vez que tal mentira não deve ser valorada contra ele, quer ao nível substantivo autónomo das falsas declarações, quer ao nível dos direitos processuais daquele. Conclui-se, então, que não existe, por certo, um direito a mentir que sirva como causa justificativa da falsidade. O que sucede simplesmente é ter a lei entendido, ser inexigível dos arguidos o cumprimento do dever de verdade, razão por que renunciou nestes casos a impô-lo”. A mentira do arguido, prossegue o aresto citado, não é mais do que “uma intolerável presunção de não cidadania, ou seja, de que colocado perante a possibilidade de escolha o arguido mente”, ainda que tal não possa ser penal e processualmente valorado contra si. Em suma: a mentira do arguido não faz prova da verdade do facto contrário. Vem tudo isto ao caso para dizer que, ponderados os meios de prova documentais e pessoais supra elencados, bem assim as apontadas presunções judiciais, entendemos que não existe substracto probatório [bastante] para julgar provada a facticidade julgada provada nos pontos 11. a 21., tendo outrossim resultado provada versão dos factos apontada pelo arguido na sua contestação, considerando a conjugação de tais meios de prova com as regras da experiência e do normal ser e advir social e histórico. Assim, importa que se conceda provimento ao recurso interposto pelo arguido na parte atinente à impugnação da matéria de facto, passando da Fundamentação de facto a constar o seguinte elenco de factos provados e não provados: Factos provados [1. O arguido AA exerce a profissão de advogado, com a cédula profissional n.º ...34..., com domicílio profissional na Rua ..., .... 2. Os ofendidos EE e FF intervieram, na qualidade de Exequentes, no processo executivo n.º ..., que correu termos no Juízo Central de Execuções ... – J2, da comarca do Porto Este. 3. O arguido interveio no referido processo, como mandatário forense dos ofendidos. 4. No dia 27.05.2020, no âmbito do referido processo executivo e no exercício do respectivo mandato forense, BB, funcionário do escritório onde labora o arguido e exclusivamente a mando deste, dirigiu um requerimento ao referido processo executivo, com a Ref.ª 35643198, por escrito que subscreveu, comunicando a alteração do IBAN dos ofendidos. 5. Com efeito, BB, a mando do arguido, nesse requerimento comunicou ao referido processo executivo que o IBAN dos ofendidos: ...05 seria substituído pelo IBAN ...84, respeitante a uma conta bancária da Banco 1... por si titulada, tendo em vista ver creditado na sua conta bancária a quantia exequenda e as custas processuais da responsabilidade do Executado e devidas aos ofendidos. 6. O arguido não deu conhecimento de tais factos aos ofendidos, pelo que estes não sabiam que os pagamentos da quantia exequenda e das custas processuais da responsabilidade do Executado seriam efectuados para a conta bancária titulada pelo arguido. 7. O Juízo Central de Execuções ... procedeu à alteração do IBAN dos Exequentes no referido processo executivo, aqui ofendidos, seguindo as instruções dadas pelo arguido, associando o IBAN da conta bancária titulada pelo arguido.] 8. No dia 29.05.2020 a agente de execução CC, no âmbito do referido processo executivo, emitiu duas ordens de pagamento, que gerou, no programa informático dos agentes de execução GSEPE, transferindo as quantias de 5.000,00 € e de 119,60 € para a conta titulada pelo arguido da Banco 1..., com o IBAN ...84. 9. No dia 02.06.2020, os referidos montantes foram creditados na conta bancária, supra identificada, titulada pelo arguido. 10. Não obstante o arguido ter recebido tais quantias no âmbito do referido processo executivo, não entregou as quantias de 5.000,00 € e de 119.60 € aos ofendidos. 11. Em data não concretamente apurada, os ofendidos tiveram conhecimento do descrito em 4., 5., 7., 8. e 9.. 12. O arguido, através do requerimento supra referido, previu e quis dar instruções ao Juízo Central de Execuções ... no âmbito do referido processo executivo, comunicando-lhe a supra referida alteração do IBAN, bem sabendo que, ao efectuar essa comunicação, iria ver creditada a referida quantia global na sua conta bancária supra identificada. 13. Bem sabia o arguido que não estava autorizado pelos ofendidos para actuar da forma como actuou. 14. Com a descrita conduta, o arguido previu e quis impedir, como impediu, que as quantias de 5.000,00 € e de 119,60 € fossem creditadas na conta bancária dos ofendidos, logrando vê-las creditadas na sua conta bancária. Da contestação 15. O arguido foi mandatário da assistente EE em diversos processos judiciais e extrajudiciais, por mais de 20 anos. 16. Durante os mais de cerca de 20 anos em que foi seu advogado, o arguido exerceu o patrocínio forense em sua representação, em diversos processos judiciais litigiosos (comuns declarativos, processos crime, execuções e recursos), contraordenacionais e outros, nomeadamente contra o seu ex cônjuge, o seu filho GG, contra a Câmara Municipal ..., e a Inspeção Geral da Administração Interna. 17. Muito desse patrocínio forense foi pelo arguido executado sem que a ofendida EE residisse, com permanência, em ..., porquanto a mesma apenas se deslocava a ... nos meses de Agosto e Setembro (meses de férias judiciais), pelo facto de viver, habitualmente, em França, ou, esporadicamente, uma a duas vezes e, por períodos curtos, fora do período de férias. 18. No entanto, o arguido e a assistente falavam, habitual e frequentemente, via telefone e/ou email, meios através dos quais a assistente se mantinha totalmente a par das questões jurídicas em curso, designadamente, do estado e orientação dos processos, das quantias a pagar e/ou a receber relativas as taxas justiça, custas judiciais, honorários e outras despesas. 19. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 27.05.2020, o arguido informou a assistente de que o Município ... tinha sido condenado a pagar-lhe a quantia de 5.000,00 € a título de danos morais. 20. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 27.05.2020, o arguido contactou a assistente, via telefone, informando-a de que tinha sido elaborada a nota de despesas e honorários e do seu valor. 21. Nessa mesma ocasião, quando o arguido a informou que tinha que pagar os honorários e despesas, a resposta da assistente foi: “eu não tenho nada que pagar, porque quem paga é quem perde!”. 22. O arguido respondeu que ficava a aguardar pelo pagamento integral dos honorários. 23. Entretanto os dias foram passando, sem que o arguido tivesse obtido qualquer resposta, apesar de inúmeros telefonemas que lhe fazia e aos quais aquela não terá atendido. 24. Perante esta atitude da assistente, o arguido procedeu conforme o descrito em 4. a 10. 25. No dia 2 de Julho de 2020, através de carta registada com aviso de recepção, o arguido remeteu à assistente a nota de despesas e honorários, devidamente discriminada, relembrando-lhe, no texto que acompanhava a mesma, que tinha na sua posse a quantia de 5.119,60 € transferida para o seu Iban pela A.E., referindo que, “conforme já pelo arguido lhe tinha sido informado, não queria ter essa quantia em seu poder e que sempre estaria na disponibilidade da ofendida utilizar ou servir-se da referida quantia para pagar os seus honorários e despesas”. 26. A carta referida em 25. veio devolvida, porque a assistente se recusou a recebê-la. 27. Na sequência da devolução da carta, nos meses seguintes, o arguido solicitou à assistente o pagamento dos seus honorários, através de vários e-mails, num dos quais continuava a manifestar ter na sua conta a quantia de 5.000,00 € que colocava “à sua disposição” dada a sua intenção em não ter em seu poder a quantia transferida, assim que os seus honorários já reclamados, fossem regularizados, sob pena se se ver obrigado a reclamar os mesmos em Tribunal. 28. A nenhum dos emails enviado para o endereço eletrónico, através do qual sempre estabeleceu contato com a ofendida, teve o arguido resposta. 29. O arguido agiu, como descrito para se ver ressarcido dos honorários devidos pelos ofendidos. [Das condições pessoais do arguido (…)] Factos não provados A. A AE actuou conforme o descrito em 8. dos factos provados, convencida que estava que o referido IBAN se tratava de uma conta titulada pelos ofendidos. B. Sem prejuízo do descrito em 10. dos factos provados, o arguido fez suas as aludidas quantias, apesar dos ofendidos as terem reclamado. C. O descrito em 11. dos factos provados ocorreu em 26.09.2021 ou seguramente em meados de 2021, na sequência de terem constituído novo mandatário. D. Sem prejuízo do descrito em 9. e 10. dos factos provados, o arguido fez sua a quantia global de € 5119,60, bem sabendo que a mesma pertencia aos ofendidos. E. Bem sabia o arguido que a supra referida alteração do IBAN não correspondia à verdade. F. Com o dinheiro com que, assim, se apoderou, o arguido aplicou-o em seu próprio proveito, não entregando tal quantia aos seus clientes, aqui ofendidos, não obstante estes terem solicitado a sua entrega. F. Nas circunstâncias descritas em 14. dos factos provados, o arguido agiu com o propósito de alcançar um benefício indevido para si. G. Ao agir como descrito, o arguido causou uma diminuição patrimonial aos assistentes pelo menos, em valor igual à quantia global de 5.119,60 €. H. Sem prejuízo do descrito em 4. a 10. e 12. a 14. dos factos provados, o arguido, ao apropriar-se das referidas quantias, bem sabia que as mesmas não lhe pertenciam e que não tinha o direito de delas dispor em proveito próprio, o que não o impediu de as fazer suas e aplicá-las em seu proveito, não comunicando previamente aos ofendidos que iria actuar da forma supra descrita, nem devolvendo à assistente aquelas quantias, causando-lhes um prejuízo patrimonial. I. Sem prejuízo do descrito em 4. a 10. e 12. a 14. dos factos provados, o arguido agiu com o propósito concretizado de se apoderar da quantia global de 5.119,60 €, que sabia não lhe pertencer, obtendo para si um benefício económico que sabia não ter direito, enganando a AE de forma sagaz, fazendo-a crer falsamente que o IBAN por si indicado pertencia a uma conta bancária dos ofendidos, para, assim, determiná-la a realizar as supra referidas transferências bancárias, sabendo que dessa forma causava um prejuízo patrimonial aos ofendidos. J. Bem sabia ainda que com a sua conduta punha em causa a segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório, valor essencial tutelado pelo Estado Português. K. O arguido agiu, sempre, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal. Da contestação L. O descrito em 19.e 20. dos factos provados ocorreu no início do mês de maio de 2020 e no decurso do mesmo telefonema. M. Na sequência do descrito em 21. dos factos provados, o arguido explicou à assistente que as eventuais custas de parte não abrangem os honorários dos advogados, que sempre incorrerão por conta do cliente. N. E mais lhe disse o arguido que a nota de despesas e honorários devidamente discriminada com IVA, conforme teria oportunidade de verificar quando a recebesse, importava em cerca de 9.500,00 € (sem prejuízo do descrito em 20. dos factos provados). O. Da parte da assistente, a resposta foi a mesma: “Eu não tenho nada que pagar, quem paga é quem perde”. - Passemos agora à apreciação da terceira questão recursiva: qualificação jurídica dos factos. Foi o arguido pronunciado e posteriormente condenado pela Sentença sob recurso, pela prática, em concurso real, de um crime de burla qualificada, p.p. pelos artigos 217º, n.º 1, 218º, n.º 1, ex vi artigo 202º, al. a), todos do CP e de um crime de falsificação, p.p. pelos artigos 255º, al. a) e 256º, n.º 1, als. d), e) e f), ambos do CP. Vejamos o que consta da Sentença recorrida a propósito da subsunção jurídica dos factos ao crime de burla qualificada. “Do crime de burla qualificada Nos termos do artigo 217.º do Código Penal, “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. O bem jurídico protegido pela referida norma incriminadora é o património globalmente considerado. Como defendido por Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 2015, 3.ª Edição, p. 847, o bem jurídico protegido pelo crime de burla não é, pois, a verdade no comércio jurídico. O crime de burla é um crime de dano, na medida em que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro. Relativamente à definição do conceito de património, bem jurídico protegido pelo crime de burla, a doutrina adopta três tipos de concepções, a saber: jurídica, económica e económico-jurídica. A verdade é que a generalidade da doutrina adere à concepção económico-jurídica, com a qual concordamos, “que reconduz o património ao conjunto de todas as “situações” e “posições” com valor económico, detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica ou, pelo menos, cujo exercício não é desaprovado por essa mesma ordem jurídica. De modo sintético S/S/Cramer (…) afirma que o património comporta a globalidade dos bens (numa acepção ampla)” (A. M. Almeida Costa in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Coimbra Editora, Volume II, p. 279 e Paulo Pinto de Albuquerque in “ob. cit”, p. 847). Esta é a única concepção que se compadece com o objectivo da presente incriminação, uma vez que, por um lado, não abarca todas aquelas situações que, apesar de envolverem uma vantagem económica, se encontram proibidas ou qualificadas de ilícitas por outros ramos jurídicos (o que seria abarcado pela concepção económica) e, por outro, não abarca situações que, apesar de deterem relevância jurídica, carecem de repercussão económica (o que seria abarcado pela concepção jurídica). Assim, o conceito de património segundo a concepção económico-jurídica estabelece um critério que permite a conformidade da situação de facto com o direito, integrando-se em tal conceito o conjunto de utilidades económicas detidas pelo sujeito, cujo exercício ou fruição a ordem jurídica não desaprova, tais como os direitos subjectivos patrimoniais de índole real ou obrigacional, os lucros cessantes e demais expectativas legítimas de obtenção de vantagens económicas (neste sentido, vide A. M. Almeida Costa in “ob. cit”, p. 281). Relativamente à noção de prejuízo, elemento este essencial para a consumação do crime de burla, deverá ser entendido como a ocorrência de um dano que implique uma diminuição do valor económico por referência à posição em que a vítima se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta. O tipo objetivo consiste, então, na determinação de uma pessoa, por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou, à prática de atos que causem prejuízo patrimonial a essa pessoa ou a um terceiro. Conforme se atesta da leitura do preceito previsto no artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal, o crime de burla é um crime de intenção, na medida em que o agente tem que revelar, com a sua conduta, a vontade ou a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, devendo este enriquecimento também ser aferido à luz da concepção jurídico-económico de património avançada supra. Concretizando o tipo objectivo do crime de burla, cumpre dizer que a burla integra um crime de execução vinculada, na medida em que “a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios” (A. M. Almeida Costa in “ob. cit”, p. 293). Tudo isto compreende a exigência da verificação de um duplo nexo de imputação objectiva: em primeiro lugar, entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património; em segundo lugar, entre estes últimos actos e a diminuição do património, causando um verdadeiro prejuízo. Na aferição deste duplo nexo de imputação objectiva, importa atender à teoria da adequação da imputação do resultado à conduta, sobejamente abordada no âmbito do direito penal. Conforme defendido por Paulo Pinto de Albuquerque in “ob. cit”, p. 848, “o engano ou erro consiste na provocação de uma falsa representação da realidade. O engano pode ser provocado de várias formas: por palavras, gestos ou actos concludentes do agente do crime. São actos concludentes aqueles que têm um sentido social inequívoco, que não corresponde à vontade do agente do crime, mas que ele aproveita para enganar o burlado”. Há, pois, claramente engano quando o agente refira factos falsos. É ainda requisito da conduta levada a cabo pelo agente que o erro do sujeito passivo tenha sido provocado astuciosamente pelo arguido. Em ordem a se compreender o conceito de “astúcia”, importa atentar à opção tomada pelo legislador de eliminar o conceito de “artifício fraudulento” que constava da norma incriminadora de 1886. A propósito da definição deste conceito eram avançadas duas teorias: 1) a que defendia que o artifício fraudulento deveria traduzir-se em manobras fraudulentas, ou seja, na prática de actos materiais tendentes a favorecer uma visão falsa ou deturpada da realidade, não sendo bastante a mera mentira, pois deveria ser acompanhada da realização de actos exteriores destinados a dar-lhe uma maior credibilidade; 2) a que defendia que bastava a exigência de que a conduta do agente consubstanciasse um particular engenho, habilidade ou astúcia e, nessa acepção, uma “mentira qualificada” (vide a este propósito o autor que temos vindo a seguir in “ob. cit.”, p. 296). O legislador de 1982, afastando-se de tal querela, arredou a primeira teoria explanada, substituindo a expressão “artifício fraudulento”, por “astúcia”, pelo se conclui que a actual versão do crime de burla não exige que o agente pratique qualquer acto material que se consubstancie numa verdadeira manobra fraudulenta. A jurisprudência tem, contudo, defendido uma concepção particular do conceito de astúcia, mais exigente que a defendida pelo Senhor Professor A. M. Almeida Costa, como veremos infra. A este propósito, veja-se, a título de exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24-04-2012, relatado pelo Senhor Juiz Desembargador Vieira Lamim “Para que exista astúcia própria do crime de burla não basta qualquer mentira, é necessário um “especial requinte fraudulento”, ou uma “mentira qualificada”, só assim se garantindo a plena observância do princípio da legalidade, uma vez que «astúcia» significa «manha» ou «ardil»; Apesar da imoralidade que pode acompanhar a celebração de certos negócios, o comportamento do agente só se ajusta à fattispecie penal quando, pelo recurso à mentira, à maquinação, no intuito de prejudicar o burlado ou terceiro, usa de astúcia, enquanto instrumento de deslocação patrimonial indevida;” Defendendo uma posição menos exigente do conceito de astúcia, veja-se o Acórdão do Tribunal de Justiça de 20-12-2006, relatado pelo Senhor Juiz Desembargador Armindo Monteiro, “X - A astúcia é um meio de enganar, com especial habilidade, direccionada ao aproveitamento ou mesmo criação de condições que lhe confiram particular credibilidade. XI - O embuste não tem que ser sofisticado, rebuscado, altamente engenhoso, só apreensível por pessoas superiormente dotadas, deixando sem protecção o cidadão medianamente inteligente, pois o que se pretende é que, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, seja idóneo a enganar a boa fé da vítima, de modo a convencê-la a praticar actos em seu prejuízo, limitando-se ao que se torna necessário ao seu objectivo.” Em nosso entender e seguindo A. M. Almeida Costa, entende-se que a astúcia deverá ser aferida em função da perigosidade da conduta em relação à ofensa do bem jurídico, não sendo relevante para incriminação o eventual descuido ou a leviandade do sujeito passivo, para efeitos de exclusão da relevância jurídico-penal de uma conduta que, em todo o caso, consubstancia uma efectiva lesão do património (in “ob. cit.”, pp. 297-298). Assim, a conduta do agente tem, isso sim, de comportar uma manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina na antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista. Por constituir um entendimento lapidar e com o qual concordámos na íntegra, transcreve-se o entendimento do Senhor Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto que temos vindo a acompanhar: “a experiência de todos os dias revela que, longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de “economia de esforço”, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. Numa tal adequação de meios – adequação essa que, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o “ponto óptimo” no menos sofisticado dos procedimentos – radica, em suma, a inteligência ou astúcia que preside ao estereótipo social da burla e, sob pena de um divórcio perante as realidades da vida, tem de subjazer à fattispecie do n.º 1 do artigo 217.º”. A astúcia há-de, assim, aferir-se pelo domínio-do-erro por parte do agente, na medida em que a responsabilização do agente pelo crime consumado há-de medir-se pela adequação do comportamento do agente às características do caso concreto. O mesmo é dizer que não se exige um engenho rebuscado, mas tão-só aquele que funcione com o concreto visado. Só assim se compreende, aliás, a classificação do crime de burla como um crime de participação da vítima, na medida em que é próprio sujeito que pratica os actos de diminuição patrimonial. Concordamos, por isso, com Paulo Pinto de Albuquerque quando afirma que “a astúcia consiste no aproveitamento de uma vantagem cognitiva do agente sobre o burlado, que lhe permite manipular a vontade do burlado. (…) A astúcia não exige uma encenação, um estratagema, por parte do agente do crime” (in “ob. cit.”, pp. 849-850). No que diz respeito ao tipo subjectivo, o crime de burla é um crime doloso, pelo que o agente tem que preencher uma das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal. Contudo, não basta que o agente revele dolo de causar prejuízo patrimonial ao sujeito ou a terceiro, exigindo-se também que o agente tenha a intenção de conseguir, através da sua conduta, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio, concluindo-se, por isso, como supra se avançou, que o crime de burla é um crime de intenção. No que diz respeito ao crime de burla qualificada, nos termos do artigo 218.º, n.º 1, por referência ao artigo 202.º, alínea a) do Código Penal, comete o agente este crime quando o valor do prejuízo patrimonial for de valor elevado, isto é, superior a 5.100,00€. Descendo ao caso dos autos e analisando-se a prova produzida, não sobra qualquer dúvida de que a conduta do arguido é perfeitamente subsumível ao tipo objectivo e subjectivo do crime de que vem o arguido acusado. De facto, foi considerado como provado que o arguido, por força do requerimento que, a seu mando, o seu funcionário deu entrada no processo executivo em que os ofendidos figuravam como exequentes, procedeu à alteração do IBAN dos exequentes para o IBAN da conta bancária titulada do arguido e recebeu na sua conta a quantia de 5.119,60€, quantia esta que o arguido bem sabia que não lhe era devida, mas antes aos exequentes naqueles autos. Certo é que tal transferência bancária apenas foi efectuada por força do aludido requerimento, no qual, falsamente, fez constar o seu IBAN como o IBAN dos exequentes, quando bem sabia que tal não correspondia à verdade e não tinha, para tal, qualquer autorização dos ofendidos. Mais se diga que, ao arguido, enquanto advogado, não estava permitida tal conduta. Como decorre dos autos, em particular de fls. 94, a ofendida EE e o marido, FF declararam constituir seu bastante procurador o Senhor Doutor AA, advogado, a quem conferiram os mais poderes forenses em direito permitidos e, bem assim, os poderes especiais para os representar em inventário judicial…”. Ora, como se sabe, o mandato é uma das modalidades do contrato de prestação de serviços e é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta de outra (artigo 1157.º do Código de Processo Civil). No caso do mandato forense ou judicial, os actos a praticar são actos no processo (artigo 36.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Está sujeito a uma forma especial, que corresponde à de instrumento público ou documento particular, nos termos do Código do Notariado e da legislação especial, ou então, a declaração verbal da parte no auto de qualquer diligência que se pratique no processo (alíneas a) e b) do artigo 35.º do Código de Processo Civil). É um mandato com representação, envolvendo o consentimento do mandatário - Acórdão do STJ de 29 de Abril de 2010, proferido no proc.º nº 2622/07.0TBPNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt. Dito isto, o advogado, por força das normas estatutárias, em particular artigos 97.º e 101.º do E.O.A, da Lei n.º 145/2015 de 9 de setembro [contém a alteração decorrente da Lei n.º23/2020, de 6 de julho, e da Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro], deve basear a sua relação com o cliente na confiança recíproca, tendo o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas. Dispõe, ainda, o artigo 101.º do E.O.A, sob a epígrafe valores e documentos do cliente: “1 - O advogado deve dar a aplicação devida a valores, objetos e documentos que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores deste que tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência, e apresentar nota de honorários despesas, logo que tal lhe seja solicitado. 2 - Quando cesse a representação, o advogado deve restituir ao cliente os valores, objetos ou documentos deste que se encontrem em seu poder. 3 - O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízos irreparáveis. 4 - Deve, porém, o advogado restituir tais valores e objetos, independentemente do pagamento a que tenha direito, se o cliente tiver prestado caução arbitrada pelo conselho regional. 5 - Pode o conselho regional, antes do pagamento e a requerimento do advogado ou do cliente, mandar entregar a este quaisquer objetos e valores quando os que fiquem em poder do advogado sejam manifestamente suficientes para pagamento do crédito.”. No presente caso, o arguido, na qualidade de advogado, só tinha procuração com poderes forenses gerais, nomeadamente para a acção executiva. Nessa medida, o arguido, enquanto advogado, não tinha poderes especiais para receber qualquer quantia monetária devida por via da referida acção, em particular valores referentes a indemnizações ou custas. Assim sendo, o arguido não tinha legitimidade para, sem autorização dos exequentes ou procuração especifica para o efeito, receber as quantias monetárias decorrentes do processo executivo .... Logo, ao não ter legitimidade em receber /apropriar-se da referida quantia, não podia o mesmo diligenciar pelo recebimento das quantias em causa sem o conhecimento e autorização dos exequentes, mandantes, como no caso sucedeu. O recebimento das aludidas quantias na sua conta bancária é, assim, inequivocamente ilegítimo. Sendo que tal se conclui, quer em relação aos 5.000,00€, quer em relação aos 119,60€, porquanto também esta quantia, independentemente de resultar do pagamento de taxas de justiça ou demais encargos no processo, não é, em caso algum devida ao mandatário, mas antes à parte, e isto, independentemente de, caso tenha sido o mandatário a saldá-las, reaver esses montantes, reflecinto-as na competente nota de honorários, como, aliás, o arguido o fez, na nota que juntos aos autos, conforme fls. 49, mais concretamente 50 verso (vide artigo 26.º do Regulamento das Custas Processuais). Assim, independentemente de ter sido o arguido a pagar as referidas quantias (o que nem se provou), a verdade é que não tinha direito de as receber, do modo em que as recebeu, mas antes a posteriori, reflectindo na competente nota de honorários. O arguido diligenciou, aliás, pela alteração do IBAN, sem a autorização e sem o conhecimento dos ofendidos. Nessa medida, não pode o arguido, por via de uma acção que o próprio criou contra o mandante, extravasando os poderes do mandato e de representação, receber de forma ilícita as quantias monetárias devidas aos exequentes na sua conta, para depois alegar o direito de retenção. Repare-se que a questão levantada prende-se com o direito de retenção, matéria que se encontra regulada no n.º 3 do artigo 101.º do EOA e, em termos gerais, nos artigos 754.º e seguintes do Código Civil. Em relação ao direito de retenção, a Ordem dos Advogados, por intermédio dos seus conselhos regionais, já teve oportunidade de se pronunciar por diversas vezes, sendo abundante a jurisprudência produzida. Ora, dispõe o número 3 do artigo 101.º do EOA, que: “o advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número anterior (ou seja, valores que estejam em seu poder), para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízo irreparável”. Por sua vez, a alínea c) do número 1 do artigo 755.º do Código Civil dispõe que goza ainda do direito de retenção o: “O mandatário, sobre as coisas que lhe tiverem sido entregues para execução do mandato, pelo crédito resultante da sua atividade.” Do exposto resulta que o direito de retenção pode ser exercido legitimamente pelo advogado nas seguintes situações: a) Após a apresentação da nota de honorários e despesas; b) Se incidir sobre valores, objetos e documentos do Cliente; c) Se os valores, objectos ou documentos não forem necessários para prova do direito do Cliente; d) Se a sua retenção não causar prejuízos irreparáveis ao Cliente. No caso sub judice, as verbas sobre as quais o arguido, na qualidade de advogado, alega que tem o direito de retenção, não lhe foram entregues de forma licita no âmbito do exercício do seu mandato, mas sim porque o mesmo assim procedeu com a alteração do IBAN dos exequentes. Se não tivesse agido nos citados moldes, o arguido não entraria na posse da quantia exequenda transferida pela solicitadora da execução. Dito de outra forma, é o próprio arguido que cria, por via de erro/engano, as circunstâncias para a invocação do direito de retenção, e não as circunstâncias concretas que justificavam a referida invocação, pois se não fosse a alteração do IBAN por parte do arguido (como se de novo IBAN se tratasse dos exequentes) jamais as quantias exequendas seriam transferidas para a sua conta. Encontra-se, assim, afastado o direito de retenção in casu e, por inerência, qualquer actuação legítima da parte do arguido. Isto posto, dúvidas não podem restar de que o arguido, através da submissão do aludido requerimento, induziu, claramente, em erro a Senhora Agente de Execução e, através dessa actuação sagaz, logrou arrecadar benefício patrimonial ilegítimo e, por inerência, prejuízo patrimonial aos ofendidos. De facto, o arguido com o pretexto de apresentar nota de honorários (visto que só a apresentou depois), primeiro diligenciou por ser apropriar das quantias monetárias (comunicação da alteração da conta a 27 de Maio de 2020), para só depois apresentar/enviar nota de honorários (Julho de 2020). Ao contrário do que alega, a solicitadora de execução em momento algum disse que tinha conhecimento que o novo IBAN era do arguido e não dos exequentes. Bem pelo contrário, tal resultou como não provado, porquanto resultou da prova produzida que a Senhora Agente de Execução não estava minimamente ciente de que o IBAN para o qual transferiu as quantias era do arguido e não dos exequentes. A acção do arguido mais não foi do que criar, por meio de engano e de forma astuta, a ideia no processo que o novo IBAN comunicado era dos exequentes (quando na realidade era seu), para assim fazer com que aquele número fosse assumido processualmente pelo tribunal e fosse a base das transferências eletrónicas das quantias monetárias a realizar pela solicitadora que deveriam ter como destino a conta dos exequentes e não a conta do o próprio advogado. Tudo isto foi realizado, sem o conhecimento dos exequentes. A conduta do arguido é, assim, perfeitamente subsumível ao tipo objectivo e subjectivo do crime de burla qualificada (atento o valor apropriado), tanto mais que ainda se apurou que o arguido, ao apropriar-se das referidas quantias, o arguido bem sabia que as mesmas não lhe pertenciam e que não tinha o direito de delas dispor em proveito próprio, o que não o impediu de as fazer suas e aplicá-las em seu proveito, não comunicando previamente aos ofendidos que iria actuar da forma supra descrita, nem devolvendo aos ofendidos aquelas quantias, causando-lhes um prejuízo patrimonial. O arguido agiu com o propósito concretizado de se apoderar da quantia global de € 5119,60, a qual lhe foi transferida pela agente de execução CC, no âmbito do referido processo executivo, que sabia não lhe pertencer, obtendo para si um benefício económico que sabia não ter direito, enganando-a de forma sagaz, fazendo-a crer falsamente que o IBAN por si indicado pertencia a uma conta bancária dos ofendidos, para, assim, determiná-la a realizar as supra referidas transferências bancárias, sabendo que dessa forma causava um prejuízo patrimonial aos ofendidos. O arguido agiu, sempre, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal. Posto isto, torna-se claro que o arguido, com a intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo, por meio de erro/engano sobre factos que astuciosamente provocou (alteração da conta bancárias dos exequendos no processo) determinou outrem (a solicitadora) à prática de actos que causavam aos exequentes, à data, prejuízo patrimonial, pois ainda nem sequer sabiam da conta de despesas e honorários que viria ser apresentada pelo arguido (na qualidade de advogado), pois as notificações que o arguido alega só ocorrem posteriormente. Pelo exposto, o arguido deve ser condenado pelo crime de burla qualificada, nos termos do n.º 1 do artigo 217.º, n.º 1 do artigo 218.º, ex vi artigo 202º, alínea a), todos por referência o artigo 202.º, alínea a), todos do Código Penal.” (fim de transcrição) Sem deixar de reconhecer como laboriosa a fundamentação jurídica da Sentença recorrida, o certo é que, por força do provimento alcançado quanto à segunda questão recursiva (impugnação da matéria de facto), tal fundamentação não tem agora substracto factual para se poder manter e, por conseguinte, confirmar. São as seguintes as razões para tal entendimento: Em primeiro lugar, e como acima deixámos aflorado, uma coisa é uma pessoa ser desapossada do que é seu contra a sua vontade e sem o seu consentimento e outra, como é o caso dos autos, é ver condicionados os seus poderes de disposição, de administração e de fruição das quantias em dinheiro, sem que isto invalide a posição de que tais dinheiros lhe pertencem – o que, ademais, se mostra reconhecido pelo detentor das aludidas quantias, o aqui arguido; Em segundo lugar, tendo-se julgado provado que previamente à comunicação feita pelo arguido aos autos de execução de um novo IBAN como sendo dos ofendidos, o arguido interpelou telefonicamente a assistente dando-lhe conta que iria remeter a nota de honorários e despesas por conta do contrato de mandato forense entre ambos celebrado, ao que aquela reagiu dando a entender que não tinha que proceder a qualquer pagamento, por preencher se encontra um dos elementos objectivos do crime de burla, como seja o enriquecimento ilegítimo”. Com efeito, e como vem desde há muito sendo entendimento jurisprudencial unânime ([10]), para a verificação deste elemento típico do crime de burla, é necessário provarem-se os requisitos do conceito civilístico de enriquecimento sem causa: a) o enriquecimento de alguém; b) o consequente empobrecimento de outrem; c) o nexo causal entre o enriquecimento do primeiro e o empobrecimento do segundo e d) a falta de causa justificativa do enriquecimento. Ou seja: o enriquecimento que o agente tem de querer obter para si ou para terceiro, há que consistir naquele que não corresponde objectiva ou subjectivamente a qualquer direito - só este é relevante. Vejamos, então, em traços largos, o instituto civilístico do enriquecimento sem causa que entre nós encontra a sua consagração legal no artigo 473º do Código Civil (doravante CC), o qual dispõe: “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou” (n.º 1) e que “a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou” (n.º 2). O citado preceito legal, aproveitando o reconhecimento feito pela jurisprudência, consagrou como fonte autónoma de obrigações, o enriquecimento sem causa, o enriquecimento injusto ou de locupletamento à custa alheia. A obrigação de restituir aquilo que se adquiriu sem causa corresponde a uma necessidade moral e social, com vista ao restabelecimento do equilíbrio injustamente quebrado entre patrimónios e que, de outro modo, não era possível obter-se (Rodrigues Bastos, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 1972, pág. 13 e Menezes Cordeiro, in “Direito das Obrigações”, 2.º vol, 2001, pág. 45). Por isso, se atribui à ação de enriquecimento sem causa o fim de remover o enriquecimento do património do enriquecido, transferindo-o ou deslocando-o para o património do empobrecido (Pereira Coelho, “O Enriquecimento e o Dano”, 2.ª reimpressão, 2003, pág. 36). A obrigação de restituir, fundada no enriquecimento injusto, pressupõe, nos termos do disposto no artigo 473º, n.º 1 do CC, a verificação cumulativa dos supra apontados três requisitos: o enriquecimento de alguém, o enriquecimento sem causa justificativa e ter sido obtido à custa de quem requer a restituição (Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral, I vol., 10.ª edição, 2004, págs. 480 e ss.). Destes requisitos o que levanta mais dificuldades é, sem dúvida, o segundo, sendo certo que a lei não chegou a definir a causa do enriquecimento, embora tenha estabelecido um certo critério de orientação, nomeadamente no n.º 2 do citado artigo 473º. A causa do enriquecimento pode resultar do fim imediato da prestação e do fim típico do negócio. Por isso, se a obrigação não existiu ou se o fim do negócio falhou, deixou de haver causa para a prestação e a obrigação resultante do negócio. Por outro lado, carece também de causa a deslocação patrimonial, sempre que a ordenação substancial dos bens aprovada pelo direito a atribua a outro, isto é, que seja substancialmente ilegítima ou injusta (Antunes Varela, in ob. cit., pág. 487, Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 3.ª edição, 1979, pág. 335 e Menezes Cordeiro, in ob. cit., pág. 55). A falta de causa justificativa pode decorrer da circunstância de nunca ter existido ou, tendo existido, entretanto, se ter perdido. Esta situação, do desaparecimento posterior da causa, corresponde à tradicional condictio ob causam finitam, tipificada no n.º 2 do art. 473.º do CC, que se caracteriza por alguém ter recebido uma prestação em virtude de uma causa que, entretanto, deixou de existir. Acresce ainda que o enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária (artigo 474º do CC), de modo a poder ser só invocado quando a lei não faculta ao empobrecido qualquer outro meio de compensação ou restituição. Desenhado sumariamente o quadro normativo que mais interessa à compreensão do caso vertente, impõe-se o confronto com as circunstâncias concretas dos autos, de modo a verificar da existência, ou não, da situação de enriquecimento sem causa e, como tal, justificativa da obrigação de restituir, não perdendo de vista que o instituo em causa assenta na ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se à custa alheia. É sabido que o conceito de causa do enriquecimento não se encontra definido e que a causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do acto que lhe deu origem. Deve, todavia, funcionar como directriz geral, em todos os casos, a ideia de que o enriquecimento carece de causa justificativa quando, segundo a lei, deve pertencer a outra pessoa. Ou seja, e por outras palavras, o enriquecimento carecerá de causa sempre que o direito não o aprove ou consente, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida (a favor do enriquecido e à custa do empobrecimento de alguém), isto é, que legitime o enriquecimento. Numa definição mais formal, e nas palavras do Prof. A. Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, Almedina Coimbra, 4ª ed., pág. 408, o enriquecimento será injusto quando, segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito, ele deve pertencer a outra pessoa. Dado que a lei não define tal conceito, e dada a natureza diversa da fonte de que pode emergir, tal significa que o enriquecimento injusto terá sempre que ser apreciado e aferido casuisticamente, interpretando e integrando a lei à luz dos factos apurados. Importa assim apurar, em cada caso concreto, “se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se portanto acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve” (cfr. Inocêncio Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, pág.s 199 e 200) ou, então, se “o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, ou se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa” (Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil anotado”, Vol. I, 4ª edição, pág.s 454 e ss. e Diogo Leite de Campos, in “A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir e Enriquecimento, pág.s 317 e 412; na jurisprudência, vejam-se os Acs. do STJ de 3.11.2016, Proc. n.º 390/09.0TBBAO.S1, relator Juiz Conselheiro Olindo Geraldes, consultável em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/fbb84cb96ff62e9980258061003be96b?OpenDocument e de 3.05.2018, Proc. n.º 175/05.2TBALR.E1.S1, relator Juiz Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves, consultável em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e5795ec18db74d7f802582860055064d?OpenDocument). Significa isto que dada a complexidade e a variedade de situações ou hipóteses que podem ser abrangidas ou colocadas, deve ter a jurisprudência os movimentes livres para apreciar se, no caso concreto, a deslocação patrimonial directa se mostra ou não excessiva, conduzindo, por via disso, ou não, a soluções que choquem com o comum sentimento de justiça (neste sentido, veja-se o Ac. Rel. Coimbra de 02.11.2010, Proc. n.º 1867/08.0TBVIS.C1, relator Juiz Desembargador Isaías Pádua, consultável em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/-/464268497B7F2C59802577E30040A589) (sublinhado nosso) Entendeu a Sentença sob recurso que, no âmbito do mandato forense, não tendo sido conferidos poderes especiais ao aqui arguido, mormente o de receber qualquer quantia monetária por via da referida acção executiva, em particular valores referentes a indemnizações ou custas, não tinha o mesmo legitimidade para, sem autorização dos exequentes ou procuração específica, receber as quantias monetárias decorrentes do mencionado processo executivo. Por outro lado, ainda, ali se entendeu que não se verificavam os requisitos do direito de retenção previsto no artigo 101º, n.º 3 do EOA, pois que o arguido, quando procedeu conforme o descrito em 4. e 5. dos factos provados não havia ainda apresentado a nota de honorários e despesas. Se é certa a falta de poderes do arguido para o recebimento da aludida quantia, se é igualmente certo que o arguido, quando procedeu, a 27.05.2020, conforme o descrito em 4. e 5. dos factos provados ainda não havia remetido, por escrito, a nota de honorários e despesas, o que fez apenas a 02.07.2020 (por missiva que a assistente se recusou a receber), a questão que importa porém colocar, s.m.o., é se a actuação do arguido, que entendia, por decorrência do desenvolvimento e cumprimento pela sua parte do aludido contrato de mandato forense, ter direito a receber da assistente o pagamento dos invocados honorários, intenção essa que lhe transmitiu telefonicamente antes da referida data de 27.05.2020, mais transmitindo que oportunamente lhe iria remeter a respectiva nota de honorários, tendo-se a assistente, a partir desse momento, esquivado a todo e qualquer possibilidade de contacto por parte do arguido, choca com o sentimento comum de justiça? Reformulando: a actuação do arguido, no concreto contexto dos factos julgados provados, pode/deve ser considerada como a de alguém que pretende obter um enriquecimento ilegítimo, censurável do ponto de vista penal [e, concomitantemente causar um prejuízo patrimonial]? Para melhor se perceber o que se quer significar com a questão que colocamos, atente-se no que se decidiu no Ac. STJ de 24.06.1988, CJSTJ, tomo 2, pág. 215, ainda que sobre uma outra realidade fáctiva: “não há enriquecimento ilegítimo quando o credor coage o devedor a cumprir a sua obrigação.” Também no ensinamento do Prof. Almeida Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, pág. 299, exige-se que se proceda à delimitação do âmbito de protecção do ilícito subjacente a este tipo legal, pois que “apesar da característica acentuadamente solidária dos actuais Estados de Direito social, persiste a convicção de que, em primeira alinha, compete a cada pessoa cuidar dos seus próprios interesses, surgindo a obrigação de salvaguardar bens jurídicos alheios – até por razões reportadas à preservação da autonomia da esfera privada – com carácter subsidiário e residual.” O Prof. Costa Andrade, citado no Ac. STJ de 1.7.1998, relator Juiz Conselheiro Lopes Rocha, in CJSTJ, tomo II, pág. 223 e extraído do Estudo denominado “Sobre o estudo e Função da Criminologia Contemporânea”, in Separata do BMJ 13, pág. 25, defende que importa ponderar a existência, ou não, de um critério legal de interpretação da factualidade típica susceptível de em certos domínios, um deles a burla, permitir valorar a conduta da vítima do ponto de vista da carência de tutela jurídica e, por essa via, excluir determinadas expressões da vida do âmbito da factualidade típica. Citando Hassemer, que parte do princípio da subsidariedade do direito penal – a que atribui dignidade constitucional – segundo o qual a intervenção do direito criminal só é legítima quando a tutela de bens jurídicos em causa, não puder ser garantida por outras vias, que impliquem custos menos gravosos para os direitos do homem, tal princípio vale sem limites, i. é, tanto em relação ao outras alternativas estaduais como alternativas privadas, nomeadamente a auto-tutela que se permite e se reclama aos portadores concretos de bens jurídico-penais. Quer dizer, o princípio da subsidariedade do direito penal tem como reverso um princípio de auto-responsabilização dos titulares concretos dos bens jurídico-penais. O direito não pode exigir que os indivíduos se fechem à participação social e evitem todo o contacto histórico-socialmente adequado mesmo que susceptível de criar risco para os respectivos bens jurídico-penais. Mas já pode reclamar que não sejam eles a elevar as cotas de risco em termos que ultrapassem o limiar de que a lei, de forma abstracta e típica, faz depender a sua intervenção. Pois se aquele limiar só foi atingido e excedido por razões imputáveis à vítima – que não aproveitou as oportunidades de auto-tutela que lhe eram oferecidas e cujo aproveitamento lhe era exigível -, então terá que se concluir, à luz dos princípios da subsidariedade e da proporcionalidade, que ela se colocou fora do âmbito de tutela da norma penal incriminatória.” (fim de citação) (sublinhados nossos) Aplicando esta construção ao caso dos autos, indaga-se se os portadores do bem jurídico – os ofendidos –, podendo assumir uma outra atitude que não a de evitar todo e qualquer contacto por banda do arguido, cientes que estavam que sobre eles impenderia a obrigação de proceder ao pagamento dos honorários, conforme lhes havia sido transmitido pelo arguido, estão carentes de tutela jurídico-penal (que não se confunde, leia-se bem, com tutela jurídica)? Se nos é permitida a observação, “em sociedades como a portuguesa, mal habituada para aceitar subtilezas da doutrina, antes habituada a recorrer à protecção que lhe é facultada pelo direito criminal para resolver problemas” (cfr. citado Ac. STJ de 1.07.1998), importa que os tribunais criminais assumam (também eles) uma “função pedagógica” e em consonância, em certas situações particulares, afastem a aplicação do direito penal para a resolução dos conflitos que se geram na sociedade, tendo na mira o mencionado princípio da subsidiariedade do direito penal, sobretudo quando os pretensos ofendidos omitem condutas proactivas na resolução dos problemas. Mas para além do que deixámos dito, o que emerge dos factos provados é que o arguido não pretendeu pagar-se dos valores de honorários e despesas que viesse a concretizar em nota escrita a enviar à assistente, com o valor que fez transferir para a sua conta bancária, mas simplesmente uma intenção de se munir de um meio de coerção do cumprimento de uma obrigação, garantido, dessa feita, a satisfação futura do seu crédito. Acresce, que importando o valor dos honorários transmitido à assistente em 7.125,50 € ([11]), como resulta da resenha documental que supra consta, não se vislumbra que a detenção pelo arguido do valor de 5.119,60 € (a que os ofendidos têm direito, sendo que o arguido, como vimos supra, não contesta que tal quantia lhes pertence) possa constituir qualquer prejuízo relevante e grave para os mesmos. Por último, e ainda que se pudesse discordar do que acabou de ser plasmado no presente Acórdão – o enriquecimento não se mostra ilegítimo e a conduta do arguido não causou um prejuízo patrimonial aos ofendidos, sendo ainda de lançar mão do princípio geral da subsidiariedade do direito penal -, falhos estamos igualmente de facticidade para preencher o elemento subjectivo do crime em análise. Como bem se escreveu na Sentença recorrida “No que diz respeito ao tipo subjectivo, o crime de burla é um crime doloso, pelo que o agente tem que preencher uma das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal. Contudo, não basta que o agente revele dolo de causar prejuízo patrimonial ao sujeito ou a terceiro, exigindo-se também que o agente tenha a intenção de conseguir, através da sua conduta, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio, concluindo-se, por isso, como supra se avançou, que o crime de burla é um crime de intenção.” Sucede que a factualidade consubstanciadora destes apontados elementos subjectivos, que figuravam no elenco dos factos provados na Sentença sob recurso, mostram-se agora no elenco dos factos não provados, pelo que carentes de substracto factual nos encontramos para condenar o arguido pelo cometimento do crime de burla – vide pontos B., D. a I. e K. dos factos não provados. Concede-se assim, nesta parte, provimento ao recurso: a factualidade apurada não consubstancia a prática, pelo arguido, de um crime de burla, seja simples, p.p. pelo artigo 217º do CP, seja qualificada, p.p. pelo artigo 218º do mesmo diploma legal. - Por fim, o crime de falsificação de documento. Quanto a este ponto, pode ler-se na sentença recorrida: “Do crime de falsificação de documento Nos termos dos artigos 255.º, al. a) e 256.º, n.º 1, al. d), e) e f) do Código Penal: “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: (…) d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante; e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”. Como defendido por Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 2015, 3.ª Edição, p. 931, os bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora são a segurança e a credibilidade na força probatória de documento destinado ao tráfico jurídico. Segundo Helena Moniz in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Volume II, Coimbra Editora, p. 676, “sabendo que o documento, para efeitos do crime de falsificação, é a declaração e não o objecto em que esta é incorporada, fácil é compreender que aquilo que constitui a falsificação de documentos é não a falsificação do documento enquanto objecto que incorpora uma declaração, mas a falsificação da declaração enquanto documento. (…) Não é toda a segurança no tráfico jurídico que se pretende proteger, mas apenas a relacionada com os documentos”. O crime de falsificação de documentos constitui um crime de perigo, ou seja, após a falsificação do documento ainda não existe uma violação do bem jurídico, mas um perigo de violação deste: a confiança pública e a fé pública já foram violadas, mas o bem jurídico protegido, o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório apenas foi colocado em perigo. Trata-se de um crime de perigo abstracto, pois o perigo não constitui elemento do tipo, pois basta que o documento seja falsificado para que o agente possa ser punido, independentemente de o utilizar ou o colocar no tráfico jurídico. O crime é formal ou de mera actividade, não sendo necessário a produção de qualquer resultado. Porém, o crime de falsificação de documentos exige uma certa actividade por parte do agente, no sentido de fabricar, modificar ou alterar o documento: é necessário uma modificação do mundo exterior. O documento constitui o objecto da acção. Será sobre ele que incidirá a conduta do agente, sendo certo que o artigo 256.º do Código Penal prevê várias modalidades de conduta. Segundo a autora supra citada in “ob. cit.”, pp. 682-683, “Quanto ao acto de falsificar ou alterar o documento trata-se daquilo que é designado por falsificação material”. “Distinto de tudo isto é a falsidade em documento ou a narração de facto falso juridicamente relevante. E apenas nestes casos se pode considerar que existe uma falsidade em documento”. “Quanto ao acto de abusar de assinatura de outra pessoa para elaborar um documento falso trata-se de um caso de fraude na identificação. A assinatura constitui um elemento idóneo a provar um facto juridicamente relevante – a autoria do documento. Trata-se de um documento cujo conteúdo pode ser verídico (…), no entanto, o documento não é autêntico, a declaração não foi proferida pela pessoa que o escrito apresenta”. Segundo a mesma autora, in “ob. cit.”, p. 684, “distinto de tudo isto é o uso de documento falso que apenas é punido no caso de se tratar de uso de documento por pessoa distinta da que falsificou (…). Deverá integrar-se dentro do uso de documento falso não só o uso de documento falsificado (…), como também os casos de documento falsificado por abuso de assinatura de outra pessoa. No que diz respeito ao tipo subjectivo, o legislador exige, por um lado, que o agente revele dolo genérico, nas modalidades compreendidas no artigo 14.º do Código Penal, ou seja, que o agente revele o conhecimento de que está a falsificar um documento e a vontade de o falsificar. Por outro lado, o legislador exige ainda um dolo específico que se consubstancia na intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime. Assim, Helena Moniz em anotação ao artigo 256.º do Código Penal, in Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Coimbra Editora, Volume II, p. 684, qualifica o crime de falsificação de documentos como um crime intencional. Não é necessário que efectivamente se verifique o prejuízo de outra pessoa ou do Estado, nem o benefício do agente ou de terceira pessoa para que se conclua pela consumação do crime, mas o agente tem que revelar uma concreta vontade de prejudicar uma concreta entidade singular ou colectiva, visando um concreto e específico benefício. Pressuposto da incriminação é, como vimos, que o documento alterado ou fabricado se enquadre na definição legal prevista na alínea a) do artigo 255.º do Código Penal, sendo certo que se tratar de um documento autêntico ou com igual força, o agente pratica o tipo de ilícito na modalidade agravada do n.º 3 do mesmo preceito legal. Nos termos do artigo 255.º, alínea a) do Código Penal, deve-se entender por documento toda a “declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa ou animal para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta”. O n.º 3 do artigo 256.º do Código Penal apresenta uma agravação do crime de falsificação, no caso em que o documento falsificado é um documento autêntico ou com igual força. Neste caso, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias. Importa ainda notar que no documento o que se apresenta como penalmente relevante é a declaração corporizada em escrito que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante. O documento terá assim de representar uma declaração de vontade humana – função de perpetuação; terá que ser apto para prova daquilo que contém, que detenha a virtualidade de demonstrar um facto relevante para o mundo do Direito – função probatória do documento; e o seu autor deverá ser reconhecível: o documento deve tornar possível a identificação do emitente da declaração, para que aquele mais tarde possa reconhecer a declaração como sua – elemento de garantia pessoal do documento (cf. GARCIA, M. Miguez, in o Direito Penal Passo a Passo, Volume II, Livraria Almedina, 2011, pág. 306 e 307). Descendo ao caso dos autos, verifica-se que se apurou que, no dia 27 de maio de 2020, via electrónica, o arguido comunicou ao processo executivo ..., de que a conta do IBAN dos exequentes passou do número anterior para o novo nº ...84. Ora, conforme o entendimento apontado por Helena Moniz (- in Código Penal Conimbricense, Parte especial, Tomo II, pág. 676 e ss.) dir-se-á que, constituindo a falsificação de documentos uma falsificação de declarações incorporada no documento importa distinguir as formas que o acto de falsificação pode assumir: falsificação material e ideológica. Enquanto falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica o documento é inverídico: tanto é inverídico o documento que foi objecto de uma falsificação intelectual, como no caso de falsidade em documento. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material. Na al. a) do n.º 1 do artigo 256.º prevêem-se casos de falsificação material e na alínea b), casos de falsificação intelectual. Como refere Maia Gonçalves (- in Código Penal Português, anotado, 10º ed., 1966, pág. 747.) verifica-se a falsificação ou falsidade material quando o documento é total ou parcialmente forjado ou quando se alteram elementos constantes de um documento já existente, verifica-se a falsificação ou falsidade intelectual ou ideológica quando o documento não reproduz com verdade aquilo que se destina a comprovar. Aquando da falsificação material ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento. Neste caso, o agente apenas pode falsificar o documento imitando ou alterando algo que está feito segundo uma certa forma; quer imitando quer alterando o agente tem sempre uma certa preocupação: dar a aparência de que o documento é genuíno e autêntico. Na falsificação intelectual integram-se todos aqueles casos em que documento incorpora uma declaração falsa, uma declaração escrita, integrada no documento, distinta da declaração prestada. Por seu turno, na falsidade em documento integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso juridicamente relevante. Ora, analisando-se a factualidade considerada como provada, como aludimos supra, não existem dúvidas de que o arguido comunicou/fez constar, por via de uma declaração ao processo executivo, a comunicação/informação de uma nova conta bancária dos exequentes, quando bem sabia que tal não correspondia à verdade, tanto mais que a conta indicada era a sua. Por seu lado, não existem dúvidas de que o arguido agiu com a intenção de que os exequentes não recebessem as quantias monetárias em causa, sabendo que à data lhes causa prejuízo, tanto mais que à data, sabia que ainda não tinha apresentado qualquer nota de despesas ou honorários ou de que tinha qualquer direito de retenção sobre estes. Em suma, o arguido sabia que por via da sua actuação, à data, causava um prejuízo aos exequentes e que, por seu lado, obtinha um benefício ilegítimo, agindo, assim, contra a Lei. Pelo exposto, dúvidas não há que o arguido incorreu na prática do imputado crime de falsificação, devendo ser condenado.” (fim de transcrição) Sumariamente se dirá que, sem desmérito algum quanto à apreciação jurídica vertida na Sentença recorrida, o acerco factual que resultou nesta sede do provimento concedido à pretensão recursiva do arguido/ recorrente, é distinto, pelo que a decisão a proferir será, necessariamente, diversa. Com efeito, não tendo resultado provado que o arguido “J. Bem sabia ainda que com a sua conduta punha em causa a segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório, valor essencial tutelado pelo Estado Português” (dolo genérico), não resultando igualmente provado que o arguido agiu com a intenção de obter um benefício ilegítimo, nem tão pouco que com a sua actuação causava um prejuízo aos exequentes, por preencher se mostra o dolo específico que o crime em apreço exige. Por tal, e sem necessidade de mais delongas, impõe-se, também nesta parte a revogação da sentença recorrida, em virtude do provimento que se concede ao recurso interposto pelo arguido. *** III - Decisão Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência as Juízas Desembargadoras da 2º Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente revogar a sentença recorrida, absolvendo assim o arguido do cometimento do crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 1, “ex vi” artigo 202.º, al a), todos do CP e do crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.º, al. a) e 256.º, n.º 1, al. d), e) e f), ambos do CP. * Sem custas - artigo 513º do CPP, a contrario. * Notifique. *
Tribunal da Relação do Porto, 8 de Janeiro de 2025 (texto elaborado pela 1ª signatária em conformidade com o deliberado em conferência com as demais Juízas Desembargadoras Adjuntas, sendo por todas revisto e assinado digitalmente)
A Juíza Desembargadora Relatora CARLA CARECHO A Juíza Desembargadora 1ª Adjunta MARIA JOÃO LOPES A Juíza Desembargadora 2ª Adjunta MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA _____________________________ [1] “I - A contradição insanável da fundamentação prevista na alínea b) do n. 2 do artigo 410, n. 2, do CPP é um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão. Se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível. II - Não se verifica contradição insanável da fundamentação quando se dá como apurado que o arguido também subsistia do tráfico que fazia de heroína e de cocaína e, por outro lado, se dá também como verificado que ele, antes de preso, trabalhava na construção civil, como servente de pedreiro, auferindo 4000 escudos por dia.” [2] “É de fulcral importância para a salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa que as Relações façam um efectivo controlo da matéria de facto provada na 1ª instância, por confronto desta com a documentação em acta da prova produzida oralmente” [3] Entre eles, Mittermaier, in “Tratado de Prueba em Processo Penal”, pág. 389. [4] Neste sentido, cfr. Francisco Alcoy, “Prueba de Indicios, Credibilidad del Acusado y Presuncion de Inocencia”, Editora Tirant Blanch, Valencia 2003, pág. 39, fazendo a síntese da doutrina e jurisprudência sobre o tema. No mesmo sentido, desenvolvidamente, cfr. Carlos Climent Durán, ob. cit., pág. 626 e segs., em especial pág. 633. [5] Veja-se ainda o Ac. TC n.º 444/2021, no qual se reiterou o juízo no sentido da não inconstitucionalidade da norma ora em análise, reiterando a sua jurisprudência anterior em torno do princípio da livre apreciação da prova, designadamente, a dos Acs. n.ºs 391/2015, 578/2016, 197/2017, 541/2018 e 149/2018 acima referidos [6] O mandato judicial (ou forense) é um contrato de mandato atípico sujeito às regras dos artigos 1157.º do Código Civil e 63º e segs. do Estatuto da Ordem dos Advogados, para cumprimento do patrocínio judiciário, por força do qual o advogado se obriga a celebrar actos jurídicos por conta do mandante. [7] Dispõe o artigo 106º, com a epígrafe “Proibição da quota litis”: “1 - É proibido ao advogado celebrar pactos de quota litis. 2 - Por pacto de quota litis entende-se o acordo celebrado entre o advogado e o seu cliente, antes da conclusão definitiva da questão em que este é parte, pelo qual o direito a honorários fique exclusivamente dependente do resultado obtido na questão e em virtude do qual o constituinte se obrigue a pagar ao advogado parte do resultado que vier a obter, quer este consista numa quantia em dinheiro, quer em qualquer outro bem ou valor. 3 - Não constitui pacto de quota litis o acordo que consista na fixação prévia do montante dos honorários, ainda que em percentagem, em função do valor do assunto confiado ao advogado ou pelo qual, além de honorários calculados em função de outros critérios, se acorde numa majoração em função do resultado obtido.” [8] Compreendem-se as assinaladas aspas com o que acima ficou dito: a prova é insuficiente para se poder ter como provado que a quantia de 119,60 € foi suportada pelos exequentesa, no âmbito de uma qualquer provisão anteriormente prestada ao arguido, ou se foi, antes, totalmente suportada por este, com dinheiros próprios. [9] Manuel Soares, “Proibição de desfavorecimento do arguido em consequência do silêncio em julgamento — a questão controversa das ilações probatórias desfavoráveis”, in Rev. JULGAR, n.º 32, 2017, pág. 41. [10] Ac. STJ de 28.06.1995, Proc. n.º 048122, relator Juiz Conselheiro Fernandes Magalhães, consultável em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2ce3d956fb9a3a6b802568fc003b413a?OpenDocument; Ac. STJ de 23.01.1997, Proc. n.º 96P1191, relator Juiz Conselheiro José Girão, consultável em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/da306b986e1c7683802568fc003b264a?OpenDocument e Ac. STJ de 11.07.1990, Proc. n.º 041482, relator Juiz Conselheiro Vaz Sequeira, consultável (apenas o sumário), em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/698649eaad09824b802568fc0039f233?OpenDocument. [11] Desconhece-se, ademais, se os ofendidos puseram em causa aqueles honorários, através, nomeadamente, de um eventual pedido de emissão de laudo dirigido ao CSOA. A este propósito, e apenas a título de nota, atente-se no Ac. do Conselho Superior da AO de 18.07.1986, publicado na Rev. Ordem dos Advogados 49-946, “não há dependência do direito de retenção em relação à aprovação da nota de honorários”. |