Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | NELSON FERNANDES | ||
| Descritores: | TRABALHADOR INDEPENDENTE ACIDENTE DE TRABALHO DESCARATERIZAÇÃO VIOLAÇÃO DE NORMAS DE SEGURANÇA NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA | ||
| Nº do Documento: | RP202301232944/19.7T8PNF.P1 | ||
| Data do Acordão: | 01/23/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA | ||
| Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO (SOCIAL) | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - As normas aplicáveis ao caso de acidente de trabalho sofrido por trabalhador independente decorrente da violação de normas de segurança são o artigo da LAT, que prevê as situações de exclusão do direito à reparação (designadas de descaracterização do acidente de trabalho) e a cláusula 5.ª, n.º 1, alínea f), da Apólice Uniforme do seguro de acidentes de trabalho sofridos por trabalhador independente, dendo esta última ser aplicada e interpretada em consonância com o disposto naquele artigo. II - Para a verificação da causa de descaracterização do acidente prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009 não está em causa a violação de todas e quaisquer regras de segurança e sim apenas as que são específicas da empresa ou da lei que estejam ligadas à própria execução da atividade que o sinistrado desempenhava e que visem acautelar ou prevenir a sua segurança, eliminando ou diminuindo os riscos para a sua saúde, vida ou integridade física. III – A descaracterização do acidente de trabalho, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 14 da Lei nº 98/2009, exige a demonstração de que o acidente provenha de negligência grosseira do sinistrado e, ainda, cumulativamente, que essa sua conduta seja a causa exclusiva do mesmo acidente. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 2944/19.7T8PNF.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo do Trabalho de Penafiel - Juiz 1 Autor: AA Ré: Companhia de Seguros X..., S.A. _______ Nélson Fernandes (relator) Rita Romeira Teresa Sá Lopes ______________________ Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto I. Relatório 1. Por participação entrada em juízo no dia 23/10/2019, foi dado conhecimento da eventual ocorrência de um acidente de trabalho, em que teria sido vítima AA. Decorrida a fase conciliatória, as partes não chegaram a acordo, pois que a Entidade seguradora declinou a responsabilidade, por considerar que o acidente não se caracteriza como acidente de trabalho e que ocorreu por violação das regras de segurança por parte do Sinistrado. Veio o Sinistrado requerer a abertura da fase contenciosa do processo, contra Companhia de Seguros X..., S.A., pedindo que seja esta condenada a pagar-lhe: o capital de remição da pensão anual de €930,43, devida a partir de 28/09/2019; a quantia de € 20,00 a título de despesas de deslocações para comparência em Tribunal; a quantia de €1.498,18 de diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária; e juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, sobre todas as prestações, até integral pagamento. Em síntese, alegou que no dia 27/05/2019 sofreu um acidente de trabalho, quando exercia funções de carpinteiro por conta própria, auferindo a retribuição anual de €8.400,00, sofreu um acidente de trabalho, tendo cortado os 2.º a 5.º dedos da mão direita e tendo como consequência dor, sensação de arrefecimento e perda de sensibilidade nos dedos afetados, o que lhe determina uma IPP de 15,8237%, com alta clínica em 27/09/2019. A R. deduziu contestação, na qual, em síntese: aceitou a existência do contrato de seguro, mas já não a caracterização do acidente como laboral, alegando, para o efeito, que o Autor introduziu a mão direita no interior da máquina, ultrapassando a zona das barbatanas, com a máquina ligada e a serra de corte em funcionamento, tendo sido colhido pela serra de corte, sendo que esse sabia que a operação de desencravamento só pode ser efetuada com a máquina desligada, tendo assim violado o disposto em normas legais e os deveres gerais de cautela, sabendo que era proibido colocar as mãos no interior da máquina em funcionamento, tendo incorrido num comportamento descuidado e temerário; sustenta que a única causa do acidente foi a negligência grosseira do Autor, que descaracteriza o acidente como laboral; sem prescindir, alega ainda que ocorreu uma violação das regras de segurança da máquina, que o Autor conhecia, tendo violado normas e condições de segurança previstas na lei, bem como as prescrições de segurança da máquina, que conhecia e eram visíveis. Conclui pela improcedência da ação. Saneados os autos, foram de seguida fixados os factos assentes, delimitado o objeto do litígio e indicados os temas de prova. No apenso respetivo, foi decidido que o Autor, por força do sinistro em causa nos autos, é portador de uma IPP de 11,7%. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi depois proferida sentença, de cujo dispositivo consta: “Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência: 1) Declara-se que o A., AA, sofreu acidente de trabalho; 2) Absolve-se a R. Companhia de Seguros X..., S.A. do pagamento ao A. dos danos decorrentes do acidente em causa, face à sua descaracterização. Custas a cargo do A., nos termos do disposto no artigo 527º nºs. 1 e 2 do CPC. Valor da acção – € 11.267,23 (cfr. artigo 120º do CPT). Registe e notifique.” 2. Inconformado, apresentou o Autor requerimento de interposição de recurso, formulando no final das suas alegações as conclusões que seguidamente se transcrevem: ……………………………… ……………………………… ……………………………… 2.1. Contra-alegou a Ré, concluindo no final pela manutenção da sentença proferida. 2.2. O recurso foi admitido em 1.ª instância como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com meramente devolutivo. 3. Subidos os autos a esta Relação, aberta vista ao Ministério Público junto deste Tribunal, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso. *** Cumpridas as formalidades legais, cumpre decidir:II – Questões a resolver Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635., n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC) – aplicável ex vi artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir: (1) reapreciação da matéria de facto; (2) saber se o Tribunal errou no julgamento quanto à aplicação do direito, ao ter descaraterizado o acidente como de trabalho. III - Fundamentação A- Da sentença recorrida consta em pronúncia sobre a matéria de facto (transcrição): “Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos: Factos assentes por acordo: A) O A. nasceu em .../.../1956; B) À data de 27/05/2019 o A. auferia a retribuição anual de € 600,00 x 14 meses, num total de € 8.400,00 pelo exercício de funções de carpinteiro por conta própria; C) No dia 27/05/2019, cerca das 10h30m, no exercício dessa actividade, numa fábrica sita em ..., ..., Paredes, o A. foi vítima de um acidente, quando se encontrava a operar uma máquina designada por “seccionadora”, da marca Giben, modelo ..., na qual cortou os 2º, 3º, 4º e 5º dedos da mão direita; D) À data indicada em B) a responsabilidade por acidentes de trabalho em que o A. fosse interveniente encontrava-se transferida para a R. pela quantia indicada em B), por meio de contrato de seguro titulado pela apólice nº ..., que vigorava sob a modalidade de prémio fixo, nos termos constantes das condições gerais e especiais juntas a fls. 92 a 100 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas; E) A máquina identificada em C) é de corte de madeira, equipada com uma serra de corte e cujo manuseamento implica um elevado risco de acidente; F) Por esse motivo, a referida máquina possui diversas protecções de segurança, as quais vêm instaladas de origem; G) Por um lado, após ser ligada, a máquina dispõe de um dispositivo de segurança que apenas acciona a serra de corte após a placa se encontrar totalmente colocada no interior da máquina; H) A máquina possui também umas “barbatanas”, as quais se encontram colocadas à entrada da zona de acesso e a todo o comprimento da máquina; I) Estas “barbatanas” impedem que o operador tenha contacto directo com as partes móveis da máquina, nomeadamente com a serra de corte e conduzem os resíduos de corte para o sistema de aspiração central; J) O A. procedia ao corte de placas de aglomerado de madeira, tendo, para o efeito, colocado essas placas na zona de acesso; Factos demonstrados por produção de prova: K) O A. teve alta clínica definitiva em 10/07/2019; L) Na fase conciliatória do processo, o A. teve obrigatoriamente de se deslocar desde a sua residência, uma vez ao GML de Penafiel e outra vez a este Tribunal; M) Quando o A. procedia ao corte de placas de aglomerado de madeira na máquina indicada em C), depois de ter cortado uma das placas de madeira, as “aparas” dessa placa ficaram presas nas “barbatanas” de protecção; N) Para tentar desencravar a máquina, o A. introduziu a sua mão direita no interior da máquina, ultrapassando a zona das “barbatanas”; O) Com a máquina ligada e a serra de corte em funcionamento; P) Tendo, por esse motivo, sido colhido pela serra de corte, que originou o corte dos dedos indicados em C); Q) O A. tinha trabalhado com a máquina identificada em C) cerca de 20 vezes em cerca de dois anos, antes do acidente; R) O A. sabia e não podia ignorar que uma operação de desencravamento das “aparas” de madeira só pode ser efectuada com a máquina desligada; S) O A. sabia que era proibido colocar as mãos no interior da máquina com a mesma em funcionamento; T) A máquina possui sinalização de segurança com a seguinte inscrição: “ATENÇÃO – NUNCA ENFIE AS MÃOS DEBAIXO DOS PRENSADORES”; U) A causa única do acidente residiu, unicamente, no facto de o A. ter introduzido a sua mão direita no interior da máquina, ultrapassando a zona de protecção, para retirar as “aparas” de madeira sem ter cuidado de, previamente, desligar a máquina; V) Em consequência do acidente em causa nos autos o A. sofreu como lesões esfacelo grave dos 2º, 3º, 4º e 5º dedos da mão direita e amputação distal do 2º dedo da mesma mão, apresentando como sequelas cicatrizes na face palmar dos 2º a 5º dedos da mão direita, amputação da falange distal do 2º dedo, rigidez da inferfalângica distal do 3º dedo, limitação no enrolamento dos 4º e 5º dedos da mão direita em dextro; W) Em consequência do acidente em causa nos autos o A. sofreu um período de ITA de 28/05 a 10/07/2019, data da alta clínica, sendo o A., consequentemente, portador de uma IPP de 11,7%. Da discussão da causa não resultaram provados os seguintes factos: 1) O A. cortou os dedos, na data, momento e local indicados em C) quando se encontrava a cortar uma placa de madeira; 2) O A. teve alta clínica definitiva em 27/09/2019; 3) Em consequência directa e necessária do acidente, resultaram para o A. dor, sensação de arrefecimento e perda de sensibilidade nos dedos afectados. Consigna-se que os pontos K), V) e W) foram incluídos na matéria de facto provada por terem resultado da prova produzida no processo, mais precisamente do exame de junta médica realizada no apenso, e ao abrigo do disposto no artigo 5º nº 2 alíneas a) e b) do CPC.” * B) - Discussão 1. Matéria de facto Nas conclusões 25.ª a 29.ª faz o Recorrente considerações sobre a prova e eventuais factos, assim ao dizer: que “conforme resulta da motivação da decisão de facto da sentença ,a MMª Juiz “a quo” em sede de meios de prova deu especial relevo à declaração de fls 96 e 97, para efeitos de prova dos Pontos M) a P) dos factos provados”, tratando-se “de um depoimento escrito do A/Recorrente efetuado ao perito averiguador da Ré/Seguradora” e que, “embora não tenha sido alegado, o que resulta desta declaração, é que haveria uma certa habitualidade neste tipo de procedimento”, o que, porém, diz, não teria sido levado em conta, quando, em face do regime que resultará dos artigos “376 nº 2” e “360.º do CC”, sendo a declaração indivisível, “a MMª Juiz “a quo” para efeitos de concluir pela habitualidade do A./Recorrente ao perigo do trabalho realizado e a confiança na sua experiência profissional, sempre deveria ter levado em conta a declaração de fls 96 e 97.” Porém, nada mais invocando ou requerendo, em particular no sentido de explicitar uma sua intenção de nessas conclusões dirigir o recurso à impugnação da matéria de facto, seja quanto aos factos provados ou não provados, como ainda, a serem outros, quais seriam esses factos, torna-se manifesto que, não tendo sido cumpridos nesta parte os ónus legais estabelecidos no artigo 640.º do CPC, o recurso nunca estaria em condições de ser admitido. Nesse considerando, apenas se pode ter por dirigido o recurso em sede de reapreciação da matéria de facto à alínea U) dos factos provados, cuja apreciação faremos de seguida: Alínea U) dos factos provados Esta alínea tem a redação que seguidamente se transcreve: “A causa única do acidente residiu, unicamente, no facto de o A. ter introduzido a sua mão direita no interior da máquina, ultrapassando a zona de protecção, para retirar as “aparas” de madeira sem ter cuidado de, previamente, desligar a máquina”. Começa o Autor por dirigir o recurso à impugnação da matéria de facto, assim nas conclusões 1.ª a 6.ª que apresentou, defendendo que a resposta dada à alínea U) dos factos provados deverá ser alterada de provado para não provado. Para o efeito, sustenta que nessa alínea apenas se formula “um juízo conclusivo de exclusão de outras possíveis concausas para a verificação do acidente”, que, diz, contém “desde logo em si mesmo a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tal facto fosse considerado provado ou não provado toda a ação seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta”. Numa segunda linha de argumentação, refere que “o facto de: o A saber que não podia colocar as mãos dentro da máquina com ela em funcionamento e que só podia tirar as aparas com a máquina desligada; a testemunha BB ter afirmado que esta operação deve ser feita com a máquina parada e que o A. aprendeu a manuseá-la com um trabalhador desta testemunha; finalmente a existência do aviso existente na máquina (fotografia de fls. 94 verso), não permitem concluir que a causa única do acidente residiu, unicamente, no facto de o A. ter introduzido a sua mão direita no interior da máquina”, sendo que, quando muito, “face à matéria dada como provada poderia dizer-se que o facto de o A./Recorrente ter introduzido a sua mão direita no interior da máquina, ultrapassando a zona de proteção, para retirar as aparas de madeira sem ter cuidado de, previamente, desligar a máquina, foi causa adequada para a verificação do acidente”, mas “jamais poderia concluir-se, como acontece na sentença recorrida, que foi causa única e exclusiva como exige o artigo 14.º, n.º 1, alínea b) do RRRATDP” Defende a Apelada a adequação do julgado, salientando designadamente que o Recorrente, apesar de indicar os pontos da decisão que, alegadamente, se mostram incorretamente julgados, não indica, porém, um único meio de prova que imponha uma decisão diversa da recorrida. Consta da motivação resultante da sentença recorrida o seguinte: “(…) Os pontos R) a U) ficaram demonstrados com base no depoimento de parte do A., que confirmou saber que não podia colocar as mãos dentro da máquina com ela em funcionamento e que só podia tirar as aparas com a máquina desligada; da testemunha BB, que afirmou que esta operação deve ser feita com a máquina parada e que o A. aprendeu a manuseá-la com o trabalhador da testemunha. Para além disso, teve-se em consideração a fotografia de fls. 94 verso, que demonstra o aviso existente na máquina, que demonstra com um desenho a proibição da colocação de mãos na zona das barbatanas, e que o próprio A. confirmou saber. Face ao exposto, a única causa do acidente foi precisamente a violação deste aviso e introdução, pelo A., da sua mão direita no interior da máquina sem previamente ter desligado a mesma.” Cumprindo-nos apreciar, socorrendo-nos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de fevereiro de 2010[1], relembraremos aqui, pois que relevante para a nossa apreciação, a respeito do nexo causal entre o facto e o dano, que esse nexo comporta duas vertentes: a vertente naturalística, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano e a vertente jurídica, que consiste em apurar se esse facto concreto pode ser havido, em abstrato, como causa idónea do dano ocorrido, não sendo possível estabelecer-se, por presunção, o nexo causal entre o acidente de trabalho e a violação de normas de segurança se se desconhece a dinâmica do acidente e quando o facto, tendo sido objeto de prova, foi dado como não provado. Do mesmo modo o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 9 de julho de 2014[2], de cujo sumário consta: “I – Adentro do nexo de causalidade entre o facto e o dano, o legislador nacional perfilhou a doutrina da causalidade adequada, integrante, num primeiro momento, de um nexo naturalístico que constitui matéria de facto, e, num segundo momento, de um nexo de adequação que constitui matéria de direito. II – Tendo sido “quesitada” factualidade integradora da existência daquele primeiro nexo e não tendo a mesma ficado provada, não pode a Relação tê-la por provada com base em presunções judiciais.” O que referimos anteriormente visa salientar que nada obsta, sendo antes ajustado, que no âmbito da matéria de facto se deva apreciar a questão do nexo naturalístico, que consiste, nos termos do primeiro dos Acórdãos antes mencionados, em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano. Assim o lembramos pois que, no caso, o Recorrente não dirige propriamente o recurso a essa vertente, como se disse naturalística, do nexo, que foi também apreciado, com suporte na prova produzida, pelo Tribunal recorrido, como resulta da motivação da matéria de facto, nos termos antes citados, fazendo antes assentar os argumentos no presente recurso na invocação de que o conteúdo constante do facto aqui reanalisado se traduz em formulação, como o diz, de “um juízo conclusivo de exclusão de outras possíveis concausas para a verificação do acidente” – que, acrescenta, contém “desde logo em si mesmo a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tal facto fosse considerado provado ou não provado toda a ação seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta”. A respeito dessa invocação, socorrendo-nos dos ensinamentos de Alberto dos Reis, dir-se-á que a prova “só pode ter por objeto factos positivos, materiais e concretos; tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é atividade estranha e superior à simples atividade instrutória”[3]. Manuel de Andrade, por sua vez, sem deixar de afastar o Direito – ou dizer, juízos de direito – não deixava também de considerar como passível de constituir objeto de prova “tanto os factos do mundo exterior, como os da vida psíquica”, “tanto os factos reais (….) como os chamados factos hipotéticos (lucros cessantes; vontade hipotética ou conjetural das partes, para efeitos, v.g., de redução ou de conversão de negócios jurídicos, etc)», «Tanto os factos nus e crus (….) como os juízos de facto (….)”[4]. Também Anselmo de Castro referia que “toda a norma pressupõe uma situação da vida que se destina a reger, mas que não define senão tipicamente nos seus caracteres mais gerais”, como ainda que “a aplicação da norma pressupõe, assim, primeiro, a averiguação dos factos concretos, dos acontecimentos realmente ocorridos, que possam enquadrar-se na hipótese legal”, sendo “esses factos e a averiguação da sua existência ou não existência” que “constituem, respetivamente, o facto e o juízo de facto – juízo histórico dirigido apenas ao ser ou não ser do facto” – acrescentando de seguida: “E, segundo, um juízo destinado a determinar se os factos em concreto averiguados cabem ou não efetivamente na situação querida pela norma, típica e abstratamente nela descrita pelos seus caracteres gerais – juízo este já jurídico (o chamado juízo de qualificação ou subsunção), visto pressupor necessariamente interpretação da lei, isto é, do âmbito ou alcance da previsão normativa. Só por este seu diverso conteúdo, facto e direito, juízo de facto e de direito, se distinguem, pois não diferem em estrutura. Para o efeito é indiferente a natureza do facto: são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos. Do conteúdo que deve revestir decidirá apenas a norma legal. Igualmente indiferente é a via de acesso ao conhecimento do facto, isto é, que a ele possa ou não chegar-se diretamente, ou somente através de regras gerais e abstratas, ou seja, por meio de juízos empíricos (as chamadas regras da experiência). Raros, aliás, são os casos em que o conhecimento do facto dispense esses juízos e possa fazer-se apenas na base de puras perceções.”[5] Importa porém esclarecer, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de fevereiro de 2015[6], que “A meio caminho entre os puros factos e as questões de direito situam-se os juízos de valor sobre matéria de facto, nos quais deverá distinguir-se entre aqueles para cuja formulação se há-de recorrer a simples critérios próprios do bom pai de família, do homo prudens, e aqueles cuja emissão apela essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista”. Pois bem, na consideração, no caso, do regime que antes se expôs, como já antes o dissemos, consideramos que o mero juízo que se reporte ao apuramento sobre se um determinada facto em termos naturalísticos tem como sua causa um outro, ou seja numa relação causa-efeito, assim também no que se refere à ocorrência de um dado evento, ainda se insere no âmbito da matéria de facto, pois que, não obstante envolver um juízo valorativo, chamando à colação o afirmado no Acórdão antes mencionado, para a formulação de tal juízo basta o recurso “a simples critérios próprios do bom pai de família, do homo prudens”, sem necessidade de se apelar propriamente à “sensibilidade ou intuição do jurista”. Entendendo-se como se disse que nada obsta a que conste do âmbito da pronúncia em sede factual que determinado facto, em termos naturalísticos, foi causa do dano, nesse âmbito ainda se insere, afinal, se sustentada desde logo noutros factos também provados, como ainda na prova que foi produzida, como o foi no caso nos termos que resultam da citada motivação sobre a matéria de facto, a afirmação, constante da alínea analisada, de que a causa do acidente residiu no facto de o Autor ter introduzido a sua mão direita no interior da máquina, ultrapassando a zona de proteção, para retirar as “aparas” de madeira sem ter cuidado de, previamente, desligar a máquina. Porém, diversamente, desde logo por ser de evitar a utilização, no âmbito dessa pronúncia, de expressões valorativas que tenham a ver já com a vertente jurídica, em particular com a questão de direito que se discute na ação, porque aí se insere a afirmação sobre se esse facto foi ou não a única causa do evento / acidente, essa deve ser expurgada do âmbito do facto, precisamente por poder ser tida, por si só, como juízo valorativo com repercussões no âmbito da referida aplicação do direito, juízo este que, pois, em face do que tiver resultado provado, apenas deverá ser formulado mais tarde, assim, no presente recurso, quando nos debruçarmos sobre o mérito da ação. Nesse considerando, sendo de excluir a expressão “única” causa, nos termos antes ditos, a alínea analisada passa a ter a redação seguinte: “A causa do acidente residiu no facto de o A. ter introduzido a sua mão direita no interior da máquina, ultrapassando a zona de proteção, para retirar as “aparas” de madeira sem ter cuidado de, previamente, desligar a máquina”. 2. Dizendo o Direito Em face das conclusões, que delimitam, salvo questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso, constata-se que o Recorrente invoca como argumentos o seguinte: - não estão verificados os pressupostos para a descaracterização do acidente de trabalho, pois que, diz, afastando o n.º 3 do artigo 14.º da RRRATDP, ao qualificar a negligência de grosseira, “implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e contra” – “excluí as chamadas culpas “leves”, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimentos ou outras atitudes que se prendem com os atos involuntários, resultantes, ou não, da habituação ao risco” –, no caso, “porque não foi alegado nem provado, ignora-se o motivo pelo qual o A./Recorrente acedeu ao interior da máquina sem se certificar que a mesma estava desligada” (“por mera incúria?; por esquecimento?; por entender que, com alguma sorte, no seu interior, se não se movimentasse junto à serra da máquina não haveria perigo de se cortar?; por estar convencido que as “barbatanas” ofereciam uma real proteção contra o perigo de corte, etc, etc ?”), sendo que “nada nos autos aponta no sentido de que o A./Recorrente atuou voluntária e conscientemente”, não se pode “afirmar, com certeza, que o Recorrente sinistrado atuou voluntariamente e nem podemos excluir que o seu comportamento se traduziu numa desatenção ou esquecimento” – “Os factos provados não permitem concluir que o A. tenha atuado com culpa de tal modo grave como, a nosso ver, o exige a segunda parte, da al. a), do nº 1, do art. 14º, da LAT, que implique a descaracterização do acidente e que, em consequência, o mesmo fique sem reparação”; - Por outro lado, “da matéria dada por provada não resulta que o A./Recorrente tivesse um perfil de pessoa temerária descuidada no cumprimento das suas funções profissionais” (“à data do acidente tinha 63 anos, era carpinteiro por conta própria e trabalhava com a máquina em questão sem que haja notícia de outros acidentes com esta ou com outras máquinas”), sendo que a sua conduta “teve um propósito de cariz laboral – retirar as “aparas” de madeira”, “uma causa justificativa”; - “Mesmo que por mera hipótese se admitisse ter havido negligência grosseira, a matéria dada por provada não permite concluir que o acidente teve como causa exclusiva o comportamento do A.” – “Uma questão desde logo se coloca: dispondo a máquina diversas protecções de segurança, as quais vêm instaladas de origem (F dos factos provados), designadamente de um dispositivo de segurança que apenas acciona a serra de corte após a placa se encontrar totalmente colocada no interior da máquina (G dos factos provados) e de umas "barbatanas", as quais se encontram colocadas à entrada da zona de acesso e a todo o comprimento da máquina(H dos factos provados) que impedem que o operador tenha contacto direto, com as partes móveis da máquina, nomeadamente com a serra de corte (I dos factos provados), porque razão, foi possível ao A/Recorrente introduzir a mão para além das “barbatanas” não impedindo estas o contacto da mão com a serra de corte ou até porque razão é que a serra continuou em funcionamento sem que se encontrasse qualquer placa totalmente colocada no interior da máquina? Melhor perguntando: Por razão não funcionaram os diversos mecanismos de segurança da máquina?”. “A resposta só pode ser a avaria desses mecanismos de bloqueio e proteção”, sendo que, diz, “a máquina não foi inspecionada”, pelo que “ficamos sem saber se é uma máquina antiga cujos dispositivos de segurança necessitavam de ser modificados”, não sendo assim possível também “saber se a máquina tinha desconformidades, isto é se os protetores, que deviam impedir o acesso às zona perigosas da máquina ou os dispositivos que interrompem o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas, estavam operacionais e em bom funcionamento”, sendo que “era a Ré/seguradora que tinha o ónus dessa prova”. Atenta a matéria a dada provada tudo indica que os dispositivos de proteção ou não eram eficazes ou não estavam operacionais, sendo que, no que concerne ao aviso existente na máquina (fotografia de fls. 94 verso) também nada ficou provado relativamente ao local (visível ou menos visível ?) onde estava colocado”, a que acresce que “tal aviso está redigido em diversas línguas sem que a legenda em português seja sequer a primeira da lista e por outro alude aos prensadores e não à serra de corte, o que tudo prejudica a eficácia da mensagem transmitida”. - “O facto de o A. sinistrado trabalhar há 2 anos com aquela máquina à razão de uma vez por mês não é suficiente para excluir habitualidade do A./Recorrente ao perigo do trabalho realizado e a confiança na sua experiência profissional” – “podia ter trabalhado em máquina ou máquinas idênticas àquela muitas outras vezes e há muito mais tempo, como parece ser o que resulta da declaração de fls 96 e 97” –, pelo que “não podia a sentença excluir a contribuição da habitualidade do A./Recorrente ao perigo do trabalho realizado e a confiança na sua experiência profissional.” Defende a Apelada, por sua vez, o acerto da decisão recorrida. Pronunciando-se o Ministério Público, no parecer emitido, pela procedência do recurso, cumprindo-nos decidir, sendo as antes mencionadas as questões que se discutem, dispensaremos aqui especiais considerações, porque desnecessárias, sobre o que deve entender-se por acidente de trabalho, em face ao disposto na lei, como ainda sobre as razões que estarão na base do estabelecimento do seu regime, pelo que passaremos de imediato à apreciação da questão decidenda, ou seja, a de saber se, em face da factualidade provada, por referência ao quadro legal aplicável, ocorre fundamento, como o sustenta o Apelante, para revogar a decisão recorrida a respeito da questão da descaraterização do acidente como de trabalho. Nesse âmbito, consta da sentença recorrida, citando, o seguinte: “A questão a apreciar nos presentes autos cinge-se à descaracterização do acidente por actuação culposa do trabalhador, com as consequências inerentes. A este respeito estabelece o artigo 14º nº 1 do RJAT que “O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação”. Acrescentando o nº 2 que “Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la. E consagrando o nº 3 que “Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão”. Como é referido no Acórdão do TRPorto de 22/02/2021, proc. 2577/18.5T8OAZ.P1, disp. in www.dgsi.pt, quanto ao regime da descaracterização do acidente de trabalho por violação das condições de segurança, este «regime apresenta uma diferenciação relativamente ao regime da responsabilidade civil, mais concretamente no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, em sede de apreciação da culpa do trabalhador pois o que é relevante é a culpa em concreto do sinistrado e não a sua culpa apreciada em abstrato, atendendo ao padrão do bom pai de família [culpa como deficiência da conduta e não da vontade], ainda que colocado na posição ou nas circunstâncias concretas do trabalhador em causa. A justificação desta diferente modalidade de apreciação da culpa ou da formação do juízo de censura que esta encerra encontra-se no facto da atividade laboral configurar, em regra, uma atividade repetitiva em que fatores como o cansaço, o ritmo de trabalho, o stress laboral e a concentração, devem ser ponderados. Mas qual o grau de culpa na violação das regras de segurança pelo sinistrado que se exige para ocorrer uma descaracterização do acidente? A posição de Pedro Romano Martinez é a de que a violação das condições de segurança implica a descaraterização do acidente de trabalho desde que ocorra sem justificação, não sendo necessária uma negligência grosseira do sinistrado nessa violação, bastando uma negligência consciente que se entende já assumir a gravidade suficiente para o preenchimento deste pressuposto. Os fundamentos desta menor exigência ao nível da apreciação da conduta do sinistrado resultam da circunstância da negligência grosseira resultar já como causa autónoma de descaracterização do acidente de trabalho e, como tal, a violação de condições de segurança sem justificação tem que assumir diferente âmbito ou conteúdo normativo. Daí que esteja em causa uma negligência consciente que, por isso mesmo, já assume gravidade suficiente para justificar a descaraterização do acidente de trabalho, ou seja, impõe-se a verificação de dois requisitos: primeiro o conhecimento das condições de segurança pelo trabalhador e, segundo, a violação negligente destas regras de segurança da empresa. Contudo, esta posição não é isenta de críticas. Desde logo, há quem fale em violação “dolosa” ou em “intencionalidade ou dolo”. Por um lado, João Nuno Calvão da Silva defende que “só a culpa qualificada8 do trabalhador na violação das condições de segurança poderá interromper o nexo causal e afastar ou diminuir a responsabilidade do empregador”, sendo que a mesma tem que ser apreciada no âmbito do artigo 570.º, do Código Civil. Por outro lado, Júlio Gomes argumenta, numa primeira linha, que não estão em causa apenas violações de regras de segurança específicas da entidade empregadora pois a norma fala claramente em condições de segurança previstas na lei. Acresce, numa segunda linha, que a tese referida implica a necessidade de distinção entre formas ou modalidades de negligência, designadamente entre negligência inconsciente e consciente, grave e grosseira que tenha sido causa exclusiva do acidente, sem que estas distinções tenham um reflexo normativo. Por fim e, numa terceira linha, o resultado a que se chega com a teoria referida é exatamente o oposto da finalidade com que “foi desenvolvida em França a noção de `faute inexcusable´, mais tarde, `importada´ para o nosso ordenamento como `culpa grave e indesculpável´ e convertida, finalmente, em negligência grosseira, a saber, a de que apenas uma culpa extremamente grave do trabalhador serviria para `descaracterizar´ o acidente”. Na sequência destas críticas, Júlio Gomes apresenta uma interpretação alternativa, apelando, desde logo, ao elemento sistemático de interpretação pois esta causa de descaraterização do acidente de trabalho não está normativamente refletida em norma autónoma, mas antes surge associada aos comportamentos dolosos do trabalhador, o que significa que temos que estar perante situações suficientemente graves para surgirem quase equiparadas a situações dolosas. Acresce que historicamente a exclusão da responsabilidade surgia associada a situações de dolo, violações propositadas de ordens expressas emitidas pelo empregador ou atos que diminuam as condições de segurança no trabalho estabelecidas pela entidade patronal ou exigidas pela natureza particular do trabalho, violação não justificada das condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal e depois as violações das condições de segurança estabelecidas na lei, o que significa que a violação de regras de segurança foi sempre tratada como uma situação de desobediência próxima do dolo e não propriamente próxima da negligência. Para além disso, em matéria de acidentes de trabalho, em geral, “o trabalhador está inserido num ambiente que, no essencial, não controla” e que é propício à ocorrência de acidentes, em que a prevenção individual não pode ser mais importante do que a prevenção coletiva e, por isso, uma violação de condições de segurança sem negligência grosseira, não deve ser punida, por desproporcionalidade, com a “privação da reparação por acidentes de trabalho” mas apenas no plano disciplinar. Pelo que, a culpa que está em causa no presente preceito, parece ser mais próxima da falta indesculpável, da imprudência, desleixo ou descuido inútil, embora não intencional, ou seja, a negligência grosseira, sendo que a compatibilização com a norma prevista na alínea b) terá que ser feita a propósito da exclusividade causal dessa negligência grosseira para a ocorrência do acidente. Assim, temos que ter, no caso, uma violação, sem causa justificativa, por negligência grosseira [ainda que, causalmente, não exclusiva] de uma regra de segurança prevista na lei. (…) a propósito da alínea a), como resulta da norma e tem sido afirmado pela jurisprudência, tornando-se necessário para a verificação da analisada causa de descaracterização do acidente que o sinistrado viole regras de segurança que estejam estabelecidas por diretivas da entidade empregadora ou por disposição da lei, não está porém em causa, como se refere no Acórdão da Relação de Évora de 28 de Abril de 2017[14], a violação de todas e quaisquer regras de segurança e sim apenas as que são específicas da empresa ou da lei que estejam ligadas à própria execução da atividade que o sinistrado desempenhava e que visem acautelar ou prevenir a sua segurança, eliminando ou diminuindo os riscos para a sua saúde, vida ou integridade física. Como se assinalou no mesmo Acórdão, por apelo ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-05-2007[15], “consagrando-se, há muito, um regime específico no domínio da responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho, que assume um cariz acentuadamente objectivo – desprezando, por via de regra, a culpa, e abrangendo todas as situações em que o acidente se produza, por causa ou em função da actividade profissional do sinistrado, e faz recair a obrigação de indemnizar sobre a entidade empregadora, que está obrigada a transferir a responsabilidade infortunística para uma entidade seguradora –, facilmente se percebe que a lei só dispense o ónus de reparação quando o acidente tenha sido provocado por um comportamento particularmente censurável do próprio trabalhador, caso em que opera a chamada “descaracterização” do sinistro, arrimando-se aos fundamentos taxativamente enunciados agora no artigo 14.º da LAT (artigo 7.º da anterior LAT). Por isso, conclui-se no referido acórdão, «deve entender-se que a previsão legal, no caso da dita alínea a) [do n.º 1 do artigo 7.º da anterior LAT, actual alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT], não pretende abarcar todas e quaisquer “condições de segurança” – onde quer que elas venham previstas e independentemente dos seus destinatários – antes se reporta a especiais “condições de segurança” e com específicos destinatários». Já quanto à negligência groseira, face à noção atribuída pelo nº 3 da citada norma, teremos de estar perante um comportamento temerário em alto e relevante grau. Conforme se concretiza no Acórdão do STJ de 19/11/2014, proc. 177/10.7TTBJA.E1.S1, disp. in www.dgsi.pt, o comportamento temerário é aquele que se consubstancia numa “atuação perigosa, audaciosa e inútil, reprovada por um elementar sentido de prudência”. Sendo que, “há que destacar que a utilização da expressão “provier exclusivamente”, utilizada pelo legislador implica a existência de um nexo de causalidade adequada e exclusiva entre o comportamento caracterizável como negligência grosseira, assumido pelo sinistrado, e o evento lesivo. Neste sentido, podem consultar-se, por exemplo, o Acórdão do STJ de 22/06/2005, CJ/STJ, 2005, 2.º, pág. 269 e Acórdão da Relação do Coimbra de 27/01/2005, P. 3591/04)” (cfr. Acórdão do TRÉvora de 21/12/2017, proc. 572/15.5T8LRA.E1, disp. in www.dgsi.pt). Defendeu o TRÉvora, no seu Acórdão de 21/12/2017, proc. 572/15.5T8LRA.E1, supra citado, que “A definição de negligência grosseira contemplada pela norma, comporta: - um comportamento temerário (arriscado, imprudente, perigoso, arrojado); - em alto e relevante grau (o risco do comportamento é elevado, importante, significativo); - e que não resulte: da habitualidade ao perigo do trabalho executado (o contacto frequente, normal, com o risco inerente a um determinado trabalho tende a fazer “baixar” as defesas e cautelas do trabalhador); da confiança na própria experiência profissional (o conhecimento adquirido pela prática e a superação das dificuldades que vão surgindo nesse contexto, é geradora de confiança quer no evitar da concretização de riscos quer na obtenção de respostas e soluções para qualquer problema que surja); dos usos e costumes da profissão (práticas habituais, reiteradas ao longo do tempo, de uma forma generalizada e que implicam uma certa convicção da sua obrigatoriedade). A eventual procedência do alegado pela R. determinaria a descaracterização do acidente e, consequentemente, a sua desresponsabilização. Face às regras do ónus da prova, cabe à R. a prova não apenas da existência de violação sem causa justificativa de regras de segurança ou de negligência grosseira por parte do A., mas também do nexo de causalidade entre essa violação ou negligência e a eclosão do acidente. O Decreto-Lei nº 50/2005, de 25/02, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva nº 89/655/CEE, do Conselho, de 30/11, alterada pela Diretiva nº 95/63/CE, do Conselho, de 05/12, e pela Diretiva nº 2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27/06, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho, veio dispor sobre as prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho. Sendo que o seu artigo 2º alíneas a) e c) definem como equipamento de trabalho qualquer máquina, aparelho, ferramenta ou instalação utilizado no trabalho; e zona perigosa qualquer zona dentro ou em torno de um equipamento de trabalho onde a presença de um trabalhador exposto o submeta a riscos para a sua segurança ou saúde, pelo que a máquina aqui em causa se enquadra no âmbito de aplicação deste diploma legal. Quanto aos riscos de contacto mecânico, temos de atentar no artigo 16º, cujo nº 1 estabelece que “Os elementos móveis de um equipamento de trabalho que possam causar acidentes por contacto mecânico devem dispor de protetores que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas”. Esclarece o nº 2 que “Os protetores e os dispositivos de proteção: a) Devem ser de construção robusta; b) Não devem ocasionar riscos suplementares; c) Não devem poder ser facilmente neutralizados ou tornados inoperantes; d) Devem estar situados a uma distância suficiente da zona perigosa; e) Não devem limitar a observação do ciclo de trabalho mais do que o necessário. Por outro lado, o seu artigo 19º nº 1 estabelece que “As operações de manutenção devem poder efectuar-se com o equipamento de trabalho parado ou, não sendo possível, devem poder ser tomadas medidas de protecção adequadas à execução dessas operações ou estas devem poder ser efectuadas fora das áreas perigosas”. Refira-se ainda que a Lei nº 102/2009, de 10/09, que regulamenta o regime jurídico da promoção e prevenção da segurança e da saúde no trabalho, de acordo com o previsto no artigo 284º do CT, no que respeita à prevenção, prevê, no seu artigo 17º nº 1 alínea a) que “Constituem obrigações do trabalhador cumprir as prescrições de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador”. Por último, é também necessário atender à Portaria nº 53/71, de 03/02, que aprovou o Regulamento Geral de Segurança e Higiene do Trabalho nos Estabelecimentos Industriais, na redacção dada pela Portaria nº 702/80, de 22/09, que no seu artigo 40º determina, quanto à protecção e segurança das máquinas: “1 - Os elementos móveis de motores e órgãos de transmissão, bem como todas as partes perigosas das máquinas que accionem, devem estar convenientemente protegidos por dispositivos de segurança, a menos que a sua construção e localização sejam de molde a impedir o seu contacto com pessoas ou objectos. 2 - As máquinas antigas, construídas e instaladas sem dispositivos de segurança eficientes, devem ser modificadas ou protegidas sempre que o risco existente o justifique”. Estabelece o artigo 44º nº 1 que “Os protectores e os resguardos devem ser concebidos, construídos e utilizados de modo a assegurar uma protecção eficaz que interdite o acesso à zona perigosa durante as operações; não causar embaraço ao operador, nem prejudicar a produção; funcionar automaticamente ou com um mínimo de esforço; estar bem adaptados à máquina e ao trabalho a executar, fazendo, de preferência, parte daquela; permitir a lubrificação, a inspecção, a afinação e a reparação da máquina. Poderão ser constituídos por elementos metálicos, de madeira, material plástico ou outro que resista ao uso normal, não apresentando arestas vivas, rebarbas ou outros defeitos que possam ocasionar acidentes”. Sendo que o artigo 46º desta portaria estabelece que “As operações de limpeza, lubrificação e outras não podem ser feitas com órgãos ou elementos de máquinas em movimento, a menos que tal seja imposto por particulares exigências técnicas, caso em que devem ser utilizados meios apropriados que evitem qualquer acidente. Esta proibição deve estar assinalada por aviso bem visível”. No caso em apreço, a máquina em questão é uma máquina industrial, seccionadora, que se destina a cortar tiras de madeira, equipada com uma serra de corte e várias protecções de segurança, incluindo umas barbatanas para impedir o contacto directo do operador com as partes móveis da máquina, inclusive a serra de corte. Sendo que o acidente em causa nos autos se verificou em virtude de o A., em violação do aviso existente na máquina e do disposto nas normas supra citadas, nomeadamente nos artigos 40º e 46º da Portaria nº 53/71, de 03/02; 19º do Decreto-Lei nº 50/2005, de 25/02; e 17º da Lei nº 102/2009, de 10/09, ter introduzido, com a máquina ligada, a mão direita na zona das barbatanas e para lá destas, para retirar umas aparas, o que determinou o corte dos 2º a 5º dedos. Agiu o A. apesar de ter conhecimento do aviso existente na máquina que o proibia e não obstante saber que a operação de desencravamento das aparas só podia ser efectuada com a máquina desligada e que era proibido colocar as mãos no interior da máquina com esta em funcionamento. Ou seja, não obstante saber que não o devia fazer, decidiu-se o A., conscientemente, por tal comportamento temerário de introduzir a mão no interior da máquina, violando para isso a proibição de colocar a mão na zona das barbatanas, comportamento este de risco muito elevado e que não se pode afirmar que resultou da habitualidade ao perigo do trabalho realizado, à confiança na sua experiência profissional ou usos e costumes da profissão, na medida em que o A. apenas havia trabalhado com esta máquina cerca de 20 vezes num período total de dois anos, o que, em média, é inferior a 1 vez por mês. Tal comportamento foi causa exclusiva do acidente. Conclui-se, assim, e face ao supra exposto, pela aplicação do regime da descaracterização do acidente em causa nos autos por negligência grosseira do A. e, também, ainda que face ao alegado pela R., a título subsidiário, por violação, sem causa justificativa, das condições de segurança legalmente estabelecidas, nos termos previstos no artigo 14º nº 1 alíneas a) e b) do RJAT. Consequentemente, não há lugar à reparação dos danos decorrentes do acidente em discussão.” Face à citada fundamentação, que temos no essencial como convincente, não obstante o respeito que nos merece a posição que o Recorrente assume no presente recurso, de resto acompanhada pelo Ministério Público no parecer emitido, desde já avançamos que não encontramos razões para divergir da conclusão a que se chegou na decisão recorrida, ao ter concluído pela descaraterização do acidente como de trabalho. Vejamos o porquê do nosso entendimento: Em termos de enquadramento, porque o temos como relevante para o caso, também em face da natureza do seguro celebrado, começaremos por citar, por o acompanharmos, o texto do recente Acórdão desta Secção, de 3 de outubro de 2022[7], nos termos seguintes: «(…) Nos termos do art. 2º do DL 159/99, de 11 .05, que Regulamenta o seguro de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes, “O seguro de acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes rege-se, com as devidas adaptações, pelas disposições da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, [leia-se, actualmente, Lei 98/2009] e diplomas complementares, salvo no que adiante especificamente se refere.”. Ora, a norma aplicável ao caso de acidente de trabalho sofrido por trabalhador independente decorrente da violação de normas de segurança será o art. 14º da LAT, que prevê as situações de exclusão do direito à reparação (designadas de descaracterização do acidente de trabalho) e a Clª 5ª, nº 1, al. f) da Apólice Uniforme do seguro de acidentes de trabalho sofridos por trabalhador independente, aprovada pela Norma Regulamentar, nº 3/2009-R, de 08.01, a qual dispõe que “1. Além dos acidentes excluídos pela legislação aplicável, não ficam cobertos pelo presente contrato: (…) f) os acidentes que sejam consequência de falta de observância das disposições legais sobre segurança”. Aliás, a Recorrente, na contestação, havia enquadrado a exclusão do direito à reparação no art. 14º da LAT (…). Por fim, é de referir que entendemos que a clª 5ª, nº 1, al. f), da apólice Uniforme deverá ser aplicada e interpretada em consonância com o art. 14º, nº 1, al. a) e 2 da LAT. 3.3. O art. 14º, nº 1, al. a), da Lei 98/2009, de 04.09, dispõe [de forma essencialmente similar ao regime que provinha dos arts. 7º da anterior Lei 100/97, de 13.09 e 8º do DL 143/99, de 30.04] que: “1- O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; b) (…)”. Está em causa a 2ª parte do mencionado preceito [não foi alegado, nem se fez qualquer prova de factos integradores da verificação da 1ª parte do preceito]. Para que o acidente de trabalho seja, no caso previsto no citado art. 14, nº 1, al. a), 2ª parte, descaracterizado é necessária a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (a) existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou previstas na lei; (b) violação, por acção ou por omissão, dessas condições, por parte da vítima; (c) que a actuação desta seja voluntária e sem causa justificativa; (d) que exista um nexo de causalidade entre essa violação e o acidente, nexo de causalidade esse que não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao acidente - cfr. Acórdão do STJ de 26.09.2007, in www.dgsi.pt, Processo nº 07S1700, sendo ainda de salientar que, como decorre de tal aresto, para efeitos de descaracterização do acidente de trabalho se deverá atender ao nexo de causalidade adequada entre o comportamento da vítima e o acidente na sua formulação positiva [o facto só deve considerar-se causa adequada do dano que constitua uma consequência normal, típica, provável, dele], entendimento que mantém actualidade, se sufraga e a que pertence o seguinte excerto que passamos a transcrever: “Quando existe este nexo e que nexo? As diferentes teorias sobre a causalidade pretendem responder a esta questão: que relação deve existir entre o dano e o facto “para que este possa, sob a óptica especial do Direito, ser tratado como causa daquele”? Como é sabido, no processo causal conducente a qualquer dano concorrem em regra muitas circunstâncias. Nem todas, porém, integram o conceito de causa do dano. Podemos distinguir, antes de mais, entre aquelas sem cujo concurso o dano não teria ocorrido (cada uma dessas causas será uma verdadeira condição s. q. n. do dano) e aquelas cuja falta não teria obstado à verificação do evento lesivo, se bem que, na situação concreta, também tenham concorrido para ele. Do ponto de vista jurídico, há ainda que eleger de, entre as várias condições do dano, “as que legitimam a imposição, ao respectivo autor, da obrigação de indemnização”. Esta perspectiva conduz-nos à teoria da causalidade adequada, segundo a qual “para impor a alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (s.q.n.); é necessário ainda que, em abstracto, ou em geral, o facto seja causa adequada do dano”. Resta saber qual o critério que se deve usar para saber quando é que a condição é causa adequada do dano. Segundo alguns, “será causa adequada do dano, sempre que este constitua uma consequência normal ou típica daquele, ou seja, sempre que, verificado o facto, se possa prever o dano como uma consequência natural ou como um efeito provável dessa verificação” (corresponde à formulação positiva da causalidade adequada; neste sentido, Galvão Telles). Para outros, que advogam uma formulação mais ampla, o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, extraordinárias ou anómalas, que intercedem no caso concreto” (corresponde à formulação negativa devida a Enneccerus-Lehmann). Com esta formulação mais ampla tem-se, sobretudo, em vista garantir a indemnização ao lesado Interpretando o artº 563º do CC (onde se preceitua que: a «obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão»), A. Varela, depois de afirmar não haver elementos seguros, nem na letra, nem no espírito da disposição, que indique uma opção firme por parte da lei relativamente a uma das duas formulações (positiva e negativa) da causalidade adequada, acaba por concluir que a “doutrina mais criteriosa, quando a lesão proceda de facto ilícito (contratual ou extracontratual), é a formulação negativa…”. Noutras situações, designadamente, nos casos em que a obrigação de reparar assenta sobre um facto lícito do agente, a orientação mais defensável já será a que defende que um facto só deve considerar-se causa (adequada) do dano que constitua uma consequência normal, típica, provável dele. Há, ainda, que ter presente que “a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano”. (Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed, pg 881 a 900). Para Pessoa Jorge (Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, pg 392), “a orientação hoje dominante é a que considera causa de certo efeito a condição que se mostra, em abstracto adequada a produzi-lo, traduzindo-se essa adequação “em termos de probabilidade, fundada nos conhecimentos médios: se, segundo a experiência comum, é lícito dizer que, posto o antecedente X se dá provavelmente o consequente Y, haverá relação causal entre eles” 3. Como já referimos, a questão colocada consiste em saber se o acidente (de trabalho) deve ser descaracterizado com fundamento no disposto na 2ª parte da alínea a) do artº 7º da LAT. Também já ficou dito que a descaracterização do acidente, no caso da 2ª parte da alínea a) do nº 1 do citado preceito, exige a verificação cumulativa de vários requisitos, um deles, o nexo de causalidade entre a violação ali prevista (violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal) e o acidente. A Exmª Magistrada do MºPº sustenta que, no caso dos autos, falta este requisito e que, por isso, o acidente, tal como decidiu o tribunal recorrido (embora com outro fundamento: existência de causa justificativa para a actuação do autor), não pode ser descaracterizado. Vamos começar por aqui: verificar se existe ou não um nexo de causalidade (adequada) entre o comportamento da vítima e o acidente (de que resultaram as suas lesões e incapacidade). Frisa-se, antes de mais, que estamos perante um facto do próprio lesado e não de terceiro (lesante) e que no nosso sistema jurídico nada obsta a que, de acordo com as circunstâncias do facto concreto, se opte pela formulação positiva ou negativa da causalidade (adequada). Ora, se, como vimos, o fim visado pela formulação negativa é garantir a indemnização ao lesado, então na situação presente – em que se procura saber se o acidente deve ser descaracterizado com a consequente perda do direito à indemnização por parte do lesado/trabalhador - nada obsta, antes tudo aconselha, a que se recorra à formulação positiva (da causalidade) para se aferir se a conduta deste (trabalhador/lesado) foi causal do acidente de trabalho que o vitimou. É este o nosso entendimento. (…)” E, por outro lado e ainda quanto ao nexo causal, citando o acórdão do STJ de 03.02.2010, Proc. 304/07.1TTSNT.L1.S1, a afirmação do nexo causal entre o facto e o dano comporta duas vertentes: a vertente naturalística, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano e a vertente jurídica, que consiste em apurar se esse facto concreto pode ser havido, em abstracto, como causa idónea do dano ocorrido, não sendo possível estabelecer-se, por presunção, o nexo causal entre o acidente de trabalho e a violação de normas de segurança se se desconhece a dinâmica do acidente e quando o facto, tendo sido objecto de prova, foi dado como não provado. Assim também o Acórdão do STJ de 09.07.2014, Proc. 5395/08.5TBLRA.C1.S1, de cujo sumário consta que: “I – Adentro do nexo de causalidade entre o facto e o dano, o legislador nacional perfilhou a doutrina da causalidade adequada, integrante, num primeiro momento, de um nexo naturalístico que constitui matéria de facto, e, num segundo momento, de um nexo de adequação que constitui matéria de direito. II – Tendo sido “quesitada” factualidade integradora da existência daquele primeiro nexo e não tendo a mesma ficado provada, não pode a Relação tê-la por provada com base em presunções judiciais.”. E no Acórdão do STJ de 25.11.2010, Proc. 55/07.7TTLMG.P1.S1, em cujo sumário se refere que: “I. Apurando-se, apenas, que o acidente se verificou “quando o Autor cortava umas tábuas com uma máquina» e que esta máquina «não estava dotada de um elemento protector do disco de corte», desconhece-se o processo naturalísitico que, em concreto, lhe deu origem, pelo que não é possível afirmar a existência de nexo de causalidade entre a violação, por parte da empregadora, das normas de segurança no trabalho que lhe impunham dotar a ferramenta de corte da máquina dos adequados protectores e a eclosão do acidente.”. No que se reporta ao primeiro dos mencionados requisitos – violação de normas de segurança - está o mesmo relacionado com o disposto no art. 15º, nº 1, da Lei 102/2009, de 10.09, e que dispõe sobre as obrigações do empregador em matéria de segurança no trabalho, sendo o trabalhador independente, para tais efeitos, equiparado ao empregador, como determina o nº 3 do mesmo. E são diversas as obrigações aí referidas, em síntese, as de prever e acautelar devidamente as situações de risco na prestação de actividade, acrescendo as demais imposições legais específicas à natureza da actividade e risco a acautelar (…). No que toca ao segundo e terceiro requisitos - violação, por acção ou por omissão, dessas condições, por parte da vítima e que a actuação desta seja voluntária e sem causa justificativa -, com eles se prende a questão de saber se a causa de exclusão do direito à reparação prevista al. a) do art. 14º da LAT [assim como dos arts. 7º, nº 1, al. a), da Lei 100/97, de 13.09 e Base VI, nº 2, al. a), da Lei 2127, de 03.08.65, que antecederam a Lei 98/2009] exige, ou não, um comportamento negligente por parte do sinistrado, questão que não é pacífica, não acolhendo, designadamente, a unanimidade da doutrina. O Professor Pedro Romano Martinez, in Direito do Trabalho, 2013, 6ª Edição, Almedina, pág. 819 a 821, sobre a questão das causas de exclusão da responsabilidade no âmbito dos acidentes de trabalho refere que “A exclusão ou a redução da responsabilidade por acidentes de trabalho pode advir de motivos imputáveis à vítima. Corresponde a uma autorresponsabilização do trabalhador pela sua conduta”, mas que “não é qualquer atuação menos cuidada por parte do trabalhador que acarreta a exclusão ou a redução da responsabilidade; torna-se necessário que a falta tenha alguma gravidade.” E, mais adiante, a propósito da violação das condições de segurança, pelo sinistrado, sem causa justificativa, refere que: “Neste caso, o legislador exige somente que a violação careça de «causa justificativa», pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1, do art.º 14.º, do Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras. As condições de segurança, quando estabelecidas pela entidade patronal, podem constar de regulamento interno de empresa, de ordem de serviço ou de aviso afixado em local apropriado na empresa. As condições de segurança podem igualmente encontrar previsão na lei e, neste caso, incluem-se não só as regras de segurança no trabalho, como as que respeitam à segurança em outros sectores, nomeadamente na circulação rodoviária. Se o trabalhador, conhecendo as condições de segurança vigentes na empresa, as viola conscientemente e, por força disso, sofre um acidente de trabalho, não é de exigir a negligência grosseira do sinistrado nessa violação para excluir a responsabilidade do empregador.” Neste sentido, aponta, entre outros, o Acórdão do STJ 23.09.2009, www.dgsi.pt, Processo 323/04.0TTVCT.S1, no qual se entendeu que a descaracterização do acidente de trabalho com fundamento nessa alínea a) não depende da intensidade da culpa com que o sinistrado tenha atuado, nele se referindo o seguinte: “(…) E a discordância da recorrente é inteiramente pertinente quando alega que a violação das normas de segurança não está dependente da intensidade dessa violação, pois, como se disse no acórdão de 14.3.2007, deste Supremo Tribunal (www.dgsi.pt - processo 06S4907), a propósito da violação das normas de segurança, a alínea a) do art.º 7.º, n.º 1, da LAT “não exige qualquer comportamento doloso ou voluntário, mas unicamente a prática de acto ou omissão que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei”, mais entendendo que tal decorre da letra da lei e, bem assim, que tal se compreende “na medida em que a violação das condições de segurança, sem causa de justificativa, constitui um comportamento que denota já um acentuado grau de negligência, por não estar em causa a simples inobservância dos deveres gerais de cuidado, mas o incumprimento de específicos deveres de diligência estabelecidos pelo empregador ou previstos na lei que o trabalhador está obrigado a implementar, seja por força do dever de obediência a que está sujeito nos termos do contrato de trabalho (art.º 20.º, n.º 1, alínea c), da LCT (em vigor à data do acidente), seja por força do disposto no art.º 15.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 441/91, de 14 de Novembro. (…)” De tal entendimento discorda o Professor Júlio Gomes[15], in O Acidente de Trabalho, o acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, págs. 201 e segs, que, refere, para além de aprofundada análise à posição acima referida, o seguinte [págs. 240 e segs]: “Parece-nos, com efeito, que, tanto pelas razões históricas já atrás aduzidas, como para garantir a coerência do sistema face às consequências extremamente severas da descaracterização - com a exclusão de todas as prestações, ressalvando-se apenas o dever de prestar primeiros socorros e pedir auxílio – não pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave, ao que acresce que outras «justificações» poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se, também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito de tutela dos acidentes de trabalho. Essa culpa deverá ser aferida em concreto e não em abstrato, e não poderá deixar de atender a fatores como o excesso de confiança induzido pela própria profissão, a eventual passividade do empregador perante condutas similares no passado – até porque muitos especialistas sublinham que o desrespeito por regras de segurança resulta, muitas vezes, de o trabalhador tentar encontrar «atalhos» para produzir mais rapidamente, sobretudo quando lhe são impostos ritmos de produção muito elevados ou de o trabalho ter sido, anteriormente, elogiado ou apreciado, apesar de o empregador bem saber que tinha sido prestado com violação das condições de segurança – e, simplesmente, fatores fisiológicos e ambientais, como o cansaço, o calor ou o ruído existentes no local de trabalho”. E, nesta linha, pelo menos no que toca à existência de outras causas justificativas da violação de regras de segurança que não apenas as referidas no nº 2 do art. 14º da Lei 98/2009, se posicionou o Acórdão do STJ de 11.05.2017, Proc. 1205/10.1TTLSB.L1.S1, no qual se refere que “A posição defendida pelo Professor Júlio Manuel Vieira Gomes parece-nos bem conforme com os objetivos de uma lei que se pretende que seja o mais amplamente reparadora dos acidentes de trabalho, daí que se aceite que a violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, possa ter outras causas justificativas para além das referidas no n.º 2, do art.º 14, do Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais.”. E, no Acórdão do STJ de 13.10.2021, Proc. 3574/17.3T8LRA.C1.S1, a propósito da 2ª parte da al. a) do nº 1do art. 14º refere-se o seguinte: <<Veja-se, a título de exemplo, o acórdão de 19.11.2014, proferido no processo n.º 177/10.7TTBJA.E1.S1, e o acórdão de 26.06.2019, no processo 763/16.1T8AVR.P1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. No sumário deste último, na parte que aqui releva, a propósito da alínea a) do n.º 1, do art.º 14.º, da Lei n.º 98/2009, consta o seguinte: (...) «II. Em matéria de acidentes de trabalho a lei consagra a exclusão da responsabilidade do empregador em determinadas situações, estatuindo expressamente que aquele não tem de reparar os danos decorrentes do acidente sempre que se verifiquem as circunstâncias enunciadas no n.º 1, do art.º 14.º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro. III. A alínea a), do n.º 1, do art.º 14.º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, prevê duas hipóteses de descaracterização do acidente: uma, decorrente de atuação dolosa provocada pelo sinistrado e outra, prevista na segunda parte, se o acidente provier de ato ou omissão do sinistrado que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei. IV. A descaracterização do acidente prevista na segunda parte da alínea a), do n.º 1, do art.º 14.º, da citada lei, exige que: a) as condições e regras de segurança estabelecidas pelo empregador ou pela Lei se mostrem conexionadas com o risco decorrente da atividade profissional exercida, ligadas à própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua atividade laboral; b) o sinistrado tenha conhecimento de tais condições e regras de segurança; c) e que se verifique o nexo de causalidade entre o ato ou omissão cometida pelo trabalhador e o acidente de que este foi vítima, ocasionado por violação das referidas regras. (…)» Em comentário à mesma norma, mas da anterior LAT, Carlos Alegre [in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado – 2ª edição, Almedina, 2000, página 61], entende que o acidente só não dá direito a reparação, se se verificarem, cumulativamente, as seguintes condições: «1ª. Que sejam voluntariamente violadas as condições de segurança, exigindo-se, aqui, a intencionalidade ou dolo, na prática ou omissão, o que exclui as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os atos involuntários resultantes ou não da habituação ao risco; 2ª. Que as violações das condições de segurança sejam sem causa justificativa (do ponto de vista do trabalhador), o que passa pelo claro conhecimento do perigo que possa resultar do ato ou omissão: a causa justificativa não tem que ter um carácter lógico ou normal em relação à atividade laboral, pode ser uma brincadeira a que não se associam consequências danosas, uma inadvertência ou momentânea negligência, uma imprudência ou mesmo um impulso instintivo ou altruísta. 3ª. Que as condições de segurança sejam, apenas, estabelecidas pela entidade patronal (em regulamento de empresa, ordem de serviço ou outra forma de transmissão.» (…) Na verdade, não basta a mera violação das regras de segurança para que o acidente seja descaraterizado, sendo ainda necessário essa infração ocorra por culpa grave do trabalhador e que este tenha consciência da violação. Neste sentido, vide o acórdão deste Tribunal, proferido em 12.12.2017, no processo n.º2763/15.0T8VFX.L1.S1, também disponível em www.dgsi.pt, «[a] descaracterização do acidente de trabalho com fundamento na 2.ª parte da alínea a), do nº 1, do art.º 12º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro - violação das condições de segurança previstas na lei - exige que o trabalhador atue com culpa grave, que tenha consciência da violação, não relevando os casos de culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração ou ao esquecimento.” Seja como for, em ambas as posições doutrinais acima referidas, e assim também o consideramos, se entende que não será toda e qualquer violação de norma ou regra de segurança que imporá a “descaracterização” do acidente de trabalho, sendo certo que também na posição do Professor Pedro Romano Martinez “não é qualquer atuação menos cuidada por parte do trabalhador que acarreta a exclusão ou a redução da responsabilidade; torna-se necessário que a falta tenha alguma gravidade.”. Com efeito, diga-se que, a nosso ver, tanto a intensidade da culpa, como também a própria gravidade da infracção são susceptíveis de gradação [assim, e tomando como exemplo, a segurança rodoviária, o excesso de velocidade será tanto mais grave quanto maior for o excesso], às mesma se podendo e devendo atender no âmbito da al. a), 2ª parte, do art. 14º. E, por outro lado, afiguram-se-nos na verdade redutoras as causas justificativas da violação referidas no nº 2 do art. 14º, sendo que se acompanha o entendimento do mencionado Acórdão do STJ de 11.05.2017, nos termos do qual, como se sintetiza no seu sumário, “os objectivos reparadores da Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais permitem que se aceite que a violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, possa ter outras causas justificativas, para além das referidas no nº 2, do art. 14, do referido diploma legal.” Por fim, constitui jurisprudência pacífica que o ónus de alegação e prova dos factos integradores da descaracterização do acidente de trabalho (porque impeditivas do direito à reparação – art. 342º, nº 2, do Cód. Civil) recaem sobre a entidade responsável pela reparação do mesmo. 3.4. No que se reporta à causa de exclusão prevista na al. b) do nº 1 do citado art. 14º, dispõe este que o acidente que provenha exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado não confere o direito à reparação e, o nº 3 do mesmo preceito, que “3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.” E, quanto a esta causa de descaracterização, como é pacífico na doutrina e jurisprudência, para que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, como negligência, imprudência, distracção, imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário, reprovado por elementar sentido de prudência. Como se diz na norma, exige-se que seja um comportamento temerário em alto e relevante grau. Com efeito: A negligência consubstancia-se na omissão de um dever objetivo de cuidado ou de diligência adequados, segundo as circunstâncias concretas de cada caso, a evitar a produção de um determinado evento. Porém, a negligência pode assumir gravidade diferente, sendo usual a distinção entre a negligência consciente e inconsciente e, em função da intensidade da ilicitude (a violação do cuidado objectivamente devido) e da culpa (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais), entre a negligência lata ou grave, leve e levíssima. Na negligência consciente, o agente prevê a produção do resultado lesivo como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação; na inconsciente, o agente, por inconsideração, descuido, imperícia ou inaptidão, não concebe a possibilidade do resultado lesivo se verificar, podendo e devendo embora prevê-lo e evitar a sua verificação. Exigindo a lei, como pressuposto da descaracterização, a negligência grosseira, «o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras. (…). A negligência lata ou grave confina com o dolo e parece ser, sem dúvida, a esta espécie de negligência que se refere o legislador ao mencionar a negligência grosseira: é grosseira, porque é grave e por ser aquela que in concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bonus pater-familias.» - cfr. Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, a págs. 63. A própria lei, no nº 3 do art. 14º [tal como já o entendia o antecedente art. 8º, nº 2, do DL 143/99], aponta para uma negligência particularmente grave, considerando como negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau. Como se refere no Ac. do STJ de 29.11.05, proferido na Revista nº 1924/05-4 (Proc. nº 124/2000., do TT Porto, 1º Juízo, 3ª Secção), «a figura da negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.». E, citando o Acórdão do STJ de 03.03.2016, Processo 568/10.3TTSTR.L1.S1, nele se refere que: “Trata-se da consagração da doutrina que se foi firmando no domínio da Lei nº 2127, de cuja base VI, nº 1, alínea b) resultava que não dava direito a reparação o acidente de trabalho que proviesse, exclusivamente, de falta grave e indesculpável da vítima, pois segundo a doutrina que se foi firmando, com foros de unanimidade, no domínio desta LAT, só assumia esta natureza um comportamento temerário do sinistrado, inútil para o trabalho, indesculpável e reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, vendo-se neste sentido os acórdãos do STJ de 20/9/88, BMJ 379/527 e de 12/5/99, BMJ 487/208. Também para a descaracterização do acidente de trabalho à luz da alínea b), do nº 1, do artigo 14º da actual LAT, o legislador optou claramente pela modalidade mais grave da culpa, pois só uma falta grave, indesculpável e exclusiva da vítima é que é apta a produzir tal efeito, não tendo esta virtualidade os comportamentos do sinistrado que constituam meras imprudências, inconsiderações, irreflexões ou leviandades. Efectivamente, a culpa consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que é de aferir em abstracto – cfr. Vaz Serra, RLJ, 11º – 151, podendo nela distinguirem-se três graus: - culpa levíssima, que é aquela que só as pessoas extremamente diligentes podem evitar; - o de culpa leve, que é aquela em que não cairia uma pessoa de vigilância ou diligência média; - o de culpa grave, que é aquela em que o agente usa de uma diligência abaixo do mínimo habitual, procedendo como pessoa extremamente desleixada Por outro lado, e para Galvão Teles, Direito das Obrigações 274, 4ª edição, quer a culpa grave quer a leve correspondem a condutas de que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater - se absteria, consistindo a diferença entre elas em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida, apresentando-se por isso como uma culpa grosseira, correspondente à “magna negligentia” dos romanos. Já dissemos que para a descaracterização do acidente de trabalho à luz da alínea b) do artigo 14º da LAT, o legislador optou claramente pela modalidade mais grave da culpa, pois só a negligência grosseira e exclusiva do sinistrado é que é apta a produzir tal efeito. Por isso e desde logo temos que afastar da descaracterização do acidente aqueles comportamentos da vítima que constituam meras imprudências, inconsiderações irreflexões ou leviandades, pois é preciso que o comportamento do sinistrado assuma o alto grau de censura e reprovação correspondente ao exigido para a negligência grosseira.”. Mais se exige, para que se se verifique a causa de exclusão prevista na al. b), do nº 1, do art. 14º, que o evento seja imputado, mediante o estabelecimento do nexo de causalidade, exclusivamente, ao comportamento grosseiramente negligente do sinistrado, o que implica a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção. (…)» Na consideração do regime que antes se expôs, que importa aplicar ao caso concreto que se decide, no que se reporta à violação de normas de segurança relativas à utilização da máquina pelo Autor / sinistrado, sem dúvidas que ocorre tal violação, como ainda, do mesmo modo, que se provou também o nexo causal entre a mencionada violação e a ocorrência do acidente, nos termos afirmados na sentença recorrida, para a mesma se remetendo. Com efeito, na consideração, como dito no Acórdão antes transcrito, que a norma aplicável ao caso de acidente de trabalho sofrido por trabalhador independente decorrente da violação de normas de segurança será o art. 14º da LAT, que prevê as situações de exclusão do direito à reparação (designadas de descaracterização do acidente de trabalho) e a Clª 5ª, nº 1, al. f) da Apólice Uniforme do seguro de acidentes de trabalho sofridos por trabalhador independente, aprovada pela Norma Regulamentar, nº 3/2009-R, de 08.01, na respetiva aplicação ao caso que apreciamos, como na sentença recorrida se refere, para onde remetemos pois em termos de prescindirmos aqui da sua repetição, importará ter presente, sem esquecermos o que se dispõe no n.º 1, alínea a), da Lei n.º 102/2009, de 10/09, que regulamenta o regime jurídico da promoção e prevenção da segurança e da saúde no trabalho – assim que: “Constituem obrigações do trabalhador cumprir as prescrições de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador” –, o que resulta, desde logo, do Decreto-Lei nº 50/2005, de 25/02 – assim o disposto nos seus artigos 2.º (sobre definição de equipamento de trabalho), 16.º, n.ºs 1 e 2 (o primeiro sobre riscos e proteção a respeito de contacto mecânico, quanto aos elementos móveis de um equipamento de trabalho que possam causar acidentes por contacto mecânico, e o segundo, por sua vez, sobre o que é exigido quanto aos protetores e os dispositivos de proteção) e 19.º, n.º 1 (a respeito do modo como devem efetuar-se as operações de manutenção) –, como ainda, também, o que se encontra determinado nos artigos 40.º e 44.º e 46.º da Portaria nº 53/71, de 03/02 – o primeiro sobre dispositivos de segurança / proteção dos elementos móveis de motores e órgãos de transmissão, bem como todas as partes perigosas das máquinas que acionem, o segundo, por sua vez, a respeito do modo como os protetores e resguardos devem ser concebidos, construídos e utilizados e no último, em particular, que “As operações de limpeza, lubrificação e outras não podem ser feitas com órgãos ou elementos de máquinas em movimento, a menos que tal seja imposto por particulares exigências técnicas, caso em que devem ser utilizados meios apropriados que evitem qualquer acidente” . Esta proibição deve estar assinalada por aviso bem visível” –, em termos de podermos dizer, como nessa sentença, que, no caso, em face do que se provou, pois que apenas aí se pode basear a conclusão[8], “a máquina em questão é uma máquina industrial, seccionadora, que se destina a cortar tiras de madeira, equipada com uma serra de corte e várias protecções de segurança, incluindo umas barbatanas para impedir o contacto directo do operador com as partes móveis da máquina, inclusive a serra de corte”, não se podendo assim dizer que não cumpra as prescrições de segurança exigidas, sendo que, mais uma vez apenas em face do que se provou, nesse contexto, a única causa provada para a ocorrência do acidente que aqui se aprecia foi a clara violação, pelo Autor, como se concluiu na sentença, do que resulta das nas normas supra citadas, nomeadamente nos artigos 40.º e 46.º da Portaria n.º 53/71, de 03/02, 19.º do Decreto-Lei nº 50/2005, de 25/02, e 17.º da Lei nº 102/2009, de 10/09, ao ter introduzido, com a máquina ligada – apesar do aviso existente na máquina –, a mão direita na zona das barbatanas e para lá destas, para retirar umas aparas, o que determinou o corte dos 2º a 5º dedos, sendo que, mais uma vez como se refere na mesma sentença, que acompanhamos, assim agiu apesar de ter conhecimento do aviso existente na máquina, que o proibia, e não obstante saber, também, que a operação de desencravamento das aparas só podia ser efetuada com a máquina desligada e que era proibido colocar as mãos no interior da máquina com esta em funcionamento. Do mesmo modo, no contexto do caso, quando se considerou que a atuação do Autor não pode deixar de considerar-se como tendo sido consciente – ao ter-se provado designadamente que, sabendo que uma operação de desencravamento das “aparas” de madeira só pode ser efetuada com a máquina desligada e que era proibido colocar as mãos no interior da máquina com a mesma em funcionamento, para tentar desencravar a máquina, introduziu a sua mão direita no interior da máquina, ultrapassando a zona das “barbatanas”, com a máquina ligada e a serra de corte em funcionamento –, como ainda, de seguida, ao ter qualificado como temerário esse seu comportamento de introduzir a mão no interior da máquina, pois que, como aí se diz, trata-se objetivamente, de resto aos olhos de qualquer pessoa colocada em termos de normalidade na situação em que se encontrava, de um comportamento “de risco muito elevado”, que, de resto, sequer encontra, em face do que se provou, explicação com uma qualquer consideração de fatores relacionados com a habitualidade ao perigo do trabalho realizado, ou de confiança na sua experiência profissional ou usos e costumes da profissão – “na medida em que o A. apenas havia trabalhado com esta máquina cerca de 20 vezes num período total de dois anos, o que, em média, é inferior a 1 vez por mês”. Acrescente-se também, a propósito do preenchimento da previsão da alínea a), do n.º 1, do artigo 14.º do RJAT chamado à aplicação, sendo verdade que da mesma resulta – e tem sido afirmado pela jurisprudência – que se torna necessário, para a verificação da prevista causa de descaracterização do acidente, que o sinistrado viole regras de segurança que estejam estabelecidas por diretivas da entidade empregadora ou por disposição da lei, sem que, porém, como aliás o dissemos já em outros Arestos – de entre os quais deste mesmo coletivo, assim no Acórdão de 22 de fevereiro de 2021[9] –, esteja em causa a violação de todas e quaisquer regras de segurança e sim, apenas, as que são específicas da empresa ou da lei que estejam ligadas à própria execução da atividade que o sinistrado desempenhava e que visem acautelar ou prevenir a sua segurança, eliminando ou diminuindo os riscos para a sua saúde, vida ou integridade física, são precisamente estas últimas que estão em causa no caso, sendo que se trata, no caso, repete-se, como já o dissemos, de uma mera violação dessas regras de segurança e sim, noutros termos, de uma infração que ocorre por culpa grave do trabalhador e com consciência nessa violação. De resto, como também já resulta do que antes dissemos, a factualidade provada preenche também, na nossa ótica, a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, a que se alude também na sentença, pois que, como a norma o exige, estamos perante acidente que se deveu, exclusivamente, a um comportamento, culposo em alto grau, apenas do Sinistrado. Deste modo, concluindo, face aos elementos dos autos, por aplicação dos critérios antes enunciados a esse respeito, consideramos que ocorre fundamento bastante para a descaraterização, no caso, do acidente. Decaindo no recurso, o Apelante é responsável pelas custas (artigo 527.º do CPC). * Sumário – a que alude o artigo 663º, nº 7, do CPC:……………………………… ……………………………… ……………………………… *** IV. Decisão:Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, procedendo parcialmente na parte dirigida à impugnação da matéria de facto, em declarar no mais improcedente a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida. Custas pelo Recorrente. Porto, 23 de janeiro de 2023 (assinado digitalmente) Nelson FernandesRita Romeira Teresa Sá Lopes ______________ [1] Proc. 304/07.1TTSNT.L1.S1 [2] Proc. 5395/08.5TBLRA.C1.S1 [3] CPC ANOTADO, III, pág. 212 [4] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora Lda, 1993, pág.194. [5] Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra – 1982; pág. 268 [6] Relator Conselheiro Melo Lima, in www.dgsi.pt. [7] Relatora Desembargadora Paula Leal de Carvalho, in www.dgsi.pt. [8] Dissemos com base no que se provou, pois que, salvo o devido respeito, aí não encontram qualquer suporte as considerações do Recorrente, quando vem questionar a razão por que não funcionaram os diversos mecanismos de segurança da máquina – afirmando nomeadamente: “A resposta só pode ser a avaria desses mecanismos de bloqueio e proteção”; “a máquina não foi inspecionada”, pelo que “ficamos sem saber se é uma máquina antiga cujos dispositivos de segurança necessitavam de ser modificados”, não sendo assim possível também “saber se a máquina tinha desconformidades, isto é se os protetores, que deviam impedir o acesso às zona perigosas da máquina ou os dispositivos que interrompem o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas, estavam operacionais e em bom funcionamento”, sendo que “era a Ré/seguradora que tinha o ónus dessa prova; atenta a matéria a dada provada tudo indica que os dispositivos de proteção ou não eram eficazes ou não estavam operacionais, sendo que, no que concerne ao aviso existente na máquina (fotografia de fls. 94 verso) também nada ficou provado relativamente ao local (visível ou menos visível ?) onde estava colocado”, a que acresce que “tal aviso está redigido em diversas línguas sem que a legenda em português seja sequer a primeira da lista e por outro alude aos prensadores e não à serra de corte, o que tudo prejudica a eficácia da mensagem transmitida”) [9] Apelação 2577/18.5T8OAZ.P1 |