Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MARIA DO ROSÁRIO MARTINS | ||
| Descritores: | ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA CORREÇÃO OFICIOSA DA MATÉRIA DE FACTO | ||
| Nº do Documento: | RP20250409632/22.6PAPVZ.P1 | ||
| Data do Acordão: | 04/09/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
| Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. | ||
| Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Se as razões apontadas pelo Tribunal a quo para fundamentar a factualidade dada como provada carecerem de razoabilidade, lógica e racionalidade pode-se concluir que a decisão recorrida padece do vício do erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c) do CPP. II - Dispondo este Tribunal de todos os elementos para corrigir o detectado vício decisório a matéria de facto deve ser modificada nos termos do disposto no artigo 431º, al. a) do CPP. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo 632/22.6PAPVZ.P1 Comarca do Porto Juízo Central de… – Juiz 1 Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto: I - RELATÓRIO I.1 Por acórdão proferido em 10.01.2025 foi decidido: “- Absolve-se o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica, do art. 152.°, n.°1, al. a), do Código Penal, com a agravação do n.° 2, al. a) e ainda 4, 5 e 6, do mesmo normativo. - Condena-se o arguido AA pela prática de um crime de violação p. e p. pelo art° 164°, n°2, a), do C.P. na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão. Nos termos do disposto no art° 50°, n°1 e n°5, do C.P. suspende-se a execução da pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão por 3 (três) anos e 10 (dez) meses. -Condena-se o arguido AA a pagar à ofendida BB a quantia de € 7.500 (sete mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por ela sofridos (n° 2 do art. 16° do Estatuto da Vítima, anexo à Lei 130/15 de 4/9 e artigo 82.°-A do Código de Processo Penal).” * I.2. O Ministério Público interpôs recurso do acórdão, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (que se transcrevem integralmente): “1. O arguido AA foi absolvido do crime de violência de doméstica do artigo 152.0 n.° 1 al. a), com a agravação do n.° 2 al a) e n.° 4 todos do Código Penal 2. Houve por parte do Tribunal recorrido, na parte que diz respeito ao ilícito de violência doméstica, uma hipervalorização do depoimento do arguido e desconsideração antagónica com a desvalorização do depoimento da ofendida e dos seus progenitores, que, no entanto foram considerados credíveis, isentos e sem ressentimentos para com o arguido e que foram essenciais para condenar o arguido no crime de violação. 3. Mas já não o foram para os factos consubstanciadores do crime de violência doméstica. 4. O Tribunal recorrido afirma que a ofendida bem como os progenitores desta tiveram um depoimento sincero e isento 5. Mas apenas considerou tal isenção e sinceridade nos factos respeitantes à violação e por motivos que, salvo enorme e devido respeito, não alcançamos, 6. Uma vez que a postura isenta e credível da ofendida não mudou entre os dois acontecimento factuais nem o depoimento credível e isento dos seus progenitores também não se alterou. 7. Esta dicotomia valorativa da prova produzida (dos depoimento da ofendida e dos seus progenitores) é insondável e incompreensível. 8. A valoração dicotómica da mesma prova para dois acontecimentos factuais distintos para duas decisão de apreciação de prova perfeitamente antagónica, resulta quanto a nós com o devido respeito por opinião contrária, numa clara contradição insanável da fundamentação e um erro notório na apreciação da prova do artigo 410.0 n.° 2 als. b) e c) do Código de Processo Penal. 9. Assim, e numa valoração escorreita, consistente e coerente, deve ser dado como provados os factos n.° 7, 8, 9 e 10 e 16 do libelo acusatório, a acrescer aos factos já dados como provados pelo Tribunal recorrido e consequentemente…”. Pugna pela condenação do arguido AA pela prática, em co-autoria, do crime de violência doméstica do artigo 152.° n.° 1 al. a)do Código Penal, com a agravação do n.° 2, al. a), 4, 5 e 6, do mesmo diploma legal. * I.3. O arguido AA, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua improcedência e manutenção da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição integral): “A. O Recorrente insurge-se contra a decisão de absolvição do arguido crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea a), com a agravação da alínea a), n.° 2 e n.° 4, do Código Penal, defendendo que o Tribunal a quo fez uma qualquer valoração dicotômica da mesma prova. B. Ao contrário do que pugna o Recorrente, o Tribunal a quo efetuou uma apreciação criteriosa de toda a prova produzida em audiência de julgamento, não se cingindo unicamente às declarações prestadas pela ofendida, antes apreciando conjuntamente a prova testemunhal e documental produzida. C. No que concerne aos factos do crime de violação, que foram dados como provados, pese embora o Tribunal a quo tenha valorado o depoimento da ofendida para tais factos, a convicção não assentou exclusivamente no depoimento da ofendida, porquanto, conforme decorre da motivação da decisão recorrida, a convicção positiva do Tribunal para esses factos foi firmada com a apreciação conjunta do depoimento da ofendida com a prova testemunhal (depoimentos dos pais) e prova documental (relatório pericial e fotogramas. D. O Recorrente não pode pretender que o Tribunal dê como provado tudo o que a ofendida relatou no seu depoimento, sem qualquer outro elemento de prova que corrobore a sua versão dos factos. E. Aliás, note-se que, em relação aos factos descritos no ponto 7 a 10 da acusação, que foram dados como não provados, existem dissonâncias entre o depoimento da ofendida com o depoimento da testemunha CC. Gravação do dia 02/12/2024, das 16:20 às 16:32 (CC) Minutos: 6:22 a 6:28 7:02 a 7:40 7:54 a 8:19 8:40 a 8:48 8:54 a 9:41 Gravação do dia 02/12/2024, das 14:51 às 16:14 (ofendida BB) Minutos: 15:22 a 16:42 17:29 a 17:45 18:40 a 18:56 21:11 a 21:15 01:00:44 a 01:01:59 01:02:25 a 01:02:55 01:04:14 a 01:04:29 01:04:51 a 01:04:58 F. No que tange aos factos descritos no ponto 16 do libelo acusatória, importar salientar que as testemunhas CC e DD não presenciaram nenhum dos factos, nem a versão da ofendida foi corroborada por qualquer outro elemento de prova. G. De assinalar que a testemunha CC não referiu que viu a ofendida com marcas, nem tampouco fez qualquer referência ao facto de a filha lhe ter dito que tinha sido agredida pelo arguido, nem a testemunha DD declarou que viu a ofendida com nódoas negras. Gravação do dia 02/12/2024, das 16:20 às 16:32 Minuto: 4:58 a 5:00 Gravação do dia 16/12/2024, das 09:50 às 10:24 Minuto: 06:02 a 06:08 Por conseguinte, impunha-se a aplicação do princípio in dubio pro reo, dando como não provados os factos descritos nos pontos 7, 8, 9, 10 e 16 do libelo acusatório. I. Perante a resposta negativa aos factos descritos na acusação pública, impunha-se a absolvição do arguido quanto ao crime de violência doméstica, pois, nem toda a ofensa à integridade física ou injúria, ocorrida no seio de uma relação integrará, necessária e forçosamente, um crime de violência doméstica. J. Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/10/2019, processo n.° 39/16.4TRGMR.S2 "Em primeiro lugar, haverá que ponderar se é lesado o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica, e, em segundo lugar, se a conduta integra a noção de maus tratos. Os maus tratos, como se espelha na jurisprudência do STJ e da doutrina, hão-de assumir-se, ou traduzir-se, em lesões graves, intoleráveis, brutais, pesadas.". K. Destarte, devem improceder, in totum, as alegações do recurso interposto pelo Recorrente.” * I.4. O Ministério Publico desta Relação consignou ter visto o recurso. * I.5. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência. **** II- FUNDAMENTAÇÃO II.1. Objecto do recurso Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt). Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente as questões a apreciar e decidir são as seguintes: 1ª Saber se a decisão recorrida padece dos vícios decisórios previstos no artigo 410º, n.º 2, als. b) e c) do Código de Processo Penal (doravante CPP); 2ª Saber se o arguido deve ser condenado como autor de um crime de violência doméstica previsto no artigo 152º n.º 1, al. a) do Código Penal (doravante CP), com a agravação dos n.ºs 2, al. a), 4, 5 e 6 do CP. *** II.2. Acórdão recorrido (que se transcreve parcialmente nas partes relevantes, mantendo a numeração dos factos provados que não está devidamente ordenada) “II- Fundamentação (não se pronunciando o tribunal sobre a factualidade conclusiva constante da acusação "controle exagerado"- ponto 3; jogo sádico- ponto 5; ou genérica " relações sexuais, ponto 25): 1- Feito o julgamento e com relevância para a decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade: 1. O arguido AA iniciou uma relação amorosa com a ofendida BB em data não concretamente apurada do ano de 2016, a qual teve inúmeras interrupções e terminou definitivamente em Setembro de 2022. 2. Dessa união nasceu EE a ../../2017. 3. Durante o relacionamento o arguido chegou a pegar no telemóvel da ofendida sem o consentimento desta e aceder ao seu conteúdo, o que sucedeu em número de vezes não apurado, o que a ofendida chegou também a fazer pelo menos por uma vez. 5. Durante o relacionamento, também em número de vezes que não foi possível apurar e no interior da residência do casal, o arguido quando tinha alguma garrafa perto, fazia uma espécie de jogo: Lançava a garrafa ao ar e se ela caísse de pé significava que a vítima dizia a verdade se ela tombasse significava que mentia isto, no que toca à existência de um relacionamento extra conjugal. 6. Em datas não concretamente apuradas, mas durante o período de namoro, arguido e vítima frequentavam um apartamento, propriedade da mãe daquele, sito na .... 7. Em data não concretamente apurada do ano de 2017, encontrando- se a vítima grávida, no interior do seu quarto, na casa onde vivia com os seus pais, na Rua ..., ... ... ..., o arguido iniciou uma discussão porque teimava que aquela mantinha relações sexuais com outros homens e não o desejava e nesse contexto o arguido apanhou a roupa interior da vítima e cheirou-a com o objetivo de perceber se esta havia estado com outro homem. 8. Nesse contexto de discussão a ofendida tirou ao arguido os óculos que este tinha colocados e partiu-os. 9. Em data não concretamente apurada do ano de 2018 a ofendida BB deslocou-se com a filha a ..., ..., regressando depois para vir buscar o arguido, após contacto telefónico entre ambos. 10. Já na ..., enquanto a vítima preparava o jantar, o arguido disse, referindo-se à roupa interior daquela, dizendo que parecia: "Uma brasileira da beira de estrada." 11. Em data não concretamente apurada, do mês de Setembro de 2022, depois de terem terminado a relação há cerca de uma semana, e pretendendo reverter essa situação, o arguido ligou à ofendida, dizendo que necessitava de ajuda, por se estar a sentir doente. 12. Assim, a ofendida deslocou-se à residência do arguido, sita na Rua ..., ..., na .... 13. Nessas circunstâncias de tempo modo e lugar o arguido abriu a porta da residência, envergando apenas uns boxers. Logo levou a vítima, contra a sua vontade, para o quarto. Seguidamente o arguido empurrou a vítima para a cama, rasgou-lhe o vestido, virou-a de barriga para baixo, introduziu o pénis na vagina daquela, enquanto lhe segurava os braços, mantendo dessa forma relações de cópula. 14. A vítima gritou para que o arguido parasse, ao que o arguido não obedeceu. 15. Quando saiu de cima da ofendida, esta aproveitou para fugir do local. 16. A conduta do arguido causou na ofendida: No pescoço: contractura cervical a nível paravertebral e dos trapézios, com movimentos preservados. Abdómen: doloroso à palpação dos quadrantes inferiores e do quadrante superior direito, sem sinais de irritação peritoneal. No Membro superior esquerdo: equimose castanha ténue, na face anterior do ombro, com maior diâmetro 3 cm. No membro inferior direito: conjunto de 3 equimoses ovaladas, cinzentas, com sensivelmente 1,5 cm de maior diâmetro, localizadas na face interna da perna, no terço inferior, e duas equimoses pericentimétricas localizadas junto ao bordo inferomedial da rótula. No membro inferior esquerdo: equimose cinzenta pericentimétrica na face interna do terço médio da coxa; equimose cinzenta pericentimétrica na face interna do terço médio da perna. Tais lesões determinaram oito dias para cura, sem afetação da capacidade de trabalho. 25. Ao actuar da forma descrita em 13. e segs. o arguido quis através do seu ascendente físico e do uso de violência, obrigar a vítima a manter consigo relações de cópula, o quis e conseguiu, com o propósito concretizado de assim satisfazer os seus impulsos sexuais. 26. Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. 27. O arguido tem antecedentes criminais, tendo sido julgado e condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 2017 em pena de multa, que veio a ser extinta. 28. Órfão de pai desde os nove anos, no período de tempo relativo aos factos, AA residia junto da sua progenitora, FF, no endereço indicado nos autos, sendo atualmente idêntica a sua situação familiar e habitacional. Por motivos de trabalho, entre finais de 2018 e meados de 2021, durante cerca de três anos, AA coabitou junto da sua irmã, de nível etário superior ao seu e com residência na área de Lisboa. Nestas circunstâncias deslocava-se à ..., nos fins-de-semana, com uma periodicidade quinzenal. 29. Arguido e progenitora habitam um apartamento de tipologia 3 que faz parte do legado da família materna. As despesas mensais relativas ao alojamento totalizam agora cerca de 100 euros e referem-se ao fornecimento de energia elétrica, gás, água e saneamento. Estas despesas são da responsabilidade da progenitora. 30. A progenitora, que tem agora 63 anos, permanece inativa, mas dispõe de rendimentos próprios, que totalizam cerca de 900 euros/ mês e que são provenientes do arrendamento de imóveis herdados. 31. No período de tempo relativo aos factos, AA estava integrado no mercado de trabalho, desde os 17 anos. Até cerca dos 21 anos, laborou no setor da restauração, com funções de serviço de mesa. Seguiu-se o exercício de funções de operador de armazém, que mantém até agora, com registo de alguma mobilidade laboral. Assim, em 2017, e durante cerca de um ano, trabalhou numa empresa de distribuição de alimentos refrigerados. Entre finais de 2018 e meados de 2021, AA trabalhou nos armazéns da empresa de distribuição A..., situada em Sintra. Mantendo funções de operador de armazém, integrou depois, até abril-2024, uma empresa de produção de geradores e purificadores de gases, situada na ... - B..., SA. 32. Neste momento, AA continua integrado no mercado de trabalho e a exercer funções de operador de armazém, tendo agora como enquadramento uma empresa de logística de produtos alimentares de temperatura controlada, situada em ..., ... - C..., onde foi admitido em agosto-2024. AA trabalha no turno da noite, cumprindo um horário diário das 24h às 09h. O seu vencimento base situa- se na ordem dos 820 euros/mês, atingindo habitualmente valores na ordem dos 1000 euros, porque acrescido de horas extraordinárias, suplemento noturno e subsídio de frio. 33. Sobre as despesas regulares com maior impacto no orçamento pessoal, menciona a pensão de alimentos relativa à descendente, com o valor mensal de 200 euros e as despesas relativas às telecomunicações e à amortização de um crédito pessoal, que totalizam cerca de 150 euros. 34. AA tinha cerca de 17 anos quando interrompeu a escolarização. Frequentava então o último de três anos de um curso de educação e formação profissional em padaria e pastelaria, que lhe teria permitido obter equivalência ao 12° ano de escolaridade e que não concluiu. Nestas circunstâncias, as suas habilitações não ultrapassam o 9° ano, correspondendo à escolaridade obrigatória, à época. 35. No período de tempo relativo aos factos, AA mantinha consumos regulares de haxixe, prática associada aos momentos de lazer e descontração pessoal, que iniciou sensivelmente aos 16/ 17 anos de idade e que esteve na origem do seu primeiro confronto com o sistema de administração da justiça penal. As suas experiências psicoativas estão circunscritas às drogas canabinóides, não tendo evoluído para outras substâncias estupefacientes. 36. No quotidiano de AA são preponderantes as exigências de trabalho e os compromissos familiares, que incluem os momentos de visita com a descendente, que, de acordo com a regulação do exercício das responsabilidades parentais, decorre habitualmente aos domingos. Dedica grande parte dos seus tempos livres à relação com a namorada, que persiste há cerca de 18 meses. De nível etário superior ao seu, a namorada tem agora 39 anos e tem dois descendentes, de menoridade. Sempre que possível, dedica-se também à prática de surf. 37. AA não identifica alterações significativas no seu quotidiano e condições de inserção sociofamiliar, decorrentes da situação jurídico-penal. Destaca o impacto psicológico, nomeadamente a inquietação e preocupação pessoal vivenciadas. Manifesta sentimentos de pudor e indignação face ao seu estatuto de arguido nos presentes autos, aguardando um desfecho favorável. 38. AA continua a beneficiar da aceitação, confiança e suporte do seu contexto sociofamiliar. 39. Após os factos supra id. em 11. e ss arguido e ofendida terminaram definitivamente o relacionamento. 40. Após terem terminado o relacionamento a ofendida enviou várias mensagens de texto e de voz para o arguido e em mensagens áudio a ofendida referiu "Eu ainda confio em ti" e "Se precisares de ajuda estou cá para te ajudar", tendo ainda em mensagem escrita pedido ao arguido para ir a sua casa. 41. A ofendida, que trabalha como auxiliar de acção médica, padece de transtorno de personalidade borderline, já foi acompanhada em psicologia e sofreu intoxicação medicamentosa e episódios de auto mutilação. 2- Com relevância para a decisão da causa, não se provou que: 1. Que a relação amorosa entre o arguido e a ofendida BB iniciou-se em data não apurada do ano de 2019, tendo iniciado uma convivência como se de marido e mulher se tratassem, partilhando leito, mesa e habitação. 2. Que o arguido sempre exerceu controle sobre a vítima relativamente ao que vestia e com quem se comunicava, o que levou ao isolamento social desta. 3. Que quando se encontravam, mesmo antes de a cumprimentar o arguido pegava no telemóvel da vítima e vasculhava conversas e interações que imaginava que aquela mantinha. 4. Que nas circunstâncias de tempo e local supra id. em 6. quando discutiam, o arguido trancava a vítima por dentro, obrigando-a a ficar naquele local. 5. Que quando sucederam os factos supra id. em 7. e 8. a ofendida estava grávida de 6 meses. 6. Que nessa altura, o arguido chegou a casa e tocou à campainha. Quando a vítima se dirigiu para abrir a porta, viu o arguido a correr vindo das traseiras. 7. Que quando o questionou o arguido referiu que foi verificar se não estava outra pessoa a sair, pela porta das traseiras. 8. Que o arguido empurrou a vítima e desferiu-lhe uma bofetada na face, o que lhe causou dor. 9. Que entretanto, os pais da vítima vieram ao encontro de ambos; o pai da vítima expulsou o arguido de casa e, na presença deste, o arguido desferiu um outro estalo na face daquela, o que lhe causou novamente dor. 10. Que os factos supra identificados ocorridos em 2018 tiveram lugar em ..., .... 11. Que foi o arguido que ligou à ofendida quando esta já estava em .... 12. Que a ofendida foi então dormir com a filha, no quarto desta e como a filha acordou, a meio da noite, vítima levantou-se para preparar algo para aquela comer. Nessa altura, o arguido levantou-se dirigiu-se à vítima, enquanto esta tinha a filha nos braços e empurrou-a contra a parede. De seguida, o arguido desferiu um murro na face da vítima, o que lhe causou dor. A vítima viu-se obrigada a fugir para o exterior. Quando a arguido a procurou, a vítima conseguiu voltar para casa, deixando, então, o arguido no exterior. Aí, o arguido exigiu que a vítima abrisse a porta, apelidando-a de "Badalhoca" e de "Puta." 13. Que nas circunstâncias supra id. em 11. da factualidade provada o arguido disse à ofendida que necessitava de ajuda para se deslocar às urgências. 14. Que nas circunstâncias de tempo e local supra id. em 13. da factualidade provada o arguido arrancou a roupa interior da ofendida. 15. Que o arguido quis agir da forma descrita, ofendendo o bom nome e o físico da sua companheira, bem sabendo que desse modo lhe provocava profundo receio, humilhação e dor, com indiferença à relação que mantinham, agindo com o propósito de subjugar a sua companheira à sua vontade, bem sabendo que a sua conduta lhe provocava danos na sua saúde física e psíquica, o que quis e conseguiu. 16. Que nas circunstâncias de tempo e local supra id. em 7. e 8. da factualidade provada durante a discussão verbal, a ofendida desferiu no arguido cerca de 20 bofetadas e o arguido apenas se tentou afastar da vítima. 17. Que nas circunstâncias de tempo e local supra id. em 9. e 10. da factualidade provada a ofendida empurrou o arguido. 18. Que nas circunstâncias de tempo e local supra id. em 11. e ss da factualidade provada foi a ofendida quem teve a iniciativa de tirar a roupa, mostrando desejo em ter relações sexuais com o arguido, sendo a relação sexual plenamente consentida por esta. 19. Que quando a ofendida se queixou de que estava a sentir uma dor o arguido parou de imediato, a ofendida vestiu-se conversaram e só depois é que saiu. 20. Que durante o período em que mantiveram a relação a ofendida e o arguido não costumavam sair juntos nem conviver com os amigos porque a ofendida tinha medo das pessoas, não gostava de multidões e achava que toda a gente falava dela. 21. Que a ofendida já esteve internada por intoxicação medicamentosa e automutilação. Motivação: A convicção do tribunal sobre a factualidade provada e não provada formou-se na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com as regras de experiência comum e do normal acontecer, atendendo-se à prova documental, pericial e pessoal. Assim, o tribunal atendeu a: Auto de notícia de fls. 35 e ss; Certidões de fls. 22 e ss. e de fls. 103; Reportagem fotográfica de fls. 62 e ss Relatório de exame de avaliação de dano corporal, a fls. 13 e ss. - às declarações do arguido, o qual confrontado com a acusação, começou por referir que a relação começou em 2016. Nunca moraram juntos. Dormiu algumas vezes em casa da ofendida, enquanto namoravam. Desse relacionamento nasceu uma filha (ponto 2 da acusação). Negando a factualidade constante do ponto 3 do libelo acusatório contrapôs que a ofendida é que tinha muitos problemas em sair à rua, frequentar cafés, tinha a "mania da perseguição". Isolava-se socialmente, sofria do síndrome borderline. No que se refere ao controle de telemóvel (ponto 4) afirmou que ambos tiveram atitudes toxicas, pode ter acontecido uma vez ou outra. De parte a parte. Por ciúmes. Já quanto ao jogo que nominou de "bottle flip" afirmou ser uma brincadeira. A BB também chegou a fazer. Admitiu ser imaturidade de ambos (ele tinha 19 anos, ela 20). Negou trancar a ofendida dentro do apartamento (ponto 6). Já aconteceu foi o contrário, na casa dela. Em 2022 ela tentou uma reaproximação e trancou-o lá. Confrontado com a factualidade id. em 7. referiu que tinha dormido em casa da namorada. Discutiram. Ela deu-lhe algumas bofetadas. Os óculos caíram, ela apanhou-os e partiu-os com a mão. Os pais assistiram. Não lhe deu uma bofetada; no máximo empurrou-a (ela não caiu). No final da discussão abandonou a casa, não foi expulso (como se refere em 11.). Sobre a situação ocorrida nos ... referiu que ela ligou-lhe, quando já estava lá. A insistir para ele ir. Veio buscá-lo. Disse a expressão "brasileira na berma"; foi uma piada infeliz. Ela acordou de manhã e começou aos berros "não sei o que estás aqui a fazer ". Ele queria sair e ela não o deixava sair. Conseguiu sair, mas esqueceu-se do telemóvel. Ficou no exterior à espera dos pais dela. Ele não a empurrou, agrediu etc. Produzida a prova, reafirmou que a relação foi tóxica de parte a parte e que as agressões não aconteceram. Sobre a factualidade imputada em 17. e ss da acusação referiu que tinham terminado há uma semana. Ligou à ofendida a pedir para ir ter com ele, disse que estava a sentir-se mal (o que não era verdade) e ela foi. Conversaram. Tiveram relações sexuais consentidas. Durante a relação ela sentiu dor e terminaram ali. Não tinha estas lesões. Não reataram a relação amorosa. A relação amorosa terminou aqui. Achava que ela era bipolar. Ela tinha bastantes conflitos com os pais. Depois da situação dos óculos continuou a entrar em casa dos pais. - ao depoimento de BB, que relatou ao tribunal que começou a namorar com o arguido aos 19 anos. Foi uma relação doentia. Antes de conhecer o arguido não conseguia entrar em zonas públicas, ficava nervosa. Encontrou protecção e apoio no arguido. Ele estava sempre com ela. Ia comprar-lhe tabaco, agarrava-lhe na mão. Depois começou a ser acompanhada por psicologia e voltou ao normal. Acha que ele não lidou bem com ela "voltar à vida normal". Aconteceu 1 mês ou 2 depois. Pegava no telemóvel dela quando ela estava a dormir. Usava uma garrafa de água cheia, fazia um jogo. Com perguntas. Todos os dias. Levava a sério e era massacre psicológico. Quando ela ia para a faculdade mandava sms a dizer que se ela não voltasse para trás que ia acabar com ela ou suicidar-se. Controlava os movimentos, a roupa (tinha que andar de sweats e calças). Já não tem o telemóvel com essas sms. Quando chegava no metro à ... e ele agarrava-a e não a deixava ir embora. Antes da filha ter nascido. A gravidez foi planeada por causa da mãe estar muito doente. Por muito tóxica que a relação fosse decidiu ter um filho e o arguido concordou. Na gravidez ele frequentava a casa dela com mais regularidade. Tentava saber se estava alguém dentro de casa, dava a volta à casa para saber se tinha alguém. Se ela demorasse dizia que ela estava com alguém. Ela não sentia desejo sexual. Ele dizia que ela o traia. Chegou a cheirar as cuecas dela. Aqui não houve bofetada. Ele partiu o espelho. Ela arrancou-lhe os óculos da cara e esmagou-os. Depois quando ela ia a descer as escadas dentro da casa ele ia a sair e chamou-lhe de puta, vadia. Ela pegou num objecto e insinuou que ia atirar e ele deu-lhe uma chapada, os pais viram. Em 2017, estava grávida. Foi uma só bofetada. O pai pediu-lhe para ir embora e ele foi. A relação acabou quando ela tinha 6 meses de gravidez. Quando já tinha a filha decidiu ir um fim de semana para ir com a filha para ... para casa de uns tios. Ele ligou a dizer que tinha saudades dela. Pediu-lhe que ela o fosse buscar e ela veio para trás buscá-lo. Ele tinha estado a consumir estupefacientes. E foi com ela para .... Lá foi fazer o jantar. A determinada altura agachou-se, viam-se as cuecas e o arguido disse-lhe que parecia a prostituta, uma brasileira de beira de estrada. Ficou perturbadíssima. Ela ficou com a filha num quarto e ele noutro. Não acordaram a meio da noite. No dia seguinte ela ligou ao psicólogo. A filha acordou. Ela disse para ele se levantar e dar o leite à filha. Ele encostou-a contra a parede, bateu-lhe com a cabeça contra a parede, ferrou-lhe, ia-lhe dar um soco e acertou na filha. A filha estava no colo dela. Deu-lhe uma chapada e agarrou- a pelo cabelo, correu para tentar sair. Pegou nos óculos ou no líquido das lentes (ou nos dois) e atirou-os para o lado de fora. Trancou a porta e ele ficou lá fora. Chamou-lhe "puta", "vadia". Ligou aos pais. Os pais foram lá. Ele ainda lá estava da parte de fora. Quando aconteceu estes factos não tinham reatado a relação; era para ver como corria. Fez pela filha. Depois quando a filha tinha 5 anos estava na casa dos pais e recebeu uma sms do arguido a pedir para ela ligar. Ela ligou. Pediu para ir ter com ela a casa da mãe dele. Estava a sentir-se mal. Dias antes tinham estado juntos e feito sexo. Mas não havia relação amorosa. Houve no entretanto uma discussão. Ele abriu-lhe a porta de boxers. Ela disse que não ia entrar. Amarrou-a pelos braços e meteu-a dentro de casa e foi empurrando-a até ao quarto. Ela estava de vestido. Rasgou o vestido e atirou-a para a cama. Mas não retirou o vestido. Virou-a de barriga para baixo. Penetrou-a. ela disse que ele a estava a magoar. Não se recorda se mantinha a roupa interior. Foi agarrada pelos cabelos, pernas e braços. Disse para ele parar. Magoou-a "no útero" por 2 vezes, penetrou-a. Disse que não queria, mesmo antes de a penetrar. Penetrou-a 2 vezes. Saiu de cima dela e começou a masturbar-se e foi para a casa de banho "acabar o que tinha começado". Ela agarrou nas coisas dela e fugiu. A mãe dele tinha chegado, passou por ela na sala. Resguardou-se nas escadas do prédio e ele passou por ela (ele iria atrás dela). Depois agarrou-a e disse que queria fazer uma vida com ela, para se acalmar. Pediu-lhe desculpa. Conseguiu sair do local. Passado um dia ou 2 contou à polícia. Já tinha contado aos pais. Ter uma perturbação de personalidade, é borderline. O que lhe causa ansiedade, medo do abandono. Ela não controlava o telemóvel do arguido. Uma altura ele emprestou o telemóvel à filha, discutiu com ela, esqueceu-se do tel. e ela viu o que tinha no telem. Quando ela a insultou respondeu-lhe aos insultos. Ela não lhe batia. Em ... a filha ficou com marcas. Disse ao médico que não se sentia à vontade para fazer o exame físico e ele disse que não era preciso por já terem passados vários dias. É verdade que já se auto mutilou. Tomou excesso de medicação e já consumiu drogas. - ao depoimento da testemunha CC, mãe da ofendida que referiu que eles discutiam muito. Não era uma relação saudável. Começavam e acabavam. Foi uma gravidez muito agitada. Ele provocava-a. não assistiu presencialmente mas a filha punha o telemóvel em alta voz e ela ouvia. Ouviu chamar puta, muitas vezes. Sobre a situação ocorrida em ... referiu que a filha foi com a neta e depois foi buscar o arguido. Os pais não sabiam que ele estava lá. Pediu para a ir buscar. Contou que baixou-se para ir buscar qualquer coisa e o arguido disse "pareces uma mulher da via norte". Quando chegaram lá o AA já não estaria, não recorda. Terá havido sapatada de parte a parte. A neta terá apanhado também. A partir dali não podia ver homens com barba. O padrinho até cortou a barba. Depois desse episódio recorda outro quando a menina teria 2 anos. O arguido dormiu lá. Começaram a discutir. Ele foi cheirar as cuecas da filha. Partiu um espelho. Estava fora de si. Ela foi ao quarto e mandou-o embora. Não viu agressões. O marido não entrou no quarto. Noutra situação a filha disse-lhes que o arguido lhe pediu para a levar ao hospital porque estava doente. Eles disseram-lhe para ir e ela foi. Quando regressou disse que o arguido abriu a porta e arrastou-a e empurrou para cima da cama e a partir daí penetrou-a contra a vontade dela. Não se recorda da roupa dela. Reparou que tinha braço pisado e a perna. Ficou em choque. Não queria que a filha expusesse a situação. Estava chorosa, chocada. Não queria falar. Mostrou as marcas; ainda estavam vermelhas. Ficou muito mal. Nunca mais foi a mesma. Passou a ir ao psiquiatra. Sabe que depois continuaram a contactar-se por telefone e sms. - ao depoimento da testemunha DD, reformado, pai da ofendida, que referiu ao tribunal que conhece o arguido de ter sido companheiro da filha. Começou por referir que "pouco assistiu ou quase nada". Sabia que de vez em quando havia mau relacionamento entre eles; ouvia a filha queixar-se à esposa. Nunca ouviu insultos entre eles. Ferimentos chegou a ver na filha, nos braços, nódoas negras (no início da relação). Ela foi questionada pela mãe. Recorda-se de a filha ir passar um fim de semana a ... e entrou em contacto a dizer que o arguido estava aos murros à porta, a trata-la de puta. Ele e a esposa decidiram ir lá. Lá chegados falou com o arguido que disse que um amigo o iria buscar. A filha estava desorientada. Não reparou em nódoas negras na filha. A última situação foi quando a filha disse que ia ter com o arguido porque ele estava doente e estava sozinho. A filha foi lá ter com ele. Depois quando a filha regressou a casa ele estava num aposento ao lado e ouviu a filha a choramingar e contar à mãe que ele a forçou a entrar e que sem ela querer que a violou. Ele ficou desorientado, foi junto delas e disse que isso era caso de polícia. Não viu se tinha a roupa rasgada. Ele é muito nervoso e a filha falava mais com a mãe. A filha foi diagnosticada com borderline ou dupla personalidade; a partir daí passou a tomar medicação. Sobre a personalidade da filha referiu que é uma pessoa calma se não a provocarem. Ás vezes ouvia algum burburinho. Havia confusões. Não se recorda concretamente de nenhuma situação em casa dele. Uma vez ele ouviu o arguido chamar-lhe "chavala" ao telefone, não gostou e retirou-se. Terá sido há menos de 1 ano. Actualmente o arguido vai a casa dele buscar a neta e cumprimenta-o. A filha era normalmente sociável, antes de começar a andar com o arguido. A filha era ciumenta, gostava de ser paparicada. Sabe que uma vez ouviu a filha a dizer à mãe que ele até lhe cheirava as cuecas. Não sabe se controlavam o telemóvel um do outro. Sendo esta a prova produzida dir-se-á desde logo que o que resultou ostensivamente e de forma cabal da prova pessoal produzida foi a ocorrência uma relação de namoro disfuncional (que a ofendida qualificou como doente, tóxica), que se iniciou em 2016 (e não em 2019, como se refere na acusação) e se prolongou ao longo de vários anos, sem coabitação (para além de ocasional- e assim sem partilha de leito, mesa e habitação, como reza a acusação) e com interrupções (as quais decorreram sem o normal/expectável afastamento face ao tipo de relação), relação de namoro que cessou definitivamente em Setembro de 2022, após os factos apurados (e em consequência dos mesmos). Na caracterização dessa relação ao longo do tempo foram consideradas as declarações do arguido, na parte em que admitiu alguns dos factos, o depoimento sincero da ofendida (admitindo mesmo factos que lhe eram desfavoráveis, como ter partido os óculos do arguido) e bem assim os depoimentos dos seus pais, todos revelando ausência de ressentimento (o que foi particularmente notório no caso do pai da ofendida) que mercê da relação familiar e de proximidade vivencial com a ofendida mostraram conhecimento da factualidade sobre que depuseram, contribuindo para a formação da convicção positiva do tribunal, nomeadamente quanto ao episódio ocorrido em 2017 na residência da família, em ..., por se terem deslocado ao local, e por último, quanto ao ocorrido em casa do arguido em Setembro de 2022 que não presenciaram mas ouviram contar à filha, logo após os factos, credibilizando o seu relato (pormenorizado e emotivo), tendo a mãe daofendida visualizado as lesões que esta apresentava, as quais são visíveis nos fotogramas juntos a fls. 62 a 65 e das quais dá conta ainda o relatório pericial de fls. 13 e ss, sendo as mesmas compatíveis com o relato da ofendida (agressão física; imobilização e afastamento forçado dos membros inferiores- cfr. conclusões do relatório pericial), assim se sobrepondo a versão da ofendida à do arguido, que admitiu a ocorrência da relação sexual, mas que referiu ter sido consensual, o que nos termos expostos se apurou não ter sucedido, sendo que as regras de experiência comum e do normal acontecer reforçam a convicção do tribunal, porquanto o arguido queria "reatar" a "intermitente relação" e foi com esse acontecimento que a relação amorosa terminou definitivamente (e isso sem prejuízo das mensagens enviadas posteriormente pela ofendida ao arguido, no contexto da relação que mantêm por causa da filha, ainda que a ofendida aborde outros assuntos e peça ajuda ao arguido e que corroboram o acima referido quanto a ausência de ressentimento e desejo de vingança). Tomou-se em consideração relatório social quanto à factualidade apurada no que se refere à situação pessoal, familiar, profissional e social do arguido e bem assim o certificado de registo criminal junto aos autos. A factualidade não provada decorreu da ausência de prova segura e credível, para além de qualquer dúvida razoável da sua verificação e com a certeza e segurança necessárias em sede de julgamento para uma condenação, considerando a ausência de corroboração probatória do depoimento da ofendida (mesmo em relação a factos dos quais seria expectável que os pais tivessem conhecimento ou até de acordo com a acusação teriam tido conhecimento directo), a negação do arguido e o contexto de personalidade da ofendida e de relação disfuncional apurado, de onde em obediência ao princípio do in dubio pro reo o tribunal respondeu negativamente à mesma.” *** II.3. Apreciação do recurso II.3.1. Dos vícios decisórios – Artigo 410º/2 do CPP §1. O recorrente invoca expressamente a contradição insanável da fundamentação e o erro notório na apreciação da prova, indicando como norma violada o artigo 410º, n.º 2, als. b) e c) do CPP. ** §2. Nos termos do artigo 410º, n.º 2 do CPP o recurso interposto sobre a matéria de facto de uma sentença proferida em processo crime pode ter um de três fundamentos: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova.Em qualquer um dos apontados fundamentos, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.), tratando-se assim de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser autossuficiente. Sendo do conhecimento oficioso (cfr. acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95), percorrido o acórdão recorrido teremos que concluir que o mesmo não evidencia, por si e no seu texto, o vício previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP. ** §3. Comecemos por analisar o vício decisório invocado pelo recorrente previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do CPP. Conforme supra explanado este vício tem que necessariamente decorrer do texto da decisão recorrida e traduz-se numa “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entes este e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão” (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 63), podendo configurar-se de três modos distintos: - “(…) contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; - “(…) contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; - “(…) contradição entre os factos quando os factos provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente” (Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 64). “Por contradição, entende-se o facto de se afirmar ou negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se por proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na qualidade ou na quantidade. Para os fins do preceito (…) constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada como o recurso à decisão recorrida no seu todo, por si ou com o auxílio das regras da experiência. Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados” (Leal Henriques e Simas Santos, CPP Anotado, 2ª ed., pág. 739). No caso vertente, o recorrente invocou a contradição insanável da fundamentação alegando não ser compreensível a valoração dicotómica da mesma prova (depoimentos da ofendida e dos seus progenitores) para dois acontecimentos factuais distintos. Tendo presente o que supra se escreveu sobre a natureza do vício da contradição insanável previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do CPP constata-se que aquilo que o recorrente faz é afirmar a sua discordância sobre apreciação da prova efectuada pelo tribunal recorrido, divergência essa que será conhecida por este Tribunal por consusbtanciar o vício a que se reporta a al. c) do n.º 2, do artigo 410º do CPP, expressamente invocado pelo recorrente e cuja apreciação se imporia por ser do conhecimento oficioso. Sempre se dirá que lido o acórdão recorrido não vislumbramos qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Improcede, nesta parte, o recurso. ** §4. Passemos agora a analisar o vício decisório invocado pelo recorrente previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c) do CPP. * §4.1. Conforme já referimos, este vício tem que necessariamente decorrer do texto da decisão recorrida e verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis. Esse vicio do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 341). Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pág. 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício (a propósito deste vício, veja-se, entre outros, o acórdão do TRP de 15.11.2018 e o acórdão do STJ de 18.05.2011, ambos acessíveis in www.dgsi.pt). Quanto a este vício – erro notório na apreciação da prova – importa ainda referir que o tribunal decide, salvo no caso de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção. Na verdade, dispõe o artigo 127º do C.P.P. que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este principio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova (salvo excepções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal. O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada. Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável. A este propósito refere Germano Marques da Silva que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e critica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”. (in Curso de Processo Penal, Verbo, Vol. II, pág. 111). Tal liberdade está intimamente ligada quer ao dever de tal apreciação assentar em critérios objectivos de motivação, quer ao dever de perseguir a verdade material. Por isso, quando se refere que a valoração da prova é segundo a livre convicção da entidade competente (in casu, o juiz), a convicção há de ser pessoal, objectivável e motivável, logo, vinculada e, assim, capaz de conseguir a adesão razoável da comunidade pública. Donde resulta que tal existirá quando e só quando o Tribunal se tenha convencido, com base em regras técnicas e de experiência, da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (cf. Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, págs. 198-207). Do exposto resulta que o juiz deve apreciar a prova testemunhal segundo os critérios de valoração racional e lógica, tendo em conta as regras normais de experiência, julgando segundo a sua consciência e convicção. * §4.2. Revertendo ao caso dos autos, o recorrente, aceitando as declarações de todas as testemunhas e do arguido tal e qual foram narradas na fundamentação do acórdão recorrido, invoca o vício do erro notório na apreciação da prova. Para o efeito alega, sucintamente, as seguintes razões: o Tribunal a quo hipervalorizou o depoimento do arguido e desvalorizou o depoimento da ofendida e seus progenitores, apesar de terem sido considerados credíveis, isentos e sem ressentimentos para com o arguido e essenciais para condenara o arguido no crime de violação; não obstante o Tribunal a quo ter afirmado que a ofendido e os seus progenitores tiveram um depoimento sincero e isento, apenas considerou tal isenção e sinceridade nos factos respeitantes ao crime de violação e por motivos incompreensíveis; a postura isenta e credível da ofendida não mudou entre os dois acontecimentos factuais e o depoimento credíveis e isento dos seus progenitores também não se alterou. Conclui que os factos n.ºs 7, 8, 9, 10 (situação reportada ao ano de 2017) e 16 (situação referente ao ano de 2018) do libelo acusatório devem ser dados como provados, a acrescer aos factos já dados como provados pelo Tribunal a quo. Antes de mais importa fazer a adequada correspondência dos factos narrados no despacho de acusação invocados pelo recorrente com os factos dados como provados e não provados elencados na decisão recorrida acima transcrita. Assim, comparando a acusação (junta aos autos com a referência 413872841) com a decisão recorrida temos que concluir que o recorrente discorda dos factos não provados sob os pontos 5, 6, 7, 8 e 12 nos moldes infra explicitados: i) O ponto 7 da acusação – em data não concretamente apurada do ano de 2017, encontrando-se a vítima grávida de 6 meses e no interior do seu quarto, na casa onde vivia com os seus pais, na Rua ..., ... ... ..., o arguido iniciou uma discussão porque teimava que aquela mantinha relações sexuais com outros homens e não o desejava – corresponde à primeira parte do facto provado sob o ponto 7 – em data não concretamente apurada do ano de 2017, encontrando- se a vítima grávida, no interior do seu quarto, na casa onde vivia com os seus pais, na Rua ..., ... ... ..., o arguido iniciou uma discussão porque teimava que aquela mantinha relações sexuais com outros homens e não o desejava – e ao facto não provado sob o ponto 5 – Que quando sucederam os factos supra id. em 7. e 8. a ofendida estava grávida de 6 meses; ii) O ponto 8 da acusação – nessa altura, o arguido chegou a casa e tocou à campainha. Quando a vítima se dirigiu para abrir a porta, viu o arguido a correr vindo das traseiras. Quando o questionou o arguido referiu que foi verificar se não estava outra pessoa a sair, pela porta das traseiras – corresponde ao facto não provado sob o ponto 6 – Que nessa altura, o arguido chegou a casa e tocou à campainha. Quando a vítima se dirigiu para abrir a porta, viu o arguido a correr vindo das traseiras – e ao facto não provado sob o ponto 7 – Que quando o questionou o arguido referiu que foi verificar se não estava outra pessoa a sair, pela porta das traseiras; iii) O ponto 9 da acusação – já no interior do quarto o arguido apanhou a roupa interior da vítima e cheirou-a com o objetivo de perceber se esta havia estado estado com outro homem – corresponde à segunda parte do facto provado sob o ponto 7 – e nesse contexto o arguido apanhou a roupa interior da vítima e cheirou-a com o objetivo de perceber se esta havia estado com outro homem; iv) O ponto 10 da acusação – nessa sequência gerou-se mais uma discussão entre o casal e o arguido empurrou a vítima e desferiu-lhe uma bofetada na face, o que lhe causou dor – corresponde ao facto não provado sob o ponto 8 – que o arguido empurrou a vítima e desferiu-lhe uma bofetada na face, o que lhe causou dor; v) O ponto 16 da acusação – a vítima foi então dormir com a filha, no quarto desta. Como a filha acordou, a meio da noite, vítima levantou-se para preparar algo para aquela comer. Nessa altura, o arguido levantou-se dirigiu-se à vítima, enquanto esta tinha a filha nos braços e empurrou-a contra a parede. De seguida, o arguido desferiu um murro na face da vítima, o que lhe causou dor. A vítima viu-se obrigada a fugir para o exterior. Quando a arguido a procurou, a vítima conseguiu voltar para casa, deixando, então, o arguido no exterior. Aí, o arguido exigiu que a vítima abrisse a porta, apelidando-a de “Badalhoca” e de “Puta.” – corresponde ao facto não provado sob o ponto 12 – que a ofendida foi então dormir com a filha, no quarto desta e como a filha acordou, a meio da noite, vítima levantou-se para preparar algo para aquela comer. Nessa altura, o arguido levantou-se dirigiu-se à vítima, enquanto esta tinha a filha nos braços e empurrou-a contra a parede. De seguida, o arguido desferiu um murro na face da vítima, o que lhe causou dor. A vítima viu-se obrigada a fugir para o exterior. Quando a arguido a procurou, a vítima conseguiu voltar para casa, deixando, então, o arguido no exterior. Aí, o arguido exigiu que a vítima abrisse a porta, apelidando-a de "Badalhoca" e de "Puta." * §4.3. Feita esta correspondência factual passemos a analisar se a decisão recorrida padece do vício decisório apontado pelo recorrente. Como se sabe, a livre valoração da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas sim valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão. Ao tribunal de recurso cabe verificar, controlar, se o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, sendo certo que tal apreciação deverá ser feita com base na motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação da sua escolha – ou seja, no cumprimento do disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal. Lido o acórdão recorrido verificamos que consta da motivação da decisão de facto a propósito da factualidade dada como provada o seguinte (com sublinhado da nossa autoria): “A factualidade não provada decorreu da ausência de prova segura e credível, para além de qualquer dúvida razoável da sua verificação e com a certeza e segurança necessárias em sede de julgamento para uma condenação, considerando a ausência de corroboração probatória do depoimento da ofendida (mesmo em relação a factos dos quais seria expectável que os pais tivessem conhecimento ou até de acordo com a acusação teriam tido conhecimento directo), a negação do arguido e o contexto de personalidade da ofendida e de relação disfuncional apurado, de onde em obediência ao princípio do in dubio pro reo o tribunal respondeu negativamente à mesma.” É certo que o julgador não está obrigado a aceitar ou a rejeitar acriticamente e em bloco as declarações prestadas (seja pelo arguido, pelo assistente ou por qualquer testemunha), podendo delas respigar aquilo que lhe pareça credível. Porém, o que sempre se impõe é que justifique a sua decisão, fundamentando devidamente as opções efectuadas. Ora, como resulta claramente da motivação da matéria de facto ora transcrita, as razões invocadas pelo Tribunal a quo para considerar não ter sido produzida prova segura e credível são as seguintes: i) O depoimento da ofendida não ter sido corroborado por outro meio de prova (designadamente, os seus progenitores); ii) O arguido ter negado os factos em causa; iii) A personalidade da ofendida; iv) A relação disfuncional entre o arguido e a ofendida. Sucede que, analisando na sua globalidade a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto consideramos que as razões apontadas pelo Tribunal a quo carecem de lógica, racionalidade, razoabilidade e coerência. Senão vejamos. Quanto à primeira razão apontada pelo Tribunal a quo importa desde logo esclarecer que a circunstância de o depoimento da ofendida não ter sido corroborado por outro meio de prova não tem fundamento legal, pois nada impede que a convicção do julgador se possa alicerçar num único depoimento, desde que a motivação da decisão de facto explicite as razões desse convencimento. Ora, tendo o Tribunal a quo considerado o depoimento da ofendida sincero (fazendo expressa referência que admitiu factos que lhe eram desfavoráveis), não revelando qualquer ressentimento para com o arguido, nem desejo de vingança, não se compreende a exigência de corroboração probatória para conferir-lhe, nesta parte, credibilidade. Aliás, se atentarmos à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto constatamos que o Tribunal a quo decidiu valorar os depoimentos dos progenitores da ofendida para a formação da sua convicção quer no respeita ao episódio ocorrido em 2018 por os mesmos se terem deslocado ao local, quer no que concerne ao episódio ocorrido em Setembro de 2022, sendo certo que, em ambas as situações, os progenitores não presenciaram os factos, tendo designadamente a progenitora narrado aquilo que a sua filha lhe contou e, se esse relato serviu para credibilizar o depoimento da ofendida no que tange ao episódio ocorrido em 2022, não tem cabimento também não ter sido valorado nos mesmos termos para o episódio ocorrido em 2018. Acresce que, tendo o Tribunal a quo considerado credível o depoimento da ofendida para dar como provados factos que lhe eram desfavoráveis (designadamente, o ponto 8 dos factos provados respeitante ao episódio ocorrido em 2017), não se descortina o motivo pelo qual não considerou credível na parte em que relata as agressões físicas de que foi vítima por parte do arguido no âmbito dessa mesma situação. No que respeita à segunda razão apontada pelo Tribunal a quo não podemos olvidar que, por um lado, o arguido negou os factos respeitantes ao imputado crime de violação (e mesmo assim o Tribunal a quo não valorizou as suas declarações) e, por outro lado, em relação ao episódio ocorrido em 2017 o arguido pese embora tenha negado ter dado uma bofetada à ofendida, acaba por admitir como possível ter empurrado a ofendida conforme decorre das suas declarações descritas na fundamentação exarada na decisão recorrida. No tocante à terceira razão apontada pelo Tribunal a quo não se compreende por que motivo a personalidade da ofendida (padece de transtorno de personalidade boderline, já foi acompanhada em psicologia e sofreu intoxicação medicamentosa e episódios de auto mutilação) foi apenas preponderante para afastar a sua credibilidade no que concerne aos episódios ocorridos em 2017 e 2018 e já não quanto ao episódio ocorrido em Setembro de 2022. Em relação à quarta razão apontada pelo Tribunal a quo a relação disfuncional existente entre o arguido e a ofendida (que se traduziu numa relação de namoro com imensas discussões e reatamentos) não tem a virtualidade de, sem mais, descredibilizar o depoimento da ofendida, que inclusivamente admitiu ter mantido com o arguido “uma relação doentia”. Por todo o exposto, examinada a fundamentação da decisão recorrida na sua globalidade, concluímos que não tendo o Tribunal a quo considerado o depoimento da ofendida como meio de prova dúbio, fraco ou desconfiável, o raciocínio vertido no seu texto relativamente à motivação respeitante à factualidade dada como não provada traduz-se numa apreciação desprovida de lógica, razoabilidade e consistência. Dito de outro modo. Não havendo razões plausíveis para suspeitar da veracidade do depoimento da ofendida, entendemos ser a prova produzida bastante para que o Tribunal a quo concluísse, com a segurança que se impõe e para além da dúvida razoável, pela verificação dos factos adiante descriminados. Nesta conformidade, a decisão recorrida padece, pois, do invocado vício de erro notório na apreciação da provada previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c) do CPP, o que implica nulidade passível de suprimento e que se corrigirá nos termos infra expostos. * §4.4. Por conseguinte, atenta a estrutura da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, dispomos de todos os elementos para corrigir o detectado vício decisório e, como tal, nos termos do artigo 431º, al. a) do CPP, determina-se a modificação da matéria de facto nos termos seguintes: i) Alteração do facto provado sob o ponto 8 que passa a ter a seguinte redacção; “Nesse contexto de discussão o arguido empurrou a vítima e desferiu-lhe uma bofetada na face, o que lhe causou dor e a ofendida tirou ao arguido os óculos que este tinha colocados e partiu-os.” ii) Aditamento aos factos provados dos seguintes factos: “4. O arguido exerceu controle sobre a vítima relativamente ao que vestia.” “10-A. Que a ofendida foi então dormir com a filha, no quarto desta e como a filha acordou, a meio da noite, a vítima levantou-se para preparar algo para aquela comer. Nessa altura, o arguido levantou-se dirigiu-se à vítima, enquanto esta tinha a filha nos braços e encostou-a contra a parede. De seguida, o arguido desferiu um murro na face da vítima, o que lhe causou dor. A vítima viu-se obrigada a fugir para o exterior. Quando a arguido a procurou, a vítima conseguiu voltar para casa, deixando, então, o arguido no exterior. Aí, o arguido exigiu que a vítima abrisse a porta, apelidando-a de "Puta”.” iii) Alteração do facto não provado sob o ponto 2 que passa a ter a seguinte redacção: “Que o arguido exerceu controle sobre a vítima relativamente com quem se comunicava, o que levou ao isolamento social desta.” iv) Alteração do facto não provado sob o ponto 12 que passa a ter a seguinte redacção: “Que o arguido empurrou a ofendida contra a parede e apelidou-a de "Badalhoca”.” v) Eliminação do facto dado como não provado sob o ponto 8. * §4.5. Sendo o detectado vício de erro notório na apreciação da prova de conhecimento oficioso este Tribunal não está, pois, limitado apenas aos factos impugnados pelo recorrente. Assim, analisada toda a matéria de facto dada como provada (designadamente, os pontos 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10 e 10-A), à luz das regras da experiência comum e do normal suceder dos acontecimentos da vida, tendo o arguido praticado os factos nos termos dados como provados, não se pode deixar de considerar demonstrado o facto dado como não provado sob o ponto 15 atinente ao elemento subjectivo nos moldes infra descritos. Deste modo, nos termos do artigo 431º, al. a) do CPP, determina-se ainda a modificação da matéria de facto nos termos seguintes: i) Aditamento aos factos provados do seguinte facto: “25-A O arguido quis agir da forma descrita, ofendendo o bom nome e o físico da sua então namorada, bem sabendo que desse modo lhe provocava profundo receio, humilhação e dor, com indiferença à relação que mantinham, agindo por vezes com o propósito de subjugar a ofendida à sua vontade, bem sabendo que a sua conduta lhe provocava danos na sua saúde física e psíquica, o que quis e conseguiu.” ii) Eliminação do facto não provado sob o ponto 15. * §4.6. As referidas modificações serão tidas em consideração aquando da apreciação da questão do enquadramento jurídico dos factos provados suscitada no recurso interposto pelo Ministério Público para aferirmos se estamos ou não perante um crime de violência doméstica. *** II.3.2. Do crime de violência doméstica §1. O recorrente pugna pela condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, al. a) CP, com a agravação dos n.ºs 2, al. a), 4, 5 e 6 do CP. * §2. Antes de mais importa referir que certamente por manifesto lapso o recorrente pugna pela condenação do arguido pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. a) CP em vez da al. b), já que a relação amorosa narrada na acusação naturalmente se só se poderá enquadrar nesta alínea, lapso esse que se impõe rectificar em conformidade. * §3. De acordo com o preceituado no artigo 152º do CP, na versão vigente à data dos factos, na parte que aqui particularmente importa, comete um crime de violência doméstica: “1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;(…)” Nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo (coma redacção em vigor à data dos factos), o crime é agravado, “se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima”. São conhecidas as divergências existentes quanto ao bem jurídico tutelado pela incriminação. Mas podemos dizer que, no entendimento dominante da doutrina e jurisprudência, e que seguimos, o crime tutela a saúde física, psíquica, mental e moral. A propósito do bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica transcrevemos o seguinte excerto do acórdão do STJ de 30.10.2019, relatado por Vinício Ribeiro (disponível em www.dgsi.pt): “Igual sinal da complexidade do crime violência doméstica está na determinação do bem jurídico protegido pelo mesmo. O Ebook do CEJ, intitulado Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, contém diversos estudos elaborados por Magistrados Judiciais e do Ministério Público, nomeadamente a págs. 84-106, um trabalho acerca da Violência Doméstica elaborado pela Procuradora da República e Docente do CEJ, Catarina Fernandes, onde se faz uma síntese sobre o bem jurídico protegido pela incriminação, que, pela sua clareza e fontes informativas, a seguir se reproduz: «1) Saúde A posição dominante tem sido e continua ainda a ser a sufragada por Américo Taipa de Carvalho, na sua anotação ao artigo 152º, do Código Penal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos 131º a 201º, 2ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 511 e 512): “O art. 152º está, sistematicamente, integrado no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas”, e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”. A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”. (…) Portanto, deve entender-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental; e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge (ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges), ou prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem”. (…) 2) Dignidade da pessoa humana Encontram-se na Doutrina e na Jurisprudência algumas posições que, alargando amplamente o objeto de tutela do crime de violência doméstica, o reconduzem à dignidade da pessoa humana. Neste sentido, Augusto Silva Dias defende que este crime visa proteger a integridade corporal, a saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana (Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, Lisboa: AAFDL, 2007, p. 110). Também Sandra Inês Feitor defende esta tese (Análise crítica do crime de violência doméstica [Em linha], 2012, disponível na Internet em:URLhttp://www.fd.unl.pt/Anexos/5951.pdf). (…) 3) Integridade pessoal José Francisco Moreira das Neves (Violência Doméstica – Bem jurídico e boas práticas, Revista do CEJ, XIII, 2010, p. 43-62), recordando que o tipo objetivo do ilícito de violência doméstica inclui condutas que se consubstanciam em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual, conclui que o bem jurídico é a integridade pessoal, uma vez que a tutela da saúde, abrangendo a saúde física, psíquica e mental, “ficará aquém da dimensão que a Constituição dá aos direitos que este tipo de ilícito visa tutelar”. 4) Integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra Também Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2008, p. 404) discorda da posição maioritária na doutrina e jurisprudência nacionais, entendendo que “os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra”. (…) 5) Integridade pessoal e livre desenvolvimento da personalidade André Lamas Leite tem um posicionamento diferente do tradicional e dominantes [A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito e a criminologia, Julgar, nº 12 (especial), 2010, p. 25-66, e Penas Acessórias, questões de género, de violência doméstica e o tratamento jurídico-criminal dos “shoplifters”, in As alterações de 2013 aos Código Penal e de Processo Penal: uma reforma “cirúrgica?”, Organização André Lamas Leite, Coimbra Editora, Coimbra, 2014]. Para este autor, o bem jurídico protegido por esta incriminação é, por natureza, multímodo, reconduzindo-se à integridade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade: (…) » E mais à frente podemos ler: “Perscrutando, além da doutrina, a jurisprudência deste STJ podemos concluir que o bem jurídico protegido é a saúde, nas suas várias vertentes, também como emanação da própria dignidade da pessoa humana. Alinhavando e arrumando ideias fundamentais informadoras do crime em análise, podemos dizer que: --estamos perante um crime de relação, dado que existe um traço de união entre a vítima e o arguido, derivada do casamento, ou relação análoga, de namoro, ou de coabitação; --um crime em que o bem jurídico protegido é plural e complexo; --e que tem na sua base (cfr. a redacção do n.º 1 do art. 152.º) o conceito nuclear de maus tratos (físicos ou não físicos), que verdadeiramente o distingue de outras infracções (à integridade física, ameaça, perseguição, injúria, difamação).” O CP não define o conceito de maus tratos, físicos ou psíquicos, limitando-se a dizer que nele se devem incluir os castigos corporais, as privações da liberdade e as ofensas sexuais e impedimento do acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios. Quanto às condutas que devem ser incluídas no conceito de maus tratos físicos refere o acórdão do TRC de 21.06.2023, relatado por Vasques Osório (acessível em www.dgsi.pt) que devem ser “todas as condutas agressivas que visem atingir directamente o corpo da vítima, v.g., bofetadas, murros, pontapés, joelhadas, puxões de cabelos, empurrões, apertões de partes do corpo e pancadas ou golpes desferidos com objectos, portanto, acções normalmente preenchedoras do tipo do crime de ofensa à integridade física. E quanto às acções que devem incluir-se no conceito de maus tratos psíquicos o mesmo aresto consigna que devem incluir-se “entre outras acções, as injúrias, as críticas destrutivas e/ou vexatórias, as ameaças, as privações da liberdade, as restrições, as perseguições e as esperas não consentidas.” O preenchimento do conceito de mau trato não exige que a concreta conduta tenha que traduzir-se numa lesão grave, num tratamento cruel ou brutal, embora, não raras vezes, assim seja. “Como resulta do texto da norma, o crime de violência doméstica não exige reiteração. Ainda assim, pelas suas características é usualmente um crime que se comete de forma reiterada e, neste sentido, podemos distinguir dois vectores: o da habitualidade e o da intensidade dos actos. Seja um acto isolado ou reiterado, se se verificar que apreciado à luz da intimidade do lar, coloca em sério risco a vida em comum, por reconduzirem a pessoa ofendida a vítima, de forma permanente, ou não, a um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, encontramos preenchido o tipo de violência doméstica.” (cfr. Inês Fonseca Mendes, A natureza jurídica do crime de violência doméstica conjugal: uma perspectiva crítica). Em suma: a violência doméstica não deve ser entendida como o mero somatório das acções, típicas ou atípicas, praticadas pelo agente contra a vítima, mas antes, o que desse conjunto de acções, globalmente considerado, resulta, e a sua aptidão para afectar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por essa via, a sua dignidade. * §3. À luz das considerações que se deixam expendidas, revertendo ao caso dos autos, em face da matéria de facto provada (com a alteração decidida neste recurso), é manifesto que se encontram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos que integram o tipo de crime de violência doméstica imputado ao arguido na acusação. Na verdade, dos factos provados resulta que os actos intrusivos, persecutórios e perturbadores levados a cabo pelo arguido durante o relacionamento afectivo que manteve com a ofendida traduzem um quadro de assinalável violência psicológica, que teve como efeito a degradação da dignidade humana da ofendida, lesando a sua integridade física e psíquica. Note-se que não ocorre aqui qualquer reciprocidade nas agressões físicas e/ou verbais perpetradas pelo arguido na pessoa da ofendida, porquanto, a conduta apurada da ofendida – designadamente, ter tirado os óculos ao arguidos e os ter partido – deve ser entendida no contexto em que foi perpetrada pela ofendida, ou seja, no âmbito de uma discussão em que a mesma foi alvo de agressões físicas por parte do arguido, não assumindo a sua conduta qualquer controle na violência psicológica e física de que foi vítima. É assim manifesto que o arguido ao praticar os apurados actos ofensivos da dignidade pessoal e humana da ofendida atingiu o bem jurídico protegido pela norma incriminadora em causa. Por isso, deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) do CP. E tendo parte das condutas do arguido sido praticadas na residência da ofendida mostra-se preenchida a circunstância qualificativa prevista no n.º 2, do artigo 152º do CP (na redacção vigente a data dos factos). Procede, nesta parte, o recurso. * §3. Perante o novo enquadramento jurídico-penal dos factos, importa proceder à determinação da pena que deve corresponder ao crime de violência doméstica de acordo com o AUJ do STJ nº 4/2016 de 21.02.2016 (publicado no DR n.º 36/2016, Série I, de 22.02.2016C:\Users\fj50445\Downloads\086Recurso n┬║ 168-22.5GFVNG.P1 (VD, art. 410┬║ n┬║ 2 b) e c) do CPP_ filhos menores presenciaram a VD sobre a sua mãe) (1)-generated (1).docx - _ftn36) que decidiu: “Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369º, 371º, 379º, nº 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424º nº 2 e 425º nº 4, todos do Código de Processo Penal”. De acordo com os quadros normativos relativos à finalidade das penas (a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa -artigo 40º, nºs 1e 2, do CP) e determinação da sua medida (em função da culpa e das exigências de prevenção – artigo 71º, nº1, do CP) deve à pena (destinada a proteger o mínimo ético-jurídico fundamental) ser imputada uma dinâmica para que cumpra o seu especial dever de prevenção. Entre aquele limite mínimo de garantia da prevenção e máximo da culpa do agente, a pena é determinada em concreto por todos os factores do caso, previstos nomeadamente no nº 2 do referido artigo 71º, que relevem para a adequar tanto quanto possível à ilicitude da acção e culpa do agente. Neste sentido, a culpa (pressuposto-fundamento da pena que constitui o princípio ético-retributivo), a prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização) e a prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação mas que também apresenta uma dimensão negativa, de dissuasão individual) representam três exigências atendíveis na escolha da pena. * §4. A moldura abstracta penal prevista para o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do CP é de 2 a 5 anos de prisão. Atendendo aos critérios estabelecidos pelo citado artigo 71.º, n.º 2 em desfavor do arguido militam as seguintes circunstâncias: – o grau de ilicitude dos factos considerando o modo de execução, o período de tempo em que os mesmos ocorreram e os danos causados à vítima situa-se num patamar mediano; - o facto de o arguido ter actuado com dolo directo. Por seu turno, em favor do arguido há que considerar o seguinte: – a inserção social, profissional e familiar do arguido. As exigências de prevenção especial não se mostram prementes atenta a natureza distinta do seu único antecedente criminal (condução de veículo sem habilitação legal). Por sua vez, são evidentes e muito elevadas as exigências de prevenção geral desde logo atenta a persistência e a disseminação deste tipo de criminalidade na sociedade portuguesa actual, que não dá mostras de retrocesso, mau grado todas as medidas de ordem preventiva e repressiva adoptadas, com clara perturbação comunitária e, por vezes, com graves consequências para as vítimas. Assim, ponderando as circunstâncias supra enumeradas, afigura-se-nos adequada, proporcional e ajustada uma pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão. * §5. Tendo o arguido sido condenado na 1ª instância pelo crime de violação, p. e p. pelo artigo 164º, n.º 2, a), do CP, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão importa agora fixar a respectiva pena única compreendida entre o mínimo de 3 (três) anos e 10 (dez) meses e o máximo de 6 (seis) anos e 1 (um) mês de prisão em face do disposto no artigo 77º, n.º 2 do CP. Dispõe o artigo 77º, n.º 1 do CP que “Na medida da pena são considerado, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. Atendendo aos já explicitados factores concretos de determinação da pena, considerando em conjunto a gravidade dos factos praticados, o período de tempo em que ocorreram, avaliando a interconexão entre os crimes do concurso e a personalidade do arguido revelada nos factos, entendemos justo e proporcional aplicar-lhe a pena única de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão. * §6. O Tribunal de 1ª Instância aplicou ao arguido a pena substitutiva da suspensão da execução da pena de prisão. Mantêm-se os pressupostos formais e materiais para a manutenção da referida pena de substituição previstos no artigo 50º do CP face à medida da pena única aplicada ao arguido (não superior a 5 anos de prisão), ficando a execução dessa pena suspensa por igual período de tempo (quatro anos e 10 meses). Não se discute que as exigências de prevenção geral são importantes, em face da danosidade social do crime, da sua frequência e da intenção preventiva que o legislador pôs na previsão autónoma e agravada deste crime. No entanto, as exigências de prevenção especial continuam a não reclamar o cumprimento efectivo da pena única de prisão fixada por este Tribunal dada a ausência de antecedentes criminais pela prática de crime da mesma natureza e atenta a inserção social, familiar e profissional do arguido. Assim, em face da factualidade apurada, entende-se que ainda é possível formular um juízo de prognose favorável sobre a possibilidade de a ameaça de pena única ser bastante para evitar que o arguido volte a cometer crimes. * §7. O recorrente requer ainda a aplicação das penas acessórias previstas nos n.ºs 4, 5 e 6 do artigo 152º do CP (vigente à data dos factos). Na aplicação das penas acessórias, o julgador está vinculado aos mesmos critérios e elementos de ponderação utilizados aquando da determinação concreta da sanção penal principal, designadamente tal sanção acessória terá de se conformar em função da gravidade da infracção (censurabilidade do facto) e da culpa (censurabilidade do agente), fazendo com que a sua aplicação não seja automática, mas sim gizada por critérios legais de necessidade, adequação e proporcionalidade. A finalidade da pena acessória “reside na censura da perigosidade, embora a ela não seja estranha a finalidade de prevenção geral.” (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, pág.165). “Trata-se de uma censura adicional pelo facto que ele praticou (cfr. acta n.º 8 da Comissão de Revisão do Código Penal).”(cfr. acórdão do TRG de 02.11.2015, relatado por Luís Coimbra, acessível in www.dgsi.pt.). É “uma função preventiva adjuvante da pena principal, que se dirige, ao menos nalguma medida, à perigosidade do agente, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação” (cfr. acórdão do TRP de 17.01.2018, relatado por Jorge Langweg, acessível in www.dgsi.pt). Revertendo ao caso presente, considerando a factualidade provada supra exarada – designadamente, a natureza dos actos perpetrados pelo arguido, o relacionamento amoroso com a ofendida ter terminado definitivamente após os factos ocorridos em Setembro de 2022, o arguido ter assumido os compromissos familiares, visitando habitualmente aos domingos a descendente de ambos de acordo com a regulação do exercício das responsabilidade parentais, o arguido manter há cerca de 18 meses uma nova relação amorosa, dedicando grande parte dos seus tempos livres à relação com a namorada – consideramos não se mostrar necessário a aplicação ao arguido de qualquer pena acessória. Improcede, nesta parte, o recurso. * §8. Por último, perante a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica importa arbitrar uma quantia a título de reparação dos prejuízos sofridos resultantes da conduta do arguido nos termos do disposto no 82º-A do CP e no artigo 21º, n.º 2 da Lei 112/2009, de 16.09 para além da quantia que já foi fixada pelo Tribunal a quo relativamente à condenação do arguido pelo crime de violação. Assim, atento o intervalo de tempo em que o crime foi praticado, a natureza dos actos cometidos pelo arguido, o grau intenso da culpa com que o arguido actuou (dolo directo), a natureza dos danos gerados na vítima e a situação económico-financeira do arguido, nos termos dos artigos 483º e 496º nºs 1 e 3, primeira parte, 562º e 566º todos do Código Civil, tem-se por adequado fixar o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em € 800,00 (oitocentos euros). A esta quantia acrescerão juros de mora calculados à taxa legal em vigor, a contabilizar desde a data da notificação da presente decisão e até efectivo e integral pagamento. **** III - DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, decidem: a) Julgar verificado o vício decisório do erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º, nº 2, al. c) do CPP e, nessa conformidade, modificar a matéria de facto provada e não provada nos termos sobreditos no ponto II.3.1.§4.4. e §4.5.; b) Revogar o acórdão recorrido na parte em que absolveu o arguido AA do crime de violência doméstica e, em consequência: - Condenar o arguido AA como autor material da prática de um crime de violência doméstica na forma agravada, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do CP (vigente à data dos factos), na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão; - em cúmulo jurídico das concretas penas aplicadas ao arguido pela prática do crime de violação, p. e p. pelo artigo 164º, n.º 2, a) do C.P. e do crime de violência doméstica na forma agravada, p. e p. pelo artigo 152º n.º 1, al. b) e n.º 2 do CP, condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na execução por igual período de tempo; - Condenar o arguido AA a pagar à ofendida BB a quantia de € 800,00 (oitocentos euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo crime de violência doméstica, à qual acrescerão juros à taxa legal em vigor a contar da data da notificação da presente decisão e até efectivo e integral pagamento. * Sem custas criminais.Porto, 09.04.2025 Maria do Rosário Martins (relatora) Nuno Pires Salpico (1º Adjunto) Paula Natércia Rocha (2ª Adjunto) |