Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | NELSON FERNANDES | ||
Descritores: | PROVA PRODUZIDA E REGRAS DA EXPERIÊNCIA NATUREZA IRRENUNCIÁVEL DOS CRÉDITOS LABORAIS NA VIGÊNCIA DO CONTRATO ÓNUS DO RECORRENTE NO ÂMBITO DO DIREITO | ||
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Nº do Documento: | RP202311133392/22.7T8MTS.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/13/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO (SOCIAL) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objeto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão de basear-se na correção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos, o uso em processo civil de tais regras um critério de julgamento, aplicável na resolução de questões de facto que fortalece o princípio da livre apreciação da prova, como meio de descoberta da verdade, apenas subordinado à razão e à lógica. II - Tem a jurisprudência, de forma consolidada, considerado que os direitos laborais de natureza pecuniária são indisponíveis e irrenunciáveis, mas, isso, apenas durante a vigência do contrato de trabalho, o que é justificado dada a situação de subordinação jurídica e económica em que se encontra o trabalhador relativamente à entidade empregadora. III - Impende sobre o recorrente, em sede de recurso, o ónus de invocar, também no domínio da aplicação da lei e do direito, os argumentos (jurídicos) que na sua ótica justificam o afastamento dos fundamentos constantes da decisão recorrida para sustentar o modo como interpretou e/ou aplicou a lei, de tal modo que o tribunal superior os possa apreciar, no sentido de lhes dar ou não sustentação – versando o recurso sobre matéria de direito, deve o recorrente, para além de indicar nas conclusões as normas jurídicas violadas, referir também o sentido que, no seu entender, as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas (artigo 639.º, n.º 2, do CPC). | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Apelação / processo n.º 3392/22.7T8MTS.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Matosinhos - Juiz 3 Autora: AA Ré: A..., Lda. ____________ Nélson Fernandes (relator) Rita Romeira Rui Penha Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto I - Relatório 1. AA propôs a presente ação declarativa comum emergente de contrato de trabalho contra A..., Lda., pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe: a quantia de €10559,98 reclamada nos art.º 17º a 25º da P.I.; a indemnização prevista na Cláusula 45ª do citado CCT reclamada no art.º 26º da P.I. no montante de €31679,94; a quantia de €265,27 reclamada no art.º 27º; juros de mora sobre a quantia reclamada no art.º 27º da P.I. desde a citação. Para tanto, em síntese, alega: que foi trabalhadora da ré de 6/8/2020 a 9/1/2022, data em que o contrato de trabalho cessou por denuncia sua, e que prestou horário de trabalho fixado pela Ré sem que esta, no entanto, lhe tenha pago o trabalho suplementar prestado, o acréscimo pelo trabalho noturno e pelo trabalho prestado em dias feriados lhe tenha proporcionado descanso compensatório; a Ré não lhe pagou também a retribuição de férias e subsídio de férias vencidos a 1/1/2021 e a 1/2/2022 (onde inclui as médias do trabalho suplementar e das horas noturnas); reclama ainda o pagamento das médias das horas noturnas no subsídio de natal de 2021, o pagamento dos proporcionais de férias, e subsídios de férias e de natal do ano da cessação do contrato, e o crédito de formação profissional não ministrada. A Ré contestou, impugnando toda a pretensão da Autora, por não serem devidos os pagamentos reclamados e por a mesma ter dado quitação. Fixado o valor da causa em €42.505,19, foi proferido de seguida despacho saneador, após o que, invocando-se o disposto nos artigos 62º, n.º 1 e 49º, n.º 2 e 3 do Código de Processo do Trabalho, se dispensou a identificação do objeto do litígio e os temas de prova. 2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi depois proferida sentença, de cujo dispositivo consta: “Nestes termos, e com fundamento no exposto, julgo parcialmente procedente o pedido formulado nos autos, pelo que a condeno a ré: a) no pagamento à autora das quantias que se vierem a apurar posteriormente referentes a trabalho suplementar, acréscimo por trabalho noturno, acréscimo pelo trabalho suplementar prestado em dias feriados, descanso compensatório, média de horas noturnas prestadas no subsídio de natal de 2020 e 2021 e proporcional à duração do contrato no ano de 2022; retribuição de férias e subsídio de férias (com inclusão da média de horas noturnas e trabalho suplementar se se verificar que tais prestações eram devidas em 11 meses num ano); proporcionais de férias e subsídio de férias do ano da cessação do contrato. b) no pagamento à autora de indemnização por mora correspondente a três vezes o valor que se vier a apurar das parceles descritas em a), e prevista na cláusula 45ª do CCT, e a liquidar posteriormente; c) no pagamento à autora da quantia de €228,15 a título de crédito por formação profissional não ministrada. Custas a cargo de autora e ré, em igual proporção, e sem prejuízo da isenção de que a autora beneficia. Notifique. Registe.” 2.1. Não se conformando com o decidido apresentou a Ré requerimento de interposição de recurso, finalizando as suas alegações com o que entendeu serem as conclusões, nos termos que se transcrevem de seguida: a) O presente recurso tem como objeto parte da matéria de facto dada como assente [provada e não provada], concretamente ao dar por provado que a Autora prestava trabalho suplementar por parte da Autora e a solução de direito, plasmada na douta sentença proferida nos presentes autos, mais precisamente a incorreta aplicação das normas jurídicas que consagram e regulam a figura da remissão abdicativa prevista no artigo 863.º, n.º 1 do código civil, e a sua aplicação no domínio das relações laborais. b) Na verdade, julgou o Tribunal ad quo na sentença proferida deu como provado no seu ponto. 10 dos factos dados por provados que: 10. Por determinação da ré, a autora prestou trabalho em turnos rotativos com os horários das 20h às 8h ou das 8h às 20h, de domingo a segunda-feira, com folgas. c) Para considerar tal facto por provado e não apresentado a Recorrida qualquer prova documental de tal, atendeu e valorou apenas, o depoimento da testemunha colega BB, desconsiderando por completo, erradamente, os depoimentos das restantes testemunhas, a saber CC, DD, EE, e FF. d) A Recorrida afirmou que desde o início da sua relação laboral com a Recorrente, sempre prestara trabalho suplementar, noturno e dias de feriado, concretamente 12 horas diárias, que lhe eram entregues os horários em suporte papel, mas, no entanto, não logrou apresentar qualquer documento que comprove tal afirmação. e) Bem como a Recorrida no seu depoimento afirmou que durante os 17 ou 18 meses em que trabalho para a Recorrente, nunca junto desta, concretamente nos respetivos serviços humanos, de alguma forma exigiu ou procurou saber porque não lhe estava a ser pago o alegado valor devido a título de trabalho suplementar, noturno e dias de feriado, o que contraria a experiência do homem medio colocado no lugar da Recorrida. f) Bem como em sede do seu depoimento a Recorrida não soube explicar, motivo por e a ter direito ao pagamento de trabalho suplementar, noturno e em dias de feriado, não mencionou na carta em que procedeu à denuncia do seu contrato de trabalho, qualquer menção da existência pela sua parte, de qualquer direito ou créditos a título de trabalho suplementar realizado. g) Assim o Tribunal ad quo na sentença proferida deu como provado no seu ponto. 10 dos factos dados por provados exclusivamente por decorrência do depoimento da testemunha BB, não existindo qualquer prova documental que assevera-se tal facto. h) Não valorou e devia, conteúdo da carta de denuncia remetida pela Recorrida à Recorrente, em que a Recorrente apenas exprime e manifesta a vontade do seu direito aos proporcionais de férias e natal, onde não menciona e podia, da existência de qualquer crédito a título de trabalho suplementar, noturno e prestado em dias de feriado. i) Pois nessa comunicação somente dispõe a autora que: “deveraì ser-me pago os valores relativos aos subsídios de ferias e de Natal, proporcionalmente aos dias que trabalhei no presente ano.” j) Pelo que tal facto. pela inexistência de prova bastante, inequívoca e solida não deveria ter sido considerado por provado, o facto 10., o que demonstra que ocorreu erro de julgamento por parte do Tribunal ad quo. k) Resulta assim, dos depoimentos da Autora e das testemunhas, DD EE, FF e CC, todos eles também colegas da Recorrida, e que cujos depoimentos contrariam o depoimento da testemunha BB, e demonstraram outra realidade. DD Ficheiro áudio: 20230119152149_16225575_2871546 FF Ficheiro áudio: 20230119155307_16225575_2871546 EE Ficheiro áudio: 20230119154008_16225575_2871546 CC Ficheiro áudio: 20230119150906_16225575_2871546 AA - Autora Ficheiro áudio: 20230119160551_16225575_2871546 l) Ou seja, a Recorrente foi condenada no pagamento à Recorrida das quantias que se vierem a apurar posteriormente referentes a trabalho suplementar, acréscimo por trabalho noturno, acréscimo pelo trabalho suplementar prestado em dias feriados descanso compensatório, média de horas noturnas prestadas no subsídio de natal de 2020 e 2021 e proporcional à duração do contrato no ano de 2022; retribuição de férias e subsídio de férias (com inclusão da média de horas noturnas e trabalho suplementar se se verificar que tais prestações eram devidas em 11 meses num ano); proporcionais de férias e subsídio de férias do ano da cessação do contrato. m) Razão pela qual se mostra como inequívoco o erro de julgamento cometido pelo Tribunal ad quo quanto ao referido facto (10.), impondo-se a sua alteração e retificação para a seguinte redação: 10. Por determinação da ré, a autora prestou trabalho em turnos diários de 8 horas, das 8 às 16, de domingo a segunda com folgas. n) Na página 4. da douta sentença proferida, e a respeito do alegado pela ré de como à autora estava determinado um horário de 8 horas mensais, a Meritíssima Juiz, fundamentou o seguinte: “sendo ainda certo que nada foi concretizado pela ré, nem demonstrado que tal fosse a situação da autora. Perante tal e na ausência de qualquer outra contraprova (nomeadamente documental, e que estava na disponibilidade da ré), é de considerar como suficiente a prova apresentada pela autora.” o) Não cabe à Recorrente, ao contrário do que entendeu o Tribunal ad quo, contrariar através da apresentação de documentos, a alegação da (indocumentada) da autora na realização de trabalho suplementar, noturno e em dias de feriado, pois a falta de apresentação pelo empregador do registo dos tempos de trabalho ou de trabalho suplementar não conduz, por si só, à inversão do ónus da prova, como pretende o Tribunal ad quo fazer. p) O princípio da livre apreciação da prova não atribui ao juiz “o poder arbitraìrio de julgar os factos sem prova ou contra as provas”, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se “com uma qualquer arbitraìria anaìlise dos elementos probatórios, como in casu sucedeu no presente julgamento. q) Assim não resultando provado que a Reecorrida prestou à Recorrente qualquer espécie de trabalho que deva qualificar-se como suplementar, realizado para lá das 8 horas diárias, pelo que não lhe assiste a correspondente remuneração acrescida, legalmente prevista no Código de Trabalho a AESIRF e outra e a ASSP publicado no BTE 26 de 15/07/2019, com a alteração publicada no BTE 11/2021, de 22/03, por força do contrato de trabalho supra referido. r) Da audiência de julgamento resultou como provado que, com data de “4-01”, “5-11-2021”, “8/11/2021”, “12-10-2021” e “2-09-2021”, a autora assinou declaração com os dizeres “declaro que na presente data a A... saldou todas as dívidas para comigo, relativo a salários e todos os subsídios. s) O Tribunal ad quo, decidiu conforma consta na alínea c) dos factos não provados, dar por não provado que a declaração com a data “4-01” se referisse ao ano de 2022 e que correspondesse à quitação das quantias referentes aos últimos créditos devidos até à data do términus da relação laboral entre a Recorrida e a Recorrente, decorrente da denúncia do contrato de trabalho com efeitos a 09/01/2022; t) Assim decidindo erradamente mais uma vez. u) Pois a Recorrente não impugnou as declarações em causa, inclusivamente reconheceu as ter assinado. v) Tendo as aludidas declarações uma sequência cronológica, resulta das regras das regras da experiência que reportando as primeiras aos meses de setembro, outubro, novembro e dezembro de 2021, a última delas com a inscrição da data “04-01” não poderia deixar de ser referente ao mês de janeiro de 2021, data em que a autora já tinha procedido à denuncia do seu contrato, por e-mail e carta enviada em 8/11/2021 com efeitos a 09/01/2021. w) O contrato/“declaração” de “remissão abdicativa” tem plena aplicação no domínio das relações laborais, e por parte da Recorrida não existiu um vício na declaração da sua vontade quando as assinou. x) A remissão abdicativa é uma das causas de extinção das obrigações, consistindo na renúncia do credor ao direito da prestação, feita com a anuência da contraparte (artigo 863º, nº 1, do Código Civil, e como douta jurisprudência do Supremo Tribunal o contrato de “remissão abdicativa” tem plena aplicação no domínio das relações laborais. y) Pelo que mais uma vez se dirá, por não ter julgado esta exceção procedente, a douta sentença proferida pelo Tribunal ad quo padece de erro, pela incorreta aplicação do direito, pois deveria e não o fez, ter julgado tal exceção procedente. Pelo que deverá o presente recurso de apelação ser considerado como procedente, por provado, e, em consequência, revogada a douta decisão proferida pelo Tribunal ad quo, por Nestes termos, e nos melhores de Direito, deverão V. Exas., Venerandos(as) Juízes Desembargadores, assegurar o cumprimento das normas do nosso ordenamento jurídico e, nessa medida, deve ao presente recurso ser dado provimento total, revogando-se assim a decisão judicial, tanto na vertente factual como normativa, de condenação da Apelante, por, contrariamente ao doutamente decidido não se ter demonstrado por provado, que a Apelada realizou a favor da Apelante, trabalho suplementar, acréscimo por trabalho noturno, acréscimo pelo trabalho suplementar prestado em dias feriados e consequentemente ser absolvida do pagamento da indemnização por mora a três vezes e prevista na cláusula 45ª do CCT publicado no BTE nº 38/2017, de 15 de Outubro, bem como julgar extinta todas as obrigações por parte da Apelante por remissão abdicativa nos termos e para efeitos.do previsto no artigo 863.º, n.º 1 do Código Civil. 2.1. Contra-alegou a Autora, patrocinada pelo Ministério Público, concluindo do modo seguinte: “III- Conclusões: Atento o exposto, entendemos que o recurso interposto pela Ré deverá ser julgado totalmente improcedente, porquanto: 1.º- A prova produzida em audiência de julgamento foi corretamente apreciada e valorada pelo Tribunal, segundo as regras de experiência, não tendo ocorrido nenhum erro de avaliação, designadamente, dos depoimentos prestados pelas testemunhas; 2.º- Quando ao ponto 10 da factualidade provada, o Tribunal assentou a sua demonstração no depoimento prestado pela testemunha BB, que considerou assertivo, coerente e espontâneo, resultando do mesmo a confirmação dos horários que a Autora praticava, de acordo com o esquema que havia sido apresentado na petição inicial; 3.º - A conclusão de que a autora prestou trabalho em turnos de 12 horas resultou da prova direta produzida em audiência de julgamento, não tendo ocorrido nenhuma inversão do ónus da prova; 4.º - O que não foi possível apurar, em audiência de julgamento, foi apenas o número de horas de trabalho suplementar que foram prestadas pela Autora, de forma a definir o valor que a tal título lhe é devido, o que validamente deverá ser apurado em sede de liquidação de sentença; 5.º - A declaração mencionada no ponto 14. da factualidade dada como provada constitui mera declaração de quitação, não podendo ser-lhe atribuída força de declaração remissória; 6.º - Do conteúdo de tal declaração não se extrai a vontade de remitir quantias devidas a título de trabalho suplementar ou acréscimos por trabalho noturno ou em dia feriados; 7.º - E tal declaração foi assinada em cada uma das datas indicadas, ou seja, quando o contrato de trabalho ainda vigorava, o que, por si só, impede que lhe seja atribuída a natureza de remissão abdicativa. No entanto, Vossas Excelências, decidindo, farão, como habitualmente, JUSTIÇA! 2.2. O recurso foi admitido em 1.ª instância como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. 3. Não foi emitido parecer pelo Ministério Público, por patrocinar a Autora. * Cumpre apreciar e decidir:II – Questões a resolver Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635.º/4 e 639.º/1/2 do Código de Processo Civil (CPC) – aplicável “ex vi” do artigo 87.º/1 do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir: (1) reapreciação da matéria de facto; (2) dizendo de Direito / saber se ocorre errada / inadequada aplicação do direito. * III – FundamentaçãoA) Fundamentação de facto Da sentença, na pronúncia sobre a matéria de facto, consta o seguinte: “Estão provados os seguintes factos: 1. A Ré é uma sociedade comercial com o objeto social de prestação e exercício dos serviços de segurança privada. 2. A autora foi inicialmente admitida pela Ré, por contrato de trabalho a termo certo, com início em 6/08/2020 e termo em 5/11/2020, para desempenhar sob a autoridade, direção e fiscalização da Ré as funções correspondentes a categoria profissional de «vigilante», com o período normal de trabalho de 8 horas semanais, que depois passou a quarenta (40) horas por semana, por turnos, sendo um das 8H00 às 20H00, outro das 20H00 às 8H00 e o último das 16h00 às 24h00, mediante a retribuição ilíquida hora de 4,42€, acrescido do subsídio de refeição no valor de 6,06€ por dia, 3. A autora prestou seu trabalho no cliente «B... sito na Av. ... n.º ..., ... V. N. de Gaia. 4. A ré pagou à autora a retribuição base mensal de €796,19 (pelo menos) desde setembro de 2020 e até junho de 2021. 5. A partir de julho de 2021 a autora passou a auferir a retribuição base mensal de €804,15. 6. À relação laboral estabelecida entre a autora e a ré era aplicável o CCT celebrado entre a AESIRF e outra e a ASSP publicado no BTE 26 de 15/07/2019, com a alteração publicada no BTE 11/2021, de 22/03, por força do contrato de trabalho supra referido. 7. A autora por e-mail e carta enviada em 8/11/2021comunicou à Ré a denúncia do contrato de trabalho com efeitos a 9/01/2022. 8. A autora trabalhou gozou férias em 28/08, 10/09, de 4 a 7 de novembro de 2021 e de 18/12/20221 até 9/01/2022. 9. A ré proporcionou à autora 8 horas de formação. 10. Por determinação da ré, a autora prestou trabalho em turnos rotativos com os horários das 20h às 8h ou das 8h às 20h, de domingo a segunda-feira, com folgas. 11. A autora trabalhou, pelo menos, alguns feriados 12. A autora esteve de baixa médica de 2 a 12 outubro e 2021. 13. Em agosto de 2021 a ré pagou à autora a quantia de €81,83 a título de “horas extra”; a quantia de €67,01 a título de subsídio de férias e a quantia de €67,01 a título de subsídio de natal. 14. Com data de “4-01”, “5-11-2021”, “8/11/2021”, “12-10-2021” e “2-09-2021” a autora assinou declaração com os dizeres “declaro que na presente data a A... saldou todas as dívidas para comigo, relativo a salários e todos os subsídios.” * De resto não se provou: a) que diversas vezes a autora comunicava à Ré, ter prestado trabalho para além do horário determinado, o que a Ré apurou não corresponder à verdade; b) que tenha sido por tal que a ré determinou que a autora assinasse as declarações referidas em 14.; c) que a declaração com a data “4-01” se referisse ao ano de 2022 e que correspondesse à quitação das quantias referentes aos últimos créditos devidos até à data do términus da relação laboral entre autora e Ré, decorrente da denúncia do contrato de trabalho com efeitos a 09/01/2022;” * B) Discussão 1. Impugnação da matéria de facto 2.1. Critérios de admissibilidade Dispõe o n.º 1 do artigo 662.º, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Aí se abrangem, nomeadamente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente, o qual, porém, nesses casos, deve observar os ónus de impugnação previstos no artigo 640.º, do CPC, em que se dispõe: “1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.” Nas palavras de Abrantes Geraldes, “(…) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância”[1]. Contudo, como também sublinha o mesmo autor, “(…) a reapreciação da matéria de facto no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662.º não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente de forma concludente as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que implicam decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter”[2]. Tendo por base os supra citados dispositivos legais, a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação, tendo que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância – pois que só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição[3] –, muito embora não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação, não se basta com a mera alegação de que não se concorda com a decisão dada, exigindo antes, da parte que pretende usar dessa faculdade, a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efetivamente, no caso, foram produzidos, sem limitar porém o segundo grau de sobre tais desconformidades, previamente apontadas pelas partes, se pronunciar, enunciando a sua própria convicção – não estando, assim, limitada por aquela primeira abordagem pois que no processo civil impera o princípio da livre apreciação da prova, artigo 607.º, nº 5 do CPC[4]. Do exposto resulta, assim, que o cumprimento do ónus de impugnação que se analisa, não se satisfazendo como se disse com a mera indicação genérica da prova que na perspetiva do recorrente justificará uma decisão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido, impõe que o mesmo concretize quer os pontos da matéria de facto sobre os quais recai a sua discordância quer, ainda, que especifique quais as provas produzidas que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, sendo que, quando esse for o meio de prova, se torna também necessário que indique “com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição”. Discorrendo sobre a matéria, escreve-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Outubro de 2016[5]: “(…) Como resulta claro do art. 640º nº 1 do CPCivil, a omissão de cumprimento dos ónus processuais aí referidos implica a rejeição da impugnação da matéria de facto. (…)”. Observa-se também no Acórdão do mesmo Tribunal de 7 de julho de 2016[6] o seguinte: “(…) para que a Relação possa apreciar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, tem o recorrente que satisfazer os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640º, nº 1 do CPC, tendo assim que indicar: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, conforme prescreve a alínea a); os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, conforme prescrito na alínea b); e qual a decisão a proferir sobre as questões de facto que são impugnadas, conforme lhe impõe a alínea c).”[7]. Do mesmo modo, agora no Acórdão do mesmo Tribunal de 14 de outubro de 2020[8], que, “pretendendo o recorrente impugnar a decisão do tribunal de 1ª instância, proferida sobre a matéria de facto, perante um tribunal de 2.ª instância, que não intermediou a produção da prova, é razoável que se exija ao recorrente que identifique os pontos de facto que impugna por referência aos articulados, aos temas da prova ou aos factos julgados não provados na sentença, sob pena de não se conhecer do recurso nessa parte”, fundando-se esta exigência “nos princípios do dispositivo e da cooperação, tendo por objetivo a justa composição do litígio”. Afirmando-se, ainda, neste caso no Acórdão de 5 de setembro de 2018[9], que “A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos” – afirmando-se que “não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três “blocos distintos de factos” e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna” –, não deixaremos de esclarecer, por último, que se admite que tal indicação possa ser realizada conjuntamente para mais do que um facto, nomeadamente caso se trate de factos diretamente relacionados. 2.2. Aplicação dos critérios antes enunciados / apreciação 2.2.1. Ponto 10.º da factualidade provada: Este ponto tem a redação seguinte: - “10. Por determinação da ré, a autora prestou trabalho em turnos rotativos com os horários das 20h às 8h ou das 8h às 20h, de domingo a segunda-feira, com folgas”. Cumprindo antes de mais verificar, nos termos antes expostos, se o Recorrente cumpriu os ónus legais de impugnação que lhe são impostos, a resposta é no caso positiva, pelo que nada obsta à apreciação. Sustentando a Recorrente que o ponto analisado deve ter redação diversa, que indica (“Por determinação da ré, a autora prestou trabalho em turnos diários de 8 horas, das 8 às 16, de domingo a segunda com folgas”), invoca nomeadamente o seguinte: para considerar tal facto por provado e não apresentado ela Recorrida qualquer prova documental de tal, o tribunal atendeu e valorou apenas o depoimento da testemunha colega BB, desconsiderando por completo, erradamente, os depoimentos das restantes testemunhas, a saber CC, DD, EE, e FF; a Recorrida no seu depoimento afirmou que durante os 17 ou 18 meses em que trabalho para a Recorrente, nunca junto desta, concretamente nos respetivos serviços humanos, de alguma forma exigiu ou procurou saber porque não lhe estava a ser pago o alegado valor devido a título de trabalho suplementar, noturno e dias de feriado, o que contraria a experiência do homem medio colocado no lugar da Recorrida, não sabendo a mesma explicar, em sede do seu depoimento, o motivo por que, a ter direito ao pagamento de trabalho suplementar, noturno e em dias de feriado, não mencionou na carta em que procedeu à denuncia do seu contrato de trabalho, qualquer menção da existência pela sua parte, de qualquer direito ou créditos a título de trabalho suplementar realizado – não valorando ainda o Tribunal o conteúdo da carta de denuncia remetida, em que a Recorrente apenas exprime e manifesta a vontade do seu direito aos proporcionais de férias e natal, onde não menciona e podia, da existência de qualquer crédito a título de trabalho suplementar, noturno e prestado em dias de feriado; constando da sentença, a respeito do alegado pela ré de como à autora estava determinado um horário de 8 horas mensais, o Tribunal fez constar da sentença em termos de fundamentação “sendo ainda certo que nada foi concretizado pela ré, nem demonstrado que tal fosse a situação da autora.. Perante tal e na ausência de qualquer outra contraprova (nomeadamente documental, e que estava na disponibilidade da ré), é de considerar como suficiente a prova apresentada pela autora”, sendo que, diz, não cabe a ela Recorrente, ao contrário do que entendeu o Tribunal ad quo, contrariar através da apresentação de documentos a alegação da (indocumentada) da autora na realização de trabalho suplementar, noturno e em dias de feriado, pois a falta de apresentação pelo empregador do registo dos tempos de trabalho ou de trabalho suplementar não conduz, por si só, à inversão do ónus da prova, como pretende o Tribunal ad quo fazer. Com recurso ao corpo de alegações, verifica-se que transcreve, localizando-as no registo de gravação, passagens dos depoimentos a que supra se aludiu. Defendendo a Recorrida o julgado, para efeitos de apreciação, constata-se que se fez constar da motivação sobre a matéria de facto, na sentença, designadamente o seguinte: “Os tempos de trabalho que constam do ponto 10. resultaram provados na sequência do depoimento da testemunha BB, que trabalha na ré desde há três anos como responsável do posto B..., onde a autora prestou seu trabalho e, num depoimento assertivo, coerente e espontâneo, confirmou os horários por esta praticados, de acordo com o esquema que a autora apresentou na petição inicial; se bem que fosse perentório em afirmar não conseguir garantir se os dias de trabalho e folgas correspondessem exatamente aos dias referidos nos esquemas apresentados pela autora na petição inicial. Apesar das restantes testemunhas inquiridas (CC, trabalhador da ré há 4 anos com a categoria de vigilante e supervisor, DD, supervisor e formador certificado, EE, trabalhadora da ré desde setembro de 2018 no departamento de recursos humanos, e FF, trabalhador da ré desde 2019 como vigilante e mais recentemente como supervisor), afirmarem que no posto se deveria praticar o horário de 8 horas diárias (8h-16h, 16-24h e 24h-8h) e que seriam os trabalhadores quem acordariam em trocar (ou rearranjar) os turnos, a verdade é que estes depoimentos foram mais vagos e hesitantes do que o depoimento da testemunha BB; sendo ainda certo que nada foi concretizado pela ré, nem demonstrado que tal fosse a situação da autora.. Perante tal e na ausência de qualquer outra contraprova (nomeadamente documental, e que estava na disponibilidade da ré), é de considerar como suficiente a prova apresentada pela autora.” Cumprindo-nos apreciar, importa desde já ter presente que a Recorrente não dirigiu o presente recurso, assim impugnando-o, ao ponto 2.º da factualidade provada, em particular a sua parte final, quando, como desse se extrai, se deu como provado o horário de trabalho passou a ser depois de “quarenta (40) horas por semana, por turnos, sendo um das 8H00 às 20H00, outro das 20H00 às 8H00 e o último das 16h00 às 24h00”. Assim o relembramos pois que, referente aos horários, a referência a turnos das 8H00 às 20H00 e das 20H00 às 8H00 já resulta desse ponto, muito embora, diga-se, aí se faça alusão a um último turno das 16h00 às 24h00”. Ou seja, a posição da Recorrente, ao dirigir apenas o recurso ao ponto 10.º, não impugnando o 2.º, traduz-se, sob pena de contradição nessa parte, em defender que, apesar do que resulta deste último ponto, o horário, efetivamente praticado, foi afinal diverso do contratado, já que a redação que defende para o ponto 10.º aponta no sentido de que o horário teria sido “em turnos diários de 8 horas, das 8 às 16, de domingo a segunda com folgas”. Não obstante o que antes se referiu, avançando-se na análise, constata-se desde logo, em face da motivação que se transcreveu, como aliás da mesma claramente resulta, que o Tribunal recorrido, dentro de toda a prova que foi produzida, deu especial ênfase ao que resultou do depoimento da testemunha BB – fazendo constar que se tratou de um “depoimento assertivo, coerente e espontâneo” e que confirmou os horários praticados pela Autora, “de acordo com o esquema que a autora apresentou na petição inicial”, não obstante “não conseguir garantir se os dias de trabalho e folgas correspondessem exatamente aos dias referidos nos esquemas apresentados pela autora na petição inicial –, não deixando no entanto de ponderar, porém, o que teria também resultado, em termos diversos do que foi referido por essa testemunha, do depoimento de outras testemunhas, assim aquelas a que alude a Recorrente no presente recurso – CC, DD, EE e FF –, nomeadamente que o horário que se deveria praticar seria de “horas diárias (8h-16h, 16-24h e 24h-8h) e que seriam os trabalhadores quem acordariam em trocar (ou rearranjar) os turnos”, assinalando no entanto, circunstância que certamente esteva na base da formação da sua convicção, que estes últimos “depoimentos foram mais vagos e hesitantes do que o depoimento da testemunha BB”. Ou seja, como bem se extrai do que se fez constar da motivação antes transcrita, do que se tratou foi, afinal, em face de divergências que resultariam do depoimento das testemunhas, de ter de optar, na formação da convicção, por uma das versões apresentadas sobre os factos, justificando-se ainda as razões que estiveram na base dessa opção. Discordando, porém, desse juízo crítico, o que naturalmente lhe é legítimo, refere a Recorrente que a adjetivação relativamente a estes depoimentos está totalmente errada, dizendo que tal se verifica pela audição dos mesmos, mais acrescentando que, demonstrativo do erro na apreciação da prova pelo Tribunal recorrido, é o facto do mesmo olvidar por completo, na sentença proferida, o depoimento prestado pela Autora, esse sim vago, hesitante, incoerente e totalmente contrário às regras da experiência. Pois bem, reanalisando, reapreciada nesta sede recursiva a prova produzida que é indicada – deixando-se consignado que se procedeu à audição dos registos de gravação no que à prova testemunhal e por declarações diz respeito –, desde já se deixa assinalado ser efetivamente patente a existência de disparidades, no que à prova testemunhal se refere, entre o que foi referido por um lado pela testemunha BB e, por outro, pelas testemunhas em que a Recorrente faz assentar a alteração que pretende do ponto de facto analisado, ou seja CC, DD, EE e FF. Trata-se, aliás, como já o referimos, de circunstância que foi também expressamente referida pelo Tribunal recorrido, na motivação antes transcrita, explicitando aí as razões por que, na sua ótica, perante tais depoimentos em grande parte contraditórios, se justificaria atender, para a formação da sua convicção, à versão dos factos que foi trazida pela testemunha BB, em detrimento da outra versão, assim em maior ou menor grau trazida pelos outros depoimentos antes mencionados. Ora, sabendo-se que a atividade do julgador é em casos como estes dificultada, exige-se-lhe então, contando é certo com a ajuda das regras legais de repartição do ónus da prova, em que se inclui a resolução das dúvidas com que se depare – nesta parte, por aplicação do regime previsto no artigo 414.º do CPC: “A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita” –, que pondere, criticamente, todos os elementos de prova de que dispõe, em termos de, com o máximo grau de certeza que seja possível alcançar, considerar os factos como provados ou não provados, formando a sua livre convicção, com o objetivo, sempre desejável, de que o quadro factual que venha a constar do processo (a designada realidade processual) se adeque no máximo possível à realidade da vida, ou seja, que traduza aquele pedaço de vida ou das coisas a que se pretende que seja aplicada a lei e o direito. Dissemos livre convicção pois que, como é consabido, vigora neste âmbito o princípio da livre apreciação da prova, que, nas palavras de Lebre de Freitas[10], “significa que o julgador deve decidir sobre a matéria de facto da causa segundo a sua íntima convicção, formada no confronto com os vários meios de prova”. Como aliás esclarece o mesmo Autor, compreende-se “como este princípio se situa na linha lógica dos anteriores: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência que forem aplicáveis”. Neste contexto, formada que ficou a convicção do julgador, fazendo-a transpor para a sentença, elencando os factos que considera ou não provados, teremos de realçar, por nos encontrarmos agora na fase recursiva, que, tendo por base o regime legal aplicável, a reapreciação da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação, tendo de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância – pois que só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição[11] –, muito embora não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação, não se basta com a mera alegação de que não se concorda com a decisão proferida em 1.ª instância, exigindo antes da parte processual que pretende usar dessa faculdade, que procure demonstrar que, no caso que se pretende ver reapreciado, ocorreram incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efetivamente foram produzidos – sem limitar, porém, o segundo grau, ou seja o tribunal de recurso, de sobre tais desconformidades, assim previamente apontadas pelas partes, se pronunciar, enunciando a sua própria convicção – não estando, assim, limitada por aquela primeira abordagem pois que no processo civil, como antes já o dissemos, impera o princípio da livre apreciação da prova (artigo 607.º, nº 5 do CPC[12]). A razão de ser das considerações que antes deixámos escritas tem na sua base o objetivo de deixar claro, no presente acórdão, que, deparando-se também este Tribunal da Relação, afinal, com as mesmas disparidades em termos de prova, ou seja perante versões diferentes sobre os factos que as testemunhas trouxeram à audiência de julgamento, então, sem esquecermos que sequer dispomos de um contato imediato com a prova que se pretende reapreciada, apenas atendendo-se neste momento à reanálise dos registos de gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas antes mencionadas – sem prejuízo, pois, do que possa resultar da apreciação que faremos de seguida sobre outros meios de prova ou recurso às regras da experiência comum –, a conclusão a que chegamos, no caso, é a de que, ouvidos que foram por nós tais registos de gravação, não se deteta, por um lado, que o depoimento da testemunha em que se alicerçou a convicção do Tribunal não seja de considerar idóneo – como dito na motivação, “assertivo, coerente e espontâneo” –, como ainda, por outro lado, a respeito das restantes testemunhas que se indicam, que os seus depoimentos não sejam de considerar, como mais uma vez dito na motivação, “mais vagos e hesitantes do que o depoimento da testemunha BB”. Na verdade, diversamente deste último, que depôs de forma circunstanciada revelando direto conhecimento dos factos, já tal não se pode dizer quanto aos depoimentos das demais testemunhas, por faltar esse relato circunstanciado e com conhecimento efetivo do que ocorreu efetivamente com os horários cumpridos pela Autora, em que se inclui, esclareça-se a referência a que essa “fizesse” jogos e a que trocasse turnos por essa razão, como ainda por trabalhar para outras entidades, pois que, a tal respeito, mais uma vez não resulta qualquer concretização, incluindo revelando-se conhecimento de causa. Coisa diversa será saber se outros elementos de prova são passíveis de afastar o que possa resultar apenas considerando tais depoimentos. Já neste âmbito, começa a Recorrente por invocar as regras da experiência comum, com o argumento de que, afirmando a Recorrida no seu depoimento que durante os 17 ou 18 meses em que prestou trabalho para a Recorrente nunca junto desta, concretamente nos respetivos serviços humanos, de alguma forma exigiu ou procurou saber porque não lhe estava a ser pago o alegado valor devido a título de trabalho suplementar, noturno e dias de feriado, tal atuação contraria aquelas regras da experiência, como ainda pelo facto, como o diz, não saber a mesma explicar, em sede do seu depoimento, o motivo por que, a ter direito ao pagamento de trabalho suplementar, noturno e em dias de feriado, não mencionou na carta em que procedeu à denuncia do seu contrato de trabalho, qualquer menção da existência pela sua parte, de qualquer direito ou créditos a título de trabalho suplementar realizado – não valorando ainda o Tribunal o conteúdo da carta de denuncia remetida, em que a Recorrente apenas exprime e manifesta a vontade do seu direito aos proporcionais de férias e natal, onde não menciona e podia, da existência de qualquer crédito a título de trabalho suplementar, noturno e prestado em dias de feriado. Ora, a respeito do apelo feito pela Recorrente às regras da experiência comum, socorrendo-nos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Junho de 2016[13], começaremos por dizer, também, como nesse, citando, que “a prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objeto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos”, mais se acrescentando que o uso “em processo civil, de regras de experiência comum, é um critério de julgamento, aplicável na resolução de questões de facto, mas não na interpretação e aplicação de normas legais[14], que fortalece o princípio da livre apreciação da prova, como meio de descoberta da verdade, apenas subordinado à razão e à lógica” – ainda que “a definição da hierarquia dos meios de prova de livre apreciação, pelo tribunal, e bem assim como a consideração de certas provas, em detrimento da desconsideração de outras, ou de determinados depoimentos, em primazia de outros, sustenta-se ainda no aludido princípio da convicção racional, que não afeta o princípio da igualdade processual das partes[15]”. Pois bem, na consideração então do regime antes mencionado, voltando ao caso, importa deixar claro que, quanto ao que consta do ponto que agora reanalisamos, assim qual o horário em que prestou atividade para a Ré, que o Autora referiu expressamente, a instâncias do Tribunal, que esse era de 12 horas, 3 ou 4 dias e depois folgava dois ou três dias (minutos 21), esclarecendo também, a pergunta porque escreveu na carta que enviou 8 horas de novembro e dezembro, que teria sido quando foi ver o contrato… e que era o que estava no contrato, sendo que, extraindo-se que o que referiu estará em conformidade com o que resultou do depoimento da testemunha BB quanto ao horário, e, quanto ao que se fez constar da carta, até porque deu afinal uma explicação que não entendemos contrariar (por ser aceitável) a normalidade das coisas e as regras da experiência, não é esse facto bastante para infirmar o que resultou daquele depoimento e das suas declarações. Contata-se, ainda, que a Recorrente pretende, porém, fazer apelo a outros elementos, não propriamente diretamente ligados ao horário que teria sido cumprido, mas que, apesar disso, se bem se entende a sua argumentação, apontariam no sentido de que o horário fosse de oito e não de doze horas. Pois bem, analisando então, começando-se pelo que foi ou não referido pela Autora / aqui apelada no depoimento que prestou, constatando-se, em face do registo de gravação (que ouvimos integralmente) que a mesma, começando por responder “sim” quando perguntada sobre se alguma vez, das vezes que recebeu os recibos e as declarações que estão juntos ao processo, confrontou os recursos humanos da empresa de que os valores não batiam certo, esclarecendo de seguida que o cheque tinha mais ou menos do que vinha no recibo, mencionou porém depois, a pergunta sobre se nessas vezes falava com alguém, que falava com o supervisor e, a pergunta sobre se falava com o departamento de recursos humanos, referiu que relativamente a isso não (minutos 10/11). Mas referiu também, de seguida, a pergunta sobre se, sabendo que poderia ter direito ao subsidio noturno, a subsidio de trabalho suplementar e do trabalho noturno, assinou no entanto a declaração onde diz saldou comigo todas as dividas – sabendo que tendo isso e não reportava à empresa a dizer olha, atenção que eu não recebi o valor, tinha ideia do que deveria receber… –, respondeu “certo, supostamente nós transmitíamos ao supervisor e supervisor transmitia aos recursos humanos (minutos 12) – acrescentando ainda, de seguida, a pergunta porque que é que, tendo em conta que há um departamento uns recursos humanos, nunca reportou a esse ao longo deste tempo todo, “é correto sempre, a informação que nós tínhamos era que passávamos a informação ao supervisor e o supervisor passava acima (minutos 13), mas também, confrontada com pergunta sobre se não seria normal que depois de nada ser resolvido pela pessoa com quem falou não deveria passar ao patamar seguinte, se fez isso e se não conseguia responder, referiu apenas “não, não foi feito simplesmente”, mas também, a pergunta se não seria porque durante esse período ou pelo menos até denunciar o contrato verdadeiramente nunca se sentiu prejudicada, respondeu “senti-me sempre”, como ainda, perguntada porque é que não fazia reporte, respondendo que que era reportado para o supervisor passar acima, a resposta é que vinha sempre igual, que essa era que estava a ser tratado, mas que durante um ano e meio nunca foi tratado (minutos 14). Por sua vez, agora confrontada com a carta que remeteu e nomeadamente pela razão por que porque é que não referiu que lhe deviam “subsídio noturno, devem três vezes a quantia que me deviam ter pago devem-me o subsídio de, devem-me os feriados que eu trabalhei e não me pagaram”, referiu a Autora “não tem refletido realmente, relativamente a isso”, e, perante observação do Ilustre Mandatário de que já saberia que teria direito a isso, respondeu “sim”, bem como, de seguida, perguntada porque não o fez, que “foi impensável mesmo, foi criar... realmente a rescisão do contrato e ser enviado”, mas também que não sabia quais seriam os valores certos (minutos 17). Ora, em face do que assim resulta das declarações da Autora, poderemos extrair, desde logo, que, sendo verdade que existem algumas circunstâncias que nos permitem dizer que, em termos de normalidade das coisas, fosse natural que a Autora pudesse ter confrontado os recursos humanos sobre a circunstância que refere de os valores não baterem certo, no entanto, ainda assim, também é de aceitar, por referência à mesma normalidade das coisas, que, apesar de estar convencida de que teria direito a ser paga por trabalho suplementar e/ou noturno, em face dos horários que referiu cumprir, entendesse que seria suficiente transmitir esse facto ao supervisor e que esse depois tal transmitiria aos recursos humanos, sendo que, por outro lado, a respeito do que consta das declarações que assinou de setembro de 2021 a janeiro de 2022, ou seja, “declaro que na presente data a proteção A… saldou todas as dívidas para comigo, relativo salários e a todos os subsídios”, sem prejuízo ainda do que diremos infra a esse respeito quando apreciarmos a alínea c) da factualidade provada, não será daí que se pode extrair, a respeito do ponto 10.º da factualidade provada agora analisado, que o horário cumprido fosse, como o sustenta a Recorrente, “em turnos diários de 8 horas, das 8 às 16, de domingo a segunda com folgas”. Na verdade, tais declarações, a assumirem relevância, não o serão para efeitos da prova do horário que foi ou não cumprido, pois que nada resulta a esse respeito. Por último, invoca a Recorrente como argumento de que, fazendo o Tribunal recorrido constar a referência a que não tivesse ela junto prova documental que estaria na sua disponibilidade, no entanto, diz, não lhe caberia, ao contrário do que entendeu o Tribunal, contrariar através da apresentação de documentos a alegação da autora na realização de trabalho suplementar, noturno e em dias de feriado, pois a falta de apresentação pelo empregador do registo dos tempos de trabalho ou de trabalho suplementar não conduz, por si só, à inversão do ónus da prova, como pretende o Tribunal ad quo fazer. Se bem o entendemos, está em causa o regime que resultará do n.º 2 do artigo 337.º do CT, que, como o temos dito em outros arestos, que essa se assume como norma de direito material probatório, a que o tribunal terá de atender, estando em causa documentos escritos, com origem na própria entidade empregadora, que demonstrem a existência dos factos constitutivos do crédito e que sejam suficientemente elucidativos, de molde e dispensar a sua integração ou dilucidação através de outros meios de probatórios, designadamente testemunhas[16]. Pois bem, com salvaguarda do devido respeito, a Recorrente atribui ao Tribunal recorrido afirmações que não resultam do que se fez constar, nesse âmbito, da sentença, pois que, o que dessa resulta, diversamente do que quer fazer crer, não é a afirmação de que ocorresse qualquer inversão do ónus da prova e sim, apenas, noutros termos e bem diferentes, que a Ré não apresentou, no que aqui importa, contraprova documental passível de infirmar o que resultava da prova apresentada pela autora, ou seja, apenas se fez referência à regra geral estabelecida em termos de contraprova no artigo 346.º do Código Civil, do qual resulta que “à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos” e “se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova”, apenas se podendo extrair, pois, que o Tribunal recorrido considerou que a contraprova apresentada pela Ré / aqui recorrente, em que sequer se incluiu documental, não é passível de criar dúvida a que se alude nesse preceito e consequência que daí derivaria. Na consideração, pois, de tudo o que antes se expôs, sendo momento de concluir, não encontramos propriamente razões, devidamente fundadas na prova produzida, para afastarmos a relevância que foi dada, vigorando o princípio da livre apreciação da prova, em termos de formação da convicção, ao depoimento da testemunha que expressamente referenciou o Tribunal recorrido, como ainda do que resulta das declarações prestadas pela Autora, sendo que, com base em toda a prova, que aqui reanalisámos, a convicção a que chegamos, sendo próxima daquela a que se chegou em 1.ª instância, não é, porém, totalmente coincidente, em termos da redação que deve ser dada ao facto aqui em causa, assim no sentido de que o horário cumprido pela Autora, por determinação da Ré, o foi, rotativamente com outro trabalhador, em horários das 8.00 às 20.00 horas do dia ou das 20.00 de um dia e as 8.00 horas do dia seguinte, três ou quadro dias por semana, em dias não concretamente apurados, de segunda a sexta feira e nos sábados e domingos. Por decorrência do exposto, improcedendo o recurso, altera-se, porém, a redação do ponto aqui analisado, para passar a ser a seguinte: “10. Por determinação da ré, a autora prestou trabalho, rotativamente com outro trabalhador, em horários das 8.00 às 20.00 horas do dia ou das 20.00 de um dia e as 8.00 horas do dia seguinte, três ou quadro dias por semana, em dias não concretamente apurados, de segunda a sexta feira e nos sábados e domingos.” 2.2.2. Alínea c), não provada: Esta alínea tem a redação seguinte: “c) que a declaração com a data “4-01” se referisse ao ano de 2022 e que correspondesse à quitação das quantias referentes aos últimos créditos devidos até à data do términus da relação laboral entre autora e Ré, decorrente da denúncia do contrato de trabalho com efeitos a 09/01/2022;” Cumprindo verificar, nos termos antes expostos, se a Recorrente cumpriu os ónus legais de impugnação que lhe são impostos, importa desde já sinalizar que, quanto à alínea antes citada, socorrendo-nos também do corpo das alegações, o que se constata é que os argumentos são apresentados já no momento em que se diz ocorrer erro na aplicação do direito e não, pois, no momento em que se refere impugnar-se a decisão sobre a matéria de facto, como a boa técnica o imporia. Ainda assim, admitindo-se a possibilidade de se poder entender que, ao indicar-se tal alínea e afirmando-se “assim decidindo erradamente mais uma vez” se traduz em intenção de estar a impugnar essa pronúncia em sede de matéria de facto, pretendendo ainda significar que deve o conteúdo dessa alínea ser tido como provado, a verdade é que, visto o respetivo conteúdo, esse se assume apenas como conclusivo pois que, desde logo, se refere às quantias “referentes aos últimos créditos devidos até à data do términus da relação laboral entre autora e Ré, decorrente da denúncia do contrato de trabalho com efeitos a 09/01/2022”, ou seja, sem qualquer concretização sobre quais os créditos a que se refere. Não obstante, sempre diremos que, resultando da factualidade provada, assim do ponto 14.º, não impugnado no presente recurso, que “com data de “4-01”, “5-11-2021”, “8/11/2021”, “12-10-2021” e “2-09-2021” a autora assinou declaração com os dizeres “declaro que na presente data a A... saldou todas as dívidas para comigo, relativo a salários e todos os subsídios”, ou seja precisamente o texto que se extrai das declarações em causa, o que consta da analisada alínea c) vai para além disso, pois que comporta a referência expressa, apontada apenas à declaração com a data “4-01”, a que essa “se referisse ao ano de 2022” e “que correspondesse à quitação das quantias referentes aos últimos créditos devidos até à data do términus da relação laboral entre autora e Ré, decorrente da denúncia do contrato de trabalho com efeitos a 09/01/2022”, referências estas a que, não se extraindo afinal do texto que se fez constar, para além de conclusivas como antes se disse, mais se traduzem na interpretação que a Recorrente parece extrair do texto, tendo em vista aquelas abarcar, sem que, no entanto, diga-se indique expressamente, no recurso, que prova produzida permitiria dar-lhes suporte. Nos termos expostos, sem necessidade de outras considerações, improcede o recurso também nesta parte. 2. Dizendo de Direito Tendo presente o que resulta das conclusões, que como já o dissemos delimitam o objeto do Recurso, constata-se que a Recorrente, partindo desde logo do pressuposto de que lograria alcançar a alteração da matéria de facto por que pugnou em sede recursiva, resultado esse que, nos termos antes decididos, não alcançou – sendo que a alteração a que procedemos oficiosamente não assume real relevância nesse âmbito –, invoca como argumentos nomeadamente os seguintes: - Não resultando provado que a Recorrida prestou à Recorrente qualquer espécie de trabalho que deva qualificar-se como suplementar, realizado para lá das 8 horas diárias, não lhe assiste a correspondente remuneração acrescida, legalmente prevista no Código de Trabalho a AESIRF e outra e a ASSP publicado no BTE 26 de 15/07/2019, com a alteração publicada no BTE 11/2021, de 22/03; - O contrato/“declaração” de “remissão abdicativa” – uma das causas de extinção das obrigações, consistindo na renúncia do credor ao direito da prestação, feita com a anuência da contraparte (artigo 863º, nº 1, do Código Civil) tem plena aplicação no domínio das relações laborais, sendo que no caso não existiu um vício na declaração da vontade quando a Autora as assinou, pelo que, diz, ao não ter julgado esta exceção procedente, a sentença proferida padece de erro, pela incorreta aplicação do direito, pois deveria e não o fez, ter julgado tal exceção procedente. Conclui que deve revogando-se a sentença, sendo absolvida do pagamento da indemnização por mora a três vezes e prevista na cláusula 45ª do CCT publicado no BTE nº 38/2017, de 15 de outubro, bem como julgar extinta todas as obrigações por parte da Apelante por remissão abdicativa nos termos e para efeitos.do previsto no artigo 863.º, n.º 1 do Código Civil. Pugna a Recorrida, por sua vez, pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção do julgado, sustentando designadamente que a declaração mencionada no ponto 14. da factualidade dada como provada constitui mera declaração de quitação, não podendo ser-lhe atribuída força de declaração remissória – do conteúdo de tal declaração não se extrai a vontade de remitir quantias devidas a título de trabalho suplementar ou acréscimos por trabalho noturno ou em dia feriados, para além de que tal declaração foi assinada em cada uma das datas indicadas, ou seja, quando o contrato de trabalho ainda vigorava, o que, por si só, impede que lhe seja atribuída a natureza de remissão abdicativa. Pois bem, como primeira nota, importa assinalar que a Recorrente, no âmbito da aplicação do direito, parte de um pressuposto que afinal não se verifica, assim que lograria alcançar a alteração que pretendia em sede de matéria de facto, razão pela qual, ao não lograr tal desiderato, se importaria que tivesse dirigido à sentença, para essa eventualidade, expressamente, no que à aplicação do direito diz respeito, efetivos argumentos jurídicos tendentes a infirmar essa aplicação do direito, assim nomeadamente erro na interpretação ou aplicação da lei, no sentido de explicar a razão por que a decisão deveria ter sido outra – no caso aquela que genericamente defende –, quando, como é consabido e comummente afirmado, impendia sobre si, enquanto recorrente, em sede de recurso, o ónus de invocar, também no domínio da aplicação da lei, os argumentos (jurídicos) que na sua ótica justificam o afastamento dos fundamentos constantes da decisão recorrida para sustentar o modo como interpretou e/ou aplicou a lei, de tal modo que o tribunal superior os possa apreciar, no sentido de lhes dar ou não sustentação – versando o recurso sobre matéria de direito, deve o Recorrente, para além de indicar nas conclusões as normas jurídicas violadas, referir também o sentido que, no seu entender, as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas (artigo 639.º, n.º 2, do CPC). O que se referiu anteriormente prende-se desde logo com o necessário afastamento, porque não logrou obter provimento no recurso na alteração da matéria de facto que lhe está ligada, de que, como o afirma, não tenha resulta provado que a Recorrida prestou à Recorrente qualquer espécie de trabalho que deva qualificar-se como suplementar – realizado para lá das 8 horas diárias, não lhe assiste a correspondente remuneração acrescida, legalmente prevista no Código de Trabalho a AESIRF e outra e a ASSP publicado no BTE 26 de 15/07/2019, com a alteração publicada no BTE 11/2021, de 22/03 –, sendo que, em face da factualidade efetivamente provada (já com a alteração a que procedemos antes), ficou demonstrado, noutros termos, que, “por determinação da ré, a autora prestou trabalho, rotativamente com outro trabalhador, em horários das 8.00 às 20.00 horas do dia ou das 20.00 de um dia e as 8.00 horas do dia seguinte, três ou quadro dias por semana, em dias não concretamente apurados, de segunda a sexta feira e nos sábados e domingos”, do que resulta, tanto maios que a Recorrente sequer apresenta argumentos jurídicos tendentes a evidenciar que assim não deveria ocorrer, não encontramos fundamento para infirmar a pronúncia do Tribunal recorrido quando aplicou a lei e o direito, incluindo contratação coletiva que indica, para onde se remete, no sentido de que a Autora prestou efetivamente trabalho que deve ser tido como suplementar, como aí se diz, incluindo em termos normativos, mas que, no entanto, não tendo ficado demonstrado o concreto horário de trabalho praticado não é possível, de momento, proceder a um cálculo exato do volume de trabalho suplementar prestado, pelo que tal liquidação se terá de relegar para momento posterior, nos termos previstos no artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Analisando agora o argumento de que tenha havido, como o diz a Recorrente, “remissão abdicativa”, diremos o seguinte: Da sentença recorrida fez-se constar, nesse âmbito, o seguinte: «(…) Opondo-se à pretensão da autora em obter o pagamento dos créditos salariais, invoca a ré a existência de declarações de quitação assinadas pela autora, que configuram uma verdadeira remissão abdicativa. Da audiência de julgamento resultou como provado que, com data de “4-01”, “5-11-2021”, “8/11/2021”, “12-10-2021” e “2-09-2021”, a autora assinou declaração com os dizeres “declaro que na presente data a A... saldou todas as dívidas para comigo, relativo a salários e todos os subsídios.” Mais do que uma mera declaração de quitação dos valores contantes dos recibos de vencimento, pretende a ré atribuir a força de declaração remissória àquelas. No que respeita às declarações remissórias dispõe o art. 863º, n.º 1, do Código Civil, o credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor, pelo que cumpre aferir se esta declaração do autor tem esse sentido. Segundo o Prof. Manuel de Andrade, para que exista uma declaração de vontade negocial «será bastante que qualquer comportamento dum indivíduo apareça como tal. Para o efeito de que se trata, esse comportamento deve, portanto, ser visto de fora; deve ser considerado exteriormente. Se, encarado desde um tal ponto de vista, ele aparecer com um significado negocial, já estaremos em face duma declaração de vontade, enquanto elemento da existência dum negócio jurídico. Pode ser que por trás desta exterioridade falte a interioridade correspondente. (…). Pode ser, em suma, que a vontade real do comportante seja nenhuma, ou, em todo o caso, seja diversa da que aparece reflectida ou extrinsecada naquele comportamento. Mas isso já é outra coisa» - Teoria Geral da Relação Jurídica, 1987, vol. II, pág. 122. Tal significa que a declaração emitida pelo autor no dito documento tem de ser analisada tendo em conta, não a vontade real e efetiva do declarante, mas o comportamento declarativo, elemento essencial da declaração negocial. No entanto, tendo sido entendimento pacífico, na doutrina e jurisprudência, que tais declarações remissórias apenas são validas com a cessação do contrato de trabalho. Neste momento, “tal renúncia é válida, uma vez que o direito à retribuição (e aos restantes créditos laborais) só se consideram indisponíveis durante a vigência da relação laboral, o que se justifica, quer pela natureza da retribuição, entendida como crédito alimentar, indispensável ao sustento do trabalhador e da sua família, quer pela situação de subordinação económica e jurídica em que o trabalhador se encontra face ao empregador, que o pode inibir de tomar decisões verdadeiramente livres, em resultado do temor reverencial em que se encontra face aos seus superiores ou do medo de represálias ou de algum modo poder vir a ser prejudicado na sua situação profissional (veja-se João Leal Amado, A Protecção do Salário, 1973, pág. 196-222; J. Barros Moura, A Convenção Colectiva entre as Fontes do - 13 - Direito, pág. 210-212 e Parecer de J. Mesquita, na Revista do Ministério Público, Ano 1, T. 1, pago 43-47). Mas, cessada a relação laboral, já nada justifica que o trabalhador não possa dispor livremente dos seus eventuais créditos resultantes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, uma vez que já não se verificam os constrangimentos existentes durante a vigência dessa relação.” (acórdão do STJ de 24/11/2004, processo n.º 04S2846, disponível em www.dgsi.pt.) Deste modo, e sendo certo que no momento em que as declarações invocadas pela ré foram assinadas ainda estava em vigor o contrato de trabalho, é de considerar que as mesmas não podem ter a relevância que a ré lhes pretende atribuir por a autora não ter a disponibilidade sobre os direitos salarias que lhe assistiam então. Perante tal, improcedendo assim esta exceção de remissão abdicativa, cumpre aferir da efetiva existência dos direitos de crédito a que a autora se arroga.» Em face da citada fundamentação, dir-se-á desde já que a mesma não nos merece censura, pois que, estando ainda em vigor o contrato de trabalho quando foi assinada a declaração de 4 de janeiro, num momento em que ainda vigorava a relação laboral entre as partes, tem-se efetivamente entendido, na doutrina e jurisprudência, que declarações desta natureza / remissórias apenas são válidas com a cessação do contrato de trabalho e, no caso, os efeitos da denúncia do contrato pela Autora só ocorreriam no dia 9 desse mês. O mesmo se afirmou, designadamente, com recurso a doutrina e jurisprudência, no Acórdão desta Secção de 2 de março de 2017[17]– assim que «a doutrina e jurisprudência têm feito uma clara distinção entre “os direitos de existência necessária, mas que não são de exercício necessário, como é o caso do direito ao salário após a cessação do contrato, e os direitos cuja existência e exercício são necessários”, que são irrenunciáveis, como é o caso do direito ao salário na vigência do contrato» –, esclarecendo-se, de seguida, que “tem a jurisprudência, de forma consolidada, considerado que os direitos laborais de natureza pecuniária são indisponíveis e irrenunciáveis, mas, isso, apenas durante a vigência do contrato de trabalho, o que é justificado dada a situação de subordinação jurídica e económica em que se encontra o trabalhador relativamente à entidade empregadora” – “trata-se de um regime protecionista assente, precisamente, na referida debilidade jurídica e económica que, quando cessa a relação laboral, determina igualmente e como se tem entendido, a cessação da necessidade desse especial regime, já que, aí e em posição de igualdade, pode o trabalhador de forma livre e sem receio, reclamar os direitos que, porventura, lhe assistam”. Em face do exposto, improcede o recurso também quanto a esta questão. E, não tendo a Recorrente invocado outros argumentos, assim dirigidos ao mais decidido, improcede assim o recurso no âmbito da aplicação da lei e do direito. Decaindo, a Recorrente é responsável pelas custas do recurso que interpôs (artigo 527.º do CPC). * Sumário – a que alude o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:……………………………… ……………………………… ……………………………… *** IV - DECISÃOAcordam os juízes que integram a Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, confirmando-se, por decorrência, a sentença recorrida. Custas pelo Recorrente. Porto, 13 de novembro de 2023 (acórdão assinado digitalmente) Nelson FernandesRita Romeira Rui Penha _______________ [1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 221/222 [2] Op. cit., p. 235/236 [3] cf. neste sentido o Ac. STJ de 24/09/2013, in www.dgsi.pt [4] cf. Ac. STJ de 28 de Maio de 2009, in www.dgsi.pt [5] www.dgsi.pt [6] processo nº 220/13.8TTBCL.G1.S1, disponível igualmente em www.dgsi.pt [7] no mesmo sentido, o Acórdão do mesmo Tribunal de 27 de Outubro de 2016, processo 110/08.6TTGDM.P2.S1, mais uma vez em www.dgsi.pt [8] Relator Conselheiro Chambel Mourisco, in www.dgsi.pt. [9] Relator Conselheiro Gonçalves Rocha, mais uma vez em www.dgsi.pt. [10] em “Introdução ao Processo Civil, 3.ª edição, p. 196 [11] cf. neste sentido o Ac. STJ de 24/09/2013, in www.dgsi.pt [12] cf. Ac. STJ de 28 de Maio de 2009, in www.dgsi.pt [13] Relator Conselheiro Hélder Roque, disponível em www.dgsi.pt. [14] [4] STJ, de 1-10-96, Pº nº 96B053, www.dgsi.pt [15] [5] STJ, de 18-5-2004, Pº nº 04A1417, www.dgsi.pt [16] neste sentido, veja-se, entre outros, o acórdão do STJ de 19-12-2007, Recurso n.º 3788/07 - 4.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt [17] Relatora Desembargadora Paula Leal de Carvalho, com intervenção, aliás, do aqui relator como 2º adjunto – Apelação n.º 2455/15.0T8VFR.P1, in www.dgsi.pt. |