Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
414/21.2T8SJM-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: MANDATÁRIO
AUSÊNCIA NO JULGAMENTO
INQUIRIÇÃO DAS TESTEMUNHAS
Nº do Documento: RP20250710414/21.2T8SJM-B.P1
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo considerado pelo tribunal que a falta de mandatário dos Réus à sessão de julgamento está justificada, nos termos do artigo 603.º, n.º 1, do C. P. C., não pode o mesmo tribunal decidir, nessa sessão, confirmando-o noutra posterior sessão, que não se procede à contra-instância, pela referida mandatária, de testemunha indicada pela Autora.
II - Não atua com abuso de direito processual/litigância de má-fé a Ré que, sem ocorrer qualquer circunstancialismo relevante, falta a uma sessão de julgamento e pede para ser ouvida no seu país de residência, no caso, na Suíça.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 414/21.2TBSJM-B.P1.

João Venade.

Isoleta Almeida Costa.

António Paulo Vasconcelos.


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1). Relatório.

A..., Lda., com sede na ..., Rua ..., Edifício ..., São João da Madeira,

propôs contra

AA e mulher, BB, residentes na Rua ..., ..., ..., Santa Maria da Feira

Ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum.

Formula pedido de condenação dos Réus na quantia de 17 765,31 EUR, acrescida dos juros de mora que vierem a vencer-se, à taxa legal para as dívidas comerciais, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

O sustento do pedido consiste em serviços realizados pela Autora aos Réus em imóvel.


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Os Réus contestaram, impugnando a versão da Autora e formulando pedido reconvencional no valor de 4 367 EUR, acrescidos de juros à taxa legal, desde a notificação da reconvenção, até efectivo e integral pagamento.

O sustento deste pedido consiste em defeitos na execução dos serviços e falta de realização de outros.


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Os autos prosseguiram, com a admissão do pedido reconvencional, elaboração de despacho saneador, indicação de objeto de litígio, seleção de temas de prova e marcação de julgamento.

Este realizou-se com a seguinte divisão de sessões:

. 02/06/2022 – ouviu-se o legal representante da Autora; a mandatária dos Réus requereu a tomada de declarações dos mesmos, que estavam presentes. Designou-se para continuação o dia

. 12/09/2022 – a mandatária dos Réus disse que por ora prescinde da tomada de declarações do Réu.

Iniciou-se a prestação de declarações de parte da Ré.

A certa altura, a Ré disse que estava cansada e não tinha condições para continuar a tomada de declarações e requereu que se interrompa o adiantar da hora e pretende consultar o dossier para se sentir mais segura das declarações que quer prestar, e continuação na próxima quinta-feira data anteriormente designada.

O tribunal deferiu o requerido, interrompeu a audiência para continuação no dia 15/09/2022, às 14.00 horas.

. 15/09/2022 – continuou a tomada de declarações à Ré, que terminaram às 16.55 horas.

Seguidamente o tribunal profere o seguinte despacho:

«Uma vez que irei entrar de baixa médica na próxima segunda feira, determino que os autos sejam conclusos após regresso. Dado que há sobreposição de diligências no dia 17.11.2022, dou sem efeito esta data. Mantém-se o 24 de Novembro de 2022, com continuação das declarações de parte dos Réus.».

Como a juíza se encontrava de baixa médica, o julgamento vem a prosseguir em

. 31/05/2023 – a mandatária dos Réus transmitiu que a Ré BB não pode comparecer por razões profissionais e pessoais. Ouviu-se uma testemunha e designou-se continuação que acabou por se realizar em

. 05/07/2023 – foi ouvida a testemunha CC, indicada pelos Autores, designando-se para continuação o dia 11/07/2023, incluindo para audição da referida testemunha;

Em 10/07/2023, os Réus apresentam requerimento nos autos informando que a Ré não se pode deslocar a Portugal até ao dia 12/07/2023, não podendo assim comparecer na sessão do dia 11/07/2023.

Mais solicitam que sejam ouvidos por equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real, nos termos do disposto no Artº 502 do C.P.C..

. o julgamento prossegue então com a sessão designada para

. 11/07/2023 – a mandatária dos Réus informou telefonicamente que estava impossibilitada de comparecer em Tribunal, por ter passado mal durante a noite, que teve uma paragem de digestão, não tem em quem substabelecer e que enviará um requerimento no dia de hoje à tarde.

É proferido o seguinte despacho:

«Uma vez que falta a testemunha CC será para dar a contra-instância e a Ilustre Mandatária dos Réus não está presente, dispensa-se a mesma. As declarações da Ré foram requeridas pela própria, nas várias sessões desta audiência, em que foi notificada para continuação, para responder aos esclarecimentos da Autora, a mesma não tem comparecido, tendo inclusive na sessão que compareceu, manifestado indisponibilidade para a data proposta pelo Tribunal, sendo que ainda referiu se encontrar em Portugal.

Acresce que o teor da declaração relativa à falta de comparência para a sessão de hoje e o demais já referido no requerimento da Autora, permite enquadrar a posição da Ré em situação típica de abuso de direito.

Efectivamente sendo detentora do direito de prestar declarações consagrado e tutelado pela ordem jurídica, tem o exercitado no caso concreto fora do seu objectivo natural e da sua existência, permitindo e até requerendo, o sucessivo prolongamento da audiência. Esse resultado, é estranho ao admissível pelo Sistema, quer por contrariar a confiança no sistema jurídico aquilo que a outra parte razoavelmente pode esperar, tem se verificado com o atraso no desfecho da acção, uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o Direito e os sacrifícios impostos resultantes desse exercício à outra parte.

Assim à luz deste instituto jurídico, deve ficar impedida a Autora do exercício do Direito conforme já advertido como comunicação para a falta de comparência e requerido pela Autora no dia de hoje.

O que se defere, indeferindo-se o requerido pela Ré.

Consigna-se que o decidido e sem prejuízo da apreciação para efeitos de eventual litigância de má fé em toda a sua plenitude inclusive eventual contemplação a responsabilidade da Ilustre Mandatária que verbalizou ainda que sem ser em requerimento que "o protelamento da acção beneficia a Autora, sendo que assim receberá mais em juros.»

No dia 11/09/2023, em nova sessão de julgamento, são proferidos os seguintes despachos, no que aqui releva:

«Tendo em conta o já decidido, não serão tidas em consideração as declarações já prestadas pela Ré.».

«Notifique a Ré para esclarecer em complemento do requerimento ora apresentado se pretende que se proceda hoje à inquirição da testemunha que se encontra aqui presente, sem se realizar previamente a contra instância, tendo em conta que a ordem dos trabalhos também já foi alterada com a inquirição da testemunha DD enquanto não justificou a falta de comparência.».

E, no seguimento de requerimento dos Réus, é proferido o seguinte despacho:

«A última sessão da audiência de julgamento (para qual, além dos mais intervenientes, estavam notificados os Ilustres Mandatários das partes) estava designada para o dia 11.7.2023, às 9H30M.

Nesse dia e a essa hora, feita a chamada verificou-se, e naquilo que para aqui importa, que a Ilustre Mandatária da Ré se não encontrava presente, tendo o tribunal aguardado pela sua chegada. Nesse entretanto, a Sr. Oficial de Justiça, encarregue de secretariar a audiência de julgamento, cortesmente, contactou a Ilustre Advogada (certamente para apurar das razões desse atraso), tendo então sido informada que a mesma se encontrava doente e que iria fazer chegar ao processo um requerimento a dar conta da situação. Fornecida tal informação ao Tribunal, a signatária, deu inicio à audiência de julgamento (considerando não haver então fundamento legal para o seu adiamento), com a produção de prova.

Com efeito, não foi comunicada atempadamente ao Tribunal, concretamente à hora designada para a inquirição da testemunha para contra instancia CC, nos termos previstos no artigo -nº. 5 do artº. 151º do CPC, em conjugação com nº. 2 do artº. 140º do mesmo diploma, sendo que estava obrigado a comunicar prontamente essa sua situação de impedimento ao Tribunal (juntando a respetiva prova desse impedimento).

É certo que antes de dar início à audiência de julgamento - que fora retardada aguardando a chegada da referida Ilustre Mandatária – o Tribunal recebeu a informação de que se encontrava doente e que iria chegar ao processo um requerimento a dar conta da situação.

Mas tal informação não se encontrava sustentada documentalmente, e depois de ter retardado o seu inicio, o tribunal não dispunha de fundamento legal para adiar o julgamento, tanto mais que não sabia se aludida informação prestada corresponderia ou não à realidade, se o alegado requerimento seria ou não formalizado, e em que termos e quando é que chegaria ao Tribunal.

Já se encontravam presentes diversos intervenientes processuais convocados para a audiência de julgamento designada, nomeadamente a testemunha CC Para responder à instância da Ilustre Mandatária faltosa, que já não se realizou, precisamente pela sua não comparência, dispensando-se a testemunha. Os factos suscetíveis de configurar um justo impedimento, assim foram considerados só a partir da data da sua comunicação, ou seja, 12.04h, momento a parte do qual se interrompeu a audiência de julgamento.

Uma vez que que a realização da audiência de julgamento e consequente prática de catos e omissão do acto que requereu só à mesma lhe poderá ser imputável, pois salvo o devido respeito, deveu-se comportamento da Ilustre Mandatária, que não providenciou por essa comunicação, como podia e devia ter feito. não se vê motivos agora praticar actos que oportuna e fundamentadamente, não se realizaram precisamente por falta de comparência da Ilustre Mandatária.

Assim, indefere-se ao requerido.».

Em 15/09/2023, os Réus apresentam requerimento a pedir a nulidade da inquirição da testemunha ouvida no dia 11/07/2023 por violação do princípio do contraditório, requerimento que foi indeferido por despacho de 09/09/2024 por se entender que o meio adequado era o recurso por haver despacho sobre a matéria.

. 02/10/2023 – foram ouvidas testemunhas cuja audição não assume relevo para o presente recurso; os mandatários de ambas as partes estavam presentes;

. 18/10/2023 – pronúncia do tribunal sobre junção de documentos, exercício de contraditório e prolação de alegações por ambos os mandatários (de Autora e Réus).


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Inconformados, recorrem os Réus, em 18/09/2023, das decisões proferidas em 11/07/2023 e 11/09/2023, relativas à não audição de CC e declarações de parte da Ré, formulando as seguintes conclusões:

«1 - É manifesta a tempestividade do recurso em relação ao despacho proferido na sessão de julgamento de 11.09.2023; e tal tempestividade é também de afirmar em relação aos despachos proferidos na sessão de 11.07.2023, pois os Recorrentes só tiveram conhecimento dos despachos ali proferidos no dia 01.09.2023, já que a respectiva acta só nesta data ficou disponível e passou a ser conhecido o seu conteúdo pelos Recorrentes;

2 – O indeferimento aos Réus da contra instância da testemunha CC, decidido nos termos supra referidos sob os pontos 4º, 5º, 6º, e 7º da motivação, carece de fundamentação legal;

3 - A mandatária dos Réus, no dia da sessão de julgamento de 11.07.2023, aproveitando um prévio contacto do tribunal às 09h15m para dar conta do atraso de 30 m do inicio do julgamento, comunicou nesse acto à Srª Oficial de Justiça, Srª EE, que por razões de saúde estava impossibilitada de comparecer na sessão de julgamento desse dia e que iria enviar documentação nesse sentido, como veio a fazer via citius às 11h33m (reqto sob refª citius nº 14827368) e via email que enviou ao tribunal às 11h44m (que ora se junta sob doc. 1 por se constatar que não foi junto aos autos);

4 - Além disso, consta da própria gravação da audiência desse dia um telefonema em alta voz entre a mandatária dos Réus e a Srª Juíza, em que a primeira comunica à segunda aquele seu impedimento, o qual ainda teve lugar antes da produção de prova que, mesmo assim, se decidiu levar por diante;

5 - Na sequência da comunicação da mandatária dos Réus acima referida, a Srª Juíza veio a proferir despacho (consta do final da acta dessa sessão) a deferir o justo impedimento para comparecer àquela sessão pela mandatária dos Réus (o despacho é “Considera-se o justo impedimento”);

6º - Ora, se deferiu o justo impedimento, a Srª Juíza devia ter adiado aquela sessão (Art 603, nº 1 do C.P.C.), não devendo por isso ter tido lugar qualquer despacho ali proferido;

7º - No entanto, ainda que assim não optasse por fazer, não tinha qualquer fundamento legal para indeferir a continuação da contra instância daquela testemunha CC e, quando muito, designaria sempre nova data para aquela contra instância;

8º - Assim não fazendo, a Srª Juíza está a rejeitar a produção, numa sua parte, daquela prova testemunhal - designadamente, da quase totalidade da contra instância que os Réus pretendem efectuar e que já tinham começado (por breve minutos quando o julgamento da sessão de 05.07.2023 foi interrompida por iniciativa do tribunal) - e, do mesmo passo, está a violar o disposto no Artº 415, nº 1 do C. P. C., pois não deixa que se estabeleça o contraditório dos Réus em relação ao depoimento daquela testemunha indicada pela A.;

9º A Srª Juíza não invoca qualquer fundamento legal que lhe permita indeferir a continuação para contra instância do depoimento daquela testemunha da A.;

10º Os Réus têm a sua vida familiar e profissional na Suíça, sendo de compreender a sua dificuldade em se deslocarem a Portugal de forma a conseguirem acompanhar presencialmente todas as sessões de julgamento; além disso, sendo ambos trabalhadores por conta de outrem, a sua disponibilidade e flexibilidade para se ausentarem do país é muito limitada e particularmente onerosa, pois tais deslocações, quase sempre a ser efectuados por avião, comportam um esforço económico elevado;

11º Perante tais dificuldades dos Réus em se deslocarem a Portugal, a Mandatária dos Réus elaborou e juntou ao processo, no CITIUS, o Requerimento com a ref. 14820097, no dia 10.07.2023 a informar que os Réus não iriam estar presentes na sessão de julgamento agendada para o dia 11.07.2023, ao qual juntou documento justificativo da impossibilidade invocada, e nesse mesmo requerimento, invocando o disposto no Artº 502 e 520 do C.P.C., requereu a prestação das declarações de parte dos Réus (incluindo a continuação das da Ré BB) através de equipamentos tecnológicos de comunicação à distância por meio visual e sonoro em tempo real;

12º Note-se que nos termos do nº 5 do artº 502 do C.P.C. “Sem prejuízo do disposto em instrumentos internacionais ou europeus, as testemunhas residentes no estrangeiro são inquiridas através de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real, sempre que no local da sua residência existam os meios tecnológicos necessários.”;

13º Este preceito, como dele decorre, impõe ao Juiz a inquirição de residentes no estrangeiro nos termos ali previstos;

14º Perante a falta de comparência dos Réus na sessão de julgamento de 11.07.2023, a Sr.ª Juiza proferiu despacho, classificando a falta de comparência dos Réus como uma posição que configura uma “…situação de abuso de direito…”, por entender que os Réus não comparecem às audiências de julgamento, de forma a impedir a continuação da prestação das suas declarações, tendo como objetivo final o protelamento da ação, e considerou ainda que “… à luz deste instituto jurídico, deve ficar impedida a Ré do exercício do Direito…”, direito este que, presume-se, será o de prestar declarações de parte;

15º Não se vislumbra a pertinência da aplicação do instituto do abuso de direito no âmbito do direito processual;

16º O direito a prestar declarações de parte, previsto no artº 466 do C.P.C., contende com o exercício do direito à prova por cada uma das partes em vista da demonstração da factualidade para sustentar a sua posição relativamente ao pedido formulado na acção;

17º O direito à prova é uma manifestação do direito a um processo equitativo previsto no artigo 20º, n 4, da C.R.P. (neste sentido e de modo mais desenvolvido, veja-se “Constituição Portuguesa Anotada”, de Jorge Miranda e Rui Medeiros, Vol. I, 2ª Edição Revista, Universidade Católica Portuguesa, 2017, pág. 323 a 328, anotação XX);

18º Assim, não faz sentido concluir-se por um qualquer abuso do direito quanto à prestação de declarações de parte por parte dos Réus e, por outro lado, não se vislumbra fundamento legal pertinente para o seu indeferimento – aliás, a Srª Juíza, além daquele “estranho” abuso do direito, não invoca mais nenhum outro fundamento legal para o seu indeferimento;

19º Como tal, devem ter lugar as declarações de parte dos Réus, como por estes peticionado no processo e inicialmente deferido, e nesta conformidade, revogar-se o despacho em causa.».

Pedem a revogação dos despachos recorridos, ordenando-se a sua substituição por despacho que designe dia para a realização da contra-instância por parte dos Réus ao depoimento da testemunha CC e que defira a prestação de declarações de parte dos Réus à distância, através dos meios previstos na Artº 502 nº 5 do C.P.C. ou, até ao encerramento da audiência, presencialmente, e em data a definir de acordo com a disponibilidade dos Réus.


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Não foram apresentadas contra-alegações.


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As questões a decidir são:

a). possibilidade legal de não continuar a audição de testemunha indicada pela Autora para contra-instância a efetuar pelos Réus quando ocorre justo impedimento da mandatária dos mesmos Réus em faltar à sessão de julgamento;

b). legalidade de não continuar audição da Ré por se considerar que há abuso de direito da mesma em querer ser ouvida por ter faltado a julgamento.


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2). Fundamentação.

2.1). De facto.

Dá-se por reproduzido o teor do relatório que antecede.


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2.2). Do mérito do recurso.

Analisado o recurso e os autos, na parte que aqui assumem interesse, pensamos que assiste razão aos recorrentes. Assim:

A). Não audição de testemunha em sede de contra-instância.

Em relação à decisão de não audição da testemunha CC para efeitos de contra-instância a efetuar pela mandatária dos pelos Réus, não logramos descortinar motivo válido para que a mesma não se tivesse realizado.

Na sessão de 11/07/2023, no seu início, como resulta da competente ata, a mandatária dos Réus informou telefonicamente que estava impossibilitada de comparecer em Tribunal, por ter passado mal durante a noite, que teve uma paragem de digestão, não tem em quem substabelecer e que enviará um requerimento no dia de hoje à tarde. E, posteriormente, consta na mesma ata que:

«Pelas 12H04M, foi transmitido que o requerimento da Ilustre Mandatária dos Réus está disponível no Citius.

Após, a inquirição da testemunha, foi analisado o requerimento e o documento junto nesta data pela Ilustre Mandatária dos Réus.

De seguida, a Mm.ª Juiz de Direito concedeu a palavra ao Ilustre mandatário da autora. Na sequência, a Mm.ª Juiz de Direito proferiu o seguinte DESPACHO:

Para continuação da presente audiência final, designa-se o dia 11 de Setembro de 2023, às 14H00M.

Considera-se o justo impedimento (nosso sublinhado)».

Ora, como mencionam os recorrentes, se o tribunal considerou que havia justo impedimento da mandatária da Ré em comparecer à sessão de julgamento, situação que foi comunicada telefonicamente ao tribunal antes de o julgamento se iniciar, a mandatária cumpriu os deveres que incidiam sobre a sua posição processual, a saber:

. comunicou que esteve doente durante a noite que antecedeu a sessão de julgamento e que não tinha colega em quem substabelecer;

. nesse mesmo dia juntou prova desse estado (foi referido que tal ocorreu às 12.04 horas quando o certo é que o requerimento dá entrada no Citius às 11.33 horas).

Afigura-se-nos que o tribunal considerou que só a partir das 12.04 horas é que ocorreu a constatação que havia justo impedimento o que, desde logo não é correto pois o requerimento com a apresentação de prova deu entrada em momento anterior.

Mas o que efetivamente releva é que a partir do momento em que o tribunal julga existir justo impedimento da mandatária da Ré em comparecer àquela sessão de julgamento, é toda esta que deve ser adiada e não parte da mesma.

A junção do documento serviria para comprovar que havia justo impedimento já desde o início da audiência e, tendo o tribunal considerado que havia esse mesmo justo impedimento, naturalmente que o mesmo ocorre desde o momento em que foi comunicado (nem consta que seja referido qualquer outro momento para o início do referido impedimento).

A mandatária não comunicou a sua doença já existente para produzir efeitos quando juntasse o comprovativo mas desde que o comunicou; o comprovativo serve exatamente para essa função: comprovar o que se alega.

Note-se que se está perante a alegação de um justo impedimento vigente de um advogado que justifica a falta a uma sessão de julgamento, nos termos do artigo 603.º, n.º 1, do C. P. C.[1] e não a prática de um ato processual imediatamente após a cessação do justo impedimento, como literalmente está previsto no artigo 140.º, n.º 2, do C. P. C. – a parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou -.

Neste artigo prevê-se a situação de que a parte vem praticar um ato processual fora de prazo e, por isso, tem de demonstrar (ou, pelo menos, juntar prova nesse sentido) que, cessado o justo impedimento (doença, por exemplo), logo se aprontou a praticar o ato processual.

No caso em análise, temos um advogado, alegadamente doente (e que se vem a verificar que o estava, face à decisão do tribunal recorrido), que avisou prontamente o tribunal desse impedimento e que, por contacto telefónico com o tribunal (Reaberta a audiência, pelas 10H54M, e após contacto telefónico com Ilustre mandatária dos Réus, a mesma referiu que irá de imediato juntar aos autos o requerimento e não tem em quem substabelecer), referiu que iria enviar a documentação, o que fez, a qual foi certamente aceite como suficiente para se ter considerado que ocorria justo impedimento.[2]

Existindo justo impedimento, o mesmo produz efeitos para toda a sessão de julgamento que se ia realizar nesse dia por ser precisamente a diligência à qual a mandatária dos Réus estava impedida de comparecer.

Deste modo, tudo o que se tivesse realizado nesse dia teria consistido na prática de atos que o tribunal não podia praticar, incorrendo assim na nulidade prevista no artigo 195.º, n.º 1, do C. P. C. - Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa -.

Houve despacho sobre esta questão da não audição, rectius, contra-instância em relação a uma testemunha, por duas vezes:

. uma primeira, na sessão de 11/07/2023, em que se dá a entender que, como a mandatária dos Réus não está presente, não faz sentido a testemunhar estar na sessão pois não será contra-interrogada (sendo certo que a sessão nem se podia realizar);

. uma segunda, em 11/09/2023, em que se reafirma essa decisão - «Uma vez que que a realização da audiência de julgamento e consequente prática de atos e omissão do ato que requereu só à mesma lhe poderá ser imputável, pois salvo o devido respeito, deveu-se comportamento da Ilustre Mandatária, que não providenciou por essa comunicação, como podia e devia ter feito. não se vê motivos agora praticar atos que oportuna e fundamentadamente, não se realizaram precisamente por falta de comparência da Ilustre Mandatária.» -.

Assim, o modo correto de reagir era efetivamente interpor recurso dos despachos, como a recorrente fez (apesar de também, porventura a título de jurisprudência das cautelas, ter arguido autonomamente essa nulidade).

Por isso, como o contraditório foi violado em relação aos Réus pelo tribunal recorrido[3], o que influi no exame ou decisão da causa (suponha-se que é trazida nova factualidade ou com diferente contextualização àquela que foi produzida na instância da testemunha), ocorre aquela nulidade, o que determina a necessidade de audição da testemunha para se efetivar a sua contra-instância.

Procede assim esta argumentação do recurso.


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B). Não audição da Ré.

Como se depreende do relatório que antecede, o tribunal recorrido entendeu que, como a Ré manifestou que não podia deslocar-se da Suíça para Portugal a fim de ser ouvida em 11/07/2023, havia uma atuação concreta da Ré fora do seu objetivo natural e da sua existência, permitindo e até requerendo, o sucessivo prolongamento da audiência, o que consubstanciava abuso de direito, nos termos do artigo 334.º, do C. C. (É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.).

Como é sabido, este instituto está previsto para atuação do titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Mas, para nós, o instituto está pensado para atuações ao nível substantivo, ou seja, alguém que é detentor de um direito, ao exercê-lo está a ferir aqueles valores, não porque, por exemplo, usa uma estratégia processual inadequada de acordo com a boa-fé, mas porque a sua pretensão, independentemente do modo processual que adota, viola aqueles limites.

Para quando uma parte abusa processualmente dos seus direitos deve buscar-se a solução desde logo nas regras previstas para a litigância de má-fé (artigo 542.º, do C. P. C.)[4].

Comungamos das reservas de Miguel Teixeira de Sousa, in Blog do IPPC, post de 15/04/2020, Jurisprudência 2019 (218)¸quando menciona que «não se nega que que se possa verificar em qualquer processo um abuso do direito à ação (a não confundir com o exercício abusivo do direito que é invocado na ação), mas não se entende que esse abuso possa ser relevante fora das situações de litigância de má fé.

Realmente, não se concebe que se possa verificar um abuso do direito à ação sem os elementos subjetivos que são típicos da litigância de má fé. Por exemplo: a mentira em juízo é concebível sem dolo ou negligência grave?; o uso manifestamente reprovável de um meio processual pode verificar-se sem uma atuação dolosa ou gravemente negligente?; uma situação de venire contra factum proprium (negando nas alegações de recurso o que antes tinha reconhecido na contestação, ou vice-versa) é concebível sem dolo ou negligência grave?».

Deve assim buscar-se na atuação em causa um qualquer comportamento que demonstre que, no caso, a Ré mulher está a procurar adiar a prolação de uma decisão final, provocando adiamento das sessões de julgamento, sendo essa uma finalidade com relevo no desenrolar dos autos (isto para nos atermos à fundamentação do despacho recorrido) e depois determinar se pode existir litigância de má-fé e se, esta existindo, pode decidir-se que a Ré já não pode ser ouvida.

Ou seja, no caso concreto, está em causa aferir se o comportamento da Ré deu azo a algum adiamento das sessões de julgamento de modo claramente injustificado, violador de princípios boa conduta processual.

Mas, para que se pudesse concluir que a Ré já não podia exercer o seu direito de ser ouvida por ter atuado processualmente de modo violador das regras de boa-fé, ter-se-ia que adaptar aquele regime da litigância de má-fé no sentido de a conduta não só ser passível de multa e eventual indemnização, nos termos do artigo 542.º, n.º 1, do C. P. C., mas também de uma preclusão da prática do ato o que, legalmente, não está previsto.[5]

E se, como aqui sucede, a parte alegadamente pratica um ato processual com o fim de conseguir entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (n.º 2, d), do citado artigo 542.º, do C. P. C.), como se afigura que o tribunal recorrido entendeu, está expressa e legalmente prevista a sanção para essa atuação e, ao invés, não está prevista a preclusão da prática do ato.

Mas, seja qual for o melhor entendimento, no caso, não se pode concluir por aquele abuso de direito processual ou litigância de má-fé.

Na verdade, temos que:

. as declarações de parte dos Réus foram requeridas em 02/06/2022, tendo sido determinado que fossem ouvidos em

. 12/09/2022, o que sucedeu em relação à Ré, mencionando a mandatária dos Réus que, por ora, não seria para ouvir o Réu;

. nesse dia, o tribunal deferiu pedido da Ré no sentido de sustar as suas declarações, devendo as mesmas continuar em

15/09/2022 – o que se efetivou, marcando-se continuação, atenta futura baixa médica da juíza, para 24/11/2022, sendo que acaba por a continuação prosseguir em

. 31/05/2023 – nesta data a Mandatária dos Réus informa que a Ré não pôde comparecer. O tribunal não retirou qualquer consequência desta falta, iniciou a audição de uma testemunha e reagendou a continuação para 23/06/2023, data que foi alterada para

. 05/07/2023 – e aqui o tribunal fez consignar em ata que a mandatária dos Réus declarou que comunicaria à Autora (será Ré) para findar as declarações, sendo avisada que se não terminar as declarações as já prestadas não serão consideradas. E marca-se nova data para

. 11/07/2023 – esta é a sessão de julgamento que não pode ser considerada pois ocorreu justo impedimento da mandatária dos Réus para aí comparecer, pelo que não deveria ter sido realizada. Assim, não se pode retirar qualquer consequência da falta dos Réus a essa diligência. Essa falta foi anunciada pelos mesmos Réus, por requerimento de 10/07/2023, onde pedem a sua audição nos termos dos artigos 502 e 520.º, do C. P. C..

Eventualmente, os aqui Réus poderiam visar a sua audição nos termos do artigo 456.º, n.º 2, do C. P. C. o que, diga-se, é o regime regra para audição de pessoas que residem o estrangeiro mas de que a Ré terá prescindido ao surgir em Portugal. Mas, seja como for, aquela falta não pode ser atendida pois a sua mandatária faltou justificadamente e tal implicaria a não realização da sessão.

De seguida, inexiste qualquer vicissitude no andamento dos autos que esteja relacionada com a falta dos Réus.

Por isso, deste relato, na nossa opinião, não se deteta qualquer adiamento, atraso na realização de sessões de julgamento imputável, mesmo objetivamente, aos Réus.

Assim, o despacho em causa não tem sustentação fáctica que possa alicerçar um eventual abuso de direito processual ou litigância de má-fé da Ré (não se preenche qualquer das situações previstas nos artigo 542.º, n.º 2, do C. P. C., pelo que também aqui o tribunal praticou um ato que a lei não permite – não terminou a prestação de declarações de parte nem as valorou -, conforme já mencionado artigo 195.º, n.º 1, do C. P. C..

Procede assim também esta argumentação.

Deste modo, tem o tribunal recorrido de continuar a audição da Ré, bem como da testemunha CC (esta para efeitos de contra-instância), com necessidade assim de reabertura de audiência de julgamento.

A agora determinada audição de CC e da Ré resulta da ocorrência de uma nulidade processual (citado artigo 195.º, n.º 1, do C. P. C.), o que implica que se anulem os atos subsequentes que dependam dessa audição (n.º 2, do mesmo artigo 195.º).

Essa consequência será retirada pelo tribunal recorrido, não só porque não é objeto do presente recurso a abrangência dessa nulidade como podem ocorrer vicissitudes que impliquem uma visão diversa da que ocorre neste momento (por exemplo, desistência da inquirição).


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3). Decisão.

Pelo exposto, julga-se procedente o presente recurso e, em consequência, revogam-se as decisões recorridas, determinando-se, em consequência, que:

1). O tribunal reabra a audiência de julgamento para:

1.1). Se efetuar contra-instância do depoimento de CC;

1.2). Continuar a inquirição da Ré em sede de declarações de parte.

1.3). Declarar quais os atos que se anulam em consequência do referido em 1.1) e 1.2).

Custas do recurso a cargo da Autora recorrida.

Registe e notifique.


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Informe o recurso distribuído à colega Maria da Luz Seabra, com o n.º 414/21.2T8SJM.P1, o teor da presente decisão e que, após trânsito, será enviada informação sobre a mesma.

Porto, 2025/07/10.

João Venade.

Isoleta Almeida Costa.

António Paulo Vasconcelos.

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[1] Verificada a presença das pessoas que tenham sido convocadas, realiza-se a audiência, salvo se houver impedimento do tribunal, faltar algum dos advogados sem que o juiz tenha providenciado pela marcação mediante acordo prévio ou ocorrer motivo que constitua justo impedimento.
[2] No Ac. da R. E. de 11/01/2018, processo n.º 1122/17.4YLPRT.E1, www.dgsi.pt, menciona-se que «… parece-nos que se devem distinguir, no que à apresentação imediata da prova se refere, os casos em que a parte se apresenta a praticar determinado ato (como apresentação de articulados, documentos, etc.) fora do prazo legal cessado que foi o justo impedimento, casos estes em que tem plena aplicação a norma do n.º 2 do artigo 140º do Código de Processo Civil, daqueles outros, como agora sucede, em que está em causa a presença em audiência do mandatário (ou da parte), situação em que a impossibilidade de comparência deve ser atempadamente comunicada ao tribunal até à realização da audiência, invocando-se o justo impedimento, sob pena de o julgamento se realizar sem a presença do faltoso.
Nesta situação, em que o impedimento ocorre por motivo de doença entretanto ocorrida, justificativa do impedimento de comparência à audiência, é irrazoável e desproporcionada a exigência da prova imediata do justo impedimento.».
[3]Conforme artigo 415.º, n.º 1, do C. P. C. -Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas.
[4]Em sentido contrário, no Ac. do S. T. J. de 24/05/2022, processo n.º 2737/19.1T8FAR.E1.S1, www.dgsi.pt, menciona-se que I - A proibição do abuso de direito, cominada no art. 334º do CCivil, consubstancia um princípio geral de direito, também aplicável no domínio do processo civil;
[5]De novo, atentamos no referido por Miguel Teixeira de Sousa, no mesmo local, post de 12/05/2014, Declarações de parte e "factos-surpresa: A isto acresce uma outra dificuldade: não há dúvida de que a parte que esconde um facto com o objetivo de o alegar num momento que considera mais oportuno atua de má fé, ou seja, preenche o tipo da litigância de má fé e desencadeia as consequências estabelecidas no art. 542.º, n.º 1, nCPC; sem nenhum indício de uma cumulação de regras, não parece possível que se tente subsumir a mesma situação a uma outra qualquer regra (abuso de direito) para procurar retirar uma outra consequência jurídica (preclusão da alegação do facto).