Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA JOANA GRÁCIO | ||
Descritores: | METADADOS DADOS DE TRÁFEGO LOCALIZAÇÃO CELULAR DADOS CONSERVADOS POR OPERADORA DE COMUNICAÇÕES DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE | ||
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Nº do Documento: | RP2023032947/22.6PEPRT-Z.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/29/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 4.º, conjugado com os artigos 6.º e 9.º, todos da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, não impede a possibilidade de se autorizar a obtenção de dados de tráfego ou de localização celular conservados no âmbito da Lei n.º 41/2008, de 18 de agosto, com fundamento no artigo 189.º, n.º 2, do Código de processo Penal. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 47/22.6PEPRT-Z.P1 Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 1 Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto I. Relatório No âmbito do Inquérito n.º 47/22.6PEPRT, a correr termos na 4.ª Secção do DIAP do Porto, por despacho de 03-01-2023, foi formulada, e posteriormente apresentada ao Senhor Juiz de Instrução, a seguinte promoção: «(…) Remeta os autos ao Mmo. JIC junto junto do Juízo de Instrução Criminal do Porto –J1 com a seguinte promoção: Com referência aos números ... e ... ambos a operar na rede A... e sob intercepção telefónica, seja solicitada informação junto de tal operadora de telecomunicações móveis, o seguinte: - os eventos e não eventos de rede, fluxo de comunicações bidirecionais, chamadas de voz, SMS e MMS convencionais ou por internet e respetivas células de localização ativadas, nas seguintes datas/horas: - Entre as 02H00 e as 03H00 dia 02-06-2022; - Entre as 23H00 do dia 13-09-2022 e as 05H00 do dia 14-09-2022; - Entre as 23H00 do dia 14-09-2022 e as 05H00, do dia 15-09-2022; - Entre as 23H00 do dia 03-10-2022 e as 05H00 do dia 04-10-2022; - Entre as 04H00 e as 05H00 do dia 07-10-2022; - Entre as 23H00 do dia 10-10-2022 e as 05H00 do dia 11-10-2022; - Entre as 01H00 e as 02H00 do dia 22-11-2022; - Entre as 01H00 e as 05H00 do dia 23-11-2022; - Entre as 01H00 e as 05H00 do dia 28-11-2022; - Entre as 01H00 e as 05H00 do dia 30-11-2022. Fundamenta-se este pedido nos moldes que seguem: Os dados ora solicitados – se deferidos – permitirão consolidar a recolha de prova relativamente à autoria dos crimes, possibilitando “colocar” no espaço e no tempo dos factos aqueles relativamente aos quais se suspeita tenham sido os seus autores, que estão, de resto, sob escuta. Enfatiza-se, neste particular, que estamos perante alvos/suspeitos extremamente avisados, alertados e cautelosos que praticam os factos encapuzados e enluvados para – como se disse previamente aquando da primeira promoção para escutas telefónicas - iludirem a actividade probatória da Justiça, pois, sabem que, agindo dessa forma, obstaculizam a recolha de vestígios lofoscópicos e inviabilizam os reconhecimentos pessoais. Baseia-se o ora solicitado no preceituado nos artigos 187.º, n.ºs 1, al. a) e 4, 189.º e 269.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal. Em caso de deferimento, solicita-se que os elementos pretendidos sejam enviados aos autos em suporte técnico digital, para melhor analise.» * Por despacho de 05-01-2023, o Senhor Juiz de Instrução do Juízo de Instrução Criminal do Porto, Juiz 1, fez recair sobre a apontada promoção a seguinte decisão:«(…) No que respeita à promovida obtenção de eventos e não eventos de rede, fluxo de comunicações bidirecionais, chamadas de voz, SMS e MMS convencionais ou por internet e respetivas células de localização ativadas, relativamente aos números ... e ..., considerando que, nos termos do art.º 4.º, n.º 1, al.s c) e f) da Lei 32/2008, de 17.JUL, essas informações dizem respeito a dados de tráfego e que esses normativo (bem como os seus art.ºs 6.º e 9.º) foram declarados inconstitucionais, pelo ac. do Tr. Constitucional n.º 268/2022, de 19.ABR, com força obrigatória geral, não pode dar-se acolhimento a tal pretensão do M. Público, que vai, assim, indeferida.» * Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso desta decisão, solicitando a respectiva revogação e a sua substituição por uma outra que autorize a obtenção de dados a que se reporta a promoção do Ministério Público objecto de indeferimento, apresentando em apoio da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição): «1.º Conforme admitido pelo disposto nos artigos 187.º a 189.º o Ministério Público promoveu a obtenção de eventos e não eventos de rede, fluxo de comunicações bidirecionais, chamadas de voz, SMS e MMS convencionais ou por internet e respetivas células de localização ativadas. 2.º O Mmo. Juiz de Instrução Criminal indeferiu o referido segmento da promoção do Ministério Público por considerar ser inconstitucional a obtenção desses elementos, ao abrigo do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022. 3.º Contudo, tal indeferimento é produto de uma indevida leitura do Acórdão do Tribunal Constitucional, já que o promovido não se prende com o regime constante da Lei 32/2008, mas sim com o estipulado nos artigos 167.º, n.º 1, 187.º, n.º 1, alínea a), 4 e 189.º, do Código de Processo Penal, normas habilitantes para obter os dados de tráfego e localização, conservados e em tempo real. 4.º Estes artigos do C.P.P., não foram revogados pela Lei 32/2008, de 17 de julho, quer de forma expressa, tácita ou sistemática, mantendo-se plenamente em vigor. 5.º A declaração de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional não abrangeu estes preceitos normativos. 6.º Assim, seria sempre de deferir a obtenção de eventos e não eventos de rede, fluxo de comunicações bidirecionais, chamadas de voz, SMS e MMS convencionais ou por internet e respetivas células de localização ativadas, nos termos dos artigos 187.º, n.º 1, alínea a) e 4, 189.º. do C.P.P (regime aplicável aos autos), não constituindo qualquer meio ilícito de obtenção de prova. 7.º O Mmo. Juiz de Instrução Criminal ao sufragar o entendimento vertido no segmento da decisão ora impugnada, violou, assim o disposto nos artigos 125.º, 126.º, 187.º, 189.º e 262.º todos do Código de Processo Penal.» * Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido propugnado pelo recorrente, defendendo o provimento do recurso e a consequente autorização de recolha de dados como requerido, posto que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral invocada na decisão recorrida não impede a obtenção dos dados de tráfego e de localização na investigação dos crimes de catálogo constante do artigo 187º nº 1 do CPP, determinada por juiz nos termos do artigo 189º nº 2 do mesmo código relativamente aos últimos seis meses.* Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento dos recursos.* II. Apreciando e decidindo:Questões a decidir no recurso É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1]. A única questão que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso é a de saber se é possível obter os dados de tráfego e localização celular solicitados, por não se aplicar ao caso os efeitos da declaração de inconstitucionalidade decorrentes do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022. * Vejamos.O pedido do Ministério Público que deu origem ao presente recurso é muito específico, abrangendo, com referência aos números ... e ... ambos a operar na rede A... e sob intercepção telefónica, (…) os eventos e não eventos de rede, fluxo de comunicações bidirecionais, chamadas de voz, SMS e MMS convencionais ou por internet e respetivas células de localização ativadas, nas seguintes datas/horas: - Entre as 02H00 e as 03H00 dia 02-06-2022; - Entre as 23H00 do dia 13-09-2022 e as 05H00 do dia 14-09-2022; - Entre as 23H00 do dia 14-09-2022 e as 05H00, do dia 15-09-2022; - Entre as 23H00 do dia 03-10-2022 e as 05H00 do dia 04-10-2022; - Entre as 04H00 e as 05H00 do dia 07-10-2022; - Entre as 23H00 do dia 10-10-2022 e as 05H00 do dia 11-10-2022; - Entre as 01H00 e as 02H00 do dia 22-11-2022; - Entre as 01H00 e as 05H00 do dia 23-11-2022; - Entre as 01H00 e as 05H00 do dia 28-11-2022; - Entre as 01H00 e as 05H00 do dia 30-11-2022. Ainda segundo o recorrente, o pedido baseia-se no preceituado nos artigos 187.º, n.ºs 1, al. a) e 4, 189.º e 269.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal. Segundo o recorrente, os dados solicitados, embora sejam ainda dados de contexto e não dados de conteúdo, resultam da obtenção de dados facultada com as intercepções de comunicações em tempo real e não de dados que se mostrem arquivados, armazenados antecipadamente nas operadoras. A ser assim, concordamos desde já com o recorrente, uma vez que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade da Lei 32/2008, de 17-07, constante do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19-04, não afecta os dados de tráfico gerados concomitantemente aos dados de conteúdo, posto que, uns e outros, se mostram obtidos em tempo real. Neste sentido se pronunciaram os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto[2] de 18-01-2023, relatado por João Pedro Pereira Cardoso no âmbito do Proc. n.º 47/22.6PEPRT-P.P1, e de 08-02-2023, relatado por Raul Esteves no âmbito do Proc. n.º 344/20.5IDPRT-A.P1, o qual a aqui relatora votou como adjunta. Como se pode ver pela identidade numérica, aquele primeiro acórdão foi proferido no âmbito de recurso suscitado neste mesmo processo. Compulsados os autos, constatamos que por despacho de 15-11-2022 o Ministério Público promoveu que, entre outros, relativamente aos dois números de telefone aqui em causa e respectivo IMEI fosse determinada, ao abrigo dos arts. 187.º, n.º 1, al. a) e 269.º, n.º 1, al. e), ambos do CPPenal, a intercepção e gravação de todas as conversações, SMS, MMS e comunicações fax de e para os referidos números, por um período de 90 dias, solicitando ainda localização celular, registo de trace-back e comunicações em roaming. E verificamos também que, por despacho de 18-11-2022, o Senhor Juiz de Instrução deferiu à requerida intercepção e gravação das comunicações efectuadas de e para os cartões SIM com os números indicados, mas indeferiu o pedido de facturação detalhada onde constem as chamadas efectuadas e recebidas (trace-back), bem como a informação das células activadas durante as conversações e a identificação dos números que os contactem e as comunicações em roaming, considerando que, nos termos do art. 4.º, n.º 1, als. c) e f) da Lei 32/2008, de 17-07, essas informações dizem respeito a dados de tráfego e que esses normativos (bem como os seus arts. 6.º e 9.º) foram declarados inconstitucionais pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19-04, com força obrigatória geral, não podendo dar-se acolhimento a tal pretensão do Ministério Público. O supramencionado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-01-2023, relatado por João Pedro Pereira Cardoso no âmbito do Proc. n.º 47/22.6PEPRT-P.P1, recaiu sobre o recurso interposto deste despacho, vindo a reconhecer razão ao recorrente e determinando, a final, que fosse solicitada obtenção em tempo real, durante o prazo de 90 dias, da faturação detalhada, onde constem chamadas efetuadas e recebidas (trace-back), bem como a informação das células ativadas durante as conversações e a identificação dos números que os contactem e as comunicações em roaming relativamente a números e IMEI indicados na promoção de 15.11.2022. Significa isto que uma parcela da solicitação que aqui se aprecia, aparentemente, já estaria resolvida. Porém, observando bem as datas dos eventos indicados na promoção objecto do despacho recorrido (entre os dias 02-06-2022 e 30-11-2022) verificamos que na sua maioria se situam antes da prolação daquele primeiro despacho de autorização das intercepções telefónicas, datado de 18-11-2022, e todos respeitam a momento em que ainda não tinham iniciado as intercepções telefónicas, conforme resulta dos relatórios juntos aos autos principais. Ou seja, aos elementos solicitados na promoção de 03-01-2023 não será aplicável a jurisprudência que fundamentou os arestos apontados, posto que estão em causa dados de tráfico anteriores às intercepções de comunicações, e por isso não foram obtidos em tempo real e concomitante com aquelas, antes encontrando-se já armazenados. Ainda assim, será possível a sua obtenção, como sustenta a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no parecer que emitiu, apoiando-se na posição de Rui Cardoso[3] e na circunstância de o pedido formulado se fundamentar no art. 189.º, n.º 2, do CPPenal e na Lei 41/2004 e não na Lei 32/2008? A resposta a esta questão não prescinde de um relance sobre a evolução legislativa relativamente à concreta questão da obtenção de dados de tráfego e de localização celular já existentes para efeitos de investigação criminal, isto é, que não sejam gerados concomitantemente aos dados de conteúdo interceptados, pois esses, como se referiu, beneficiam do regime destes, estando salvaguardados da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral inscrita no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 que expressamente os excepcionou. Delimitando a análise que importa realizar, podemos desde já ter por certo que o tipo de crime que está em causa neste processo – furto qualificado, p. e p. arts. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, al. e), do CPenal, e falsificação de documento qualificado, p. e p. pelos arts. 256.º, n.ºs 1, als. a) e e), e 3, por referência ao art. 255.º, al. a), todos do CPenal – não se enquadra nos crimes de catálogo da Lei 32/2008, de 17-07. Com efeito, este diploma visa regular, e regula, a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes (art. 1.º). Por crimes graves para efeitos da Lei 32/2088, de 17-07, deve entender-se, segundo se enuncia no seu art. 2.º, n.º 1, al. g), crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou de títulos equiparados a moeda, contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atos preparatórios da contrafação e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima. As noções de terrorismo, criminalidade violenta e criminalidade altamente organizada devem ser extraídas do disposto no art. 1.º, als. i), j) e m) do CPenal, segundo as quais, respectivamente, integram o conceito de terrorismo as condutas que incluem os crimes de infrações terroristas, infrações relacionadas com um grupo terrorista, infrações relacionadas com atividades terroristas e financiamento do terrorismo, o de criminalidade violenta as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos e o de criminalidade altamente organizada as condutas que integrarem crimes de associação criminosa, tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência, participação económica em negócio ou branqueamento. Os crimes que se investigam nos presentes autos nunca estariam a coberto da Lei 32/2008, de 17-07, mesmo que sobre os seus arts. 4.º, em conjugação com o art. 6, e 9.º não tivesse recaído qualquer declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral[4]. Assim, as questões que importa apreciar são as de saber i) se antes da entrada em vigor da Lei 32/2008, de 17-07, e para o tipo de crime que aqui se analisa, era possível o acesso a dados de tráfego e localização celular já existentes e, por isso, armazenados, ii) se durante a vigência daquele diploma alguma coisa mudou e, por fim, iii) se com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das apontadas normas da Lei 32/2008, de 17-07, alguma alteração ao regime que em concreto se analisa ocorreu. Como desenvolvidamente aprecia Rui Cardoso[5], que aqui seguiremos de perto, dada a extensão e profundidade da sua análise, na qual, no essencial e para o que aqui releva, nos revemos, nesta controvérsia não é posta em causa a possibilidade de utilização de metadados como meio de prova, faculdade legal que naquele acórdão do Tribunal Constitucional não é questionada, nem a declaração de inconstitucionalidade das apontadas normas da Lei 32/2008, de 17-07, permite tal ilação. Os «”metadados das telecomunicações” são os dados das mesmas que não são comunicados: são os dados sobre os dados comunicados; são os dados gerados antes e durante o processo de comunicação, que estão na posse dos fornecedores desses serviços (doravante, apenas FS). Não são o conteúdo comunicado: o som (incluindo a voz), a imagem (estática ou dinâmica), o texto, os dados informáticos em geral.»[6] Os metadados das comunicações são meio de prova que podem assumir diferentes formas, podem traduzir-se numa factura detalhada (em papel ou formato digital) ou no registo de informação sobre uma determinada comunicação, nomeadamente a localização geográfica da sua ocorrência. O problema subjacente à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas da Lei 32/2008, de 17-07, não está na possibilidade de recurso a metadados em si como meio de prova, está antes na possibilidade de conservação desses dados, dessas informações, e de acesso aos mesmos para que sejam utilizados como meio de prova no âmbito do processo penal. Na verdade, se a própria intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas, prevista e regulada pelos arts. 187.º a 190.º do CPPenal, não suscita por si mesma qualquer juízo de inconstitucionalidade, representando esta ingerência o mais elevado grau de intromissão na vida privada e no sigilo das comunicações, dificilmente se compreenderia que a utilização de dados de tráfego ou de localização celular como meio de prova, que representam, reconhecidamente, um nível de intromissão sensivelmente menos relevante, pudesse justificar um tal juízo. Atente-se que, conforme se indicou no pedido de declaração de inconstitucionalidade apresentado pela Provedora de Justiça de que emergiu o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19-04, e neste se reconheceu, a declaração de invalidade da Directiva 2006/24/CE[7] do Parlamente Europeu e do Conselho, de 15-03-2006, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no acórdão de 08-04-2014, teve por fundamento a violação do princípio da proporcionalidade pela restrição que a Directiva opera dos direitos ao respeito pela privacidade da privada e familiar e à protecção de dados pessoais, consagrados nos artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), isto apesar de o TJUE ter reconhecido que as medidas previstas na Directiva - relativas à imposição do dever de conservação de dados de tráfego e de localização gerados no contexto de comunicações electrónicas e ao dever da sua transmissão às autoridades competentes para efeitos de investigação, detecção e repressão de crimes graves - eram em si mesmas, medidas legítimas e adequadas ao fim visado. Sobre esta matéria, afirma-se no mencionado acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional que a Diretiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, que disciplina o direito à privacidade no setor das telecomunicações, regula as condições em que podem os Estados-Membros adotar medidas de intrusão nos dados cuja confidencialidade é prescrita: quando «constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional (ou seja, a segurança do Estado), a defesa, a segurança pública, e a prevenção, a investigação, a deteção e a repressão de infrações penais ou a utilização não autorizada do sistema de comunicações eletrónicas» (artigo 15.º da Diretiva 2002/58/CE). Deste modo, concluiu o Tribunal de Justiça que as medidas nacionais de conservação de metadados relativos a comunicações eletrónicas se encontram sob o âmbito de aplicação do direito da União Europeia (Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Tele 2, proc. C-203/15 e C-698/15, n.º 78), bem como as medidas de transmissão desses dados às autoridades públicas, para fins de investigação e repressão da criminalidade (Acórdão de 6 de outubro de 2020, La quadrature du net, procs. C-511/18, C-512/18 e C-520/18, n.º 58). No fundo, tendo o TJUE declarado a invalidade da Diretiva n.º 2006/24/CE (Acórdão de 8 de abril de 2014, Digital Rights Ireland, proc. C-293/12 e C-594/12) - que harmonizava as medidas de conservação de dados relativos a comunicações e sua transmissão às autoridades com competência criminal -, nem por isso se excluíram tais medidas do âmbito de aplicação do direito europeu. Simplesmente, não mais os Estados-Membros se encontram obrigados a adotar as providências que aquela impunha; embora as medidas nacionais que permitam ou visem uma intromissão nas comunicações eletrónicas fiquem sujeitas às obrigações decorrentes do disposto no artigo 15.º da Diretiva 2002/58/CE, só sendo conformes ao direito europeu quando «constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional (ou seja, a segurança do Estado), a defesa, a segurança pública, e a prevenção, a investigação, a deteção e a repressão de infrações penais ou a utilização não autorizada do sistema de comunicações eletrónicas”» (artigo 15.º da Diretiva 2002/58/CE). Tais normas traduzem «justamente uma concretização da exceção facultativa ao regime-regra da privacidade em matéria de comunicações eletrónicas admitida no artigo 15.º, n.º 1, da Diretiva n.º 2002/58», razão pela qual «nenhuma dúvida existe de que também as medidas nacionais que concedam o acesso aos dados previamente conservados se enquadram no âmbito de aplicação daquele preceito» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 464/2019). Neste quadro, as medidas adotadas pelos Estados-Membros que estabeleçam tais intromissões - sejam elas adotadas em transposição da Diretiva 2006/24/CE, entretanto declarada inválida; ou, ao invés, ao abrigo das exceções à inviolabilidade das comunicações eletrónicas permitidas pelo artigo 15.º da Diretiva 2002/58/CE — situam-se no âmbito de aplicação do direito europeu. O que implica a conclusão de que o Estado está vinculado à norma do artigo 15.º da Diretiva 2002/58/CE e, igualmente, à CDFUE (cfr. n.º 1 do artigo 51.º da CDFUE). O reconhecimento deste contexto é essencial na procura de uma solução para o vazio que aparentemente se criou, pois permite perceber que o problema da Lei 32/2008, de 17-07, está na extensão da autorização de intromissão e restrição de direitos fundamentais e não na possibilidade em si mesma dessa restrição para fins de investigação criminal e combate à criminalidade, que é aceite e consagrada. Retrocedendo um pouco no tempo, tendo presente o contexto enunciado, e acompanhando o retrato da evolução legislativa sobre o acesso e utilização de metadados conservados como meio de prova efectuado por Rui Cardoso[8], que aqui acolhemos, podemos enunciar o desenvolvimento que passamos a descrever. Até à reforma do CPPenal em 2007, com a Lei 48/2007, de 29-08, não estava expressamente prevista neste diploma qualquer regulamentação sobre o acesso e a utilização de dados de tráfego e localização celular. Ainda assim, era admitida a sua obtenção, mediante autorização judicial, com fundamento na apreciação conjugada dos arts. 187,º, 190,º e 269,º, n.º 1, al. c), do CPPenal (redacção então vigente), respeitantes às escutas telefónicas[9]. Nesse período entrou em vigor a Lei 41/2004, de 18-08, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12-07, a cujo art. 15.º já aludimos supra, que passou a prever pela primeira vez no âmbito da legislação interna o regime de tratamento de dados pessoais no contexto da prestação de serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público em redes de comunicações públicas que sirvam de suporte a dispositivos de recolha de dados e de identificação, especificando e complementando as disposições da Lei 67/98, de 26-10 (Lei da Protecção de Dados Pessoais) – art. 1.º. Também pela primeira vez se previa a conservação de metadados de comunicação pelas empresas que prestavam os serviços respectivos, e bem assim o acesso e utilização como meio probatório em processos judiciais. No âmbito de decisões judiciais proferidas nos nossos tribunais, este diploma fundamentava a conservação de metadados de comunicação, mantendo-se o recurso aos apontados preceitos do CPPenal para justificar o acesso aos mesmos e a respectiva utilização como meio de prova em processos penais. Os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 17-05-2006, relatado por Orlando Gonçalves no âmbito do Proc. n.º 1265/06[10], e do Tribunal da Relação de Évora de 26-06-2007, relatado por Guilhermina Freitas no âmbito do Proc. n.º 843/07-1, são exemplo dessa orientação. Ou seja, mesmo antes das alterações introduzidas pela Lei 48/2007, de 29-08, ao CPPenal, os tribunais não se inibiram de admitir como meios de prova susceptíveis de serem acedidos e utilizados em processos crime os metadados de comunicação, equiparando o regime dos dados de contexto aos de conteúdo. Neste sentido, aliás, se pronunciou o Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 486/2009[11], de 28-09, concluindo que «encontrando-se o acesso à facturação detalhada e a localização celular compreendidas no real conteúdo das técnicas de ingerência nas telecomunicações expressamente previstas pelo legislador no artigo 187.º, do C.P.P./87, não se revela que a interpretação normativa sindicada desrespeite o princípio da legalidade consagrado no artigo 34.º, n.º 4, da C.R.P., pelo que deve o recurso interposto ser julgado improcedente.» Neste aresto pode ainda ler-se que «a decisão recorrida não foi propriamente inovadora quanto ao sentido da interpretação normativa adoptada, sendo possível detectar a existência de outras decisões de tribunais superiores que perfilharam a mesma solução hermenêutica por referência à mesma disposição legal, sendo ainda de realçar que nestes casos o pomo da discórdia incidia mais sobre a determinação da autoridade judiciária competente para a autorização destes tipos de intromissão nas telecomunicações – Ministério Público ou juiz de instrução – do que propriamente sobre a possibilidade legal de realização dessas intromissões (Vide, por exemplo, Ac. TRC de 14-3-2001 (Barreto do Carmo), na CJ, Ano XXVI, tomo II, p. 44; Ac. TRL de 23-6-2004 (Clemente Lima); Ac. TRG de 10-1-2005 (Francisco Marcolino); Ac. TRC de 17/5/2006 (Orlando Gonçalves); Ac. TRL de 27/9/2006 (João Sampaio); Ac. TRC de 15/11/2006 (Jorge Dias), todos disponíveis em www.dgsi.pt).» Com a reforma do processo penal em 2007, o art. 189.º do CPPenal, com a epígrafe “Extensão”, passou a ter a seguinte redacção: «1 - O disposto nos artigos 187.º e 188.º é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes. 2 - A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo.» A verdadeira extensão do regime de intercepção e gravação de conversações e comunicações (escutas telefónicas) decorrente dos arts. 187.º e 188.º do CPPenal centra-se no n.º 1 do art.189.º do mesmo diploma legal, relativamente às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone e às comunicações entre presentes, respeitando o seu n.º 2 a dados de tráfego e localização celular já existentes, ou seja, dados conservados, e não aos produzidos em tempo real. Daí se mencionar a obtenção e junção aos autos e não a intercepção desses dados. E também por isso não se mencionam os procedimentos de controlo previstos no antecedente art. 188.º, destinados à intercepção de comunicações, e se preveja a autorização judicial em qualquer fase do processo. Em fase de julgamento pode fazer sentido a obtenção de dados de tráfego e localização celular conservados, mas já não faz sentido a realização de intercepção desses dados em tempo real, pois a prova do julgamento respeita a factos pretéritos, os descritos na acusação. E como também invoca Rui Cardoso[12], caso aquele n.º 2 do art. 189.º do CPPenal respeitasse à intercepção de comunicações, seria obvia a ineficácia da medida em fases em que o processo não se encontra já em segredo de justiça. A obtenção e junção aos processos de natureza criminal de dados de tráfego e de localização celular estava, e está, apenas limitada pela exigência de despacho judicial a determinar ou autorizar essas acções, que estão circunscritas aos crimes de catálogo do n.º 1 do art. 187.º do CPPenal e relativamente às pessoas referidas no n.º 4 deste preceito. Assim, entre a Lei 48/2007, de 29-08 e a Lei 32/2008, de 17-07, o fundamento para conservar dados de comunicação residia na Lei 41/2004, de 18-08, encontrando-se a base legal para a respectiva obtenção e junção aos autos no âmbito do processo penal no art. 189.º, n.º 2, do CPPenal. Transpondo esta análise para o caso dos autos, diríamos que até esta data nada obstava neste regime do CPPenal à obtenção e junção aos autos dos dados de tráfego e localização celular, desde que conservados à luz da Lei 41/2004, de 18-08, uma vez que está em causa crime de catálogo do art. 187.º, n.º 1, do CPPenal e os visados integram a previsão da al. a) do seu n.º 4. Cerca de um ano depois da Reforma do Processo Penal de 2007, entrou em vigor a Lei 32/2008, de 17-07, que visou regular a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes[13], transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações – art. 1.º, n.º 1. Este diploma, quanto a nós, nada veio alterar ao regime base até aí vigente para intercepção e gravação de comunicações (dados de conteúdo), cuja conservação, aliás, é proibida no art. 1.º, n.º 2, do diploma, e para obtenção e junção aos autos de dados de contexto, incluindo dados de tráfego e de localização celular. Este diploma apenas visou criar um mecanismo directo e de maior eficácia de acesso a dados de comunicação de contexto pretéritos quando estavam em causa fins de investigação criminal de crimes graves, que o próprio diploma especifica quais são, e que, como vimos, não são coincidentes na sua totalidade com a previsão do art. 187.º, n.º 1, do CPPenal. O primeiro argumento para defendermos esta posição é o da total incoerência do sistema, inclusive à luz da jurisprudência, incluindo constitucional, que se foi sedimentando sobre a matéria, se assim não se entender, permitindo-se a existência de um catálogo de crimes menos apertado para situações de maior ingerência na vida privada e no sigilo das comunicações, isto é, quando está em causa a intercepção e gravação de comunicações em tempo real, a que será aplicado o regime dos arts. 187.º a 190.º do CPPenal, e um catálogo de crimes mais restrito, o previsto no art. 2.º, n.º 1, al. g), da Lei 32/2008, de 17-07, para situações de menor restrição de direitos e de ingerência na vida privada e no sigilo das comunicações, isto é, nas situações em que se pretende obter dados de contexto pretéritos, conservados. Não desconhecemos que a jurisprudência se dispersou quanto às ilações a retirar da entrada em vigor daquele diploma, defendendo-se que nos crimes fora do catálogo da Lei 32/2008, de 17-07, não era possível a obtenção de dados de tráfego ou localização celular pretéritos à luz do art. 189.º, n.º 2, e tendo por base os dados guardados ao abrigo da Lei 41/2004, de 18-08, ou até que o art. 189.º, n.º 2, apenas se aplicava à obtenção de dados de contexto em tempo real. Remetemos nesta parte para a extensa indicação jurisprudencial efectuada por Rui Cardoso[14]. Pela nossa parte, alinhamos com os que entenderam que nos crimes abrangidos pelo catálogo do art. 187.º, n.º 1, do CPPenal, mas que se encontravam fora do catálogo previsto no art. 2.º, n.º 1, al. g), da Lei 32/2008, de 17-07, era possível a obtenção e junção aos processos de natureza criminal de dados de contexto, como dados de tráfego e de localização celular, com fundamento no art. 189.º, n.º 2, do CPPenal, e no âmbito dos dados conservados ao abrigo da Lei 41/2004, de 18-08, que se manteve, e mantém, em vigor e, saliente-se, cuja validade não foi posta em causa, nem pelo Tribunal Constitucional nem pelo TJUE. Neste sentido, apelamos à fundamentação dos acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28-01-2010, relatado por Isabel Valongo no âmbito do Proc. n.º 222/09.9GBETR-A.C1[15], e de 01-06-2022, relatado por Alcina da Costa Ribeiro no âmbito do Proc. n.º 152/21.6GGCBR-A.C1[16], do Tribunal da Relação de Évora de 28-02-2012, relatado por Sénio Alves no âmbito do Proc. n.º 15/11.3JALRA-B.E1[17] ou do Tribunal da Relação de Guimarães de 05-07-2021, relatado por Teresa Coimbra no âmbito do Proc. n.º 3225/18.9T9GMR.G1[18], onde se defendeu, na sequência do perfilhamento da posição que aqui também se segue, «que enquanto não ocorrer a reclamada alteração do CPP nesta matéria ( Cfr. Costa Andrade in Bruscamente no Verão passado – RLJ, nº 3951 e Conde Correia in Cibercriminalidade e prova digital ( CEJ), 34), é às normas vigentes do CPP que o aplicador da lei terá de recorrer relegando as leis 32/2008 e 109/2009 para as questões nelas particularizadas, justificantes das transposições de cada uma das Diretivas que estiveram na sua génese.» Uma vez que a Lei 109/2009, de 15-09, chamada Lei do Cibercrime (LCC) não tem, quanto a nós, aplicação directa ao caso em apreço, designadamente através dos seus arts. 12.º, 14.º ou 18.º, passaremos ao lado da sua compatibilização com a legislação que temos vindo a analisar, temática cujos contornos, mais uma vez, pela completude do estudo, remetemos para o texto de Rui Cardoso[19]. Do que se expôs resulta que com a entrada em vigor do DL 32/2008, de 17-07, e na ausência de qualquer revogação expressa, na prática, deixou de se recorrer, no âmbito de processos de natureza criminal respeitantes a crimes de catálogo daquele diploma, à obtenção e junção de dados de comunicação de contexto conservados ao abrigo da Lei 41/2004, de 18-08, e com fundamento no art. 189.º, n.º 2, do CPPenal, pela simples razão de que no âmbito daquele primeiro diploma (Lei 32/2008) estava autorizado o mesmo acesso e os dados disponíveis eram guardados pelo dobro do tempo que a Lei 41/2004 permitia, aqui 6 (seis) meses após a prestação do serviço[20], ali 1 (um) ano a contar da data da conclusão da comunicação, e a extensão de dados guardados era também de maior dimensão, veja-se, por exemplo, os dados de localização, cuja anonimização constitui a regra na Lei 41/2004, limitando-se por essa via o efectivo acesso a esses elementos[21]. Bem visto o fundamento e conteúdo das Leis 41/2004 e 32/2008 há que reconhecer que estamos perante bases de dados diferentes, quer fisicamente – como resulta expressamente do art. 3.º, n.º 3, deste último diploma legal -, quer ao nível do conteúdo dos dados armazenados, como se viu, bases de dados que prosseguem finalidades diferentes, no primeiro caso o necessário ao funcionamento das empresas de prestação de serviços de comunicação e às interacções com os clientes, no âmbito dos respectivos contratos, no segundo exclusivamente fins de investigação e repressão de crimes graves, com timings de conservação diversos, como também se assinalou. E apesar de ocorrer sobreposição parcial da previsão legal quanto à permissão de obtenção de metadados no âmbito das referidas leis, no caso da Lei 41 /2004, de 18-08, com fundamento no art. 189.º, n.º 2, do CPPenal, e no da Lei 32/2008, de 17-07, com fundamento nela mesma, não se afigura que esta última anule a validade da totalidade daquele conjunto normativo, designadamente da extensão do art. 189.º, n.º 2, do CPPenal, precisamente porque têm diferentes planos de funcionamento. Mas ainda que se entendesse existir uma qualquer derrogação do art. 189.º do CPPenal pela Lei 32/2008, de 17-07, a verdade é que, como salienta Rui Cardoso[22], «nos termos prescritos no n.º 1 do artigo 282.º da CRP, com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do art. 9.º da Lei 32/2008 a norma do n.º 2 do artigo 189.º foi repristinada na sua plenitude e o artigo 189.º, n.º 2, do CPP passou a constituir (o único) fundamento normativo para obtenção de dados de tráfego/localização. Desaparecida a possibilidade de conservação de dados de contexto no âmbito das comunicações e acesso aos mesmos para fins de investigação e repressão criminal ao abrigo da Lei 32/2008, de 17-07, atenda a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral dos seus arts. 4.º, em conjugação com o art. 6.º, e 9.º, consideramos que se mantém a possibilidade de conservação de metadados de comunicação que resulta da Lei 41/2008, de 18-08, com as limitações já assinaladas, mas, ainda assim, constituindo um conjunto muito significativo de informação, nomeadamente de dados de tráfego, essencialmente, mas também de localização celular se imprescindíveis à facturação dos serviços prestados (cf. art. 7.º) E é sobre esta base de dados conservados, existente para fins estritamente de prestação de serviços de comunicações electrónicas, que actua o art. 189.º, n.º 2, do CPPenal como fundamento legal da restrição de direitos fundamentais, sem necessidade de qualquer outro diploma habilitante para além do CPPenal, como acontece, aliás, com a possibilidade de intercepção e gravação de comunicações em tempo real, e da ponderação dos princípios da proporcionalidade e da necessidade, de acordo com o art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Não pode nesta avaliação olvidar-se que a repressão e prevenção criminal são fins a prosseguir por qualquer Estado de Direito, em cumprimento de um interesse público de uma Justiça Penal eficaz, pelo menos no que concerne aos crimes de maior gravidade, como ocorre com aqueles que compõem o catálogo previsto no art. 187.º, n.º 1, do CPPenal. Como bem realça Rui Cardoso[23], não tem de haver, nem há, expressa previsão legal para todos os meios de prova que possam ser utilizados em processo penal. «Não é necessário que, em cada sector da sociedade, da vida social, política, económica, desportiva, etc., em que são gerados documentos (que, quase inevitavelmente, contêm dados pessoais), exista lei que expressamente preveja a possibilidade de posterior utilização probatória dos mesmos em processo penal para que tal possa suceder. Se assim fosse, basicamente nenhuma prova documental seria admissível.» Ora, como também salienta o mesmo Autor, «os metadados são prova documental/digital. No caso dos conservados ao abrigo da Lei 41/2004 são documentos que existem independentemente do processo penal – não há qualquer especial meio que seja necessário prever para a sua obtenção. Poderiam ser obtidos por busca e apreensão de dados informáticos, por injunção (ordem), cabendo à lei determinar que meios podem ser utilizados, o que, quanto à injunção, está feito no artigo 189.º, n.º 2 do CPP.» Nesta apreciação, e na escolha de uma solução que permite o acesso a metadados conservados ao abrigo da Lei 41/2004, de 18-08, e com fundamento no art. 189.º, n.º 2, do CPPenal, não pode ser desvalorizado, sendo mesmo de fundamental importância, o facto de o acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das apontadas normas do DL 32/2008, de 17-07, tornando-o imprestável para os fins para que foi gizado, não se ter pronunciado em momento algum sobre a conservação de metadados de comunicação à luz da Lei 41/2004, de 18-08, isto é, para efeitos de facturação, e sobre a possibilidade da sua utilização em processo penal. A análise do Tribunal Constitucional incidiu sobre a conformidade constitucional e à luz do Direito da União Europeia de um diploma que criou uma obrigação generalizada, «sistemática, contínua e sem nenhuma excepção», nas palavras da Provedora de Justiça, de os operadores de telecomunicações conservarem todos os dados de base, de tráfego e de localização gerados no âmbito dessa actividade, respeitantes a todos os utilizadores e assinantes, obrigação que se reflectia na existência de uma base de dados própria, com o objectivo exclusivo de utilização para fins de prevenção e repressão criminal, e cujo conteúdo devia ser mantido por tempo relativamente dilatado (um ano), tendo concluído pelo excessiva desproporcionalidade de uma tal previsão de conservação face a outros direitos previstos na lei fundamental e à ausência de salvaguarda dos mesmos (arts. 18.º, 20.º, 26.º e 35.º da Constituição da República Portuguesa). E sendo realidades e finalidades tão diferentes as que são tratadas na Lei 41/2004, de 18-08, por um lado, e na Lei 32/2008, de 17-07, por outro, como se viu, dificilmente se podem extrapolar as reservas colocadas à conformação constitucional e perante o Direito da União Europeia desta para aquela. Diríamos mesmos que tal tarefa é impossível, pois não podemos comparar ou que não é comparável, sendo certo que até hoje nenhuma reserva se suscitou autonomamente (não por decorrência da mencionada declaração de inconstitucionalidade de preceitos da Lei 32/2008) no que concerne à validade e conformação perante o direito interno e o direito da União Europeia quanto à previsão de conservação de dados no âmbito da Lei 41/2004, de 18-08, e à possibilidade de restrição de direitos fundamentais ao abrigo dos arts. 187.º a 190.º do CPPenal, concretamente a possibilidade de acesso, obtenção e junção aos autos de metadados. Importa também salientar que o Regulamento Geral Sobre a Protecção de Dados (RGPD), isto é, Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27-04, 2016, relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, e também a Lei 58/2019, de 08-08, que aprovou as regras relativas ao tratamento de dados pessoais para efeitos de prevenção, deteção, investigação ou repressão de infrações penais ou de execução de sanções penais, transpondo para o direito interno a Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, devem ser a chave para a resposta a possíveis óbices que a validade jurídica do entendimento propugnado suscita, reafirmando-se, uma vez mais, agora quanto a estas específicas matérias, que as questões da localização das bases de dados ou do cumprimento de notificações para conhecimento ao visado de que os dados pessoais foram acedidos para fins de investigação criminal não necessitam de estar previstos em cada um dos múltiplos diplomas que possam abarcar esta temática. Revertendo tudo quanto se expôs para a situação dos autos, dir-se-á que, em abstracto, havendo dados validamente conservados ao abrigo da Lei 41/2004, de 18-08, e estando em causa crimes de catálogo nos termos do art. 187.º, n.º 1, do CPPenal, posto que punidos com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos, e bem assim visados previstos no n.º 4, al. a), deste preceito, nada obsta, tanto mais que já foi autorizada a intercepção e gravação de comunicações, que se determine que seja solicitada informação sobre os dados de tráfego e localização indicados na promoção do Ministério Público. Porém, como se deixou enunciado, a conservação de dados no âmbito da Lei 41/2004, de 18-08, está limitada ao período de 6 (seis) meses após a prestação do serviço. Os dados solicitados quanto ao dia 02-06-2022 respeitam a período temporal superior a 6 (seis) meses, atendendo ao momento em que foi formulado o pedido (03-01-2023), pelo que estão excluídos da faculdade legal acima reconhecida. Quanto aos demais dados solicitados, tendo o pedido formulado e o despacho que sobre o mesmo recaiu sido formulados dentro do aludido período de seis meses, deve ser deferida a pretensão do recorrente, sem prejuízo de se aceitar que a operadora, nesta data, ou na data em que receber a injunção para entrega de dados, tenha já procedido à destruição daqueles ocorridos há mais de seis meses desde a prestação do serviço, cabendo à mesma dar nota dessa realidade. * III. Decisão: Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido e determinar que seja solicitada a obtenção, ao abrigo da Lei 41/2004, de 18-08, e com fundamento no art. 189.º, n.º 2, do CPPenal, com referência aos números ... e ..., ambos a operar na rede A... e sob intercepção telefónica, de eventos e não eventos de rede, fluxo de comunicações bidirecionais, chamadas de voz, SMS e MMS convencionais ou por internet e respetivas células de localização activadas, nas seguintes datas/horas (com exclusão do dia 02-06-2022, inicialmente indicado): - Entre as 23h00 do dia 13-09-2022 e as 05h00 do dia 14-09-2022; - Entre as 23h00 do dia 14-09-2022 e as 05h00, do dia 15-09-2022; - Entre as 23h00 do dia 03-10-2022 e as 05h00 do dia 04-10-2022; - Entre as 04h00 e as 05h00 do dia 07-10-2022; - Entre as 23h00 do dia 10-10-2022 e as 05h00 do dia 11-10-2022; - Entre as 01h00 e as 02h00 do dia 22-11-2022; - Entre as 01h00 e as 05h00 do dia 23-11-2022; - Entre as 01h00 e as 05h00 do dia 28-11-2022; - Entre as 01h00 e as 05h00 do dia 30-11-2022. Notifique e comunique de imediato e pelo meio mais expedito à 1.ª Instância. Sem tributação (arts. 522.º, n.º 1, do CPPenal). Porto, 29 de Março de 2023 (Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página) Maria Joana Grácio Paulo Costa Nuno Pires Salpico ______________________ [1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção. [2] Ambos acessíveis in www.dgsi.pt. [3] In A conservação e a utilização probatória de metadados de comunicações electrónicas após o Acórdão do TC n.º 268/2022 – Revista do Ministério Público, n.º 172 – Outubro – Dezembro de 2022. [4] O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19-04, publicado no DR n.º 108/2022, Série I, de 03-06-2022, decidiu: «a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição; b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.» [5] Ob. cit. [6] Ibidem. [7] Que a Lei 32/2008, de 17-07, transpôs para a ordem jurídica nacional. [8] Ob. cit. [9] Cf. ainda antes da vigência da Lei 41/2004, de 18-08, os acórdãos do TRL de 10-12-2003, relatado por Maria Isabel Duarte no âmbito do Proc. n.º 8673/2003-3, acessível in www.dgsi.pt, e de 23-06-2004, relatado por Clemente Lima no âmbito do Proc. n.º 5845/2004-3, acessível in https://blook.pt/caselaw/PT/TRL/292649/, ambos com indicação de outra jurisprudência e pareceres da Procuradoria-Geral da República que perfilhavam a mesma orientação. [10] Acessível in www.dgsi.pt. [11] Relatado por Cura Mariano e acessível in www.tribunalconstitucional.pt. [12] Ob. cit. [13] Realce da relatora. [14] Ob. cit., pág. 46. [15] Acessível in https://blook.pt/caselaw/PT/TRC/175683/. [16] Acessível in www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê: «I - A investigação dos crimes elencados no n.º 1 do artigo 187.º do CP – não previstos no catálogo do artigo 2.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 32/2008, de 17-07 –, não admite o recurso aos ficheiros criados ao abrigo do último dos dois diplomas referidos, conservados durante 1 (um) ano após o termo da comunicação. II - No âmbito dessa investigação apenas é permitida a utilização da base de dados das empresas fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas referida no artigo 6.º da Lei n.º 41/2004, de 18-08, mas só quando não tenha decorrido, após o termo da comunicação em causa, o prazo de 6 (seis) meses, período esse determinante da eliminação dos dados de tráfego.» [17] Acessível in www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê: «I. Para a investigação e repressão dos crimes elencados no artº 187º, nº 1 do CPP e não previstos na al. g) do nº 1 do artº 2º da Lei 32/2008 não é possível lançar mão dos ficheiros criados ao abrigo deste último diploma legal, conservados durante 1 ano após o termo da comunicação. II. Para tal investigação é apenas possível (posto que verificado o condicionalismo previsto nos artºs 189º, nº 2 e 187º, nº 1 do Cod. Proc. Penal) recorrer à base de dados da empresa prestadora dos serviços (a que se refere o artº 6º da Lei 41/2004); tal possibilidade, porém, só é efectiva nos 6 meses subsequentes ao termo da comunicação em causa, porquanto findo tal prazo os referidos dados de tráfego são eliminados.» [18] Acessível in www.dgsi.pt. [19] Ob. cit. [20] Cf. arts. 4.º, n.º 2, e 6.º da Lei 41/2004, de 18-08, e 1.º, n.º 2, al. d), e 10.º, n.º 1, da Lei 23/96, de 26-07. [21] Como observa Rui Cardoso no estudo que vimos acompanhando, a Lei 41/2004, por um lado, proíbe de forma expressa o armazenamento de comunicações e dos respectivos dados de tráfego por terceiros sem o consentimento prévio e expresso dos utilizadores, devendo esses dados ser eliminados ou tornados anónimos quando deixem de ser necessários para efeitos da transmissão da comunicação, mas, por outro, permite (mas não obriga) aos FS gue tratem (o que inclui a conservação) aqueles necessários à facturação dos assinantes e ao pagamento de interligações até final do período durante o qual a factura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado. [22] Ob. cit.. [23] Ob. cit.. |