Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MARIA JOANA GRÁCIO | ||
| Descritores: | DOLO EVENTUAL CONFORMAÇÃO DO AGENTE COM O RESULTADO | ||
| Nº do Documento: | RP2025111210/24.2FAPRT.P1 | ||
| Data do Acordão: | 11/12/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
| Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO DO ARGUIDO | ||
| Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | Estando em causa uma conduta levada a cabo com dolo eventual, a conformação do agente há-de estar compatibilizada com o próprio resultado verificado e não com um qualquer resultado possível. (Sumário da responsabilidade da Relator) | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 10/24.2FAPRT.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 11
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório No âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 10/24.2FAPRT, a correr termos no Juízo Central Criminal do Porto, Juiz 11, por acórdão datado de 17-06-2025 foi decidido, entre o demais: «Face ao exposto e decidindo, julga-se a acusação parcialmente provada e, em consequência condena-se o arguido, pela prática em autoria material e em concurso real dos seguintes crimes, nas seguintes penas: - dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145º, n.º 1, al. a) e n.º 2, com referência aos artigos 143º, n.º 1 e 132º, n.º 2, al. h) e l) do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão por cada um deles; - um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213º, nº 1, al. c) do Código Penal;, na pena de 9 meses de prisão; - um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 131º, n.º 1 e 132º, n.º 2, al. h) e l) do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão; - em cúmulo jurídico na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, cuja execução não se suspende. Mais se absolve o arguido da prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 247º, n º 2 do Código Penal, por estar em relação de concurso aparente com os crimes de homicídio e ofensas à integridade física de que o arguido foi condenado. Julga-se totalmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Ministério Público e, em consequência, condena-se o arguido AA a pagar ao Estado a quantia der 5.339,44€, acrescida de juros legais, vencidos e vincendos à taxa legal, desde a notificação até integral pagamento» * Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, solicitando a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que o condene pelo crime efectivamente cometido, aplicando-se em cúmulo jurídico pena não superior a 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, suspensa na sua execução, ou, caso assim não se entendendo, suspendendo-se a execução da pena em que foi condenado, apresentando em apoio da sua posição as seguintes conclusões das suas motivações (transcrição): «1) Nos presentes autos, veio o Recorrente acusado da prática, em autoria material e concurso real, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 247.º n.º 2 do Código Penal;- Dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145.º n.º 1, al. a) e n.º 2, com referência aos artigos 143.º n.º 1 e 132.º n.º 2, al. h) e l) do Código Penal; Um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213.º n.º 1, al. c) do Código Penal; Um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º n.º 1 e 132.ºn.º 2, al. h) e l) do Código Penal; 2) Peticionando o Ministério Público, em representação do Estado, indemnização pelo alegado prejuízo pela ausência do trabalho dos Assistentes e despesas medicamentosas que teve e suportar, designadamente, €3.692,06 relativas ao Assistente BB, €990,31 com o militar CC e €657,07 com o militar DD; 3) Realizada audiência de discussão e julgamento, deu o Tribunal a quo como provados os factos ora constantes de acórdão prolatado, bem como factos dados como não provados, para os quais se remete, porque constantes da presente motivação. 4) Decidindo o Tribunal a quo, por tais factos e concatenando-os ao Direito aplicável, condenar o Recorrente por dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145.º n.º 1 al. a) e n.º 2, com referência aos artigos 143.º n.º 1 e 132.º n.º 2 al. h) e l) do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão por cada um deles; Condenou o Recorrente também pela prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213.º n.º 1, al. c) do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão; Condenando ainda o Recorrente pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º n.º 1 e 132.º n.º 2, al. h) e l) do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão; Condenando-o, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, efetiva no seu cumprimento. 5) Ora, considerando a condenação supra e a sua forma de execução, bem como alguns dos factos dados como provados, e a apreciação da prova à luz das regras da experiência comum, não pode o Recorrente conformar-se com o acórdão prolatado, recorrendo do mesmo nos termos ora motivados, agora concluídos. 6) Entende o Recorrente que, da prova produzida, importa dar como não provado determinados factos, por não terem esses factos que adiante se indicarão, qualquer correspondência com a verdade material. 7) Isto posto, e no que tange à produção do acidente, à forma de execução e à motivação/consequências, cumpre identificar onde a prova testemunhal, trazida pelos Assistentes, não se concatena com os factos dados como provados, ou sequer com a versão trazida pelas duas testemunhas oculares, que ofereceram versões distintas sobre o sucedido. 8) Então, vejamos que, todos os Assistentes são perentórios ao trazer ao Tribunal a informação de que se encontravam devidamente identificados mediante colete com menções fotoluminescentes que liam ‘’GNR’’ ‘’Investigação Criminal’’, indicando que o Recorrente, antes de iniciar qualquer conduta ativa, os viu, e aí decidiu abalroar a viatura onde seguiam, e inclusive tentar matá-los. 9) Veja-se, no que diz respeito aos tempos de reação e de decisão, que o embate entre a viatura conduzida pelo Recorrente e a viatura onde se deslocavam os Assistentes, tem lugar num momento em que o condutor da viatura dos Assistentes ainda nem sequer tinha saído do carro (vide declarações DD – Assistente). 10) Verifica-se esse embate numa altura em que o Assistente mais próximo do carro do Recorrente, designadamente, o Assistente CC, quando se verifica o embate, cai para dentro do carro, ora, atendendo a que a viatura onde aquele se fazia deslocar, faz uma trajetória de afastamento quanto a si, na medida em que o embate tem lugar entre a traseira direita da viatura dos Assistentes e a frente direita da viatura do Recorrente, não se logra compreender como é que, pelas regras da mais comum experiência (e da física), se entende que é atendível a versão trazida pelo Assistente, de que já se encontrava fora da viatura a gritar ‘’GNR, desligue o motor’’, sendo a viatura alegadamente abalroada, resultando no afastamento desta daquele OPC, aqui Assistente, e ainda assim permitindo que ele caísse dentro do carro. 11) Diferente seria admitir que, ato contínuo à manobra pelos Assistentes, que atravessaram na diagonal o seu carro à frente do carro do Recorrente, este tivesse de forma imediata acelerado, embatendo na viatura num momento em que ainda se encontravam os dois referidos Assistentes dentro do carro. 12) Acresce que, da prova testemunhal dos Assistentes, defendem estes que a ação do Recorrente, além de ser inutilizar a viatura deles, magoar ou matar, foi permitir a fuga de uma outra viatura, alegadamente de matrícula francesa, que se deslocava imediatamente atrás. 13) Ora, do que nos trás a testemunha EE, que presenciou os factos, a fuga dessa carrinha foi antes do embate, não se concatenando com a versão uníssona trazida pelos Assistentes. 14) Também não se concatena a versão trazida pelo Assistente BB, vítima da tentativa de homicídio qualificado, que diz ao Tribunal que o Recorrente o viu, sem dúvida alguma, conforme transcrição melhor motivada, o que não mereceu qualquer crédito, e bem, pelo Tribunal a quo, que deu como não provado que o Recorrente o tivesse visto. 15) Tudo sem prejuízo de ter decidido o Tribunal a quo condenar o Recorrente pela prática daquele crime, porque se presumiria, atendendo ao normal funcionamento daquele tipo de operações, que pudessem existir outros OPCs no local, ou até dentro da viatura. Mas, a isso já chegaremos. 16) Seria explanável a postura destes Assistentes quando confrontada com o que terá acontecido no momento após o embate da viatura do Recorrente na viatura onde se deslocavam aqueles Assistentes, designadamente, o que foi trazido pela testemunha ocular FF, que ao ver o aqui Recorrente a ser ofendido no seu corpo, comentou com a sua filha ‘’será que ninguém chama a GNR?’’, vide declarações ora transcritas do seu curto testemunho. 17) Cumprindo ainda referenciar, no que tange ao acidente propriamente dito, que os danos suportados pela viatura dos Assistentes, alegadamente abalroada, se cifraram em cerca de €3.000,00 (três mil euros), incluindo várias peças de plástico, que constam dos factos dados como provados ora transcritos, o que, salvo o devido respeito, não é revelador de tão grande agressividade no arranque, nem pretensão de maiores danos. 18) Não se concebe assim que haja qualquer vontade, nem de causar ferimentos, nem de eventualmente retirar a vida. 19) Até porque, vejamos, procurasse o Recorrente retirar a vida a algum dos Assistentes, merecendo crédito, como mereceu, a versão trazida pelo Assistente CC, sempre conseguiria o Recorrente avançar sobre si, prensando aquele Assistente contra a viatura, logrando aí afastar a frente da viatura onde ele se fazia deslocar e logrando escapar daquele local, como se admite genericamente, sem prejuízo da justificação apresentada merecer ou não crédito junto deste VENERANDO TRIBUNAL. 20) Tudo isto posto, não se atinge o raciocínio lógico efetuado pelo Tribunal a quo, salvo o devido respeito, ao admitir que, por mero acaso, quer o Recorrente, quer a carrinha que circulava atrás de si, tinham os vidros abertos naquele momento, estando ambos a preparar-se para efetuar a prática de um crime, que como resulta das mais vulgares regras da experiência comum, fazem depender algum cuidado e alguma ocultação, antes de praticar tais factos. 21) Ou seja, não se afigura como credível que o Assistente CC, quando ultrapassava as duas viaturas paradas num semáforo, tenha gritado ‘’GNR’’, ou sequer a versão trazida pelo mesmo, indicando que o fez enquanto passava pelas viaturas, e de novo quando a viatura foi imobilizada à frente do carro do Recorrente, quando afirmou ‘’GNR, desligue o motor’’, o que não foi relatado pelos outros Assistentes. 22) Sendo certo que, nos presentes autos, e sem prejuízo o dever-ser do cumprimento das regras pelos OPCs, levantam mais dúvidas as diferenças dos testemunhas, do que a parte em que trazem a mesma versão. 23) Facto é que, do embate entre a viatura do Recorrente e dos Assistentes, resultaram danos às viaturas, e aos Assistentes, mais gravosa na pessoa do Assistente BB, tendo sido dado como provado que foi projetado mais de um metro, caindo desamparado no chão, tendo sido dado como não provado, que o Recorrente o tenha visto. 24) Avaliando tal factualidade, agora à luz do direito aplicado, da condenação propriamente dita, não se concebe que se tenha entendido que o aqui Recorrente se conformou com a eventual morte de um Assistente que nem sequer viu, do que a morte de um condutor que sabia existir, e de um outro Assistente que, por sair pela porta mais próxima do seu carro, teve oportunidade de ver, ALEGADAMENTE. 25) Aliás, salvo o devido respeito, as regras da experiência comum não permitem ter como base de uma condenação pela prática de um tal crime, uma mera presunção, de conhecimento das intervenções policiais, de presunção de conhecimento de quanto militares da GNR se faziam deslocar naquele local, ou que outros lá poderiam estar a chegar, e que a sua manobra colocaria a vida deles em risco. 26) Causa manifesta estranheza ao Recorrente, quer a versão trazida pelos OPCs, quer as ilações tiradas dessa versão, e pertinentemente, as consequências jurídicas, designadamente da prova do dolo eventual que serviu à condenação. 27) Efetivamente, resulta claro que o Recorrente tentou sair do local, uma vez que trazia consigo àquela hora a quantia de 40.000,00, que de resto lhe foi apreendida, porque temeu ser assaltado, ou segundo a versão apresentada pelos Assistentes, porque entendeu que iria ser sujeito a uma revista. 28) Ato contínuo, embateu na traseira da viatura onde se deslocavam os Assistentes, tendo de seguida perdido o controlo da viatura em virtude do embate, seguindo a bater no semáforo lá existente. 29) Dessa conduta resultaram danos à sua viatura, à viatura dos Assistentes, e aos próprios Assistentes. 30) O que se concebe, porque verdadeiro. 31) Porém, nunca se poderá conceber que o Recorrente, sem saber da existência do Assistente BB, como resulta não provado do acórdão prolatado, se conformasse com a sua, ou de outro, morte. 32) Com efeito, sabe o Recorrente, porque já foi condenado por tal crime, que a pena por introdução fraudulenta ao consumo, tem uma pena em mui grande medida mais leve do que o homicídio, nem é conhecido por ser pessoa agressiva ou perigosa, como é dito transversalmente pelos Assistentes, portanto, não se pode conceder pelo dolo eventual. 33) Até porque, conforme indica a testemunha FF, não vislumbrou qualquer colete com menções fotoluminescentes àqueles três Assistentes, sabendo que se deslocou ao local ato contínuo ao embate, por ter outra viatura batido no seu carro que estava estacionado na rua. 34) Pelo que a versão do Recorrente não deverá ser desprovida de crédito, sem prejuízo do crédito que merecerão os Assistentes, pela função que desempenham, mas sempre concatenada às imprecisões e factos contraditórios que são trazidos essencialmente pelas testemunhas EE e FF, testemunhas oculares, isentas. 35) Certamente que, tidas em consideração as declarações do Recorrente quanto aos factos, não estivesse acusado da prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, seriam os factos admitidos, como foram, sem prejuízo a explanação por este trazida. 36) Porém, a mecânica dos acontecimentos trazida pelos Assistentes enferma de graves falhas, e não se coibiram de a trazer de tal forma, sempre considerando que as testemunhas, isentas e idóneas, deverão sempre merecer melhor crédito do que aqueles Assistentes, com interesse concreto nos presentes autos. 37) Reiterando-se, nunca quis o Recorrente matar, nem se conformou com tal resultado. 38) Reiterando-se assim o motivado no ponto B, e douto aresto do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA no processo 07P1769, designadamente, o sumarizado pelo EGRÉGIO CONSELHEIRO SORETO DE BARROS, sobre a intenção de matar. 39) Assim, foram dados como provados factos, que à luz do aqui concluído e mais extensamente motivado, não poderiam ter sido dados como provados, designadamente, os factos 5, 6, 7, 11, 12, 13, 18, 19, 20, 21, 22 e 23, tudo o que deveria ter sido também dados como não provado nos termos ora concluídos. 40) Reiterando-se, porque necessário, a desconformidade entre a certeza necessária para provar um dolo eventual, à face do motivado pelo Tribunal a quo, que faz assentar em presunções, e eventuais presenças de outros OPCs, para se conformar com a morte destes. 41) Ora, se não se conformou com a morte dos OPCs que alegadamente terá visto, como se poderia conformar com a morte de OPCs que não tinha visto? Não se compreende, à luz das mais vulgares regras da experiência. 42) Nesta esteira, cumpre agora referenciar quanto à medida da pena concretamente aplicada, remetendo-se para a motivação em C), concluindo apenas que, condenando o Recorrente pela prática de três crimes de ofensas qualificadas, que não repugna a Defesa, sempre se pugnará por uma pena nunca superior a 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, na esteira do artigo 77.º do Código Penal, sem prejuízo de pena de multa que caberá no crime de dano, atendendo já se encontrar o mesmo ressarcido, e contrariamente ao invocado, tratar-se de um crime perfeitamente autonomizável, e cuja gravidade de prática não impede condenação em pena de multa. 43) Nesta esteira, cumpre concluir da suspensão da pena concretamente aplicada, quer caso entenda este VENERANDO TRIBUNAL não ser de acolher o aqui motivado e concluído, quer caso entenda merecer provimento o presente recurso. 44) Nestes autos, trata-se de Recorrente primário, inserido profissionalmente, familiarmente, com apoio e condições que permitem a formulação de juízo de prognose favorável. 45) Encontra-se recluído, no âmbito de obrigação de permanência na habitação, ao abrigo dos presentes autos, desde data a que remontam os factos, cumprindo paulatinamente com as suas obrigações. 46) A gravidade dos factos praticados, ainda que se entenda que o Recorrente percebeu tratar-se de OPCs, não é de remonta pois, tentou o Recorrente evitar qualquer contacto humano, tão somente efetuando manobra de desvio sobre a viatura dos Assistentes, o que não precisaria de fazer se simplesmente batesse na parte dianteira da viatura dos Assistentes, arriscando assim a vida do Assistente CC. 47) Nesta esteira, e na melhor motivada sob ponto D), cumpre, por justiça, suspender a pena aplicada ao Recorrente, quer se entenda merecer crédito o recurso de facto, quer não se entenda. 48) Tudo na esteira do douto acórdão do EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, no processo n.º 1293/96, quer na doutrina, defendida pelo Professor Doutor Figueiredo Dias, por Hans-Heinrich Jeschenck, bem como na esteira de outros doutos e célebres Professores, e VENERANDOS E EGRÉGIOS arestos. 49) Por fim, reporta-se este recurso, melhor motivado, também à inconstitucionalidade do acórdão prolatado pelo Tribunal aquo, na medida em que derroga o princípio da presunção de inocência, previsto e consagrado no artigo 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa. 50) Não se pode conformar o Recorrente que, ao julgador, com base em presunções de conhecimento de operações policiais, ou presunções de existência de terceiros, se possa decidir pela existência de um dolo eventual, violando-se assim esse artigo, à luz da interpretação dos artigos 365.º, 372.º e 374.º do Código de Processo Penal, melhor motivado no ponto E) do presente recurso. 51) O presente recurso tem como parte do seu fundamento a violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, 50.º, 51.º e 77.º do Código Penal e 118.º, 119.º, 340.º, 343.º, 345.º e 357.º do Código de Processo Penal.» * O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência e pela manutenção da decisão recorrida, concluindo em abono da sua posição nos seguintes termos (transcrição): «1. O arguido AA vem interpor recurso do Ac. proferido no processo à margem referenciado, datado de 17-06-2025, que decidiu condená-lo, pela prática, em coautoria material, pela prática em autoria material e em concurso real dos seguintes crimes e nas seguintes penas: Dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145º, n.º 1, al. a) e n.º 2, com referência aos artigos 143º, n.º 1 e 132º, n.º 2, al. h) e l) do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão por cada um deles; Um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213º, nº 1, al. c) do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão; Um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 131º, n.º 1 e 132º, n.º 2, al. h) e l) do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão e Em cúmulo jurídico na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão efetiva; 2. Entende o Recorrente que os factos 5, 6, 7, 11, 12, 13, 18, 19, 20, 21, 22 e 23, foram incorretamente julgados, já que as duas testemunhas oculares EE e FF e os assistentes, ofereceram versões distintas sobre o sucedido, colocando em causa a apreciação feita pelas Mºs Juízes de Direito da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, no que concerne à produção do acidente, à forma de execução e à motivação/consequências, o principio da livre apreciação da prova, a violação do princípio da presunção de inocência; 3. Não concebe que o Tribunal tenha concluído que o recorrente se conformou com a eventual morte de um assistente; 4. A pena de 4 anos e 6 meses de prisão efetiva devia ter sido suspensa na sua execução, já que o recorrente é primário, está inserido profissionalmente, familiarmente, com apoio e condições que permitem a formulação de juízo de prognose favorável; 5. O alcance do recurso interposto pelo recorrente tem notória e intima relação com o seguinte: O art.º 127º do Código de Processo Penal, no que respeita às regras constantes da legislação processual penal portuguesa para apreciação da prova, dispõe que, regra geral, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente, no caso dos autos, o juiz que profere a decisão, o designado princípio da livre apreciação da prova; 6. Assim, pretende o recorrente, criticar a aplicação feita do estatuído no art.º 127º, do Código de Processo Penal, à prova recolhida em sede de audiência de julgamento, uma vez que foi com base na mesma que, entenderam os Mºs Juízes de Direito encontrarem-se preenchidos todos os elementos integradores e em autoria material dos referidos crimes pelos quais foi condenado; 7. Ora, os Mºs Juízes após terem plasmado os princípios gerais como formularam a sua convicção na apreciação da prova, fizeram-no em concreto e de uma forma critica relativamente a todos os intervenientes processuais, disseram porque deram os factos como provados e formularam as suas convicções ao referirem que foi com base nas declarações do arguido, na parte em que mereceu credibilidade, dos assistentes e das testemunhas inquiridas nos presentes autos, na prova pericial: - Relatórios de fls. 249 a 251, 254 a 256, 258 a 260 e 454 a 455; documental: croquis de fls. 28; registos fotográficos de fls. 29 a 40; informação da CRA de fls. 41 e 42; elementos clínicos de fls. 45 a 50, 111, 391 a 397; auto de apreensão de fls. 51 a 53; orçamento de fls. 334 a 339; auto de reconstituição de fls. 342 a 345 e 368 a 370; reconstituição fotográfica de fls. 347 a 367 e 372 a 375; informação da GNR de fls. 411 a 412 e 472; CRC do arguido e relatório social; 8. Subsumindo estes princípios, no que diz respeito à situação que que antecedeu a situação em concreto, os depoimentos dos 3 assistentes, guardas da GNR, foram suficientes para o Tribunal se aperceber de toda a dinâmica dos factos e o motivo de estarem no encalço do arguido; 9. No que se tange à manobra de ultrapassagem efetuada pelo veículo conduzido pelos guardas da GNR, bem como à manobra efetuada pelo arguido após ter sido barrado por esse veículo, o arguido e os assistentes depuseram no mesmo sentido, quando concatenados com as fotografias tiradas no próprio dia dos factos e o croqui; 10. Da restante prova e começando pela alegada identificação dos guardas da GNR e o conhecimento por parte do arguido de que estaria perante uma viatura policial, apesar de descaracterizada, temos que o depoimento do arguido e dos assistentes foram díspares, já que o arguido afirmou que pensou que estaria perante um assalto, o assistente CC, relatou que aquando da ultrapassagem ao veículo do arguido e do veículo de matrícula francesa, abriu a sua janela - circulava no banco de trás do lado direito – e gritou bem alto “GNR pare o carro”. Os assistentes disseram ainda que o arguido tinha o vidro do lado do condutor aberto e que, por isso, viu e ouviu perfeitamente o assistente a gritar GNR. Finalmente e depois de relatarem como saíram do carro e de confirmarem que estavam devidamente identificados com coletes da GNR, de cor azul e refletores, o assistente CC ainda disse que o arguido olhou para ele antes de arrancar, não tendo dúvidas de que o reconheceu, pois que meses antes tinha estado no posto da GNR a ser inquirido; 11. Já o arguido afirmou pensar que estava a ser assaltado, confirmando que tinha na sua posse 40.000€ em numerário, negando que o assistente CC se tivesse identificado e que os guardas da GNR vestissem coletes ou que os mesmos fossem refletores o suficiente para os poder identificar; 12. O depoimento da testemunha FF e, nesta parte, alegada pelo recorrente disse que os assistentes estavam vestidos com coletes e afirmou que não tinham as características do relatado pelos GNRs, o que é plenamente plausível tendo em conta a dinâmica do ocorrido e a tensão que se gerou, pelo que não é suficiente para que possa abalar a versão dos assistentes nessa parte; 13. Perante os depoimentos contraditórios do arguido, o qual não está obrigado ao dever de verdade e a dos assistentes o Tribunal não teve qualquer dúvida em conferir mais credibilidade às declarações dos assistentes de que estes estavam vestidos com coletes refletores e com os dizeres da GNR, tanto mais que no local onde ocorreram os factos, pelas 23H30, conforme se pode vislumbrar das fotografias de fls. 39 e 40, se encontrar bem iluminado; 14. Por tais factos, tendo em conta a luminosidade existente e trajarem com os referidos coletes, o arguido facilmente os podia identificar como sendo da GNR e não como o mesmo referiu ao dizer que pensou tratar-se de um assalto situação de eventual carjacking, por ter 40.000€ na sua posse, que está as ser apreciado em processo de inquérito autónomo; 15. No que se refere ao procedimento do arguido após essa abordagem e a intenção ínsita no mesmo, o Tribunal teve novamente em conta os depoimentos prestados pelos assistentes e pelo arguido, únicas pessoas que presenciaram os factos, esclarecendo que a testemunha EE apesar de estar próximo do local, parado no semáforo em sentido contrário, afirmou nada ter visto até ao embate do carro do arguido no semáforo; 16. Começando pela ação em si mesma, temos que o arguido confessa a manobra efetuada, referindo que a sua intenção era fugir e evitar ser assaltado, nunca tendo a intenção de atropelar ou atingir a integridade física de quem quer que fosse; 17. Ora, os relatos da manobra efetuada pelo arguido são dispares consoante a posição dos intervenientes e a sua margem de visão, sendo que diferentes campos visuais das testemunhas podem originar diferentes visões e perceções, sendo que pelo facto de uns terem visualizado pormenores diferentes de outros não significa que as suas versões sejam contrárias; 18. Porém, para além das declarações dos GNRs, os croquis e as fotos tiradas no local, bem como os danos causados no veículo Renault ... são evidenciadores daquilo que sucedeu, não tendo o Tribunal qualquer dúvida em dar os factos como provados da forma em que o fez; 19. Com efeito, o facto dos danos no Renault ... estarem quase todos situados na parte traseira e não nas portas laterais, o mesmo ter saído da posição obliqua em que parou e ter ficado em posição perpendicular, após o embate, são suficientes para perceber que se tratou de uma manobra por parte do arguido de arrancar com o seu veículo e de tentar contornar o obstáculo que se deparava à sua frente para fugir, evitando ser detido pelos militares da GNR e não uma manobra de abalroar o veículo que se encontrava à sua frente; 20. Além disso, tais factos também são demonstrativos de que o arguido não o conseguiu fazer pois que embateu no ... e ficou desgovernado tendo embatido logo de seguida no poste, o que é compatível com um arranque muito rápido e brusco, com o intuito de se colocar em fuga, sem que fosse fiscalizado, mesmo que, para tanto, tivesse que colher os GNRs ou outras pessoas que se encontravam na sua trajetória de fuga; 21. Com efeito e do que resulta dos elementos fáticos supra referidos, pese embora o objetivo principal do arguido ter sido a fuga do local para evitar ser fiscalizado, o mesmo queria fazê-lo a qualquer custo, conformando-se com possíveis danos que pudesse causar, sendo-lhe indiferente a possibilidade de ter pessoas no meio da rua e de ter um carro à sua frente, aproveitando-se da dimensão e da robustez do seu veiculo – Jaguar Land Rover - para poder ultrapassar os obstáculos que eventualmente lhe pudessem surgir; 22. Assim e começando pela saída do carro do assistente CC a mesma foi por si relatada, tendo o arguido afirmado que visualizou a movimentação deste assistente, pois que o mesmo abriu a porta e saiu do veículo. No entanto, o arguido negou que o assistente alguma vez tivesse ficado à frente do seu carro, enquanto o assistente afirmou que teve a convicção de que o arguido o queria atropelar; 23. Na verdade, perante a presença de alguém que vinha na sua direção e tendo em conta a normal e natural dinâmica dos factos, o arguido teria sempre que saber que a sua ação ao arrancar a marcha do seu veiculo de forma brusca e rápida, apesar de ter como objetivo principal a sua fuga, poderia sempre atingir o assistente e provocar-lhe ferimentos ou atingir o carro em que o mesmo circulava e provocar-lhe igualmente ferimentos, pelo que atuou com dolo eventual relativamente aos ferimentos provocados no assistente CC, o mesmo se passando relativamente ao condutor do veiculo, o assistente DD; 24. Por fim, a situação relacionada com o assistente BB, a mais grave, segundo o seu depoimento e dos demais assistentes, o mesmo saiu pela porta traseira do lado direito do veículo Renault ..., pelo que este veículo estava entre o assistente e o veículo conduzido pelo arguido, o facto de o arguido ter dito que nunca viu este assistente, é plausível, por ter os vidros traseiros do veículo escurecidos, mas, um facto é não o ter visto e o outro é completamente diferente, de acordo com o normal de acontecer, o ter previsto essa possibilidade de estar alguém atrás do veículo; 25. O arguido, como qualquer cidadão médio, sabia que os agentes policiais ou militares da GNR nunca agem sozinhos e que na abordagem que lhe foi feita certamente haveria mais guardas para além daquele que o abordou em primeiro lugar, pelo que ao agir da forma descrita, sabia perfeitamente da existência de um militar da GNR que teria que sair do carro do lado do condutor, contornando a parte de trás do veículo, pelo que dentro do critério do homem médio, teria forçosamente que configurar e admitir como possível; 26. Destarte, tendo em conta a dinâmica dos factos supra relatada e pelos motivos supra expostos, o Tribunal não ficou com qualquer dúvida em concluir que não obstante o arguido não ter como intenção principal atropelar alguém ou abalroar o veículo Renault ..., o certo é que previu tal possibilidade e conformou-se com a mesma, dado que a sua intenção era fugir da polícia a “qualquer custo”, aproveitando-se da potência e robustez do seu veículo para ultrapassar todos os obstáculos que se lhe deparassem à sua frente; 27. Pelo que, dúvidas não subsistiram ao Tribunal de que os factos descritos na acusação ocorreram, tal como lá se encontram descritos; 28. Por outro lado, a matéria respeitante ao dolo da atuação, colocado em causa pelo recorrente, porque se situa no campo da subjetividade, é sempre de difícil discernimento, pelo que tem que se inferir dos factos objetivos em causa, a luz das regras da experiência comum; 29. Assim, se quem atua não esclarece qual o estado de alma em que atuou, ou quando o faz se contraria a demais prova, tal como fez o arguido, terá de ir buscar-se a elementos, a dados objetivos reveladores da verdadeira vontade, o sentimento que determinou a sua atuação; 30. Ora, foi com base na prova carreada para os autos, testemunhal, pericial e documental, que os Mºs Juízes, concluíram, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, estatuído no art.º 127º do Código de Processo Penal, que o arguido ao agir como descrito tinha que admitir como possível que a sua conduta era apta a produzir a morte de alguém, que só não ocorreu por circunstâncias alheias à sua vontade; 31. O recorrente invoca, ainda, a aplicação do princípio in dúbio pro reo, este afirma-se como um princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal; 32. Trata-se da emanação da garantia constitucional da presunção de inocência do arguido, enquanto dirigido à apreciação dos factos objetos de um processo penal leva a que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos descritos na acusação ou na pronúncia, o tribunal deve decidir a favor do arguido; 33 Os Mºs Juízes, pela prova produzida e devidamente valorada, não ficaram com qualquer dúvida que o arguido praticou a factualidade que foi dada como provada, pelo que tal princípio é inaplicável no caso concreto; 34. O Ac. sob recurso descreve de forma exaustiva, em termos doutrinários e jurisprudenciais, os princípios que norteiam a fixação da medida concreta da pena, mas diga-se: para a aferição da medida concreta da pena há que considerar em primeiro lugar a delimitação rigorosa das molduras penais abstratamente aplicáveis aos crimes e ao caso concreto, a fixação do grau de culpa do agente, que figurará como limite máximo da moldura penal, acima do qual a imposição de qualquer pena viola o princípio da culpa e, simultaneamente, a dignidade humana constitucionalmente protegida e, por último, a equação das exigências de prevenção social e especial que auxiliarão o julgador no âmbito da qualificação penal; 35 Por sua vez o art.º 70º do Código Penal enuncia os critérios de opção pela pena privativa de liberdade ou não e o art.º 71º, do mesmo diploma legal, manda que o Tribunal, no encontro da pena, que atue em função da culpa do agente, das exigências de prevenção e na ponderação das demais circunstâncias aí enumeradas e a pena não pode ultrapassar a medida da culpa (artº 40º do mesmo código) e que aquela visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; 36. Da análise do acórdão sob recurso, encontram-se de forma nítida verificados o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes pelos quais o arguido foi condenado e, tendo em conta as molduras penais abstratas de cada um deles, sendo de realçar que as exigências de prevenção geral positiva, tendo em conta o concreto modus operandi apurado, se mostram extremamente elevadas e, In casu, as necessidades de prevenção especial, sejam médias pois que apesar do relatório social ser favorável e de na data em questão não ter antecedentes criminais, o que a sociedade exige a qualquer cidadão, certo é que os crimes em causa e a forma como foram perpetrados lhes são desfavoráveis, uma vez que demonstram uma clara tendência para delinquir e uma completa ausência de respeito pela vida e integridade física das pessoas e pela autoridade do Estado, pelo que entendemos que as penas parcelares, bem como a pena única, se encontram devidamente fixadas, sendo a pena de prisão a única que poderá prevenir o cometimento de novos ilícitos penais pelo arguido; 37. No que concerne à suspensão da execução da pena de prisão de 4 anos e 6 meses, diga-se: para além do referido em termos doutrinais e jurisprudências no Ac. recorrido, que a suspensão da execução da pena de prisão, mesmo que aconselhada à luz de razões de prevenção especial, não tem aplicação, se as razões de prevenção geral forem de tal modo intensas que desaconselhem a simples censura do facto e a ameaça da pena; 38. Constitui princípio fundamental do sistema punitivo do Código Penal, o da preferência fundamentada pela aplicação das penas não privativas da liberdade, consideradas mais eficazes para promover a integração do delinquente na sociedade e dar resposta às necessidades de prevenção geral e especial, anunciado, desde logo, no art.º 40º do Código Penal; 39. Ora, nos termos do art.º 50º nº 1 do CP, a suspensão da execução da pena constituí uma dessas medidas de conteúdo pedagógico e ressocializante que exige, para além da moldura concreta não superior a cinco anos de prisão, que o Tribunal formule um juízo de prognose favorável ao arguido, no sentido de considerar provável que a simples censura da sua conduta e a ameaça da pena são suficientes para que ele não volte a cometer crimes e para satisfazer as exigências de prevenção da criminalidade; 40. São, sobretudo, as razões de prevenção geral, traduzidas nas exigências mínimas e irrenunciáveis de salvaguarda da crença da sociedade, na manutenção e no reforço da validade da norma incriminadora violada, que determinam a possibilidade de reinserção social em liberdade que inspira o instituto da suspensão da execução da pena; 41. Aqui chegados, ao contrário do referido pelo recorrente, tal como se encontra plasmado no acórdão os Mºs Juízes elencaram de uma forma exaustiva das razões de facto e de direito porque nos seus entendimentos, à semelhança do nosso, decidiram aplicar a referida pena de prisão efetiva; 42. Uma vez que, numa imagem global do facto, verifica-se que a personalidade do arguido, o desrespeito total pela vida e integridade física de outrem e pela autoridade do Estado, por se tratar de militares da GNR no exercício das suas funções e em missão de segurança e prevenção criminal, as finalidades de prevenção geral e especial, devidamente elencadas no que concerne à fixação da medida concreta da pena única, verifica-se que a simples censura do facto e a ameaça da pena não bastarão para realizar as finalidades da punição, pelo que é de afastar, tal como fez o Tribunal, por não se poder formular um juízo de prognose social favorável, de que o mesmo sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime, é inaplicável o referido instituto. 43. Assim, optou bem o Tribunal a quo, pela aplicação da referida pena, que se mostra adequadamente fixada, uma vez que foram devidamente valorados todos os factos no seu conjunto e os critérios supra referidos, bem como a forma do seu cumprimento. Destarte, o Ac. recorrido, além de aplicar o DIREITO ao caso concreto, cumprindo com as regras processuais penais legalmente admissíveis, fez também JUSTIÇA, ao condenar os arguidos nos sobreditos termos pelo que deve ser mantido. Porém, Vossas Excelências farão a habitual JUSTIÇA!» * Também os assistentes, CC, BB e DD, responderam ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção do acórdão recorrido. * Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, acompanhou a posição do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, emitindo parecer no sentido da improcedência total do recurso. * Cumpridas as notificações a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o recorrente apresentou resposta, reafirmando a posição expressa no recurso. * Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso. * II. Apreciando e decidindo: Questões a decidir no recurso É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1]. As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes: - Impugnação da matéria de facto provada; - Qualificação jurídica dos factos quanto ao assistente BB; e - Medida concreta da pena excessiva, devendo suspender-se a execução da pena de prisão. * Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes do acórdão recorrido (transcrição): «II. FUNDAMENTAÇÃO Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos: 1 - No dia 04 de junho de 2024, cerca das 22h00, os militares da Unidade de Ação Fiscal da Guarda Nacional Republicana, o Sargento Ajudante CC, o Cabo BB e o Cabo DD, fazendo-se transportar na viatura da marca Renault ..., descaracterizada, com a matrícula ..-ZI-.., conduzida por aquele último militar, encontravam-se numa ação de vigilância ao arguido AA, que conduzia a viatura automóvel ligeira de passageiros da marca Jaguar Land Rover Limited, modelo ..., com a matrícula ..-PT-.., com a matrícula ..-PT-.., na rotunda ..., seguido por um veículo ligeiro de mercadorias, cor azul, de matrícula francesa, com carga que os militares da GNR consideravam ser passível de configurar ilícito criminal e que está a ser investigada em processo autónomo. 2 - O arguido e a viatura que precedia seguiram pela Rua ..., Avenida ..., Rua ..., Travessa ..., Rua ..., Rua ... e entraram na Rua ..., sempre com aqueles militares no seu encalço, mas sem que o arguido se apercebesse da presença daqueles. 3 - Cerca das 23H30, a viatura do arguido e a outra de matrícula francesa imobilizaram-se perante o sinal vermelho no semáforo existente na referida Rua ..., ..., em ..., Gondomar. 4 – Nessa altura e tendo em vista a abordagem e fiscalização de ambos os veículos, o militar DD efetuou uma manobra de ultrapassagem e imobilizou o veículo ..-ZI-.. na frente do veículo do arguido, posicionando-se de forma atravessada e diagonalmente em relação a este, bloqueando-lhe a passagem. 5 - Durante a ultrapassagem a esses veículos, ambos com as janelas do lado do condutor abertas, o militar da UAF CC que seguia no banco traseiro do lado direito do veículo Renault ..., abriu a janela do seu veículo e gritou na direção do arguido “GNR”. 6. - Logo após a imobilização do veículo, o militar CC saiu do banco traseiro do lado direito para a rua, de frente para o arguido, enquanto o militar BB, saiu do lado oposto, estando ambos devidamente identificados com o colete retrorrefletor modelo da Investigação Criminal da GNR, tendo o militar CC, ostentando a carteira/distintivo profissional na mão, gritando em voz alta e de forma clara “GNR desligue o veículo”. 7 - Perante tal comportamento dos assistentes, o arguido decidiu não acatar a ordem que lhe foi dada e em ato contínuo e tudo de uma forma muito rápida, o arguido AA tentou fugir e arrancou com o seu veículo, tentando passar pela parte de trás do veículo Renault .... 8 - Ao fazer esta manobra, o arguido não conseguiu evitar o veículo Renault ..., tendo embatido com a parte frontal direita do seu veículo na parte lateral traseira do referido Renault ..., arrastando-o e fazendo com que o veículo que se encontrava de forma obliqua na estrada ficasse numa posição perpendicular. 9 - Com a velocidade que imprimiu, suficiente para remover o Renault ... da sua frente, o carro do arguido arrancou de forma descontrolada tendo atingido com a parte frontal da sua viatura o assistente Cabo BB que tinha acabado de sair do Renault ... conforme referido em 6-) e se dirigia em direção ao carro do arguido, contornando o veiculo Renault ... pela parte de trás do mesmo, projetando o assistente por mais de um metro, provocando a queda deste desamparado no solo. 10 - O carro do arguido imobilizou-se de seguida, por força do seu subsequente embate no semáforo existente no lado oposto da via. 11 - Quando o arguido efetuava a manobra descrita em 7-) e 8-) o militar CC travou a sua marcha em direção ao carro do arguido e saltou para o interior do Renault ... cuja porta traseira direita ainda se encontrava aberta, para evitar ser atingido pelo carro do arguido. 12 -Com o embate da viatura do arguido no veiculo Renault ..., o militar DD, que ainda se encontrava no veículo e se levantava para sair, embateu na coluna da porta e caiu no interior. 13 - Ao embater com o seu veículo na viatura policial, o arguido conseguiu que esta ficasse atravessada na via e impossibilitada de circular pelos próprios meios e criar espaço para que o condutor do veículo ligeiro de mercadorias de matrícula Francesa que se encontrava atrás de si tivesse galgado o passeio e se colocasse em fuga, dessa forma inviabilizando o acesso da GNR à carga que transportava. 14- Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o Cabo BB sofreu, para além de dores, as lesões descritas nos relatórios de exame médico-legais de fls. 258 a 260 e 454 a 455, que aqui se dão por reproduzidos, concretamente: - na face: equimose na face externa da pálpebra superior do olho esquerdo, arroxeada, irregular, com cm por 1cm de maiores dimensões; escoriação na porção mais superior externa da pálpebra superior do olho esquerdo, milimétrica, com crosta hemática não destacada; - ráquis: escoriação na região lombar, à esquerda da linha média, de fundo avermelhado, ovalada, com 11cm por 10cm de maiores dimensões, com crosta hemática não destacada; discreta alteração da cor da pele hiperpigmentada, com 11cm por 10cm de maiores dimensões; - abdómen: equimose ligeiramente abaixo do flanco direito, arroxeada e com pontilhado avermelhado, ovalada, com 10cm por 4cm de maiores dimensões; - membro superior direito: escoriação no terço superior da face posterior do antebraço, linear, vertical, com 3cm de comprimento, com crosta hemática em destacamento; - membro superior esquerdo: escoriação no cotovelo, de fundo avermelhado, de forma irregular, com 5cm por 3,5cm de maiores dimensões, com crosta hemática não destacada que desenvolveu para discreta alteração da pele mais hiperpigmentada na face posterior do terço distal do braço, com aquelas dimensões; - membro inferior direito: equimose no terço médio da face póstero-medial da perna, amarelada, de forma irregular, com 3,5cm por 2cm. Tais lesões determinaram 42 dias para a consolidação, com igual período de afetação da capacidade de trabalho geral e profissional e delas resultaram, como consequências permanentes, a cicatriz e as alterações pigmentares descritas, bem como outras consequências psicológicas e psiquiátricas ainda não consolidadas. 15 - Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o militar CC sofreu, para além de dores, as lesões descritas no relatório de exame médico-legal de fls. 249 a 251, que aqui se dá por reproduzido, concretamente dor à palpação da região lombar à direita e à esquerda da linha média; - equimose na face posterior do cotovelo direito, arroxeada, arredondada, pericentimétrica; - escoriação no terço superior da face posterior da coxa direita, de fundo avermelhado, linear, vertical, com 3,5cm de comprimento, com crosta hemática não destacada e escoriação na face anterior do joelho direito, de fundo avermelhado, arredondada, infracentimétrica, com crosta hemática não destacada. Tais lesões determinaram 8 dias para a cura, com igual período de afetação da capacidade de trabalho profissional e sem afetação da capacidade de trabalho geral. 16 - Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o militar DD sofreu dor à palpação do maléolo externo do pé esquerdo, na planta desse pé na dorsiflexão e dor à palpação do dorso do hálux, e a lesão descrita no relatório de exame médico-legais de fls. 254 a 256, que aqui se dá por reproduzido, concretamente incapacidade de flexão do hálux do pé esquerdo. 17 - Com aquele embate o arguido inutilizou o veículo policial, causando-lhe diversos danos, designadamente de carroçaria e mecânica, descritos no orçamento de fls. 335 a 336, que aqui se dá por reproduzido, nomeadamente fratura do para-choques, sensores, suportes e frisos, do suporte da chapeleira e do porta-bagagens, das rodas traseiras, da porta traseira, do painel traseiro e do painel lateral traseiro, dos farolins traseiros e dos amortecedores traseiros, cuja reparação ascendeu a 3002,97€, suportados pela companhia de seguros Fidelidade, a coberto da apólice de seguro do veículo do arguido. 18 - O arguido tinha perfeito conhecimento de que se encontrava na presença de militares da GNR, no exercício das suas funções, que lhe haviam dado uma ordem legítima, que quis desrespeitar, através da força, arrancando rapidamente com o seu veiculo para dessa forma impedir a sua fiscalização e eventual detenção, bem sabendo que assim se estava a opor a que praticassem um ato próprio das suas funções, cerceava a liberdade de ação pública dos mesmos e que se furtava ao interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade e autonomia intencional. 19 - Ao arrancar de forma tão repentina e brusca e ao apontar o seu carro naquela direção, o arguido quis furtar-se à ação fiscalizadora dosa militares da GNR. 20 - Mas sabia igualmente que ao tentar fugir, atento não só à manobra que estava a efetuar, mas também à dinâmica do movimento dos guardas da GNR e à forma e local como o Renault ... estava imobilizado, que poderia não só embater naquele veiculo, mas que também poderia atingir/atropelar os militares da GNR que tinham acabado de sair do Renault ..., ou outros que se encontravam na faixa de rodagem com o intuito de o abordar e deter e conformou-se com tal resultado. 21 - Mais sabia que por força da utilização daquele veículo e das concretas características do mesmo, como a sua dimensão e robustez, um atropelamento poderia causar-lhes ferimentos e até retirar-lhes a vida, resultado com o qual se conformou e que apenas não se verificou relativamente ao assistente BB por circunstâncias alheias à sua vontade. 22 - Sabia igualmente que ao atingir a viatura que sabia estar afeta aquela Guarda, poderia causar-lhe aqueles danos e inutilizá-la, tendo igualmente previsto que ao embater naquela viatura poderia causar lesões físicas aos militares da GNR que se encontravam no seu interior, ou na zona da porta, resultado com o qual se conformou. 23 - O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que todas as descritas condutas eram ilícitas e proibidas pela lei penal e, não obstante, quis levá-las a cabo e alcançar os correspetivos resultados delituosos. 24 - O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 15/07/2024, por factos praticados em 2015, numa pena de 1 ano e seis meses de prisão suspensa pelo mesmo período pela prática do crime de introdução fraudulenta no consumo. 25 - Do seu relatório social consta o seguinte: À data dos factos pelos quais se encontra acusado no presente processo, AA integrava o seu núcleo familiar de origem, constituído pelo próprio, pelo cônjuge, GG, atualmente de 47 anos de idade, doméstica e o descendente, HH, de 23 anos de idade, sócio-gerente da empresa adquirida pela família. A interação entre os diferentes elementos do agregado é harmoniosa e suportada em laços de significativa vinculação afetiva, preservados também em relação à família de origem, promovendo a proximidade entre todos. A habitação do agregado é propriedade do progenitor do arguido, uma moradia de significativa dimensão, onde reside igualmente o seu antecessor e companheira e o núcleo doméstico do seu irmão mais novo dispondo, cada agregado, de condições residenciais de independência funcional e dispondo de condições de conforto adequadas às necessidades dos seus habitantes. O arguido concluiu o 6º ano de escolaridade, iniciando a sua trajetória profissional, desde aproximadamente os 15 anos no suporte a prestar ao progenitor, na comercialização de produtos alimentares, hortícolas e outros diversificados, como comércio por grosso de madeira e derivados, etc. Mais tarde autonomizou-se no mesmo ramo de atividade, após constituição de família própria, estabelecendo-se por conta própria com dois espaços comerciais. Em janeiro de 2022, AA cessou atividade por conta própria, estabelecendo contrato de trabalho em junho do mesmo ano com a empresa A..., como empregado de armazém e da qual o filho mais novo é sócio-gerente. Atualmente o arguido, com aplicação de medida de coação de Obrigação de permanência na habitação com monitorização eletrónica, encontra-se na situação de desempregado e a usufruir do respetivo subsídio de desemprego. Em termos de saúde, vivenciou problema de foro oncológico, mantendo-se em vigilância clínica sendo que o cônjuge permanece, igualmente, em vigilância por problema da mesma natureza, prestando, todavia, suporte profissional ao descendente. Nesta conjuntura, a situação económica é isenta de carências de primeira necessidade dado que o arguido aufere do valor de 650.00€ (seiscentos e cinquenta euros) de subsídio de desemprego e do suporte financeiro do descendente, HH, que integra o grupo doméstico e, como se refere, gere a empresa. Além disso, o arguido ainda possui poupanças efetuadas no decurso da sua vida, inexistindo, igualmente, custos com a renda da habitação. Enquanto em medida de coação aplicada no âmbito do processo em apreço, não é reportada ao arguido qualquer incidente. 26 - O arguido é reputado por familiares e amigos como sendo uma boa pessoa. 27 - Como consequência direta e necessária da conduta do arguido os ofendidos BB, Sargento Ajudante da GNR, CC, Cabo da GNR, e DD, Cabo da GNR, necessitaram de assistência hospitalar e sofreram as dores e lesões supra descritas. 28 - Por via disso, o militar BB esteve ausente do serviço, por incapacidade absoluta para o trabalho, de 05/06/2024 a 16/07/2024. 29 - O Estado Português processou e pagou-lhe a remuneração durante o período de incapacidade temporária absoluta no valor de 3.237,28€. 30 - O Estado Português assegurou ainda o pagamento das despesas médicas e medicamentosas que ascenderam a 35,82€. 31 - Também assegurou o pagamento das despesas com a SAD/GNR, no total de 60,80€. 32 - Bem como as despesas em estabelecimentos de saúde no total de 358,16€. 33- O militar CC esteve ausente do serviço, por incapacidade absoluta para o trabalho, de 07/06/2024 a 14/06/2024. 34 - O Estado Português processou e pagou-lhe a remuneração durante o período de incapacidade temporária absoluta no valor de 634,22€. 35 - O Estado Português assegurou ainda o pagamento das despesas médicas e medicamentosas que ascenderam a 57,52€, bem como o pagamento de despesas em estabelecimentos de saúde, no valor de 138,57€, e das despesas com a SAD/GNR, no total de 160€. 36 - O militar DD esteve ausente do serviço, por incapacidade absoluta para o trabalho, de 06/06/2024 a 07/06/2024. 37 - O Estado Português processou e pagou-lhe a remuneração durante o período de incapacidade temporária absoluta no valor de 157,27€. 38 - O Estado Português assegurou ainda o pagamento das despesas médicas e medicamentosas que ascenderam a 304,10€ e o pagamento das despesas com a SAD/GNR, no total de 213,70€. b) Factos não provados Não ficou provado que: - que o arguido tivesse visto o assistente BB na sua frente; - que o arguido, quando já se encontrava fora da sua viatura, tivesse tentado colocar-se em fuga e que tal apenas não se sucedeu por ter sido agarrado pelos militares da GNR - não resultaram também provados outros factos alegados na acusação ou durante a discussão da causa e que se mostrem em contradição com os factos dados como provados ou por eles prejudicados. Motivação da Matéria de Facto A convicção assentou no conjunto da prova produzida e livremente analisada em sede de audiência de julgamento, nomeadamente: Declarações do arguido, dos assistentes e das testemunhas inquiridas nos presentes autos. PERICIAL: - Relatórios de fls. 249 a 251, 254 a 256, 258 a 260 e 454 a 455; DOCUMENTAL: - croquis de fls. 28; - registos fotográficos de fls. 29 a 40; - informação da CRA de fls. 41 e 42; - elementos clínicos de fls. 45 a 50, 111, 391 a 397; - auto de apreensão de fls. 51 a 53; - orçamento de fls. 334 a 339; - auto de reconstituição de fls. 342 a 345 e 368 a 370; - reconstituição fotográfica de fls. 347 a 367 e 372 a 375; - informação da GNR de fls. 411 a 412 e 472; - CRC do arguido; - relatório social do arguido. * Como é sabido, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127.º). As regras ou normas da experiência, como refere Cavaleiro de Ferreira, são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto "sub judice", assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação de alicerçam, mas para além dos quais têm validade. Por outro lado, a livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade, portanto, uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores (...). Em resumo, a prova deve ser apreciada pelo julgador livremente, de acordo com o bom senso, a lógica e a experiência de vida, temperados pela capacidade de distanciamento dada pela experiência de julgar. O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art.º 355 do Código de Processo Penal. É ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova. No dizer do Prof. Germano Marques da Silva "... a oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais diretas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objetiva, atípica, e de valoração pela intima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens". -Cfr. "Do Processo Penal Preliminar", Lisboa, 1990, pág. 68”. O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto direto, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto. Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: “ Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais ". -In "Direito Processual Penal", 10 Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 233 a 234. Subsumindo estes princípios ao caso concreto, temos várias situações diferentes que convém analisar casuisticamente. Antes do mais e no que concerne ao circunstancialismo que antecedeu a situação em concreto, os depoimentos dos 3 assistentes foram suficientes para percebermos a dinâmica dos factos e o motivo de estarem no encalço do arguido. No que se refere à manobra de ultrapassagem efetuada pelo veículo conduzido pelos guardas da GNR, bem como à manobra efetuada pelo arguido após ter sido barrado por esse veículo, o arguido e assistentes depuseram no mesmo sentido, sendo que o croqui junto aos autos, bem como as fotografias tiradas no próprio dia dos factos são elucidativas da forma como os factos decorreram. No que concerne aos ferimentos sofridos pelos assistentes, o seu depoimento bem como os relatórios médicos foram suficientes para darmos tais factos como assentes, sendo que o facto do arguido ter dito que o assistente DD se magoou quando lhe deu um pontapé não foi credível e não afasta, sem mais, a possibilidade dos ferimentos terem sido causados pelo embate. O CRC do arguido e o relatório social também não mereceram qualquer reparo deste Tribunal. Quanto aos factos controvertidos vamos analisá-los de forma separada. Começando pela alegada identificação do guarda da GNR e o conhecimento do arguido de que estaria perante uma viatura policial, apesar de descaracterizada, temos que os depoimentos do arguido e dos assistentes foram díspares, alegando o arguido que pensou que estaria perante um assalto, não sabendo que estava perante guardas da GNR brigada fiscal, enquanto os assistentes afirmaram exatamente o contrário. Para sustentarem a sua convicção, os assistentes relataram que o arguido já desconfiava de que poderia estar a ser seguido, pois antes já tinha efetuado manobras de contra vigilância. Além disso, os assistentes relataram que o assistente CC, aquando da ultrapassagem ao veículo do arguido e do veículo de matrícula francesa, abriu a sua janela - circulava no banco de trás do lado direito – e gritou bem alto “GNR pare o carro”. Os assistentes disseram ainda que o arguido tinha o vidro do lado do condutor aberto e que, por isso, viu e ouviu perfeitamente o assistente a gritar GNR. Finalmente e depois de relatarem como saíram do carro e de confirmarem que estavam devidamente identificados com coletes da GNR, de cor azul e refletores, o assistente CC ainda disse que o arguido olhou para ele antes de arrancar, não tendo dúvidas de que o reconheceu, pois que meses antes tinha estado no posto da GNR a ser inquirido. Já o arguido afirmou pensar que estava a ser assaltado, confirmando que tinha na sua posse 40.000€ em numerário, negando que o assistente CC se tivesse identificado e que os guardas da GNR vestissem coletes ou que os coletes fossem refletores o suficiente para os poder identificar. Ora, perante os depoimentos contraditórios de arguido e dos assistentes não tivemos dúvida em conferir mais credibilidade às declarações dos assistentes. Na verdade e desde logo a abordagem efetuada pelos assistentes foi num local com luz e com casas, conforme se pode vislumbrar das fotografias de fls. 39 e 40, algo mais natural numa abordagem policial e menos aconselhável numa situação de assalto. Além disso, com a luminosidade existente, facilmente se podia identificar os coletes da GNR, bem como a cara de alguém que passasse a alguns metros de si, como sucedeu no caso em apreço, mesmo que tenha sido de forma muito rápida. Acresce que é procedimento usual das forças policiais identificarem-se quando executam actos desta natureza, sendo que esse procedimento, além de pretender assegurar as necessárias garantias dos cidadãos, visa também salvaguardar a segurança dos próprios agentes, não fazendo qualquer sentido que os assistentes não se tenham identificado nesta situação. Por sua vez, nenhum dos intervenientes referiu a existência ou a exibição de uma arma de fogo, algo que certamente seria normal num assalto a meio da noite e numa situação de eventual carjacking, como alegado pelo arguido, Por fim, o facto de ter 40.000€ na sua posse que o arguido alega como motivo para temer ser assaltado é algo que se analisarmos de forma mais aprofundada até pesa contra a versão do arguido. Com efeito e desde logo, o próprio valor do veículo do arguido constitui motivo suficiente para o assalto, sendo que o numerário não estava à vista de ninguém, pelo que não era plausível que pudesse ocorrer um assalto por causa desse dinheiro. Já a eventual prática de um ilícito criminal com o uso desse numerário era algo plausível e a ter ocorrido justificava plenamente a abordagem policial e o medo do arguido dessa abordagem, por poder ser detido em flagrante delito. No entanto, estamos perante factos que estão a ser investigados em processo autónomo e por isso não nos podemos alongar muito, apenas dando uma possível justificação para o receio do arguido em ser abordado pela policia, algo que certamente um cidadão comum não teria se não estivesse na situação do arguido. Já no que se refere ao procedimento do arguido após essa abordagem e a intenção ínsita no mesmo, tivemos novamente em conta os depoimentos prestados pelos assistente e pelo arguido, únicas pessoas que presenciaram os factos, esclarecendo que a testemunha EE apesar de estar próximo do local, parado no semáforo em sentido contrário, afirmou nada ter visto até ao embate do carro do arguido no semáforo. Começando pela ação em si mesma, temos que o arguido confessa a manobra efetuada, referindo que a sua intenção era fugir e evitar ser assaltado, nunca tendo a intenção de atropelar ou atingir a integridade física de quem quer que fosse. Os relatos da manobra efetuada são dispares consoante a posição dos intervenientes e a sua margem de visão, sendo que diferentes campos visuais das testemunhas podem originar diferentes visões e perceções, sendo que pelo facto de uns terem visualizado pormenores diferentes de outros não significa que as suas versões sejam contrárias. Assim e para além dessa declarações, os croquis e as fotos tiradas no local, bem como os danos causados no veículo Renault ... são evidenciadores daquilo que sucedeu, não tendo este Tribunal qualquer dúvida em dar os factos como provados da forma em que o fez. Com efeito, o facto dos danos no Renault ... estarem quase todos situados na parte traseira e não nas portas laterais, o facto do mesmo ter saído da posição obliqua em que parou – conforme dito por todos os intervenientes - e ter ficado em posição perpendicular, após o embate, são suficientes para percebermos uma manobra por parte do arguido de arrancar com o seu veiculo e de tentar contornar o obstáculo que se deparava à sua frente para fugir, evitando ser detido pelos militares da GNR e não uma manobra de abalroar o veículo que se encontrava à sua frente. Além disso, tais factos também são demonstrativos de que não o conseguiu fazer pois que embateu no ... e ficou desgovernado tendo embatido logo de seguida no poste. A dinâmica dos factos também é compatível com um arranque muito rápido e brusco do veículo do arguido, pois que não obstante a sua dimensão só uma aceleração forte é que possibilitava a movimentação do Renault ... e a consequente embate posterior, de forma descontrolada, no poste. Quanto à posição dos assistentes dentro do carro, a mesma foi confirmada por estes, não havendo qualquer motivo para duvidar da mesma. Já no que se refere à sua movimentação e à perceção desses movimentos por parte do arguido, tivemos em conta as declarações dos assistentes e do arguido, bem como os seus diferentes campos de visão, entendendo que devemos proceder a uma análise completa dos factos, nomeadamente concatenando a referida movimentação dos assistentes com a alegada intenção do arguido na prática dos factos. Antes de o fazermos e sem efetuarmos grandes dissertações prévias, cumpre esclarecer que a intenção é sempre um elemento que pertence à vida interior do agente, assumindo uma natureza subjetiva, insuscetível de apreensão direta. Contudo, é possível captar a sua existência através de factualidade material que os possa inferir ou permita divisar, ainda que por presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum, razão por que entendemos que pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento das intenções e a fixação dos elementos subjetivos dos ilícitos. Com os elementos fáticos supra referidos, entendemos que não obstante o objetivo principal do arguido ter sido a fuga do local para evitar ser fiscalizado, o mesmo queria fazê-lo a qualquer custo, conformando-se com possíveis danos que pudesse causar, sendo-lhe indiferente a possibilidade de ter pessoas no meio da rua e de ter um carro à sua frente, aproveitando-se da dimensão e da robustez do seu veiculo – Jaguar Land Rover - para poder ultrapassar os obstáculos que eventualmente lhe pudesse surgir. Assim e começando pela saída do carro do assistente CC a mesma foi por si relatada, tendo o arguido afirmado que visualizou a movimentação deste assistente, pois que o mesmo abriu a porta e saiu do veículo. No entanto, o arguido negou que o assistente alguma vez tivesse ficado à frente do seu carro, enquanto o assistente afirmou que teve a convicção de que o arguido o queria atropelar. Ora, entrando já no elemento volitivo e tendo em conta o que supra referimos a propósito da dinâmica da ação do arguido ao arrancar com o seu veículo, entendemos que não podemos atribuir uma intenção direta em atingir o assistente com a marcha do seu carro, pois que não obstante o dinamismo da situação não ficou provado que o assistente CC tenha ficado na “linha de marcha” do veículo conduzido pelo arguido. E essa situação objetiva pode-se ter dado por vários motivos, os quais excluem sempre o dolo direto. Além disso e conforme supra referimos a intenção do arguido era a de contornar o obstáculo e não a de abalroar o veículo. Contudo, estes factos não excluem o dolo eventual quanto ao assistente CC. Na verdade e perante a presença de alguém que vinha na sua direção e tendo em conta a normal e natural dinâmica dos factos, o arguido teria sempre que saber que a sua ação ao arrancar a marcha do seu veiculo de forma brusca e rápida, apesar de ter como objetivo principal a sua fuga, poderia sempre atingir o assistente e provocar-lhe ferimentos ou atingir o carro em que o mesmo circulava e provocar-lhe igualmente ferimentos. Logo, atuou com dolo eventual relativamente aos ferimentos provocados no assistente CC, o mesmo se passando relativamente ao condutor do veiculo, o assistente DD, Com efeito, o arguido sabia que no veiculo Renault ... circulavam mais pessoas para além do assistente CC – tinha que haver um condutor – pelo que ao embater com a sua viatura no veiculo Renault ... sabia perfeitamente que podia provocar ferimentos, pelo menos no seu condutor, pelo que ao conformar-se com esse resultado também atuou com dolo eventual. Por fim, a situação relacionada com o assistente BB e que foi a mais grave. Segundo o depoimento dos assistentes, o mesmo saiu pela porta traseira do lado direito do veículo Renault ..., pelo que este veículo estava entre o assistente e o veículo conduzido pelo arguido. Além disso, conforme foi referido pelos assistentes, o veículo Renault ... tinha os vidros de trás escurecidos, pelo que a versão apresentada pelo arguido, de que nunca viu este assistente, é plausível. E é tão mais possível se pensarmos que a atenção do arguido estava centrada em passar pelo pequeno espaço que existia entre o veículo Renault ... e a berma da estrada. No entanto, um facto é não ter visto e o outro é o ter previsto essa possibilidade e se ter conformado com a mesma. E aí consideramos que o arguido previu a possibilidade de estar alguém atrás do carro e conformou-se com a mesma. Na verdade e desde logo, o arguido, como qualquer cidadão médio, sabia que os agentes policiais ou militares da GNR nunca agem sozinhos e que na abordagem que lhe foi feita certamente haveria mais guardas para além daquele que o abordou em primeiro lugar – pelo menos sabia da existência do condutor. Logo, sabia perfeitamente da existência de militares da GNR que teriam que sair do carro do lado do condutor, pelo que a probabilidade dos mesmos irem em sua direção contornando a parte de trás do veículo era grande, situação que o arguido, dentro do critério do homem médio, teria que configurar, como o fez. Por fim, nunca se pode esquecer que no dia e hora em causa, estávamos perante uma situação em que os carros estavam parados na via publica, diante de um semáforo e passadeira e com outros veículos parados em sentido contrário, pelo que a possibilidade de alguém poder atravessar a estrada era real. Acresce que como referimos e é do conhecimento comum os policias nunca agem sozinhos pelo que a possibilidade de haver mais agentes policiais ou guardas da GNR naqueles carros e não apenas no Renault ..., ou naquela zona era evidente, sendo também notório que tais pessoas certamente iriam abordar o carro do arguido, pelo que atenta a dinâmica normal de uma abordagem deste tipo, a probabilidade de ter mais policias na via pública a tentarem detê-lo era grande, o que impunha ao arguido um cuidado redobrado, o que não sucedeu, antes tendo ficado provado que o arguido acelerou bruscamente, indiferente ao que lhe surgisse pela frente. Nesta conformidade, e tendo em conta a dinâmica dos factos supra relatada e pelos motivos supra expostos, não tivemos dúvida em concluir que não obstante o arguido não ter como intenção principal atropelar alguém ou abalroar o veículo Renault ..., certo é previu tal possibilidade e conformou-se com a mesma, podendo mesmo referir-se que a sua intenção era fugir da polícia a “qualquer custo”, aproveitando-se da potencia e robustez do seu veículo para ultrapassar todos os obstáculos que se lhe deparassem. Logo atuou com dolo eventual.»
Apreciando. Começa o recorrente por impugnar a matéria de facto assente, com referência aos pontos 5, 6, 7, 11, 12, 13, 18, 19, 20, 21, 22 e 23 da matéria de facto provada, os quais entende deviam ter sido dados como não provados. Na análise desta pretensão do recurso importa ter presente que resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto. As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração realizada pelo Tribunal a quo, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados. Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo, é necessário que essa versão seja a única admissível. E, na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto. É necessário que os recorrentes demonstrem que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, e não à consignada pelo Tribunal. E na análise da prova que apresentam na sua impugnação da matéria de facto têm os recorrentes de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.
Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[2]: «I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum». II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»
E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não se destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância. Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[3]: «I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP. II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.»
Contextualizado, de forma sumária, o quadro legal e jurisprudencial em que assenta o reexame da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, apreciemos a argumentação do recurso. E o problema que, desde logo, se suscita é o do cumprimento das formalidades legais necessárias à reapreciação da matéria de facto com tal amplitude. Com efeito, para a perfectibilização do recurso com esta natureza e dimensão, formalmente, têm os recorrentes de cumprir o preceituado no art. 412.º, n.º s 3 e 4, do CPPenal, isto é: «3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.»
Mais, devem explicitar relativamente a cada facto impugnado, fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova, os elementos de prova que impõem decisão diversa e qual o sentido dessa decisão. E a referência aos meios de prova que impõem decisão diversa deve ser realizada com menção às concretas parcelas que corroboram a sua posição e com expressa indicação dos elementos relevantes para efeitos do disposto no n.º 4 do art. 412.º, do CPPenal. Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02-12-2015, relatado por Artur Oliveira, no âmbito do Proc. n.º 253/06.0GCSTS.P1[4], onde se perfilhou o entendimento, estabilizado, de que «[v]isando o recurso sobre a matéria de facto remediar erros de julgamento, estes erros devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros, sob pena de não o fazendo a impugnação não ser processualmente válida». Ora, o que o recorrente faz é algo bem diferente, pois transcreve excertos da prova que considera apoiar a sua pretensão e conclui de forma global que os factos 5, 6, 7, 11, 12, 13, 18, 19, 20, 21, 22 e 23 devem ser eliminados do elenco dos factos provados, sendo, ao invés, considerados como não provados. Trata-se, não da desejável e necessária concretização facto a facto, mas de uma análise da prova por grosso, através da qual o recorrente faz recair uma crítica generalizada à apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal a quo, realçando a circunstância de ter valorizado determinado sentido das provas, mas não associa a cada facto impugnado, mas a todos em geral, qualquer particular passagem da prova invocada, como se impunha, em cumprimento do disposto no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPPenal. Não compete ao Tribunal de recurso respigar dos elementos de prova indicados no recurso as parcelas que em cada caso, isto é, em cada facto, impõem a respectiva alteração e porquê. Como bem argumenta Paulo Pinto de Albuquerque[5], «o grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, visa, precisamente, impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado.» Por outro lado, a impugnação da matéria de facto apresentada, nos termos em que foi realizada, equivale à pretensão de um segundo julgamento realizado na Instância de recurso quanto aos factos impugnados, no fundo, os respeitantes ao essencial da dinâmica dos acontecimentos, o que a lei, como se viu, claramente não admite, reflectindo apenas uma outra versão dos factos e uma diferente análise e leitura da prova, atribuindo-se diferente credibilidade, mas não identificando qualquer verdadeiro erro de julgamento. Nesse sentido, é jurisprudência pacífica a que considera que «[a] censura dirigida à convicção do julgador «não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão» e que, por isso, «para que a impugnação de facto proceda, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham, quanto à matéria impugnada, uma decisão diversa da proferida, não bastando que permitam uma diferente leitura, consoante a pessoa que as analisa e valora.»[6] A verdade é a que argumentação que o recorrente apresenta não tem a potencialidade de modificar a matéria de facto impugnada, porquanto se limita a apresentar uma diferente avaliação da prova, sendo certo que a apreciação realizada no acórdão recorrido é perfeitamente coerente com as regras da experiência comum e com todo o contexto apurado, não estando verdadeiramente sinalizada a violação de qualquer regra ou lapso na avaliação da prova. Veja-se que é próprio Tribunal a quo a reconhecer que, «[c]omeçando pela ação em si mesma, temos que o arguido confessa a manobra efetuada, referindo que a sua intenção era fugir e evitar ser assaltado, nunca tendo a intenção de atropelar ou atingir a integridade física de quem quer que fosse. Os relatos da manobra efetuada são dispares consoante a posição dos intervenientes e a sua margem de visão, sendo que diferentes campos visuais das testemunhas podem originar diferentes visões e perceções, sendo que pelo facto de uns terem visualizado pormenores diferentes de outros não significa que as suas versões sejam contrárias. Assim e para além dessa declarações, os croquis e as fotos tiradas no local. bem como os danos causados no veículo Renault ... são evidenciadores daquilo que sucedeu, não tendo este Tribunal qualquer dúvida em dar os factos como provados da forma como o fez. (…) Já no que se refere à sua movimentação [dos assistentes] e à percepção desses movimentos por parte do arguido, tivemos em conta as declarações dos assistentes e do arguido, bem como os seus diferentes campos de visão (…)». Assim, para além das questões formais enunciadas que inviabilizam a apreciação do recurso por não cumprimento dos requisitos legais necessários a essa pretensão (não correspondência entre meios de prova em concreto e cada facto impugnado em particular, de modo a evidenciar o erro de julgamento relativamente a cada um deles), levando à sua rejeição, o sucesso deste segmento do recurso sempre estaria inquinado, pois está em causa uma subjectiva análise da prova por parte do recorrente, que realiza tão-somente diferente avaliação dos meios de prova, mas não invoca ou salienta qualquer verdadeiro erro de julgamento, qualquer argumento jurídico objectivado em passagens da prova produzida que pudessem levar o Tribunal de recurso a considerar, perante a análise dos vários elementos de prova invocados, ter ocorrido quanto a cada um dos factos impugnados uma qualquer falha na formação da convicção do Tribunal a quo e que a solução por si [recorrente] proposta seria a única, e não apenas uma outra, que se impunha perante a prova produzida. Com uma tal configuração o recurso da matéria de facto não é susceptível de ser apreciado, sendo de rejeitar ao abrigo do disposto nos arts. 412.º, n.ºs 3 e 4, 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, al. b), do CPPenal. * Embora de forma pouco sistematizada, o recorrente questiona igualmente a qualificação jurídica dos factos quanto ao assistente BB, pondo em causa a sua condenação pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, com dolo eventual. A este propósito, aceita, «ainda assim, porque de justiça, a necessária condenação (…) pelo crime de ofensas à integridade física qualificadas, na pessoa do Assistente BB, pois o bem jurídico lesado foi a integridade física, não a vida humana, nem se consegue compreender, salvo o devido respeito, como resulta dos elementos ora trazidos ao processo que houvesse vontade, ou conformação do Recorrente, ao fim ‘’morte’’. Ademais, foi dado como não provado, e bem, que o Recorrente tenha visto o Assistente BB na sua frente, pelo que, ao ver dois OPCs que nem do carro teriam saído, e não ver o terceiro, como poderia conceber que poderia daí advir a morte de qualquer um? Não é concebível.»
Cremos que assiste razão ao recorrente neste ponto, embora não pelas razões que apresenta. Com efeito, não é o facto de não ver uma pessoa que não permite configurar o dolo eventual de morte. Conforme se relata na motivação do acórdão recorrido, com o que se concorda, «nunca se pode esquecer que no dia e hora em causa, estávamos perante uma situação em que os carros estavam parados na via publica, diante de um semáforo e passadeira e com outros veículos parados em sentido contrário, pelo que a possibilidade de alguém poder atravessar a estrada era real. Acresce que como referimos e é do conhecimento comum os policias nunca agem sozinhos pelo que a possibilidade de haver mais agentes policiais ou guardas da GNR naqueles carros e não apenas no Renault ..., ou naquela zona era evidente, sendo também notório que tais pessoas certamente iriam abordar o carro do arguido, pelo que atenta a dinâmica normal de uma abordagem deste tipo, a probabilidade de ter mais policias na via pública a tentarem detê-lo era grande, o que impunha ao arguido um cuidado redobrado, o que não sucedeu, antes tendo ficado provado que o arguido acelerou bruscamente, indiferente ao que lhe surgisse pela frente. Nesta conformidade, e tendo em conta a dinâmica dos factos supra relatada e pelos motivos supra expostos, não tivemos dúvida em concluir que não obstante o arguido não ter como intenção principal atropelar alguém ou abalroar o veículo Renault ..., certo é previu tal possibilidade e conformou-se com a mesma, podendo mesmo referir-se que a sua intenção era fugir da polícia a “qualquer custo”, aproveitando-se da potencia e robustez do seu veículo para ultrapassar todos os obstáculos que se lhe deparassem.»
A possibilidade de verificação de dolo eventual de homicídio na situação dos autos é, porventura, mais evidente se pensarmos, naquele contexto, num peão que resolve atravessar a via no momento em que o recorrente decide a fuga, mas não avista aquele antes do embate do veículo por si conduzido no corpo do peão, vindo depois a resultar, por efeito desse evento, a morte deste. Qualquer condutor tem de admitir, em face de comportamento estradal igual ao do recorrente, a possibilidade de atropelar e matar um peão, pois esta é uma realidade totalmente consentânea com as regras da experiência, logo, o dolo eventual deste resultado também o é. O problema no caso dos autos não reside, pois, na circunstância de o recorrente não ter avistado o assistente BB. O problema é que não se verificou o resultado morte nem qualquer resultado de que pudesse resultar a morte, ou seja, perigo de vida para o assistente, não se mostrando, por essa razão, correcto o enquadramento jurídico a que chegou o Tribunal a quo. E na verdade o acórdão recorrido não nos explica por que razão no caso dos assistentes CC e DD subsumiu os factos ao crime de ofensa à integridade física qualificada e no do assistente BB optou pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, todos eles cometidos com dolo eventual. Na verdade, justifica o Tribunal a quo a sua posição nos seguintes termos: «No caso e reportando-nos apenas aos crimes de ofensas à integridade física, não termos dúvida do preenchimento dos mesmos, uma vez que os factos 7,8,11,12,15,16, 20, 21 e 22, preenchem os elementos objetivos e subjetivos desse ilícito. Quanto o elemento doloso o mesmo preencheu-se na modalidade de dolo eventual, pois que apesar da intenção principal do arguido não ter sido a de atingir aqueles militares da GNR na sua integridade física, o mesmo representou como possível tal facto e conformou-se com tal resultado (art.º 14.º, n.º3 do C. Penal). Como foram 2 as vítimas e estando perante crimes de natureza pessoal, foram dois os crimes praticados em concurso ideal. Quanto ao crime de homicídio na forma tentada, também entendemos que os elementos objetivos e subjetivos se preencheram atentos os factos 9, 14, 201 e 21. Na verdade e objetivamente animar um veiculo da dimensão do veículo conduzido pelo arguido na direção de alguém e atropelar essa pessoa, é uma ação em si mesma suscetível de lhe tirar a vida, sendo que apenas o mero acaso é que fez com que o resultado não se produzisse. Esclareça-se que a circunstância do ofendido não ter estado numa situação de perigo concreto para a vida não obsta a que se qualifiquem os factos como crime de homicídio tentado. Basta pensar que se alguém dispara contra outrem com uma arma de fogo, com intenção de matar e não logra atingir o alvo (eventualmente por falta de pontaria), não podemos afirmar que a pessoa visada correu perigo de vida e que esse facto afasta a intencionalidade com que o primeiro desferiu o disparo. O agente pratica os atos de execução do crime de homicídio que decidiu cometer, sem que este se chegue a consumar. É nisto que consiste a tentativa, pelo que nestas situações o que importa é a execução e não o efetivo dano provocado na vítima. Por fim, o arguido atuou dolosamente na modalidade de dolo eventual, pois que o mesmo sabia perfeitamente que ao atuar da forma descrita podia atropelar algum dos militares da GNR que aí se encontravam e que tal atropelamento poderia ser fatal, resultado com o qual se conformou.»
Ora, se o Tribunal a quo admite que o arguido atuou dolosamente na modalidade de dolo eventual, pois que o mesmo sabia perfeitamente que ao atuar da forma descrita podia atropelar algum dos militares da GNR que aí se encontravam e que tal atropelamento poderia ser fatal, resultado com o qual se conformou e se relativamente a nenhum dos assistentes se verificou morte ou perigo para vida – embora as sequelas para o assistente BB tenham sido mais graves do que as respeitantes aos outros assistentes – qual a razão para distinguir entre o dolo (eventual) de ofensa à integridade física qualificada para dois dos assistentes e de homicídio qualificado para o outro? Nenhuma. E o exemplo que o Tribunal a quo avança (do tiro que não acerta o alvo) para justificar não ter existido perigo para a vida, mas ainda assim verificar-se homicídio tentado, é uma falácia, pois nesse exemplo o agente age com dolo directo (dispara contra outrem com uma arma de fogo, com intenção de matar e não logra atingir o alvo) e no caso vertente o agente quer fugir, representa que para levar a bom termo essa resolução possa ferir ou matar alguém e conforma-se com essa possibilidade. Estando em causa uma conduta levada a cabo com dolo eventual, a conformação do agente há-de estar compatibilizada com o próprio resultado verificado e não com um qualquer resultado possível. Se seguirmos esta última via, como fez o Tribunal a quo relativamente ao assistente BB, então teríamos de admitir que no caso dos outros dois assistentes também estão em causa crimes de homicídio qualificado tentado, pois só não se magoaram de forma mais grave, batendo com a cabeça ao caírem e morrendo, por exemplo, porque não calhou. Relativamente a qualquer um destes assistentes estava potencialmente em causa o resultado perigo para a vida e a própria morte, que apenas não se verificaram por circunstâncias alheias à vontade do recorrente. Porém, incoerentemente, o Tribunal a quo afastou, implicitamente, essa possibilidade de resultado apenas relativamente a dois dos assistentes, quando devia tê-lo feito quanto aos três. E devia tê-lo feito pois o resultado verificado e com o qual se conformou o recorrente foi, nos três casos, tão-somente de ofensa à integridade física (qualificada), e nunca o perigo para a vida ou a morte. Repare-se que não estamos a afastar a possibilidade de compatibilização da figura da tentativa com o dolo eventual, questão relativamente pacífica na jurisprudência (mas não tanto na doutrina), posto que a ocorrência de perigo para a vida permitiria uma tal compatibilização. A questão que se coloca no caso dos autos é a de que, no direito penal do facto, é o resultado ocorrido e não o potencial o elemento determinante para a integração do dolo do tipo na relação entre a acção e o resultado. Neste sentido, analisando situação com algum paralelismo com o caso dos autos, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2015, relatado por Henriques Gaspar no âmbito do Proc. n.º 05P2122[7], em cujo sumário podemos ler: «1. No dolo eventual (artigo 14º, nº 3 do Código Penal) há uma decisão contra valores tipicamente protegidos, mas como a produção de resultado depende de eventualidades ou condições incertas, o dolo eventual é construído sobre a base de factos de cuja insegurança o agente é consciente. 2. A conformação com um facto que preenche um tipo legal de crime (nos crimes de resultado, conformação como o resultado, que só é resultado se ocorrer, quando ocorrer e como ocorre) constitui o núcleo da construção dogmática do dolo eventual. 3. O resultado só tem, porém, consistência como realidade pela sua efectiva ocorrência, e, por isso, se o agente representou como possível um resultado a que ia associada a conformação com esse mesmo resultado, a mera actuação não tem relevância nos quadros do dolo eventual para levar à punibilidade fora da efectiva ocorrência do resultado, ou de um dos resultados possíveis, e com os quais o agente se conformou segundo as regras da experiência.» Esta ideia é desenvolvida no corpo do referido aresto em fundamentação que, pela relevância e mestria das explicações, vale a pena aqui convocar: «O resultado - se, como, quando e no modo como ocorrer - é que dá consistência relevante, objectiva e objectivável, à conformação do agente. Na construção do dolo eventual, a aproximação dogmática, pese embora o nominalismo das designações e o lugar sistemático, não vai na direcção imediata das categorias dolo directo ou necessário, mas, nos elementos materiais determinantes, vai mais na direcção da negligência consciente. Sugere-se mesmo já a conveniência da construção de uma nova categoria dogmática (a "temeridade"), que despojada da carga semântica tomasse o lugar do dolo eventual (cf. Jorge de Figueiredo Dias, op. cit., pág. 359). Entre uma e outra categoria (dolo eventual e negligência consciente) existe um elemento comum - a cognoscibilidade: em ambas o agente representa a realização do facto (o resultado nos crimes de resultado) como possível (cf. José de Faria Costa, loc. cit.). Mas, sendo assim, a conformação ou a não conformação sem resultado releva então já, não da materialidade, mas de uma perspectiva exclusivamente psicologista sobre o resultado. Daí que, tal como na negligência consciente, não se possa conceber o facto típico sem a existência do resultado cuja possibilidade foi prevista pelo agente. No dolo eventual o conteúdo da norma só se verifica e desenvolve, pois, perante o caso; a assimilação na motivação da acção ao resultado típico não é evidente, pois há, por definição, a possibilidade de não verificação do resultado (cf., Maria Fernanda Palma, "Dolo eventual e culpa em direito penal", in, Problemas Fundamentais de Direito Penal, Universidade Lusíada, 2002, pág. 53 e 58). Deste modo, como é decorrente da previsibilidade e da possibilidade de ocorrência, e da conformação do agente com o facto (com as consequências da acção - e o resultado) como pressuposto do dolo eventual, o facto apenas se completa na conjugação entre actuação, previsão e resultado, revelando-se o resultado afinal um elemento determinante para a integração do dolo do tipo no direito penal do facto na construção complexa acção-resultado. Tendo representado a possibilidade de atingir algumas ou algumas das pessoas presentes, e tendo-se conformado com as consequências (o resultado produzido), porque se não absteve de agir apesar da representação das consequências possíveis, o recorrente agiu, nas descritas circunstâncias, com dolo eventual. Mas, sendo assim - e independentemente da projecção dogmática que a conjugação entre tentativa e dolo eventual possa assumir na doutrina e na jurisprudência (cf., v. g., acórdãos do Supremo Tribunal de 11/10/2001, proc. 951/01; de 31/3/2004, proc. 4º32/03; e de 12/5/2005, proc. 1439/05) - a questão que a situação específica convoca, numa tal perspectiva, apenas pode, como se salientou, situar o dolo e a conformação que pressupõe no limite do resultado, não apenas possível, mas efectivo, com o qual o agente se conforma, e que os factos, concreta e singularmente, revelem.»
Tendo presente as antecedentes explicações, mostra-se correcta a pretensão do recorrente – embora por razões diferentes – de também quanto ao assistente BB ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, com dolo eventual, p. e p. pelos arts. 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, com referência aos arts. 143.º, n.º 1, 132.º, n.º 2, al. h) e l), todos do Código Penal, devendo proceder esta parte do recurso. * Por fim, reclama o recorrente uma medida concreta da pena reduzida, desde logo, como decorrência da alteração da qualificação jurídica, entendendo como adequada a aplicação de uma pena única, após cúmulo jurídico, não superior a 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão. Pugna ainda pela aplicação de uma pena de multa no que tange ao crime de dano qualificado. Começando pela pena a aplicar ex novo pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, cometido com dolo eventual, na pessoa do assistente BB, p. e p. pelos arts. 41.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, com referência aos arts. 143.º, n.º 1, 132.º, n.º 2, al. h) e l), todos do Código Penal, temos como base a moldura penal abstracta de 1 (um) mês a 4 (quatro) anos de prisão. Actualmente este mesmo ilícito penal é punido com uma moldura penal abstracta de 1 (um) a 5 (cinco) anos de prisão. Todavia, esta alteração, resultante da nova redacção dada aos arts. 143.º, n.º 2, e 145.º, n.º 1, al. b), do CPenal, apenas foi introduzida com a Lei 26/2025, de 19-03, que iniciou a sua vigência 30 dias após a sua publicação. Tendo a prática dos factos ocorrido em Junho de 2024, ou seja, em momento anterior à referida alteração legislativa e sendo a mesma manifestamente mais desfavorável para o arguido, já que quer o limite mínimo quer o limite máximo da pena são mais elevados, inexistindo no novo regime outras normas que favoreçam o agente, há que aplicar o regime vigente à data da prática dos factos, em cumprimento do prescrito no n.º 4 do art. 2.º do CPenal. O recorrente, embora peticionando a redução das penas, não questiona os critérios utilizados nem a argumentação a tal propósito desenvolvida e que constam do acórdão recorrido, os quais igualmente assumiremos para a determinação da pena de que nos ocupamos, com exclusão, naturalmente, dos segmentos relativos ao crime de homicídio. É do seguinte teor essa apreciação (transcrição): «MEDIDA DA PENA Efetuado pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido debrucemo-nos sobre a natureza da pena a aplicar. Assim para determinar a medida concreta da pena há que recorrer aos critérios orientadores fornecidos pelo art.º 71.º do Código Penal. De acordo com esse preceito legal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral e especial), devendo ter-se sempre em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o arguido. A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto este, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez. Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta do arguido, o que significa que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide os limites mínimo e máximo para a pena que, em caso algum, podem ser ultrapassados. Dentro destes limites e para fixar a medida concreta da pena intervêm os demais fins da pena, designadamente a prevenção geral e prevenção especial. Com efeito, e segundo o disposto no art.º 40.º, n.º1 do Código de Processo Penal, a aplicação de uma pena visa “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Protecção de bens jurídicos essa que se consubstancia na denominada prevenção geral, enquanto que a reintegração do agente na sociedade se reporta à denominada prevenção especial. A prevenção geral, dita de integração, prende-se com as exigências comunitárias da contenção da criminalidade e da defesa da sociedade, decorrentes da necessidade de reafirmar as expectativas da comunidade na validade e vigência de uma norma, bem como da tutela do bem jurídico por ela defendido e assume a “função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa e, no mínimo, fornecidos pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico” . Por sua vez, a prevenção especial está ligada à neutralização do agente e à necessidade de reinserção social do delinquente, da sua conformação com o quadro de valores vigentes na sociedade, especialmente aqueles que tutelam o bem jurídico atingido e que aquela norma visava proteger, cabendo-lhe “encontrar o quantum exacto da pena, dentro dessa função, que melhor sirva às exigências da socialização”. Assim sendo e dentro destas duas balizas fixadas pela culpa, a medida da pena deve considerar o quantum indispensável para manter a crença da comunidade na validade e eficácia da norma e, por essa via, a confiança nas instituições, bem como as exigências de prevenção especial que ao caso se fazem sentir. Nunca podendo, porém, a pena “ultrapassar em caso algum a medida da culpa”(art.º 40.º, n.º2 do Código Penal). * Depois desta breve alocução acerca da determinação da medida da pena convém aplicar estes conceitos ao caso em apreço. In casu, as necessidades de prevenção especial, são médias pois que apesar do relatório social ser favorável e de na data em questão o arguido ainda não ter antecedentes criminais – o transito em julgado da condenação que sofreu foi apenas em Julho de 2024 – certo é que os crimes em causa e a forma como foram praticados desabonam a personalidade do arguido, demonstrando uma clara tendência para delinquir e uma completa ausência de respeito pela vida e integridade física das pessoas e pela autoridade do Estado. Também as necessidades de prevenção geral são muito prementes e se fazem sentir com muita acuidade, sendo que o crime de homicídio é o mais grave do nosso ordenamento jurídico e causa grande repugnância na nossa sociedade, pois a vida humana é sempre o valor supremo. Além disso, episódios de violência e desrespeito pela autoridade policial são sempre causadores de grande alarme social, provocando sentimentos de grande insegurança. Por seu turno, a ilicitude dos factos pode-se fixar no patamar médio, tendo em conta as lesões causadas e o dolo eventual, sendo que o facto de estarmos perante militares da GNR e de ter sido utilizado um carro de grandes dimensões para cometer o crime é algo que não pode ser descurado. Por fim, há que referir que o arguido admitiu o acto em si mesmo, mas negou o seu real enquadramento, justificando a sua conduta com uma alegada tentativa de assalto, não formulando qualquer juízo de censura. Todos estes factos ponderados, afigura-se-nos como necessário, adequado e suficiente aplicar ao arguido as seguintes penas, pela prática dos seguintes crimes: - pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, a pena de 3 anos e 6 meses de prisão – pena entre 2 anos e 8 meses e 8 anos e 4 meses; - pelos crimes de ofensa à integridade física qualificada a pena de 1 ano por cada um dos crimes; - pelo crime de dano qualificado a pena de 9 meses, não fazendo sentido a aplicação de uma pena de multa quando o arguido já vai ser condenado em penas de prisão, por factos praticados na mesma altura; * Nos termos do disposto no art.º 77.º, n.º1 do Código Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por algum deles é condenado numa única pena”, sendo que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes...” e como limite mínimo “a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos diversos crimes” (art.º 77.º, n.º 2 do Código Penal). Segundo preceitua o n.º 1 do art. 77.º do CP, na medida da pena são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que o cúmulo jurídico de penas não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão só, a quantificar a pena conjunta a partir das penas parcelares cominadas. Com efeito, a lei elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto. Na verdade, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente. A razão de ser desta norma é de todos conhecida e reside no facto de que o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário – Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, II, pag. 152. Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele. Nos factos no seu conjunto há que ver, por exemplo, se eles revelam ou não um acontecimento isolado na vida do agente, ou se são antes reflexo de uma tendência ou carreira criminosa – Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal anotado, 3ª edição, 1º volume, pag. 909 e ss. A este propósito não resistimos a transcrever parte do sumário do Acórdão do STJ de 18/01/2012, in www.dgsi.pt que sintetiza de modo exemplar a finalidade do cúmulo jurídico de penas e a tarefa do julgador nessa matéria: “VIII - Perante concurso de crimes e de penas, há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, através duma visão ou imagem global do facto, encarado na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado e atender ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projeção nos crimes praticados; enfim, há que proceder a uma ponderação da personalidade do agente e correlação desta com os concretos factos ajuizados, a uma análise da função e da interdependência entre os dois elementos do binómio, não sendo despicienda a consideração da natureza dos crimes em causa, da verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, até porque o modelo acolhido é o de prevenção, de protecção de bens jurídicos. IX - Todo este trabalho de análise global se justifica tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados pelo(a) condenado(a) é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a feridente repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais. X - No que concerne à determinação da pena única, deve ter-se em consideração a existência de um critério especial na determinação concreta da pena do concurso, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso. XI - Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.” Transpondo estes ensinamentos para o caso em epígrafe temos que ao arguido apenas lhe pode se aplicada uma pena que varia entre os 3 anos e 6 meses de prisão e os 6 anos e 3 meses de prisão. Aplicando aqui todos os pressupostos que referimos a propósito da determinação da medida da pena, entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar ao arguido uma pena única de 4 anos e 6 meses de prisão.»
No que à situação do assistente BB respeita há que atender às lesões pelo mesmo sofridas, bastante mais relevantes que as dos demais assistentes, determinando um total de 42 dias para consolidação, com igual período de afectação da capacidade de trabalho geral e profissional, resultando como consequências permanentes a cicatriz e as alterações pigmentares descritas e outras consequências psicológicas e psiquiátricas ainda não consolidadas (ponto 14 da matéria de facto provada). Tendo presente a análise levada a cabo pelo Tribunal a quo e os elementos que aqui acrescentámos, mostra-se adequado fixar ao arguido, aqui recorrente, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, com dolo eventual, na pessoa do assistente BB, p. e p. pelos arts. 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, com referência aos arts. 143.º, n.º 1, 132.º, n.º 2, al. h) e l), todos do Código Penal, uma pena de 2 (dois) anos de prisão.
O recorrente solicita ainda a aplicação de uma pena de multa no que concerne ao crime de dano qualificado, p. e p. pelo art. 213.º, n.º 1, al. c), do CPenal. Invoca que a multa é aplicável, o dano foi reparado e a gravidade dos factos não é de relevo. Contrariamente ao entendimento do recorrente, é elevada a gravidade do abalroamento de veículo afecto à actividade dos militares da GNR na operação em curso, justificando-se, pelas necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir, quer pelo facto do dano em concreto, quer pelo conjunto da situação em causa, a aplicação de uma pena de prisão. Note-se, também, que a reparação dos danos não pode ser entendida como um acto pessoal do arguido, uma vez que foi resultado da apólice de seguro do veículo do arguido, logo do cumprimento de contrato de seguro celebrado com a seguradora em causa. Mostra-se, por isso, inapropriada a alteração requerida.
No que respeita ao cúmulo jurídico das penas parcelares fixadas, tendo em conta os critérios já enunciados e a apreciação realizada pelo Tribunal a quo, e atendendo agora a uma moldura penal abstracta entre 2 (dois) anos e 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão, considera-se adequada, ao conjunto dos factos e personalidade do agente, a fixação de uma pena única de 3 (três) anos de prisão.
Por fim, no que concerne à pretendida suspensão da execução da pena, não obstante a alteração da qualificação jurídica aqui decidida e consequente redução da medida concreta da pena, acompanhamos na sua quase totalidade a análise a este propósito realizada pelo Tribunal a quo. Lê-se a este propósito no acórdão recorrido (transcrição): «Nos termos do art.º 50.º do C. Penal, o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições de sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Conforme se extrai deste dispositivo, são considerações de natureza exclusivamente preventiva, de prevenção geral e de prevenção especial, que justificam a opção pela suspensão da execução da pena de prisão. Como refere Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág.332/333, a prevenção geral surge sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à atuação das exigências de prevenção especial de socialização. É desde logo pressuposto da suspensão da execução da prisão a formulação de «juízo de prognose» favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de quanto a ele a simples censura e ameaça da pena de prisão serem suficientemente dissuasoras da prática de futuros crimes. Não se torna necessário que o juiz tenha de atingir a certeza sobre o desenrolar futuro do comportamento do arguido, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser alcançada. No caso em apreço, estamos perante comportamentos graves, que ocorreram na via pública, perturbando em grande medida a paz social e o sentimento de segurança na sociedade. As vítimas dos crimes foram militares da GNR, tendo igualmente sido danificado o veículo que os mesmos utilizavam em serviço. O arguido não formulou juízo de censura sentido sobre os factos, apenas referindo que nunca “quis matar ninguém”, mas nunca fazendo qualquer juízo de desvalor sobre o não acatamento de uma ordem emanada por um agente da autoridade, sempre alegando desconhecer a qualidade das pessoas que o abordaram. Ora, com estes factos, entendemos que não podemos formular juízo de prognose favorável. Com efeito, estamos perante condutas graves, sendo que a sociedade não compreenderá que alguém que pratica factos como os que estão em causa nestes autos, nomeadamente tentar matar um militar da GNR para evitar ser fiscalizado, possa continuar em liberdade. Na verdade, este tipo de condutas tem de ser severamente punido, sob pena de passarem a ser encaradas com normalidade pela nossa sociedade, pelos menos por uma franja, podendo passar a ideia de impunidade, algo que tem de ser combatido. Com efeito, a crença da sociedade nas normas tem de ser assegurada pela efetividade da sua aplicação, nomeadamente na possibilidade de privar os agentes da sua liberdade quando a gravidade da conduta assim o exigir, de forma a evitar que as mesmas se voltem a repetir, quer pelos seus agentes (prevenção especial) quer por outros (prevenção geral). No caso, as necessidades de prevenção geral e especial são elevadas, pois que, como já referimos, o desvalor da conduta do arguido é elevado, não podendo passar pela cabeça de alguém que factos como os que estão aqui em causa, em que foi usado um veículo de grandes dimensões para tentar matar um militar da GNR e ferir outros, possam passar sem uma pena efetiva de privação da liberdade, sob pena dos valores quotidianos da paz social, da segurança e da não justificação em caso algum do uso da violência sofrerem um retrocesso enorme. Acresce que também a conduta do arguido posterior aos factos, nunca admitindo e relativizando os factos, é algo que nos faz temer pela prática de factos idênticos a estes, pois que se o arguido não se detém perante as autoridades e tenta atropelar militares da GNR só para não ser fiscalizado, então o que poderá fazer em situações de tensão e de discussão com terceiros. Ora, não se podendo prever o futuro, pode-se tentar antecipá-lo, recorrendo a condutas passadas e a critérios de normalidade, sendo que quem atua da forma como o arguido o fez, demonstra ter uma personalidade sem qualquer respeito pelo valor da vida humana, da integridade física de outrem e da autoridade do estado, o que aumenta em muito a probabilidade da prática de novos crimes em situação similares, pelo que só uma postura forte e determinada deste Tribunal é que pode evitar que o arguido volte a delinquir. E essa postura tem de passar por uma punição efetiva que só a privação da liberdade pode assegurar, de modo a evitar que o arguido ou outros na sociedade possam pensar que para “fugir à polícia vale tudo, inclusive matar”. Logo, não formulamos o juízo de prognose favorável relativamente ao arguido e não lhe suspendemos a pena de prisão que lhe foi aplicada.»
Referimos que acompanhamos a antecedente análise na sua quase totalidade, pois, não se acompanham as referências a “tentar matar um militar da GNR para evitar ser fiscalizado”, pois os autos não revelam esse desiderato. Aliás, ainda que tivéssemos chegado à conclusão que o arguido havia praticado um crime de homicídio qualificado na forma tentada, com dolo eventual, não se mostra correcta aquela afirmação, que pressupõe, ou tem subjacente, o dolo directo, modalidade nunca discutida nos autos. Não obstante, toda a situação é extremamente grave, teve sequelas pessoais e patrimoniais relevantes, justificando-se plenamente, em termos de prevenção geral e especial, o cumprimento de prisão efectiva. Procede parcialmente este segmento do recurso. * III. Decisão: Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência: a) - Absolver o arguido da prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 131º, n.º 1 e 132º, n.º 2, al. h) e l), todos do Código Penal; b) - Condenar o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, com referência aos arts. 143.º, n.º 1, 132.º, n.º 2, al. h) e l), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; c) - Em cúmulo jurídico da pena parcelar referida em b) e das penas parcelares de 1 (um) ano de prisão, 1 (um) ano de prisão e 9 (nove) meses de prisão fixadas no acórdão recorrido, condenar o arguido numa pena única de 3 (três) anos de prisão efectiva; d) - No mais, negar provimento ao recurso do arguido AA, rejeitando-o quanto à impugnação ampla da matéria de facto, mantendo-se o acórdão recorrido nos seus precisos termos, sem prejuízo das alterações mencionadas em a), b) e c); e) - Sem tributação face à procedência parcial do recurso (art. 513.º, n.º 1, do CPPenal). Notifique e comunique de imediato à 1.ª Instância. |