Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2310/22.7T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLA FRAGA TORRES
Descritores: UNIÃO DE FACTO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP202510132310/22.7T8VFR.P1
Data do Acordão: 10/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIAL
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A quantificação do pedido não é compatível com pedido alternativo de liquidação ulterior.
II - Nesta circunstância, a condenação em quantidade superior ao pedido corresponde a uma nulidade da sentença.
III - A matéria conclusiva que comporte um juízo valorativo assente na lei assim como a matéria de direito não é passível de prova nem cabe no âmbito da decisão da matéria de facto.
IV - A união de facto pressupõe a comunhão de leito, mesa e habitação, pelo que a cessação de uma dessas dimensões acompanhada da vontade de pelo menos um dos membros não manter a relação dita o fim da união de facto.
V - O prazo de prescrição do direito de restituição com fundamento no enriquecimento sem causa conta-se a partir do fim da união de facto.
VI - No dia da entrada em vigor da Lei que revoga a suspensão de um prazo, retoma-se a contagem deste prazo.
VII - A interrupção da prescrição por força do decurso do período de cinco dias depois do dia em que foi requerida a citação ocorre, contando com este, às 00.01 h do sexto dia, não permitindo, assim, a consumação do prazo prescricional que, terminando neste dia, se esgotaria às 24.00 h do mesmo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2310/22.7T8VFR.P1 – Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Aveiro – Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 1.

Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunto: Manuel Fernandes
2.º Adjunto: Teresa Maria Sena Fonseca

Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório.
Recorrente: AA
Recorrida: BB

BB instaurou a 6/07/2022 a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra AA, pedindo que venha a:
a) Declarar-se o reconhecimento da existência de união de facto entre Autora e Réu desde o mês de Outubro de 2003, e a cessação da mesma, com efeitos desde o mês de Março de 2019;
b) Reconhecer-se e declarar-se o contributo da Autora, na mesma proporção e em partes iguais com o Réu, para a formação do acervo patrimonial adquirido na constância da união de facto, inscrito em nome de qualquer um deles ou de ambos, ou adquirido por ambos, durante esse período, quer se trate de bens imóveis, bens móveis, saldos e depósitos bancários, créditos, ou outros bens indiferenciados;
c) Ser o Réu condenado a entregar à Autora metade de tal património a liquidar em execução de sentença, com juros de mora até integral pagamento caso se entenda pela existência de uma sociedade de facto entre Autora e Réu ou, alternativamente, uma situação de compropriedade relativamente aos bens adquiridos pelo Réu com a comparticipação da Autora; caso assim não se entenda, em caso de improcedência do ora peticionado em c),
d) Declarar-se o enriquecimento sem causa do Réu à custa da Autora, por força de todo o acervo patrimonial, constituído com o contributo da Autora na constância da união de facto, que aquele conservou na sua posse após a cessação da mesma;
e) Ser o Réu condenado a restituir à Autora a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença pelo enriquecimento sem causa decorrente da alínea anterior, com juros de mora até integral pagamento.
Para o efeito, alegou, em síntese, que viveu em união de facto com o R. desde Outubro de 2003 até Março de 2019, período em que, com os rendimentos de ambos, o contributo de familiares e amigos seus e o trabalho doméstico que a própria desenvolveu, adquiriram bens móveis para proveito familiar assim como construíram a moradia onde a partir de determinada altura passaram a viver, tendo todos esses bens ficado com o R. na altura da separação.
Após citação a 13/07/2022 requerida a título urgente pela A., o R. contestou, invocando em primeiro lugar a prescrição do direito daquela em virtude de, a 24/06/2022, terem decorrido três anos sobre a separação do casal situado pelo menos a 1/02/2019, já considerando o período de 81 mais 62 dias de suspensão dos prazos de prescrição por força dos arts. 6.º-B da Lei 1-A/2020 de 19/03 e 6.º-B da Lei 4-B/2021 de 1/02/2021, respectivamente. De seguida, defendeu que, tendo vivido juntos, A. e R., apesar de terem partilhado as despesas e tarefas domésticas do dia a dia, sempre mantiveram total autonomia financeira, tendo sido o próprio quem suportou em exclusivo a aquisição e manutenção do seu património imobiliário e dos seus veículos automóveis. Não negando o contributo dos pais da A. para suportar algumas despesas com a educação dos netos, alegou desconhecer o seu valor concreto e justificou-o com a reduzida contribuição da A. para o efeito, assim como para outras despesas familiares, e com a compra dos terrenos e a construção da moradia com dinheiros exclusivamente seus e com o financiamento bancário suportado unicamente por si, pese embora o pais da A. lhe tenham oferecido a si alguns materiais e a A. tenha comprado alguns bens móveis que levou consigo.
Terminou, pedindo a improcedência da acção.
Em resposta, a A. negou a prescrição do seu direito, mantendo, em suma, a posição exposta na PI.
Após, o tribunal proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento da PI por forma a que a A. quantificasse o valor concreto que a empobreceu a si e que enriqueceu o Réu, sem causa justificativa, e em conformidade atualizasse o valor da causa.
Na sequência, a A. juntou novo articulado de aperfeiçoamento da PI em que, em suma, acrescentou que:
“35. Assim, entre Março de 2009 e Março de 2019 foi paga a título de crédito à habitação, a partir da conta conjunta de Autora e Réu e por estes em comunhão de esforços, a quantia global de € 76.608,50.

40. Assim, entre Janeiro de 2016 e Fevereiro de 2018, foi pago da conta conjunta de Autora e Réu e por estes em comunhão de esforços, no que respeita ao crédito pessoal para aquisição de bens e despesas familiares, o montante de € 2.536,99.

45. Assim, entre Março de 2018 e Março de 2019, foi pago da conta conjunta de Autora e Réu e em comum esforço por ambos, no que respeita ao crédito pessoal para aquisição de bens e despesas familiares, o montante de € 2.318,11.
46. Ora, somando os três valores de passivo acima discriminados,
47. Passivo esse que foi sendo, conforme facilmente se observa dos documentos acima indicados, pago através daquela conta conjunta pertencente ao Réu e à Autora,
48. Temos que, entre Março de 2009 e Março de 2019, o total do passivo (referente a crédito à habitação e créditos pessoais para aquisição do património adquirido conjuntamente durante a união de facto) suportado por Autora e Réu, em comunhão de esforços, se cifrou em € 81.463,60.
49. Destarte, a Autora entende ter contribuído na proporção de metade para o pagamento deste passivo,
50. Mais especificamente tendo contribuído em montante equivalente pelo menos a € 40.731,80,
51. Porquanto contribuiu para a economia comum familiar das variadas formas que amplamente já se explanou, que terminou da seguinte forma:
52. Sendo titular da conta bancária da qual saíam os aludidos pagamentos, conta essa que a dada altura passou a ser a sua única conta bancária (até ao termo da união de facto),
53. E para o saldo da qual a Autora contribuía regularmente, fosse com o produto do seu trabalho, fosse com as ajudas da sua família.
54. Pelo exposto, entende a Autora que o valor concreto que disponibilizou ao Réu, enriquecendo-o sem causa justificativa perante tudo quanto vai alegado na PI e no presente articulado,
55. Mormente perante o facto de esse valor ter suportado, até à cessação da união de facto, a aquisição de um património que ficou exclusivamente na posse e titularidade do Réu
56. E, portanto, empobrecendo-a na exacta medida em que enriqueceu este último,
57. Se cifra no montante de € 40.731,80, de acordo com o supra alegado e constante dos documentos citados, juntos com a PI e a contestação, e a prova que em audiência de julgamento se fará.
58. Assim, requer-se a actualização do valor da causa para € 40.731,80; adicional e simultaneamente,
59. Em conformidade com a especificação e concretização da matéria de facto feita supra, nos termos ordenados,
60. E configurando esta modificação um desenvolvimento do pedido primitivo, de acordo com o disposto no art. 265º, nº 2 do CPC, por remissão do art. 590º, nº 6 do mesmo diploma,
61. Requer-se seja alterada a redacção das alíneas d) e e) do petitório, passando as mesmas a ter a seguinte redacção:
d) Declarar-se o enriquecimento sem causa do Réu à custa da Autora, no valor de € 40.731,80, por força de todo o acervo patrimonial, constituído com o contributo da Autora na constância da união de facto, que aquele conservou na sua posse após a cessação da mesma;
e) Ser o Réu condenado a restituir à Autora a quantia de € 40.731,80, ou outra que se venha a liquidar em execução de sentença se necessário, pelo enriquecimento sem causa decorrente da alínea anterior, com juros de mora até integral pagamento.
62. No mais, conclui-se como na inicia”.
Notificado, o R. impugnou os factos alegados pela A. e terminou como na Contestação.
Seguidamente, na sequência da fixação do valor da acção, o processo foi remetido ao Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira.
Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enumerados os temas da prova, de que não houve reclamações.
Realizada a audiência final foi proferida sentença, julgando parcialmente procedente a acção, com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, o Tribunal decide:
Julgar parcialmente procedente, por provada, a presente acção e em consequência, condenar o R., (no mais indo absolvido):
a) Declaro o reconhecimento da existência de união de facto entre Autora e Réu desde o mês de Outubro de 2003, e a cessação da mesma, com efeitos desde 15 de Março de 2019;
b) Declaro o enriquecimento sem causa do Réu à custa da Autora, no valor de € 90.000,00 (noventa mil euros), por força de todo o acervo patrimonial, constituído com o contributo da Autora na constância da união de facto;
c) Condeno o Réu a restituir à Autora a quantia de € 90.000,00 (noventa mil euros), pelo enriquecimento sem causa decorrente da alínea anterior, à qual acrescerão juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Custas por A. e R. na proporção dos respectivos decaimentos”.
Inconformada com tal sentença, dela apelou o R., concluindo as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
“CONCLUSÕES:
(…)

A A. apresentou contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e, prestada caução, efeito suspensivo.
Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art. 5.º, n.º 3 do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes:
1. a invocada nulidade da sentença;
2. a impugnação da matéria de facto,
3. a prescrição do direito invocado pela recorrida, e, em caso negativo,
4. o direito da recorrida.
*
III. Fundamentação
3.1. Fundamentação de facto
Os factos provados e não provados no tribunal da primeira instância são os seguintes (com indicação a negrito daqueles cuja decisão foi impugnada):
1. Em Outubro de 2003, depois de algum tempo de namoro, tomaram Autora e Réu a decisão de viver juntos, tendo a partir daí passado a fazer toda a sua vida em comum.
2 A Autora saiu da casa de morada de família durante o mês de Março de 2019.
3. Autora e Réu, durante aquele período, partilhavam as despesas e usavam os seus rendimentos, ou o seu dinheiro próprio, para pagar os gastos correntes do agregado familiar, apresentando declaração de rendimentos conjunta.
4. Durante os anos de vivência em comum, era a Autora quem, normalmente, preparava as refeições, quem procedia à limpeza, gestão e organização do lar, e quem tratava da roupa do Réu e dos filhos de ambos que, entretanto, vieram completar a família.
5. O Réu em 2003 vivia em apartamento próprio, na cidade do Porto, no qual a Autora passou igualmente a residir.
6. Nessa altura, a Autora trabalhava como designer na Câmara Municipal ..., auferindo o vencimento mensal ilíquido de € 1.200,00 (mil e duzentos euros), acrescido de algum rendimento extra com trabalho em regime freelancer. – cfr. histórico contributivo para a Segurança Social da Autora entre os anos de 2002 e 2011, sob docs. nº 1 a 10, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
7. Por sua vez, o Réu trabalhava como músico na Orquestra ..., auferindo, nessa capacidade, vencimento mensal médio na ordem dos € 1.900,00 (mil e novecentos euros).
8. Além dessa ocupação profissional, o Réu dava também aulas na Escola Superior ....
9. Nessa fase inicial da vida em comum com a Autora, o Réu era titular de uma conta poupança habitação, que utilizava para amortizar o passivo bancário referente ao apartamento (que manteve sempre na sua titularidade individual).
10. A Autora era igualmente titular de uma poupança própria, que anos mais tarde viria a resgatar para a conta do casal, em contributo para o custeamento das despesas familiares.
11. Já desde o tempo “de solteiro”, o Réu tinha domiciliadas na sua conta tanto a prestação referente ao crédito-habitação, como as despesas de água, luz e telecomunicações, o que manteve após a união de facto.
12. O vencimento da Autora passou a ser afectado à vida conjunta do casal.
13. Os presentes em dinheiro que a Autora habitualmente recebia pelo Natal ou aniversário eram igualmente integrados na vida do casal, para fazer face a despesas de ambos.
14. O apartamento onde a Autora passou a residir com o Réu estava, até então, mobilado de forma mais simples e ajustada à habitação por apenas uma pessoa;
15. No ano de 2004, Autora e Réu optaram por renovar o mobiliário e a decoração do apartamento, adaptando-o à nova vivência em casal, e tendo adquirido, com o dinheiro de ambos, cama e cómoda novas para o quarto de dormir, e uma nova mobília de sala.
16. Em 2005, Autora e Réu tomaram, conjuntamente e como projecto familiar, a decisão de procederem à construção de uma moradia, para a sua habitação própria e permanente.
17. Para a implantação dessa construção, foi utilizado um terreno, em ...,
18. Cuja escritura de compra e venda foi celebrada nesse mesmo ano de 2005, com o Réu como único comprador,
19. Pelo facto de o mesmo ter já pago, individualmente e em momento anterior à união com a Autora, a totalidade do preço correspondente à aquisição.
20. No intuito de aumentarem o espaço para a construção, porquanto o intuito do projecto familiar era a edificação de uma moradia unifamiliar independente, com espaço exterior,
21. Foi adquirido o terreno contíguo àquele.
22. Este segundo terreno ficou registado em nome individual do Réu,
23. Autora e Réu avançaram com os primeiros passos no sentido da construção da casa de morada de família ainda no ano de 2005.
24. Tendo aplicado, neste processo, esforço e empenho conjuntos;
25. Todo o processo decisório foi desenvolvido por ambos, em termos de arquitectura, construção, escolha de materiais, etc.
26. Grande parte dos materiais de construção e equipamentos foram adquiridos com descontos significativos, ou mesmo a “preços de fábrica”, em empresas da família e amigos da Autora, ou de parceiros comerciais do pai desta,
27. O que lhes poupou, à Autora e Réu, alguns (bons) milhares de euros durante a construção da moradia familiar.
28. Como exemplos do alegado apontam-se, entre outros, o chão Revigrés que foi adquirido para colocação nos pavimentos em cerâmico, a banheira da casa, as torneiras Ofa.
29. De igual modo, o próprio pai da Autora forneceu também, a título gratuito, material, equipamentos e mão de obra da sua própria empresa.
30. A título exemplificativo, todo o sistema de rega implementado no terreno da casa construída por Autora e Réu foi oferecido pelo pai daquela,
31. O que este só fez por se tratar de um contributo para a casa da sua filha.
32. A Autora estava, desde Julho de 2005 – altura em que se despediu de funções na Câmara Municipal ... -, a trabalhar em regime freelancer e tinha maior flexibilidade horária,
33. A A., com autonomia decisória, tratava, em nome do casal, dalgumas reuniões atinentes ao desenvolvimento da obra, como escolher material e equipamentos, encomendas, emails, pedido de orçamentos, negociar preços, etc.
34. Em Maio de 2006, Autora e Réu foram viver para casa dos pais daquela a título gratuito, potenciando dessa forma a economia de meios financeiros para custear a construção da casa e a fracção que deixaram desabitada no Porto.
35. Entretanto, em Novembro de 2007, Autora e Réu foram pais do seu primeiro filho,
36. A Autora, o Réu e agora também o seu primeiro filho continuaram a viver junto dos pais daquela, a título totalmente gratuito,
37. O que aconteceu até Março de 2009.
38. Ainda durante o ano de 2007, decidiram Autora e Réu abrir uma conta bancária conjunta, para facilitar a solicitação de crédito bancário em nome de ambos.
39. No decurso desse processo, Autora e Réu foram informados de que não seria possível proceder ao registo da moradia em nome de ambos, porquanto os terrenos em que a mesma ficou implantada estavam registados apenas em nome do Réu.
40. O Réu não procedeu a qualquer alteração registral no que respeitava aos terrenos, o que implicou que a moradia ficasse também registada apenas em nome daquele.
41. Anos mais tarde, a Autora viria a encerrar a sua conta bancária pessoal, de que era única titular, e pré-existente à união de facto.
42. Passando a ser titular, apenas e exclusivamente, da conta bancária conjunta com o Réu, o que era a sua realidade à data da separação.
43. Ocupada a tempo inteiro com um filho bebé e com as circunstâncias que rodeavam a construção da casa;
44. Tendo a própria Autora concebido a cozinha, os móveis de WC, tratado de detalhes da construção, tratado da parte de carpintaria, etc.;
45. Tendo ainda lidado com o construtor e as empresas encarregadas dos acabamentos, até ao início do ano de 2009;
46. A Autora foi, a pouco e pouco, perdendo clientes e oportunidades de trabalho nos seus serviços em modo freelancer.
47. No entanto, sempre manteve em mente o objectivo de retomar a sua actividade profissional, assim que as obras da moradia familiar fossem concluídas e a família se mudasse para a sua solução habitacional definitiva.
48. Em Fevereiro de 2009, Autora e Réu viram a construção da sua moradia concluída,
49. Tendo as partes efectuado a sua mudança definitiva para a nova casa de morada de família em Março desse mesmo ano.
50. Autora e Réu foram mobilando a sua moradia com recurso a bens que pertenciam, individualmente, às partes (e.g., um piano da Autora, um móvel de sala que a Autora havia herdado da sua avó, um conjunto de sofás, lençóis e um serviço de loiça do Réu) e bens que ambos adquiriram especificamente para integrarem o novo espaço familiar.
51. No período em que habitaram em casa dos pais da Autora, esta e o Réu foram adquirindo, em comunhão de esforços, peças diversas, que depois integraram na nova casa de morada de família: um ecrã LCD, mobiliário para quarto de criança, uma cómoda, roupa de cama, roupa de cama de criança, serviço de loiça, serviço de talheres, e peças de decoração, entre outros.
52. Em Janeiro de 2010, a Autora engravidou do segundo filho do casal.
53. Nessa fase, e após quase um ano de vida na casa nova, a Autora não tinha ainda retomado a sua actividade profissional, executando muito poucos trabalhos em regime freelancer, e permanecendo a tempo inteiro em casa com o filho bebé.
54. Durante o ano de 2010, o casal tomou a decisão de arrendar o apartamento do Réu, sito na cidade do Porto, que tinha sido casa de morada de família e ficado sem uso desde 2006 (aquando da mudança para casa dos pais da Autora).
55. A Autora desenvolveu diligências para preparação e organização do apartamento para o arrendamento.
56. Quanto ao pagamento das rendas, este era feito directamente ao Réu.
57. A grande maioria dos bens que constituíam e constituem, até à presente data, o recheio do apartamento pertencente ao Réu foi adquirida por ambos Autora e Réu, durante a sua união de facto.
58. A Autora manteve-se como cuidadora maioritária de ambos os filhos do casal até ambos terem completado os 2 anos, por decisão conjunta do casal,
59. Mantendo-se como única encarregada de educação de ambos até ao ano lectivo de 2019/2020.
60. Durante todos os anos em que Autora e Réu viveram juntos, em termos profissionais a prioridade foi a carreira do Réu,
61. Sendo a vida familiar sempre organizada em função do seu trabalho, viagens nacionais e ao estrangeiro, etc.
62. Por seu turno, a Autora praticamente deixou de trabalhar como designer para passar a ser, quase exclusivamente, dona de casa:
63. Ficou encarregada de toda a logística caseira, gestão e realização das compras domésticas, organização e confecção da alimentação, tratamento das roupas, acompanhamento escolar dos filhos, comparência e participação nas festas de escola etc.;
64. E colocou de lado a sua carreira profissional para cuidar da casa e da família;
65. Permitindo ao Réu um investimento total de tempo, meios e disponibilidade na sua própria formação e vida profissionais,
66. Potenciando a evolução e crescimento da carreira deste,
67. Bem como o avolumar dos seus rendimentos e da sua notoriedade dentro da área em que labora.
68. Já a Autora, a pouca actividade profissional que manteve foi como freelancer, não tendo auferido qualquer rendimento fixo mensal – apenas esporádico – até 2019,
69. Exceptuando-se somente o ano de 2016, em que a Autora se dedicou a gerir uma unidade de alojamento local, até Fevereiro de 2017.
70. Neste período, que durou sensivelmente um ano, a Autora auferiu um vencimento líquido mensal na ordem média dos € 1.200,00.
71. Nesse período foram, também, adquiridos novos itens para a habitação de família.
72. Nos últimos anos de vida em comum, entre 2017 e 2019, a Autora recebeu alguns rendimentos, ainda que incertos, provenientes de trabalhos artísticos esporádicos;
73. Para além dos parcos e esparsos rendimentos que foi auferindo, a Autora recebia do seu pai, durante algum tempo, um valor mensal que era integrado na conta conjunta do casal, de € 500,00 mensais.
74. O Pai da Autora foi sempre ajudando a filha e o casal ao longo de toda a vida em comum destes;
75. Através de dinheiro que o Pai da Autora sempre lhe ofertava no seu aniversário ou Natal (normalmente, uma nota de quinhentos euros),
76. Fosse por empréstimos ao casal quando este necessitava.
77. No início do mês de Janeiro de 2019, e após a verificação de algumas ocorrências, motivaram a necessidade para a Autora, que esta buscasse apoio junto do A..., em Santa Maria da Feira,
78. Espaço que consiste em estrutura de atendimento a vítimas de violência doméstica e de violência de género, com área de actuação no Município ..., um projecto executado pela B....
79. Devido à continuação da deterioração das relações entre Autora e Réu, em 31 de Janeiro de 2019, pela primeira vez em todos aqueles anos, a Autora dormiu no sofá da sala.
80. No dia 1 de Fevereiro de 2019, a Autora passou a dormir no quarto de hóspedes, para evitar qualquer conflito com o Réu.
81. A separação de Autora e Réu, com cessação efectiva da comunhão de leito, mesa e habitação, veio a ocorrer em meados de Março de 2019, quando aquela arranjou apartamento para habitação própria e ambos deixaram de viver juntos, no mesmo domicílio.
82. Enquanto não arranjou apartamento próprio, a Autora contribuiu para as despesas da casa e com os filhos menores.
83. Autora e Réu trocaram e-mails entre si – como mero exemplo, cfr. e-mails juntos com a petição sob docs. nºs 24 e 25, para os quais se remete e aqui se dão por integralmente reproduzidos.
84. A Autora havia elaborado, aquando da separação, uma listagem dos bens, elencando os seus bens pessoais, os bens pessoais do Réu e os comuns a ambos, que enviou para o Réu e para os membros da família deste (cfr. docs. nºs 25 e 26, juntos com a petição, para os quais se remete e aqui se dão pro integralmente reproduzidos).
85. Em data não apurada o Réu mudou o código do alarme e, posteriormente, a fechadura da casa de família, impossibilitando o acesso da Autora.
86. O Réu apresentou em 2019 a declaração de IRS conjunta, referente a 2018, beneficiando do coeficiente familiar que a presença da Autora validava.
87. Apesar de bem saber que a Autora abdicou de uma carreira e de um rendimento fixo, para estar disponível e presente para a família, designadamente para a formação, educação e cuidados aos filhos do casal e a gestão dos bens da família;
88. Os bens adquiridos pelo casal ao longo dos anos em que viveram juntos (e.g., camas, móveis, sofás, roupas de cama, camas dos filhos, colchões, candeeiros, electrodomésticos da cozinha, máquinas de lavar e secar, moveis de jardim, ecrãs LCD, TV plasma, aparelhagens de som, sistema surround, louças, molduras, pequenos electrodomésticos, plantas, entre outros) ficaram na posse do Réu,
89. À excepção dos poucos bens que a Autora removeu no dia 27 de Maio de 2019,
90. Tais como bens de uso pessoal (roupas, o calçado que o Réu não danificou, alguma bijuteria, cremes, maquilhagem), ou bens próprios seus (o piano que lhe havia sido oferecido há muitos anos pelo pai, o móvel que herdou de sua avó, alguns objectos mais pequenos que havia recebido de presente em diferentes fases da vida),
91. No caso dos imóveis e dos veículos, é o Réu, apenas, quem consta do título de propriedade;
92. A A. trabalhou na Câmara Municipal ..., entre 2003 e 2005, do seu trabalho independente como freelancer, entre 2005 e o fim da união (trabalho independente esse que foi diminuindo com os anos), e como gestora de um hostel, entre 2016 e 2017;
93. As funções relativas ao cuidado do lar eram assumidas de forma maioritária pela Autora, porquanto o Réu, músico e professor de profissão, sempre manteve uma vida profissional exigente, com eventos, com viagens, etc.,
94. Foi pedido um empréstimo para custear a casa da morada de família no montante global de € 325.000,00. (cfr. Doc. 8 junto com a contestação para onde se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido) – do articulado de aperfeiçoamento.
95. Empréstimo celebrado em nome do R.
96. Tendo tal empréstimo vindo a ser pago a partir da conta conjunta do R. e da A., a partir de Março de 2009, conforme cl. 2ª do Doc. complementar parte da escritura – cfr. pag. 7 do Doc. 8 junto com a contestação para onde se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido) – do articulado de aperfeiçoamento.
97. Em Março de 2019 o valor do passivo referente a crédito à habitação era de € 248.391,50 (cfr. pag. 16 do Doc. 23 junto com a petição para onde se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido) – do articulado de aperfeiçoamento.
98. Em finais de 2015, inícios de 2016, as partes contraíram um crédito pessoal no valor de € 7.500,00 (cfr. Doc. 20 junto com a petição para onde se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido) – do articulado de aperfeiçoamento.)
99. Entre Janeiro de 2016 e Fevereiro de 2018, esse crédito foi sendo pago todos os meses da conta conjunta do casal - cfr. Doc. 20 a 22 com a petição para onde se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido) – do articulado de aperfeiçoamento.
100. Sendo que em Fevereiro de 2018 o mesmo se cifrava em € 4.792,50 – doc. 22 cit. – do articulado de aperfeiçoamento.
101. Em Março de 2018, o Réu e a Autora contraíram, novamente, para aquisição de bens e custeamento de despesas familiares, um acréscimo ao crédito pessoal no montante de € 5.000,00 (cfr. doc. nº 22 junto com a PI, pág. 11 para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido), que veio somar ao valor que ainda estava em dívida nessa rubrica,- do articulado de aperfeiçoamento.
102. Passando o item do passivo com a designação “crédito pessoal” a figurar com o montante global de € 9.676,18 (doc. nº 22 junto com a PI, pág. 11 para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido) - do articulado de aperfeiçoamento.
103. Entre Março de 2018 e Março de 2019, esse crédito foi sendo pago da conta conjunta do casal, todos os meses (docs. nº 22 e 23 juntos com a PI para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido) - do articulado de aperfeiçoamento.
104. Sendo que em Março de 2019 o mesmo se cifrava no montante de € 7.358,07 (doc. nº 23 junto com a PI., pág. 16 para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido) - do articulado de aperfeiçoamento.
105. A presente acção deu entrada no dia 06 de julho de 2022, tendo o Réu sido citado no dia 13 de julho de 2022.
106. O Réu era e é proprietário de um apartamento no Porto.
107. O Réu trabalhava como músico na Orquestra ..., auferindo um rendimento líquido de cerca de 1900 euros e dava aulas na Escola Superior ..., auferindo cerca de 1200 euros líquidos.
108. A Autora, designer gráfica, trabalhou na Câmara Municipal ..., em regime de prestação de serviços, com um contrato precário, desde meados do ano 2002 até meados do ano 2005, (cf. Doc. 2 e 3, juntos com a contestação, para onde se remete e aqui se dão por integralmente reproduzidos).
109. Autora e Réu partilhavam as despesas do dia a dia.
110. Nas lides domésticas, houve uma repartição, consoante a disponibilidade de tempo.
111. O Réu contribuiu para a realização dalgumas tarefas domésticas.
112. Após 2017 o único rendimento auferido pela Autora advinha de trabalhos esporádicos como designer gráfica, em regime de “freelancer”.
113. Alguns dos rendimentos auferidos pela A. foram usados em benefício do casal e da família, tal como alguns dos rendimentos do Réu.
114. No ano de 2004, foram adquiridos uma cama, uma cómoda e uma mobília de sala, para colocar no apartamento do Réu, de modo a tornar o espaço mais confortável.
115. Tendo a Autora suportado parte da sua aquisição.
116. Em 1996 o Réu adquiriu um lote de terreno para construção, à Fundação ..., (cfr. doc. 4 junto com a contestação, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido).
117. Nessa mesma altura, quer a irmã do Réu, quer os pais, adquiriram terrenos contíguos.
118. Em 2005 foi adquirido um terreno, contíguo ao terreno que o Réu já possuía.
119. Nenhum dinheiro da Autora foi aplicado na aquisição dos terrenos onde foi edificada a atual moradia.
120. A assinatura do R. está aposta no contrato de empreitada, de mútuo com hipoteca, no orçamento da empresa C..., bem como nos cheques à ordem do arquitecto, relacionados com a construção da moradia em ....
121. Alguns materiais como o sistema de rega e filtro de areia, foram oferecidos pelo pai da Autora.
122. O Arquiteto responsável pelo projeto foi escolhido pelo Réu, que já lhe conhecia o trabalho, até porque também projetou a casa da irmã.
123. Todas e quaisquer licenças e autorizações para a construção foram pedidas em nome do Réu, mormente o Aditamento ao Alvará de Loteamento, (cfr. Doc. 7 junto com a contestação, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido).
124. O contrato de empreitada foi outorgado pelo Réu com a empresa de construção C..., estando definido, previamente, o caderno de encargos, no qual foram discriminadas todas as obras a realizar e tipo de materiais a incorporar, (cfr. Doc. 8 junto com a contestação, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido).
125. O Réu sempre dispôs de acesso à obra e chaves de acesso à moradia, assim que ela teve portas.
126. A Autora opinou sobre a escolha de materiais alternativos, cores e outras opções de design.
127. O financiamento bancário (crédito à habitação), foi contraído em nome do Réu, no montante de 325.000,00 euros, encontrando-se, à data de Janeiro de 2019, ainda em dívida cerca de 250.000,00 euros, cf. Doc. 9 e 10, juntos aos autos para onde se remete aqui se dão por integralmente reproduzidos.
128. O apartamento do Porto começou a ser arrendado em 2010.
129. A Autora contribuiu com alguns bens móveis próprios e ajudou, com rendimentos dela, na compra de alguns bens para a casa de ....
130. No dia 27 de maio de 2019, a Autora deslocou-se à casa de ... e levantou alguns bens que entendia serem seus.
131. O Réu sempre apoiou as decisões da Autora na gestão que fez da sua carreira, colaborando nas lides domésticas.
132. Por uma questão de gestão de tempo disponível do casal, a Autora contribuía mais para o serviço doméstico e gestão das questões diárias, estando o tempo do Réu mais limitado.
133. O Réu foi e é um pai presente e participativo em todos os momentos do desenvolvimento dos filhos.
134. O Réu usufruiu de licença de paternidade (cfr. Doc. 11 com a contestação, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido).
135. Foram acometidas algumas tarefas em exclusividade à Autora, como o facto de ser encarregada de educação dos filhos, devendo-se a ter sido considerado, conjuntamente, que tinha mais disponibilidade de tempo e horários mais flexíveis.
136. No ano de 2010 foi tomada, pelo Réu, a decisão de arrendar o seu apartamento no Porto.
137. A Autora auxiliou o Réu em algumas das tarefas que se prenderam com o arrendamento do apartamento para arrendamento.
138. As tarefas relacionadas com o arrendamento do apartamento foram efetuadas em comunhão de esforços e de acordo com a disponibilidade de cada um, sendo o rendimento que daí resultava empregue nas despesas comuns.
139. A Autora saiu da casa do Réu, em ... em março de 2019, mas já desde, pelo menos, 31 de Janeiro desse ano que, e por comum acordo, não partilhavam leito.
140. Nesse período, Autora e Réu pernoitavam alternadamente, com rotação a cada três dias, na habitação de ..., para minimizar o impacto aos filhos e enquanto a Autora não providenciava outra habitação.
141. Na casa de ... ficaram alguns bens pessoais da Autora.
142. Do empréstimo contraído para a casa de ... permanece uma dívida de cerca de 230.000,00 euros, em 2/09/2022 (cfr. Doc. 33 junto com a contestação, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido.
143. Em 7/07 (não estando identificado o ano), foi efectuado reembolso antecipado no valor de 991,99€ (novecentos e noventa e um euros e noventa e nove cêntimos), da conta que A. e R. titulavam em conjunto no Banco 1... - (cfr. Doc. 33 junto com a contestação, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido), conta essa da qual a A. saiu.
144. Os terrenos onde se encontra o imóvel apenas consta o R. como proprietário e o crédito habitação que permitiu a construção existente apenas se encontra em seu nome.
***
Factos não provados:
Não resultaram provados com relevância para a boa decisão da causa os seguintes factos:
a. A Autora, com a união, passou a assumir exclusivamente todas as demais despesas: alimentação/supermercado, têxteis-lar, utilidades e pequenos electrodomésticos para o lar, objectos decorativos e o vestuário de ambos.
b. Apesar de todo o dinheiro disponível, tanto da Autora como do Réu, ter sido aplicado na sua aquisição.
c. Acedendo, todavia, às condições de ficar como titular da conta conjunta associada àquele empréstimo, ter cartões MB e Visa referentes à mesma conta, e ser titular de seguro de vida, para manter as cláusulas contratuais inicialmente propostas pelo Banco.
d. Desde 2010 até 2019, ano em que terminou a união de facto, a Autora quem levou a cabo todas as tarefas atinentes ao arrendamento da fracção pertencente ao Réu;
e. Designadamente, mudanças de fechaduras, pinturas de paredes, colocação de persianas novas, aquisição, manutenção ou substituições de electrodomésticos (fogão, máquinas de lavar, cilindro...), aquisição, higienização e tratamento de sofás, cama e móveis, aquisição ou substituição de candeeiros e demais decoração, etc.
f. À data de Janeiro de 2019, aquela fracção estava arrendada por um valor mensal de 650 €.
g. Bem como alguns itens novos para o apartamento do Porto.
h. Por essa mesma altura, a Autora transmitiu ao Réu que pretendia levar a cabo uma separação gradual, com o mínimo possível de atrito para os filhos do casal.
i. Nessa sequência, o Réu comunicou à Autora que lhe concedia prazo para sair da casa de morada de família, manifestando a intenção de ficar com o direito de habitação daquela após o termo da união de facto.
j. Numa primeira fase, a Autora tentou salvaguardar os seus bens pessoais, pedindo ao Réu para relegarem a partilha do património comummente adquirido para fase posterior, quando a Autora reunisse a energia e o ânimo para tal.
l. Nessas comunicações, o Réu pressionava-a para retirar da casa de família os seus pertences, procurando aparentar boa vontade, instando a Autora a isso e repreendendo-a pela sua alegada “desorganização”;
m. No entanto, quando Autora e Réu acordavam uma data para aquela ir à casa de morada de família buscar pertences seus, o que importava sempre que a Autora providenciasse transporte para os itens que retirasse, o Réu de alguma forma boicotava o processo.
n. Ora, apesar de a Autora ter enviado esse rol para o Réu, combinando-se que aquele documento informal seria assinado aquando da regulação das responsabilidades parentais,
o. O certo é que na data agendada para tal efeito, em finais de Abril de 2019, não foi assinado qualquer documento atinente aos bens, nem o Réu se voltou a mostrar receptivo para falar de qualquer partilha dos mesmos.
p. Não lhe dando acesso a nenhum dinheiro do que constava da conta bancária conjunta, pois retirou à Autora o cartão multibanco e de crédito que a mesma utilizava, obrigando-a a dar-lhos em mão.
q. E conservando para si os dois automóveis que foram adquiridos durante a união de facto.
r. Aliás, até ao nascimento do primeiro filho e desde finais de 2003, Autora e Réu mantinham uma relação de namorados.
s. Sempre pretenderam manter a sua total autonomia de vida, estando juntos quando entendiam, pernoitando um com o outro se quisessem e cada um suportando as suas despesas, salvo o apoio esporádico que houvesse a necessidade e vontade de prestar.
t. Até ao nascimento do primeiro filho, altura em que decidiram fazer uma vivência conjunta, auxiliando-se mutuamente nas obrigações do quotidiano, consoante a capacidade e disponibilidade de cada um, Autora e Réu mantiveram, sempre, total autonomia financeira e de movimentos (estavam juntos apenas quando ambos queriam).
u. Mesmo durante o período de vivência em comum (de novembro de 2007 a fevereiro de 2019), com partilha de “leito, mesa e habitação”, isto é, partilhando as obrigações do quotidiano, o Réu, com a concordância da Autora, sempre quis conservar o seu próprio património imobiliário e veículos automóveis e, por isso, foi ele quem suportou, exclusivamente, a totalidade da sua aquisição e as despesas com a sua manutenção.
v. A Autora não alega e crê que tal não será dado a conhecer ao Tribunal, mas em junho de 2004 adquiriu a viatura automóvel de marca Ford, modelo ..., com a matrícula ..-..-XP, cujo pagamento foi realizado através de empréstimo bancário, pelo que nos meses e anos que se sucederam teve de fazer face a esse encargo, pese embora os parcos rendimentos de que auferia, sobretudo após a cessação do contrato de prestação de serviços com a Câmara ....
x. Tendo sido passado os honorários daquele sido suportados exclusivamente pelo Réu
z. Todas as despesas relacionadas com a construção da casa foram suportadas pelo Réu
aa. Aquando da mudança para casa do Réu, em ..., o “grosso” da mobília que decora a habitação foi comprado pelo Réu.
bb. A Autora permaneceu sem atividade profissional, após ter sido dispensada da Câmara Municipal ..., por sua exclusiva decisão.
cc. E fruto das discussões a este propósito, por alturas do Natal de 2018, o casal decidiu romper a sua relação, no início de janeiro de 2019.
dd. A decisão de findar a relação foi uma decisão conjunta, não tendo o Réu feito qualquer ultimato, mas solicitando que, assim que possível, a Autora saísse de uma casa que não era a sua.
ee. Art. 114º da contestação (o qual não se reproduz em virtude de desconfigurar sempre que é efectuado copy paste)
ff. Como também o Réu foi beneficiário da herança por morte do seu pai, tendo recebido o valor de 40.000,00€ (quarenta mil euros).
gg. Para além de todo o valor resultante do seu trabalho, o Réu também contribuiu para a economia familiar com a quantia de cerca de 61.950,00€ (sessenta e um mil novecentos e cinquenta euros).
hh. E porque as viaturas automóveis existentes na esfera jurídica do Réu sucedem a uma viatura anterior que o Réu vendeu e com a qual adquiriu as identificadas pelas Autora, na PI, esquecendo-se, porém, a Autora de referir que parte do produto dessa venda foi aplicado nas despesas quotidianas”.
*
3.2. Fundamentação de direito
3.2.1. Das nulidades da sentença
Delimitadas que estão, sob o n.º II, as questões a decidir, é o momento de as apreciar.
1. Da invocada nulidade da sentença.
A nulidade que o recorrente aponta à sentença recorrida é a prevista na al. e), do n.º 1 do art. 615.º do CPC, invocando para o efeito, o que, mormente nas conclusões 82) a 85), sintetiza nos seguintes termos:
“82) Nos termos do consignado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 21.05.2020, no processo 181/19 0T8CBC-A.G1, «Hoje predomina já a ideia que é possível convolar a qualificação da pretensão material deduzida ou a qualificação do pedido, atendendo ao efeito prático-jurídico que resulta do pedido, ao abrigo do artigo 293º do Código Civil, mas apenas se se mantiverem, pelo menos no essencial, os seus efeitos e fins, se se não se agravar a posição do demandado ou de terceiros e se se verificar coincidência entre os interesses tutelados por ambos os pedidos».
83) Foi precisamente o que sucedeu no caso em apreço, uma vez que a Autora pediu que o Réu fosse condenado a restituir à Autora a quantia de € 40.731,80, pelo enriquecimento sem causa, com juros de mora até integral pagamento, e a decisão recorrida condenou o Réu a restituir à Autora a quantia de € 90.000,00, pelo enriquecimento sem causa decorrente da alínea anterior, à qual acrescerão juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.
84) Impõe-se concluir que o Tribunal excedeu os limites impostos por lei à sua atividade jurisdicional e ao seu poder de condenar, com infração do princípio do dispositivo que assegura à parte circunscrever o thema decidendum e do princípio do contraditório, pois não permitiu ao Réu a defesa relativamente ao conteúdo da condenação, gerando-se assim uma situação de indefesa claramente impedida pelo princípio da igualdade e pelo direito de acesso aos Tribunais e ao direito constitucionalmente tutelados nos artigos 13º e 20º CRP,
85) Impondo-se, ainda, concluir pela nulidade da sentença, por excesso de pronúncia (cfr. artigos 609º, nº1 e 615º, nº 1, al. e), ambos do CPC), atento o facto de a decisão recorrida ter condenado em quantidade superior ao do pedido, em expressa violação do disposto no artigo 20º e 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa”.
Vejamos.
O art. 615.º do CPC, sob a epígrafe “Causas de nulidade da sentença”, dispõe no seu n.º 1 que é nula a sentença quando:
a) não contenha a assinatura do juiz;
b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, e
e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora ensinam que, além da exclusão dos chamados casos de inexistência da sentença, “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável” (in “Manual de Processo Civil”, 2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pág. 686).
Por sua vez, Lebre de Freitas, esclarece que “…a sentença pode apresentar vícios que geram nulidade, tornando-a totalmente inaproveitável para a realização da função que lhe compete, e vícios de conteúdo, que podem afetá-la total ou apenas parcialmente. Os segundos podem ainda respeitar à estrutura, aos limites ou à inteligibilidade da decisão, gerando anulabilidade, ou em erro material, a retificar, todos caracterizando o que a doutrina tradicional usava designar por errores in procedendo, ou consubstanciar erro de julgamento (error in judicando), gerando a injustiça da decisão” (in “A Ação Declarativa Comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 4.ª Edição, Gestlegal, págs. 375/6).
A este respeito, Alberto dos Reis advertia que “Importa, na verdade, distinguir cuidadosamente as duas espécies: erros de actividade e erros de juízo.
O magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete erro de actividade quando na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afectam o fundo ou o mérito da decisão; os da segunda categoria são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua actividade de julgador” (in “Código de Processo Civil anotado”, Vol. V, Reimpressão, Coimbra Editora, Lim., Coimbra 1984, pág. 124/5).
Sobre o tema também se têm debruçado os nossos tribunais superiores, de que é exemplo o acórdão da RP de 23/05/2024 (proc. 3278/21.2T8PRT.P2; rel. Isoleta de Almeida Costa), em que se pode ler que: “É, desde há muito, entendimento pacífico, que as nulidades da decisão não incluem o erro de julgamento, seja de facto ou de direito (1): as nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal (2); trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, (3) enquanto o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei e/ou consiste num desvio à realidade factual… As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico) (cf. neste sentido acórdão STJ citado de 17.10.2017, Procº nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1).
Como se afirmou no acórdão do Supremo Tribunal de 19.11.2015, Procº nº 568/10.3TTVNG.P1.S1, na nulidade, ao contrário do erro de julgamento, em que se discorda do teor do conteúdo da própria decisão, invocam-se circunstâncias, legalmente previstas no artigo 615º do CPC, que ferem a própria decisão” (in www.dgsi.pt).
A nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. e) do CPC sucede quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
A respeito desta causa de nulidade, Antunes Varela explica que “é a resultante da violação da regra fundamental estabelecida no artigo 661.º sobre os limites da condenação.
A sentença será nula, se condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, infringindo a regra segundo a qual ne eat iudex ultra vel extra petita partium.
Em qualquer dos casos, a condenação é ilegal.
Dar-se-á a primeira hipótese quando, tendo o autor requerido em acção de indemnização a quantia de 5.000 como ressarcimento do dano sofrido, a sentença condene o réu no pagamento de 10.000, a pretexto de ser esse o montante real do prejuízo, de acordo com os elementos dos autos” (ob. cit., pág. 691).
Na verdade, uma das vertentes do princípio do dispositivo que preside ao direito processual civil é a dos limites da sentença a que se refere o art. 609.º, n.º 1 do CPC com o seguinte teor: a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.
Ora, a formulação do pedido é um dos requisitos que deve ser observado na elaboração de uma sentença, como resulta do art. 552.º, n.º 1, al. e) do CPC.
Diz-nos Paulo Pimenta que “A conclusão é a parte da petição destinada à formulação do pedido, o qual expressa a concreta tutela jurisdicional pretendida pelo autor ao propor a acção [alínea e) do nº 1 do art. 552º].
O pedido é também um elemento fundamental da petição inicial, na medida em que é por ele que se estabelecem, desde logo, os limites da sentença, no caso de a acção vir a ser julgada procedente (art. 609º 1)…” (in “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, págs. 140-141).
Sublinha este autor que “Do que se trata é da necessária correspondência entre o pedido formulado pelo autor e a decisão firmada na sentença, na medida em que o juiz não pode condenar em objecto diverso do pedido ou em quantidade superior à peticionada pelo autor (art. 609º 1). Estamos ainda no domínio da disponibilidade das partes sobre o processo, pois o autor, enquanto titular do interesse feito valer em juízo, é quem melhor saberá o que pretende obter do recurso à via judicial, expressando isso mesmo no pedido formulado na petição inicial. É o que também se designa por princípio do pedido, no sentido de que o pedido formulado pelo autor define os limites da sentença. Nessa conformidade, será nula a sentença que condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, tal como resulta do art. 615º 1.e)” - in loc. cit., págs. 23/4.
Para mais, situações há em que não é possível formular na PI um pedido determinado no seu quantitativo e conteúdo, prevendo o art. 556.º do CPC aquelas em que é admissível pedidos genéricos, a saber:
a) quando o objecto mediato da acção seja uma universalidade, de facto ou de direito;
b) quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o art. 569.º do Código Civil;
c) quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro ato que deva ser praticado pelo réu.
No caso dos autos, não só não se verifica nenhuma das apontadas situações em que o pedido genérico é admissível, como a própria alegação da A., na medida em que elenca os valores com que ficou empobrecida, e formula a final, um pedido que corresponde à soma desses valores, revela a desnecessidade de recorrer à modalidade do pedido genérico.
Na realidade, como escreve Paulo Pimenta, com interesse para o tema em análise, “O pedido deduzido na conclusão da petição representa o corolário lógico dos factos descritos na narração, os quais são precisamente o fundamento do pedido” (in loc. cit., pág. 141).
Ora, o pedido inicial da A. era o seguinte:
“a) Declarar-se o reconhecimento da existência de união de facto entre Autora e Réu desde o mês de Outubro de 2003, e a cessação da mesma, com efeitos desde o mês de Março de 2019;
b) Reconhecer-se e declarar-se o contributo da Autora, na mesma proporção e em partes iguais com o Réu, para a formação do acervo patrimonial adquirido na constância da união de facto, inscrito em nome de qualquer um deles ou de ambos, ou adquirido por ambos, durante esse período, quer se trate de bens imóveis, bens móveis, saldos e depósitos bancários, créditos, ou outros bens indiferenciados;
c) Ser o Réu condenado a entregar à Autora metade de tal património a liquidar em execução de sentença, com juros de mora até integral pagamento caso se entenda pela existência de uma sociedade de facto entre Autora e Réu ou, alternativamente, uma situação de compropriedade relativamente aos bens adquiridos pelo Réu com a comparticipação da Autora; caso assim não se entenda, em caso de improcedência do ora peticionado em c),
d) Declarar-se o enriquecimento sem causa do Réu à custa da Autora, por força de todo o acervo patrimonial, constituído com o contributo da Autora na constância da união de facto, que aquele conservou na sua posse após a cessação da mesma;
e) Ser o Réu condenado a restituir à Autora a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença pelo enriquecimento sem causa decorrente da alínea anterior, com juros de mora até integral pagamento”.
Na sequência de convite do tribunal por forma a que quantificasse o valor concreto que a empobreceu e enriqueceu o R., a A. juntou novo articulado que termina dizendo:
“61. Requer-se seja alterada a redacção das alíneas d) e e) do petitório, passando as mesmas a ter a seguinte redacção:
d) Declarar-se o enriquecimento sem causa do Réu à custa da Autora, no valor de € 40.731,80, por força de todo o acervo patrimonial, constituído com o contributo da Autora na constância da união de facto, que aquele conservou na sua posse após a cessação da mesma;
e) Ser o Réu condenado a restituir à Autora a quantia de € 40.731,80, ou outra que se venha a liquidar em execução de sentença se necessário, pelo enriquecimento sem causa decorrente da alínea anterior, com juros de mora até integral pagamento.
62. No mais, conclui-se como na inicia”.
A fundamentar aquele pedido de 40.731,80 €, a A. invocou, e suma que:
“35. Assim, entre Março de 2009 e Março de 2019 foi paga a título de crédito à habitação, a partir da conta conjunta de Autora e Réu e por estes em comunhão de esforços, a quantia global de € 76.608,50.

40. Assim, entre Janeiro de 2016 e Fevereiro de 2018, foi pago da conta conjunta de Autora e Réu e por estes em comunhão de esforços, no que respeita ao crédito pessoal para aquisição de bens e despesas familiares, o montante de € 2.536,99.

45. Assim, entre Março de 2018 e Março de 2019, foi pago da conta conjunta de Autora e Réu e em comum esforço por ambos, no que respeita ao crédito pessoal para aquisição de bens e despesas familiares, o montante de € 2.318,11.
46. Ora, somando os três valores de passivo acima discriminados,
47. Passivo esse que foi sendo, conforme facilmente se observa dos documentos acima indicados, pago através daquela conta conjunta pertencente ao Réu e à Autora,
48. Temos que, entre Março de 2009 e Março de 2019, o total do passivo (referente a crédito à habitação e créditos pessoais para aquisição do património adquirido conjuntamente durante a união de facto) suportado por Autora e Réu, em comunhão de esforços, se cifrou em € 81.463,60.
49. Destarte, a Autora entende ter contribuído na proporção de metade para o pagamento deste passivo,
50. Mais especificamente tendo contribuído em montante equivalente pelo menos a € 40.731,80,
51. Porquanto contribuiu para a economia comum familiar das variadas formas que amplamente já se explanou,
52. Sendo titular da conta bancária da qual saíam os aludidos pagamentos, conta essa que a dada altura passou a ser a sua única conta bancária (até ao termo da união de facto),
53. E para o saldo da qual a Autora contribuía regularmente, fosse com o produto do seu trabalho, fosse com as ajudas da sua família.
54. Pelo exposto, entende a Autora que o valor concreto que disponibilizou ao Réu, enriquecendo-o sem causa justificativa perante tudo quanto vai alegado na PI e no presente articulado,
55. - Mormente perante o facto de esse valor ter suportado, até à cessação da união de facto, a aquisição de um património que ficou exclusivamente na posse e titularidade do Réu -
56. E, portanto, empobrecendo-a na exacta medida em que enriqueceu este último,
57. Se cifra no montante de € 40.731,80, de acordo com o supra alegado e constante dos documentos citados, juntos com a PI e a contestação, e a prova que em audiência de julgamento se fará.
58. Assim, requer-se a actualização do valor da causa para € 40.731,80; adicional e simultaneamente,
59. Em conformidade com a especificação e concretização da matéria de facto feita supra, nos termos ordenados,
60. E configurando esta modificação um desenvolvimento do pedido primitivo, de acordo com o disposto no art. 265º, nº 2 do CPC, por remissão do art. 590º, nº 6 do mesmo diploma,
61. Requer-se seja alterada a redacção das alíneas d) e e) do petitório…”
Nas suas contra-alegações a A./recorrida justificou o pedido de condenação em quantia a liquidar ulteriormente, nos seguintes termos: “Não se pode entender, pela formulação da alínea e) do petitório, que a quantia indicada (e que foi, efectivamente, à falta de melhor critério, apontada a título indicativo pela Autora), fecha o âmbito do pedido, visto que alternativamente se pede a condenação nessa ou noutra quantia a liquidar em execução de sentença se necessário (conclusão 48)”.
Do que supra deixamos exposto retira-se com clareza que a ideia de pedido meramente indicativo não é uma possibilidade processualmente reconhecida, o mesmo sucedendo com pedido genérico alternativo a um pedido quantificado. Com efeito, “na base do pedido alternativo está uma obrigação alternativa, de tal forma que o direito do autor fica satisfeito efectuando-se uma só das prestações, podendo afirmar-se que estas são juridicamente equivalentes” (Paulo Pimenta, in “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, pág. 143).
No caso a obrigação que a recorrida exige do recorrente é uma só, obrigação de restituir aquilo com que injustamente se locupletou, o que foi quantificado, inexistindo, assim, espaço para um pedido genérico.
O pedido de condenação do R. em “outra quantia que se venha a liquidar” em alternativa a um pedido perfeitamente quantificado não é, pois, legalmente admissível.
Porque assim, tendo por fundamento o enriquecimento sem causa do recorrente, a recorrida quantificou o correspondente pedido de restituição em 40.731,80 €, não podendo deixar de ser este o limite da condenação, de acordo com o já citado art. 609.º, n.º 1 do CPC.
Neste contexto, a decisão do tribunal recorrido de declarar o enriquecimento sem causa do recorrente à custa da recorrida no valor de € 90.000,00 e de condenar aquele a restituir a esta esse valor, não pode deixar de ser considerada uma condenação em quantidade superior ao pedido que, ao abrigo do art. 615.º, n.º 1, al. e) do CPC, dita a nulidade da sentença nessa parte.
De onde, se julga verificada a invocada nulidade da sentença a quo, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil, impondo-se restringir a condenação proferida ao pedido deduzido, sem prejuízo do que venha a decidir-se acerca das restantes questões colocadas em sede deste recurso (com interesse, acórdão do STJ de 16/10/2024, proc. 2160/18.5T9LRA.C1.S1, Maria do Carmo Silva Dias, acórdão do STJ de 8/02/2018, proc. 633/15.0T8VCT.G1.S1, rel. Maria da Graça Trigo e acórdão da RL de 23/01/2025, proc. 10653/21.0T8LSB.L1-6, Maria Teresa F. Mascarenhas Garcia, in www.dgsi.pt).
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3.2.2 Da impugnação da decisão de facto
O recorrente invoca erro no julgamento quanto aos pontos 10, 16, 20, 23, 25, 26, 27, 32, 33, 38, 44, 45, 64, 66, 67, 80 e 81 dos factos provados e o ponto cc dos factos não provados (conclusões 1) a 19)).
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC, segundo o qual a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Para o efeito, o art. 640.º, n.º 1 do CPC impõe que o recorrente especifique obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Assim, no que concerne a esta parte do recurso interposto pelo recorrente, da leitura das respectivas alegações e conclusões, constata-se que o mesmo discorda da decisão no que se refere aos identificados pontos, propondo outra decisão com base na apreciação de determinados meios de prova que especificadamente identifica.
O recorrente cumpriu os aludidos ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pelo que, no que respeita aos factos especificadamente indicados, importa reapreciar os meios de prova disponíveis no processo, posto que, como escreve Abrantes Geraldes, embora “a modificação da decisão da matéria de facto esteja dependente da iniciativa da parte interessada e deva limitar-se aos pontos de facto especificadamente indicados, desde que se mostrem cumpridos os requisitos formais que constam do art. 640.º, a Relação já não está limitada à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, devendo atender a todos quantos constem do processo, independentemente da sua proveniência (art. 413.º), sem exclusão sequer da possibilidade de efetuar a audição de toda a gravação se esta se revelar oportuna para a concreta decisão” (in “Recursos em Processo Civil”, 7.ª Edição Atualizada, Almedina, pág. 341).
O art. 607.º, n.º 5 do CPC, de que outros preceitos legais como os arts. 389.º, 381.º e 396.º do CC, a propósito, respectivamente da prova pericial, da inspecção judicial e da prova testemunhal, dão eco, consagra o princípio de que o juiz aprecia livremente a prova segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, excluindo desta livre apreciação os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Na verdade, as provas, dispõe o art. 341.º do CC, têm por função a demonstração da realidade dos factos, o que, como ensinam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, não se consegue “visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente), como é, por exemplo, o desenvolvimento de um teorema nas ciências matemáticas”. Esclarecendo, os mesmos autores escrevem que “A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, e que “O resultado da prova traduz-se assim, as mais das vezes, num efeito psicológico, embora a demonstração que a ele conduz no espírito do julgador, envolva a cada passo operações de carácter lógico” (in “Manual de Processo Civil”, 2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Limitada, págs. 435/436).
Daí que, na fundamentação da sentença, o art. 607.º, n.º 4 do CPC imponha que o juiz declare quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
Os supra citados autores salientam que “Além do mínimo traduzido na menção especificada (relativamente a cada facto provado) dos meios concretos de prova geradores da convicção do julgador, deve este ainda, para plena consecução do fim almejado pela lei, referir, na medida do possível, as razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova” (in loc. cit., pág. 653).
Verdade que, como sublinha Abrantes Geraldes, “existem aspetos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas são percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador.
O sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1.ª instância a perceção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os fatores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo aos tribunais retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo.
Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização da motivação da decisão da matéria de facto, sempre existirão fatores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção formada acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos” (in loc. cit., págs. 348 e 349).
Em todo o caso, sublinha este autor que “a Relação poderá e deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado…se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à correspondente modificação da decisão. E para isso, tem de pôr em prática as regras ditadas acerca da impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto provada e não provada” (in loc. cit., págs. 348 e 350).
Efectivamente, a questão que se coloca relativamente à prova, quer na 1ª Instância quer na Relação, é sempre a da valoração das provas produzidas em audiência ou em documentos de livre apreciação, pois que, em ambos os casos, vigoram para o julgador as mesmas normas e os mesmos princípios.
Retomando o caso dos autos, vejamos os concretos pontos da matéria de facto cuja decisão foi impugnada pelo recorrente.
O ponto 10 dos factos provados tem a seguinte redacção: “A Autora era igualmente titular de uma poupança própria, que anos mais tarde viria a resgatar para a conta do casal, em contributo para o custeamento das despesas familiares”.
Relativamente a este ponto da matéria de facto, entende o recorrente, em suma, que inexiste qualquer prova documental, mormente extrato bancário que permita aquela conclusão, e as declarações da recorrida nesse sentido mostram-se inidóneas para o efeito.
Começamos por constatar que a asserção contida no apontado ponto 10 dos factos provados, correspondente ao ponto 12 da petição inicial, além de conclusiva na parte final (“em contributo para o custeamento das despesas familiares”), é genérica, porquanto não identifica a conta poupança de que a recorrida fosse titular nem a data do resgate para a conta do casal.
Ainda assim, admite-se que, da prova documental e pessoal produzida, pudessem ter sido colhidos factos concretizadores daquelas afirmações genéricas, dos quais pudesse ser extraída a apontada conclusão.
Porém, ouvida a gravação da prova pessoal, e consultados os documentos juntos pelas partes, não se retira qualquer elemento que permita identificar a poupança da recorrida, o seu valor e a sua canalização para a conta do casal, em prejuízo da conclusão de que a mesma se destinou ao custeamento das despesas familiares. Verdade que o depoimento de CC, pai da recorrida - no sentido de que quando se juntou ao recorrente a filha tinha alguns milhares e esse dinheiro foi todo usado para o projecto de vida comum – corroborou as declarações da recorrida que em julgamento afirmou que tinha poupanças habitação no valor de aproximadamente 5.000,00 € que foram alocados às despesas comuns. Sucede, que as afirmações assim feitas, desacompanhadas de qualquer elemento documental que as sustente, não se mostram idóneas a demonstrar o respectivo teor. Na realidade, formalismos escritos e documentais e, hoje em dia, processamentos electrónicos são inerentes às poupanças do género das descritas pela recorrida e às operações que lhes digam respeito, pelo que a ausência de registos dessa natureza, não podendo ser ignorada pelo tribunal, prejudica irremediavelmente a prova dos factos que vertidos sob o ponto 10 dos factos provados, que, assim, deve ser eliminado como tal e transitar para os factos não provados.

Os factos 16, 20 e 23 dos factos provados, assim agrupados pelo recorrente têm a seguinte redação:
16. Em 2005, Autora e Réu tomaram, conjuntamente e como projecto familiar, a decisão de procederem à construção de uma moradia, para a sua habitação própria e permanente.

20. No intuito de aumentarem o espaço para a construção, porquanto o intuito do projecto familiar era a edificação de uma moradia unifamiliar independente, com espaço exterior,

23. Autora e Réu avançaram com os primeiros passos no sentido da construção da casa de morada de família ainda no ano de 2005”.
A unir os referidos pontos temos a construção de uma moradia iniciada no ano de 2005 por decisão conjunta do recorrente e da recorrida e enquanto projecto familiar comum.
Das alegações de recurso (págs. 12 e 13) assim como das respectivas conclusões (conclusão 4) percebe-se que, pese embora afirme que esses pontos, ou pelo menos os pontos 16 e 20, devem obter a resposta de não provados (conclusão 19), depreende-se que o inconformismo do recorrente se refere unicamente à decisão conjunta de construção da moradia e enquanto projecto familiar comum. No mais, a construção da moradia não constitui matéria controvertida entre as partes, e a data em que foram dados os primeiros passos nesse sentido, dos pontos 17 e 18 dos factos provados assim como dos documentos 5, 6, 7, 8 e 9 juntos com a Contestação, decorre que coincidiu com o ano de 2005.
Para mais, da factualidade assente e não impugnada extrai-se igualmente que foi nessa moradia construída em ... (ponto 17 dos factos provados) que recorrente e recorrida passaram a viver em Março de 2009 (pontos 48 e 49 dos factos provados), na altura já com o filho mais velho (ponto 35 dos factos provados) e depois também com o filho mais novo (ponto 52 dos factos provados).
Acresce que, em 2005 as partes já viviam juntas no apartamento de que o recorrente dispunha no Porto. É o que resulta da conjugação de diversos factos provados assim como do conjunto dos depoimentos prestado em julgamento.
Na verdade, depois de algum tempo de namoro, tomaram recorrida e recorrente a decisão de viver juntos, tendo a partir daí passado a fazer toda a sua vida em comum, inicialmente no apartamento próprio do recorrente, na cidade do Porto (pontos 1 e 5 dos factos provados). No ano de 2004, recorrida e recorrente optaram por renovar o mobiliário e a decoração do apartamento, adaptando-o à nova vivência em casal, e tendo adquirido, com o dinheiro de ambos, cama e cómoda novas para o quarto de dormir, e uma nova mobília de sala (ponto 15 dos factos provados). Em Maio de 2006, as partes foram viver para casa dos pais daquela a título gratuito, potenciando dessa forma a economia de meios financeiros para custear a construção da casa e a fracção que deixaram desabitada no Porto (ponto 34 dos factos provados). Para mais, não foram só as testemunhas CC, já identificada, e DD, irmão da recorrida, que situaram o início da vida em comum do recorrente e da recorrida em 2003. Também a testemunha EE, cunhada do recorrente, apesar de não se recordar se as partes foram viver para casa dos pais da recorrida antes ou depois do nascimento em 28/11/2007, do FF, filho mais velho das partes, disse que o apartamento onde moravam, referindo-se ao apartamento do Porto, era pequeno, em sinal de que efectivamente as partes já viviam juntas antes de se mudarem para casa dos pais da recorrida, o que, como vimos, aconteceu em Maio de 2006, muito antes da gravidez da recorrida. Não convenceram, portanto, as declarações do recorrente de que mudaram para casa dos pais da recorrida um ou dois meses antes do nascimento do FF, ainda que tenha sido corroborado pela testemunha GG, seu irmão.
De resto, ambos admitiram que antes disso “às vezes viviam juntos”, expressão desta testemunha, e “às vezes estavam juntos”, expressão do recorrente, o que mais não é do que a impossibilidade de negarem a evidência da vida em comum entre recorrente e recorrida nos termos expostos.
E se assim é, ou seja, se em 2005 recorrente e recorrida já viviam juntas na mesma casa, se continuaram a viver juntos, mudando-se ambos em 2006 para casa dos pais da A., se em 2007 tiveram um filho em comum, se em 2009 se mudaram para uma nova moradia construída para o efeito, onde instalaram a habitação do agregado familiar, entretanto formado também pelo filho mais novo nascido em 2010, afigura-se-nos que a decisão de construir essa moradia, neste contexto familiar, surge naturalmente como uma decisão conjunta do casal com o objectivo de aí passar a residir, como efectivamente veio a suceder. Aliás, mal se compreenderia que assim não fosse, ou seja que a decisão de construir a moradia para o casal viver fosse de apenas um dos seus membros, ainda que se admita, sem esforço, que, como explicaram, as testemunhas GG e EE, o recorrente já dispusesse, mesmo antes de conhecer a recorrida, de um dos lotes onde a moradia veio a ser construída, que sempre seria construída, mesmo que, como disse esta testemunha, a companheira do recorrente fosse outra pessoa. O que sucede é que foi com a recorrida e não com outra pessoa que a construção da moradia se colocou como projecto real destinado a uma família concreta formada não só pelo recorrente mas também pela recorrida que, nos termos sobreditos, não se vê como pode ter deixado de participar na decisão da sua construção.
Nesta medida, a resposta de provado relativa aos factos contidos nos pontos 16, 20 e 23 não merece censura, e, como tal, improcede, nesta parte, a pretensão recursória.

Os pontos 25, 33, 44 e 45, que foram impugnados, têm o seguinte teor:
“25. Todo o processo decisório foi desenvolvido por ambos, em termos de arquitectura, construção, escolha de materiais, etc.

33. A A., com autonomia decisória, tratava, em nome do casal, dalgumas reuniões atinentes ao desenvolvimento da obra, como escolher material e equipamentos, encomendas, emails, pedido de orçamentos, negociar preços, etc.

44. Tendo a própria Autora concebido a cozinha, os móveis de WC, tratado de detalhes da construção, tratado da parte de carpintaria, etc.;
45. Tendo ainda lidado com o construtor e as empresas encarregadas dos acabamentos, até ao início do ano de 2009”.
Para sustentar a sua diferença relativamente a esta matéria, apoia-se o recorrente na testemunha HH, arquitecto da casa em questão, em virtude de este ter afirmado que a relação mais profissional foi com o AA, que o dono da obra era o AA e que a decisão final seria sempre do AA, referindo-se ao modo como procederia em caso de divergência entre o recorrente e a recorrida acerca de algum aspecto relativo ao estilo ou gosto. Se assim foi, importa, no entanto dizer que a identificada testemunha também salientou que aquele protagonismo se deveu ao facto de o recorrente ser o requerente único e de ter sido ele quem, por consequência, assinou e tratou de todas as formalidades relativas ao processo (cfr. pontos 123 e 124 dos factos provados).
Esclareceu, porém, que a nível do desenvolvimento da casa conversava com os dois em permanência, que normalmente estavam presentes os dois; que falava com um e com outro; que era o casal e que nas reuniões estavam ambos presentes (cfr. ponto 126 dos factos provados). Para mais, a testemunha CC foi muito claro quanto ao envolvimento da filha na construção da casa que ambos, recorrente e recorrida, se comportavam como sendo também desta, o que acabou por o implicar também a si nas ajudas que prestou por ter conhecimentos na área da construção.
Improcede, portanto, também nesta parte a impugnação da decisão da matéria de facto.

Os pontos 26 e 27 dos factos provados têm o seguinte conteúdo:
“26. Grande parte dos materiais de construção e equipamentos foram adquiridos com descontos significativos, ou mesmo a “preços de fábrica”, em empresas da família e amigos da Autora, ou de parceiros comerciais do pai desta,
27.” O que lhes poupou, à Autora e Réu, alguns (bons) milhares de euros durante a construção da moradia familiar”.
Insurge-se o recorrente contra a decisão do tribunal a respeito destes pontos porque da matéria provada, bem como da documentação junta aos autos não resulta que grande parte dos materiais de construção e equipamentos tenham sido adquiridos com descontos significativos, ou mesmo a “preços de fábrica”, em empresas da família e amigos da Autora, ou de parceiros comerciais do pai desta. Da informação carreada para os autos resulta, apenas, que o pai da autora forneceu o material de rega e que obtiveram descontos no chão Revigrés que foi adquirido para colocação nos pavimentos em cerâmica, a banheira da casa e as torneiras Ofa.
Ora, estes específicos contributos do pai da recorrida para a construção da moradia estão vertidos sob os pontos 28, 30 e 121 dos factos provados, que não foram objecto de impugnação. No mais, é um facto que as testemunhas CC e DD descreveram várias ajudas que o pai prestou com fornecimento de materiais e equipamentos a preço mais baixos. Porém, a demonstração deste tipo de factualidade, que envolve sempre documentação variada, não pode compadecer-se com meras afirmações genéricas, sobretudo se provenientes, como é o caso, de testemunhas afectivamente próximas de uma das partes, circunstância que naturalmente prejudica a credibilidade de um depoimento para aquele tipo de matéria que, como se disse, deixa vestígios documentais.
Neste conspecto, relativamente aos pontos 26 e 27 dos factos provados, este tribunal, julgando procedentes a respectiva impugnação, determina que os mesmos transitem para o elenco dos factos não provados.
Quanto ao ponto 32 dos factos provados - “A Autora estava, desde julho de 2005 – altura em que se despediu de funções na Câmara Municipal ... -, a trabalhar em regime freelancer e tinha maior flexibilidade horária.”
Dos documentos juntos aos autos sobre os factos em apreço (documentos 2 e 3 com a Contestação), não consta que a recorrida se tenha despedido das funções na Câmara Municipal .... Pelo contrário, a testemunha CC depôs no sentido de que a Câmara ... não renovou o contrato da filha.
Deste modo, julga-se parcialmente procedente a impugnação relativamente ao ponto 32 dos factos provados, do qual passará, assim, a constar que: “A Autora estava, desde julho de 2005 – altura em que deixou de exercer funções na Câmara Municipal ... -, a trabalhar em regime freelancer e tinha maior flexibilidade horária.”.
Em relação ao ponto 38 dos factos provados – “Ainda durante o ano de 2007, decidiram Autora e Réu abrir uma conta bancária conjunta, para facilitar a solicitação de crédito bancário em nome de ambos” – da impugnação retira-se que o recorrente aceita ter aberto com a recorrida uma conta bancária, apenas se insurgindo contra a afirmação de que a finalidade da mesma foi facilitar a solicitação de crédito bancário em nome de ambos. Aceita, inclusive, o recorrente que o fez durante o ano de 2007. Note-se que como revelador de que a finalidade da abertura da conta colectiva não era facilitar a solicitação de crédito bancário o recorrente invocou o facto de a recorrida estar desempregada à data, referindo-se naturalmente ao ano de 2007, único mencionado na asserção em causa.
Que a finalidade da abertura de conta pelo recorrente e pela recorrida tenha sido a apontada facilidade na solicitação de crédito bancário é matéria sobre a qual não foi feita prova idónea para o efeito, desde logo porque não há documentos que o demonstrem, tanto mais que o empréstimo bancário destinado à construção da moradia em discussão efectivamente foi contraído unicamente pelo recorrente, como resulta dos pontos 94, 95, 127 e 144 dos factos provados, em conformidade com o documento 9 junto com a Contestação e a abertura da conta bancária comum é compatível com a mera partilha de despesas igualmente para satisfação de necessidades comuns, inclusive as relativas ao referido empréstimo bancário (pontos 3, 94 a 96 e 109 dos factos provados).
Decide-se assim eliminar dos factos provados e aditar aos não provados o seguinte segmento: “para facilitar a solicitação de crédito bancário em nome de ambos”.
Assim, o ponto 38 dos factos provados passará a ter como teor que “Ainda durante o ano de 2007, decidiram Autora e Réu abrir uma conta bancária conjunta”.

Dos pontos 64, 66 e 67 consta a seguinte factualidade:
64. “E colocou de lado a sua carreira profissional para cuidar da casa e da família;
66. Potenciando a evolução e crescimento da carreira deste,
67. Bem como o avolumar dos seus rendimentos e da sua notoriedade dentro da área em que labora.”
Relativamente ao teor destes pontos, o tribunal de recurso entende que o seu conteúdo corresponde a conclusões de facto que, naturalmente pressupõem a verificação de determinada factualidade para poderem ser afirmadas.
A este propósito, escreveu-se no acórdão da RP de 10/07/2024 (proc. 895/22.7T8PRD.P1, rel. Manuel Domingos Fernandes), que “Conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada.
Dito de outro modo, só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objeto de prova.[8] Segundo elucida Anselmo de Castro[9] “são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos”, depois acrescentando que “só, (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objeto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”.
Sucede que, como se sintetizou no acórdão da RL de 18/11/2021 (proc. 1102/09.3TVLSB.L1-2; rel. Arlindo Crua, in jurisprudência.pt), “os denominados juízos ou conclusões de facto situam-se numa zona intermédia ou campo intermédio entre os puros factos e as questões ou matéria de direito, encontrando-se incluídos na legislação como parte integrante ou constituinte da hipótese legal de várias normas jurídicas ; V - tais juízos ou conclusões de facto numas situações aproximam-se mais de uma verdadeira questão de facto, enquanto que noutros a proximidade é com uma questão de direito ; VI – pelo que, aquilo que é matéria de facto ou matéria de direito não é estanque ou fixo, mas antes volátil, dependendo dos termos em que a lide controvertida se apresenta ou modela, donde o mesmo juízo ou conclusão de facto pode ser, numa situação facto ou juízo de facto e, noutra, juízo de direito ; VII - devendo apenas terem-se como proibidos os juízos de facto conclusivos que impliquem e apreciem determinados acontecimentos à luz de uma norma jurídica, caso em que tal juízo de facto conclusivo contém em si a resposta a uma questão de direito, ou seja, possui um sentido normativo”.
No caso, as afirmações contidas nos pontos 64, 66 e 67, não obstante o seu carácter conclusivo nem por isso deixam de evidenciar a factualidade a que correspondem, como seja as consequências da decisão conjunta do casal de a recorrida se manter como cuidadora maioritária de ambos os filhos do casal até ambos terem completado os 2 anos (ponto 58 dos factos provados). Essas consequências constituem factos concretos sujeitos à instrução da causa.
Vejamos.
O recorrente recorda que se deram como provados os seguintes factos:
“109. Autora e Réu partilhavam as despesas do dia a dia.
110. Nas lides domésticas, houve uma repartição, consoante a disponibilidade de tempo.

131. O Réu sempre apoiou as decisões da Autora na gestão que fez da sua carreira, colaborando nas lides domésticas.
132. Por uma questão de gestão de tempo disponível do casal, a Autora contribuía mais para o serviço doméstico e gestão das questões diárias, estando o tempo do Réu mais limitado.
133. O Réu foi e é um pai presente e participativo em todos os momentos do desenvolvimento dos filhos.
134. O Réu usufruiu de licença de paternidade (cfr. Doc. 11 com a contestação, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido).
135. Foram acometidas algumas tarefas em exclusividade à Autora, como o facto de ser encarregada de educação dos filhos, devendo-se a ter sido considerado, conjuntamente, que tinha mais disponibilidade de tempo e horários mais flexíveis”.
Dos factos ora transcritos, pode dizer-se que, efectivamente, o recorrente partilhava da realização das tarefas domésticas e da prestação dos cuidados aos filhos. O que sucede é que o fazia na medida da sua disponibilidade em função da actividade profissional que, ao contrário da recorrida (pontos 4, 43, 46, 53, 58, 59, 62, 63, 69, 87, 93), nunca deixou de exercer (pontos 7, 8, 60, 61, 65, 93 e 134). Naturalmente que o encargo das tarefas domésticas e da assistência aos filhos pelo qual a recorrida, por opção do casal, ficou maioritariamente responsável (pontos 58 e 93 dos factos provados), lhe retirou disponibilidade para, em simultâneo, exercer a sua profissão, e, consequentemente, a afastou das dinâmicas próprias do mercado de trabalho, pese embora o objectivo de retomar a sua actividade profissional e o apoio das suas decisões pelo recorrente (pontos 46, 47 e 53 dos factos provados). Isso mesmo foi testemunhado pelo pai da recorrida que quando questionado sobre o motivo pelo qual a filha deixou de trabalhar respondeu que pensava que “o problema tinha começado com o nascimento do filho, começou a dedicar-se mais tempo ao filho; depois continuava a fazer trabalhos de designer e começou a preocupar-se mais com a construção da casa e andava com os projectos”. Poderá objectar-se que a recorrida deixou de trabalhar na Câmara Municipal ... em 2005 (ponto 32 dos factos provados), antes do nascimento do primeiro filho em Novembro de 2007 (ponto 35 dos factos provados) e que, por isso, foi opção sua, leia-se conveniência sua, e incapacidade sua em gerir as duas actividades que justificou o seu afastamento do mercado de trabalho, como em julgamento deixou transparecer quer o recorrente quer a testemunha EE. Os factos provados e não impugnados não permitem, porém, a leitura de que, feita a opção conjunta de a recorrida se dedicar a cuidar da casa e dos filhos até estes completarem dois anos de idade (ponto 58 dos factos provados), a recorrida pudesse em simultâneo exercer a sua profissão ou tivesse tido a oportunidade de, depois desse período, a retomar como se o seu exercício não tivesse sido interrompido. Pelo contrário, o recorrente, assegurada pela recorrida a organização familiar, pôde continuar a desempenhar a sua profissão sem interrupções de maior (ponto 134 dos factos provados), o que, permitindo-lhe um investimento total de tempo, meios e disponibilidade na sua própria formação e vida profissionais (ponto 65 dos factos provados), se não determinou – e isso de facto não está provado nem consta dos pontos impugnados - ao menos, de acordo com as regras da experiência potenciou, a evolução e crescimento da sua carreira de músico, assim como, consequentemente, o aumento dos seus respectivos rendimentos e da sua notoriedade.
Nesta perspectiva, os pontos 64, 66 e 67 dos factos provados devem permanecer como tal.

Os pontos 80 e 81 dos factos provados e o ponto cc dos factos não provados têm a seguinte redacção:
“80. No dia 1 de Fevereiro de 2019, a Autora passou a dormir no quarto de hóspedes, para evitar qualquer conflito com o Réu.
81. A separação de Autora e Réu, com cessação efectiva da comunhão de leito, mesa e habitação, veio a ocorrer em meados de Março de 2019, quando aquela arranjou apartamento para habitação própria e ambos deixaram de viver juntos, no mesmo domicílio”
“cc. E fruto das discussões a este propósito, por alturas do Natal de 2018, o casal decidiu romper a sua relação, no início de janeiro de 2019”.
Entende o recorrente que o que se provou e deve considerar-se provado sob o apontados pontos 80 e 81 é o seguinte:
“80. No início de fevereiro, Autora e Réu passaram a dormir em quartos separados, cessando aí a comunhão de leito.”
“81. A separação de Autora e Réu, com cessação efetiva da comunhão de habitação, veio a ocorrer em meados de Março de 2019, em que ambos deixaram de viver no mesmo domicílio, quando aquela arrendou apartamento para habitação própria.”
Quanto ao ponto cc dos factos não provados, defende o recorrente que o mesmo contém factos que tendo ficado demonstrados devem transitar para o elenco dos factos provados com a seguinte redacção:
“No Natal de 2018, o casal anunciou aos familiares que pretendia terminar o relacionamento e separar-se no início de Janeiro de 2019”.
Vejamos.
A primeira diferença que resulta da comparação da redacção do ponto 80 conferida pelo tribunal recorrido e aquela que é proposta pelo recorrente diz respeito à data em que as partes passaram a dormir em quartos separados, porquanto o tribunal fixou essa data em 1/02/2019 e o recorrente entende que essa data se situa no início de Fevereiro do mesmo ano.
A este respeito, a A. diz na PI que:
“101. Devido à continuação da deterioração das relações entre Autora e Réu, em 31 de Janeiro de 2019, pela primeira vez em todos aqueles anos, a Autora dormiu no sofá da sala.
102. No dia 1 de Fevereiro de 2019, a Autora passou a dormir no quarto de hóspedes, para evitar qualquer conflito com o Réu”.
Estes factos não foram impugnados pelo R. na sua Contestação (cfr. arts. 15.º, 94.º e 95.º).
O ponto 80 dos factos provados corresponde ao apontado ponto 102 da PI que, não tendo sido impugnado, se considera aceite por acordo das partes (arts. 607.º, n.º 5 e 574.º, n.º 2, 1.ª parte do CPC).
Nenhum reparo nos merece, pois, a redacção do ponto 80 dos factos provados que assim deve permanecer.

O ponto 81 dos factos provados pode dividir-se em duas partes distintas. Por um lado, “A separação de Autora e Réu, com cessação efectiva da comunhão de leito, mesa e habitação, veio a ocorrer em meados de Março de 2019” e “em meados de Março de 2019, … aquela arranjou apartamento para habitação própria e ambos deixaram de viver juntos, no mesmo domicílio”.
Nesta última parte, o que foi alegado pela recorrida foi justamente que “em meados de Março …aquela arranjou apartamento para habitação própria e ambos deixaram a viver juntos, no mesmo domicílio” (ponto 105 da petição inicial). Esta factualidade, apesar de impugnada pelo recorrente na Contestação (art. 15.º da Contestação) é a que o recorrente, com diferenças para o caso irrelevantes e injustificadas, pretende que seja mantida como provada. Para mais foi também no sentido de que saiu em meados de Março de 2019 de ..., embora tenha continuado a lá ir a casa dormir, tendo mudado definitivamente em Abril, porque entre Março e Abril o apartamento não tinha condições para ter os filhos, que a recorrida prestou as suas declarações em julgamento.
Quanto à primeira das referidas partes extraída do ponto 81 dos factos provados - “A separação de Autora e Réu, com cessação efectiva da comunhão de leito, mesa e habitação, veio a ocorrer em meados de Março de 2019”, contém, por um lado, matéria iminentemente conclusiva que encerra um juízo valorativo atribuído a conceitos, como seja a comunhão de leito, mesa e habitação, que são reveladores da plena comunhão de vida que, de acordo com o art. 1577.º do CC, é essencial ao casamento. Por outro lado, contém um conceito de direito, a separação [de facto] que, sendo definida pelo art. 1782.º, n.º 1 do CC, depende de uma valoração legal (com interesse, acórdão da RG de 23/11/2017, proc. 2299/13.3TBBCL.G1, rel. Maria Amália Santos, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRG:2017:2299.13.3TBBCL.G1.F7/).
Neste conspecto, o tribunal não pode nesta fase da decisão sobre matéria de facto pronunciar-se sobre este tipo de matéria conclusiva que comporta um sentido normativo, nem o pode fazer sobre matéria de direito.
Neste sentido, são particularmente elucidativas as palavras do acórdão da RE de 28/06/2018 (proc. 170/16.6T8MMN.E1, rel. 28/06/2018), que, com a devida vénia se transcrevem: “Dispunha o n.º 4 do art.º 646.º do anterior CPC (disposição que não foi mantida, ao menos em termos de directa correspondência, na disciplina homóloga da nova Codificação) que se têm por não escritas as respostas do Tribunal sobre questões de direito … assim como as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Contudo, “ante a sua eliminação, vem-se entendendo poder manter-se o mesmo entendimento das coisas interpretando, a contrario sensu, o actual n.º 4 do art. 607.º, segundo o qual, na fundamentação da sentença, o Juiz declara quais os factos que julga provados (….)”[6]. Destarte, embora tal normativo não tenha sido mantido no NCPC, a verdade é que se mantém erecta a orientação jurisprudencial no sentido de que a matéria de facto “(…) não pode conter qualquer apreciação de direito, seja, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica”[7], devendo as questões de direito que constarem da selecção da matéria de facto considerar-se não escritas. Não se suscita, pois, dúvidas, que no actual regime processual, tal como no pretérito, “(…) na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito. Na verdade, dispõe o art. 607.º, n.º 4, do NCPC, “Na fundamentação (da sentença) o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados (…)” – os factos, repete-se, que não conclusões, generalidades ou matéria de direito”[8].
Como assim, mesmo no âmbito da vigência do actual CPC, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito. Destarte, sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado” (in www.dgsi.pt; com interesse vide igualmente Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pág. 648).
Deste modo, a afirmação de que “A separação de Autora e Réu, com cessação efectiva da comunhão de leito, mesa e habitação, veio a ocorrer em meados de Março de 2019” não pode deixar de ser eliminada do ponto 81 dos factos provados que passa a ter unicamente o seguinte conteúdo: “Em meados de Março de 2019, a A. arranjou apartamento para habitação própria e A. e R. deixaram de viver juntos, no mesmo domicílio”.

Relacionada com a matéria vertida neste dois pontos – pontos 80 e 81 dos factos provados – está a matéria a que se refere o ponto cc dos factos não provados:
“cc. E fruto das discussões a este propósito, por alturas do Natal de 2018, o casal decidiu romper a sua relação, no início de janeiro de 2019”.
Esta factualidade corresponde à matéria alegada pelo recorrente no art. 90.º da Contestação.
Sobre essa factualidade, além do recorrente, pronunciaram-se as testemunhas CC, DD, GG e EE, nos seguintes termos:
CC disse que soube pelo AA; ele disse que se iam separar na mesma altura; foram lá passar o Natal 2018/2019, mas foi nos anos da esposa; estavam lá e soube nessa altura; a partir daí separaram-se; saiu de casa passado algum tempo houve processo de violência doméstica e ela teve de se separar porque não tinha condições para viver com ele; a preocupação do próprio [a testemunha] foi arranjar um apartamento; que ainda vive em ...; quem saiu daquela casa de morada família foi a recorrida; quando saiu, saiu não foi quando separaram; eles ainda estiveram lá a viver algum tempo; eles ainda viveram juntos; depois não teve condições e depois separaram e ela não levou nada foi para um apartamento e teve de comprar mobília para o apartamento que ela está a viver actualmente; apercebeu-se da ruptura em princípio de 2019, Janeiro; eles foram falar consigo e com esposa nos anos desta a 13 de Janeiro; não sabe se no dia ou no fim de semana seguinte; se calhar começou antes, mas souberam nessa altura da ruptura.

DD inicialmente disse que foi na reunião familiar no final do ano ou no Natal do ano anterior que percebeu que as coisas não estavam bem; depois a recorrida confidenciou à mãe que as coisas não estariam muito bem; a A. saiu de casa estamos no ano de 2019 início; acha que a A. chegou a ir dormir a casa do irmão do AA, depois conseguiu arranjar um apartamento 3 ou 4 meses depois e mudou-se para lá. Corrigiu mais tarde que a reunião familiar em que perceberam que as coisas não estavam bem foi no aniversário da mãe a 13 de Janeiro de 2019; em determinada altura a A. foi dormir a casa dos cunhados; estavam a preparar a separação; a relação não permitia que vivessem juntos.

GG disse que a ruptura foi depois do Natal de 2018; fizeram o Natal no dia 25 e comunicaram que se iam separar; relatou uma mensagem da A. de 4 de Fevereiro em que a mesma diz “sairei de casa mal possa; já combinamos os dois contas a dividir 50% desde Janeiro”, e uma mensagem do recorrente do dia 12 de Fevereiro em que este dá conta ao irmão de uma mensagem a enviar à recorrida com o seguinte teor “Durante este período que estamos separados e em que estamos oficialmente a tratar da guarda partilhada dos nossos dois filhos”. Afirmou que em Janeiro eles já estavam separados, já com contas separadas, já a dormir separados. Sabe disto porque estava mais na mediação das crianças e em Janeiro eles já tinham decidido já estavam mesmo separados.

EE disse que depois do Natal de 2018, antes ou depois da passagem de ano, no final de Dezembro ou princípio de Janeiro, eles disseram que se iam separar; eles começaram a ter diferenças irreconciliáveis; tudo começou a ser muito difícil de gerir; houve uma fase em que continuaram na mesma casa, mas dormiam em quartos separados; depois cada um deles dormia, alternadamente, e 3 dias em casa com os meninos; logo depois de eles dizerem que se separaram, foi logo naquela primeira semana de Janeiro; em Janeiro separaram-se; sabia disto porque faziam reuniões e ambos e falavam muito consigo. Leu uma mensagem de 7/01/2019 da recorrida para si a dizer “Olá, tranquilo, mas ele quase não fala; dorme sempre no sofá”; nessa fase em Janeiro eles estavam nessa fase de camas separadas… estavam claramente em litígio, em ruptura.
Não soube precisar a data em que começaram a ficar alternadamente com os meninos na casa mas a seguir, mais ao menos a meio de Fevereiro, aí sim …mais ou menos no início de Fevereiro então aí há mesmo esta separação de tentar evitar que eles se cruzassem menos para não haver discussões; a recorrida vai para a casa acha que a meio de Março, Março/Abril.

O recorrente disse que houve ruptura ou seja deixaram de partilhar casa, mesa e habitação no fim de 2018, inícios de 2019, após o período natalício de 2018; decidiram que se iam separar; a partir desse momento começou a dormir mal na cama que dormiam juntos; não soube precisar o tempo que estiveram durante esse tempo em janeiro e enviou uma proposta à recorrida para que tivessem uma presença na casa partilhada com os filhos o que durou até ao início de Março quando a recorrida saiu da casa; quando deixou de dormir na cama passou a dormir no sofá e houve um período intermédio, antes da partilha da casa, em que dormia na cama e a recorrida dormia no quarto de hóspedes; dormiu no sofá enquanto adaptaram o quarto de hóspedes para um deles lá dormir.

Dos depoimentos das testemunhas e das declarações do recorrente extrai-se que, efectivamente, ambas as partes decidiram deixar de viver juntas no final do ano de 2018, inícios do ano de 2019 e que pelo menos a 7 de Janeiro deste ano, recorrente e recorrida não estavam a dormir juntos.
De facto, a corroborar as declarações do recorrente, foi em finais de 2018 inícios de 2019 que todas as identificadas testemunhas situaram a comunicação de ambos, recorrente e recorrida, da decisão de se separarem. Ademais, nas mensagens trocadas entre as partes em Junho de 2019 (documento n.º 1 com a Contestação), o mês de Janeiro de 2019, se não surge como subsequente à separação também não é incluído no período da união de facto. E do depoimento de EE colhe-se que a 7/01/2019, o recorrente já dormia no sofá. Com efeito, por mensagem enviada nesse dia 7 de Janeiro à testemunha EE, a recorrida disse, referindo-se ao recorrente, “ele quase não fala, dorme sempre no sofá”. O próprio recorrente disse em julgamento que “começou a dormir mal na cama que dormiam juntos; não soube precisar o tempo que estiveram durante esse tempo em janeiro” e que “quando deixou de dormir na cama passou a dormir no sofá e houve um período intermédio, antes da partilha da casa, em que dormia na cama e a recorrida dormia no quarto de hóspedes; dormiu no sofá enquanto adaptaram o quarto de hóspedes para um deles lá dormir”.
Ora, todos estes elementos são claramente reveladores de que por alturas do Natal de 2018, o casal decidiu romper a sua relação, no inicio de Janeiro de 2019, e que, nesta fase, adoptaram comportamentos compatíveis e confirmativos de uma decisão de separação. A prova produzida permite, portanto, considerar-se provado os factos vertidos sob o ponto cc dos factos não provados.
Porém, a prova produzida já não autoriza a afirmação de que as partes consumaram a decisão de romper a relação no mês de Janeiro de 2019. O depoimento de GG no sentido de que “Janeiro eles já estavam separados, já com contas separadas, já a dormir separados. Sabe disto porque estava mais na mediação das crianças e em Janeiro eles já tinham decidido já estavam mesmo separado”, não pode ser considerado como suficiente à demonstração de que, em Janeiro de 2019, recorrente e recorrida já não dormiam juntos de forma definitiva e de que haviam cessado o relacionamento íntimo. Com efeito, a provisoriedade da situação impede que a circunstância de um dos membros do casal dormir no sofá, por si só, constitua ou revele com segurança o fim do vínculo íntimo da união. Inclusive, da prova produzida, resulta que as próprias partes encaram o mês de Janeiro como um período em que prepararam a separação. Como disse o recorrente: “dormiu no sofá enquanto adaptaram o quarto de hóspedes para um deles lá dormir”. Acresce que das mensagens da recorrida de 4/02/2019 e do recorrente de 12/02/2019, a que a testemunha GG fez referência, retira-se que só nesse mês de Fevereiro é que as partes manifestaram que a separação era já uma realidade.
Nesta perspectiva, o facto de a 7/01/2019 o recorrente estar a dormir no sofá, sendo revelador da decisão prévia, tomada por alturas do Natal de 2018, de romperem a relação no início de Janeiro de 2019, não significa que esta decisão tenha tido execução imediata naquela altura.
Aliás, o próprio recorrente não formulou qualquer pretensão recursória no sentido de que aquele facto, ou outro do género dele contemporâneo, fosse incluído no complexo factual dos factos provados. O que o recorrente pediu na sua impugnação da matéria de facto foi que se desse como provado que “No início de fevereiro, Autora e Réu passaram a dormir em quartos separados, cessando aí a comunhão de leito” (conclusão 19, al. h)), em conformidade, de resto, com a factualidade vertida no ponto 80 dos factos provados em que se se afirma que no dia 1 de Fevereiro de 2019, a Autora passou a dormir no quarto de hóspedes, para evitar qualquer conflito com o réu.
Assim sendo, decide-se que a factualidade contida no ponto cc dos factos não provados deve transitar para os factos provados, e, como tal, acrescenta-se ao seu elenco um novo ponto com o seguinte teor:
“Fruto das discussões, por alturas do Natal de 2018, o casal decidiu romper a sua relação, no início de janeiro de 2019”.

Concluindo, julgando parcialmente procedente a respectiva impugnação, a decisão da matéria de facto sofre as seguintes alterações:
Eliminação dos pontos 10, 26 e 27 dos factos provados e aditamento dos mesmos aos factos não provados.
Modificação do ponto 32 dos factos provados que passará a ter a seguinte redacção: “A Autora estava, desde julho de 2005 – altura em que deixou de exercer funções na Câmara Municipal ... -, a trabalhar em regime freelancer e tinha maior flexibilidade horária.”
Modificação do ponto 38 dos factos provados, do qual se retira por se considerar não provados o segmento “para facilitar a solicitação de crédito bancário em nome de ambos”, passando esse ponto 38 a ter como teor que “Ainda durante o ano de 2007, decidiram Autora e Réu abrir uma conta bancária conjunta”.
Modificação do ponto 81 dos factos provados, cuja redacção passará a ser “Em meados de Março de 2019, a A. arranjou apartamento para habitação própria e A. e R. deixaram de viver juntos, no mesmo domicílio”.
Eliminação do ponto cc dos factos não provados e aditamento de um novo ponto aos factos provados com igual teor: “Fruto das discussões, por alturas do Natal de 2018, o casal decidiu romper a sua relação, no início de janeiro de 2019”.
Assim, por força desta alteração, o elenco dos factos provados deixará de conter os pontos 10, 26 e 27 e, na parte respectiva, passará a conter como factos provados:
32. “A Autora estava, desde julho de 2005 – altura em que deixou de exercer funções na Câmara Municipal ... -, a trabalhar em regime freelancer e tinha maior flexibilidade horária.”
38. “Ainda durante o ano de 2007, decidiram Autora e Réu abrir uma conta bancária conjunta”.
76-A.“Fruto das discussões, por alturas do Natal de 2018, o casal decidiu romper a sua relação, no início de janeiro de 2019”.
81. “Em meados de Março de 2019, a A. arranjou apartamento para habitação própria e A. e R. deixaram de viver juntos, no mesmo domicílio”.
*
3.2. Reapreciação da decisão de mérito da acção
Cumpre agora saber se, designadamente por força da alteração da matéria de facto, se impõe a modificação da decisão de mérito que o recorrente demanda no sentido de que nada deve restituir à recorrida, desde logo porque o direito invocado por esta se encontra prescrito.
O tecido factual de que dispomos revela que recorrente e recorrida em Outubro de 2003 passaram a viver juntos debaixo do mesmo tecto, desde então, e durante mais de dois anos, partilhando a mesma cama, fazendo as refeições juntos e trabalhando, dentro ou fora de casa, para um projecto de vida que, além do mais, contemplou o nascimento de dois filhos comuns, e se concretizou de diversas formas, como seja a construção de uma casa onde em 2009 começaram a viver, a abertura pelos dois de uma conta bancária com rendimentos de ambos que servia para pagar despesas comuns, a educação e a prestação dos cuidados aos filhos comuns. Pode, portanto, afirmar-se que a descrita relação entre recorrente e recorrida, à luz do art. 1.º, n.º 2 da Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio (sucessivamente alterada), constituiu uma união de facto, porquanto ambos viveram, durante mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges, ou seja como marido e mulher em comunhão de casa, leito e mesa.
Diferentemente do casamento, porém, na união de facto não existe um compromisso de vida juridicamente vinculativo, podendo cada um dos seus membros terminar livremente a relação sem formalidades e sem responsabilização jurídica pela ruptura. Na verdade, a apontada Lei n.º 7/2001, que adopta medida de protecção das uniões, designadamente nos domínios fiscal, locatício, laboral e da segurança social, não regula especificamente as relações patrimoniais na união nem os efeitos patrimoniais decorrentes da sua cessação.
Como explica, Jorge Duarte Pinheiro, “A união de facto distingue-se do casamento, no plano da constituição, dos efeitos e da extinção. A união de facto forma-se logo que os sujeitos vivam em coabitação, não sendo necessária uma cerimónia ou qualquer outra forma especial. A lei não prevê direitos e deveres que vinculem reciprocamente os membros da união de facto, nem estabelece regras próprias em matéria de administração e disposição de bens ou de dívidas” (in “O Direito da Família Contemporâneo”, Reimpressão, 3.ª Edição, 2011, aafdl, pág. 714).
Neste contexto, a resposta para os efeitos patrimoniais emergentes da união tem, assim, de ser encontrada em função da natureza das relações jurídicas estabelecidas pelos seus membros, como seja as de carácter contratual, e através dos institutos de direito comum mais adequados à concreta relação que, como a dos autos, cessou. Com efeito, na união de facto, os respectivos sujeitos podem livre e validamente dispor dos recursos patrimoniais pessoais, ficando as correspondentes relações patrimoniais entre eles sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 11/04/2019 (proc. 219/14.7TVPRT.P1.S1, Maria do Rosário Morgado), “No seu artigo 3°, a LUF atualmente em vigor, atribui determinados direitos aos membros da união de facto.
Todavia, no plano dos efeitos patrimoniais, o legislador preferiu não estabelecer um regime patrimonial geral, relativamente aos bens dos membros da união de facto, nem definir regras sobre a administração e disposição desses bens, as dívidas contraídas pelos conviventes e a liquidação e partilha do património, em virtude da dissolução da união.
É certo que não pode falar-se da existência de um património comum, tal como o perspetivamos no casamento. No entanto, a comunhão de vida gerada pela união de facto, com a contribuição de ambos os membros, quer com o rendimento do seu trabalho, quer com receitas de outra proveniência, quer ainda com a sua participação nas tarefas da vida familiar, geram situações que deviam merecer a atenção do legislador. Neste quadro difuso, importa, começar por assinalar que não há lugar à aplicação analógica do regime do casamento, pois estão em causa institutos materialmente distintos7, o que, atendendo à dimensão material do princípio da igualdade (artigo 13.°, n.° 1, da CRP), desde logo impediria que fossem tratados da mesma forma.
Aliás, em rigor, nem poderá afirmar-se que se esteja perante uma lacuna em sentido próprio, a integrar através do recurso ao regime jurídico do casamento, já que o legislador, tendo oportunidade de regular a matéria, optou - deliberadamente - por não o fazer.
Além disso, não havendo, em regra, por parte dos conviventes de facto uma manifestação de vontade reveladora de que pretenderiam regular os efeitos patrimoniais da relação segundo um regime de bens semelhante ao previsto para o casamento, dificilmente se poderia preencher eventual «lacuna», impondo-lhes efeitos jurídicos que não tivessem sido claramente admitidos/pretendidos pelos interessados.8
Finalmente, dir-se-á que o regime patrimonial do casamento é constituído por algumas normas excecionais, estando, por isso mesmo, vedada a sua aplicação analógica, por força do art. 11.° do CC.
Em suma: na vigência da união de facto, os conviventes podem efetuar livremente compras e vendas entre si, dado que não estão abrangidos pela proibição legal prevista no n.° 2 do art. 1714.° do CC. Podem igualmente, em princípio, realizar doações sem qualquer limitação (ao contrário das doações entre cônjuges que estão sujeitas a um regime especial previsto nos arts 1761.° a 1766.° do CC), estando apenas sujeitos ao regime geral da doação, previsto nos arts. 940.° a 979.° do CC.8
Neste cenário, tendo em vista disciplinar os efeitos patrimoniais da cessação da união de facto, a doutrina e a jurisprudência têm analisado a matéria procurando encontrar soluções no plano do direito comum.
Segundo alguns, a resolução dos casos de divisão do acervo patrimonial constituído no seio da união de facto, poderá fazer-se através do recurso ao regime previsto para as sociedades de facto, desde que verificados os respectivos pressupostos.
No entanto, para além de outras limitações resultantes de diferenças essenciais nas situações de facto em presença, a Lei n.° 41/2013, de 26/06, que aprovou o novo Código de Processo Civil, eliminou o Processo Especial de Liquidação Judicial de Sociedades de Facto, designadamente as normas constantes dos arts. 1122° a 1130° do anterior CPC.
Assim sendo, parece inviável recorrer agora a um instrumento que a lei processual expressamente afastou.
O recurso ao instituto da compropriedade (cf. arts 1403° e ss., do CC) tem sido igualmente convocado para a divisão do património adquirido no seio da união de facto.
Importa, porém, ter em atenção que, ao contrário do que sucede no casamento em que o património comum dos cônjuges se reparte entre eles por quotas ideias - os cônjuges são, nas palavras de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveiral, titulares de um único direito sobre o património coletivo, sendo este uno e indivisível, em regra, até à dissolução do casamento —, na compropriedade podem fixar-se quotas quantitativamente diferentes, apesar de qualitativamente iguais, presumindo-se, no entanto, a igualdade quantitativa de quotas quando do título constitutivo não conste indicação em contrário (cf. n.° 2 do art. 1403°, do CC).
Em todo o caso, a aplicação do regime da compropriedade implica a intervenção de ambos os conviventes de facto no momento da aquisição do bem, como decorre do disposto no art. 1403.°, n.° 1, do CC., ao contrário do que ocorre na comunhão conjugal em que, por força do art. 1730°, n°1, do CC, os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer disposição em sentido diverso.
Ora, sucede muitas vezes que apenas um dos membros da união de facto consta como adquirente no título de aquisição. Nestes casos, o proprietário é quem efetivamente constar no título de aquisição do bem, não funcionado uma presunção de compropriedade semelhante à que vigora no casamento para o regime de separação de bens para os bens móveis (art. 1736.°, n.° 2, do CC).
Por outro lado, se a aquisição do bem se mostrar registada em nome de um dos conviventes, o titular do direito inscrito beneficia da presunção prevista no art. 7°, do CRP.
Perante as dificuldades que a dissolução da união de facto suscita no plano das relações patrimoniais, a doutrinar e a jurisprudêncial2 têm ainda lançado mão do enriquecimento sem causa, previsto nos arts. 473.° e ss., do CC” (in www.dgsi.pt).
Com efeito, a natureza subsidiária do enriquecimento sem causa prevista no art. 474.º do CC, implica que “quando se verifica a existência de uma situação de facto não regulada por qualquer norma específica e que integra os pressupostos do enriquecimento sem causa, a pretensão por enriquecimento será livremente exercitável” (Diogo José Paredes Leite de Campos, in “A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir o Enriquecimento”, Colecção Teses, Almedina, pág. 327).
Retomando o caso dos autos, verifica-se que foi justamente com fundamento no enriquecimento sem causa do recorrente à custa da recorrida, em razão da respectiva união de facto, entretanto cessada, que o tribunal a quo condenou o primeiro a pagar à segunda a quantia de 90.000,00 €, reduzida, nos termos sobreditos, à quantia de 40.731, 80 €, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Inconformado, o recorrente insurge-se contra esta decisão, desde logo, por entender que o direito da recorrida se encontra prescrito.
A prescrição extintiva, nas palavras de Manuel de Andrade, “é o instituto por via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não exercitados durante certo tempo fixado na lei e que varia conforme os casos” (in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, Reimpressão, Coimbra, 1992, pág. 445).
De acordo com o art. 482.º do CC, o direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento.
Em caso de liquidação dos interesses patrimoniais gerados no âmbito e por causa da união de facto entretanto dissolvida, a jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido que a data a partir da qual começa a contar o mencionado prazo prescricional do direito do empobrecido exigir do enriquecido a restituição do enriquecimento, à luz deste preceito legal, é a data da cessação da união de facto.
Na realidade, como melhor se explica em variados acórdãos, de que se cita o acórdão da RE de 7/11/2024 (proc. 697/22.0T8BJA.E1; rel. Vítor Sequinho dos Santos), “Quando o instituto do enriquecimento sem causa é convocado para repor o equilíbrio patrimonial entre duas pessoas que viveram em união de facto uma com a outra, deve entender-se que o empobrecimento do credor e o correspondente enriquecimento do devedor se verifica no momento da cessação daquela união. As deslocações patrimoniais consideradas indevidas após tal cessação tiveram, como causa, a existência da união de facto. Logo, enquanto a união de facto perdurou, tiveram causa; com a cessação dessa união, perderam-na.
Do ponto de vista subjectivo, o conhecimento, pelo empobrecido, do seu direito à restituição e da pessoa do enriquecido, também ocorrerá na data da cessação da união de facto, senão sempre, pelo menos na generalidade dos casos, devendo, por isso, presumir-se que assim é.
Consequentemente, nos termos do artigo 482.º do CC, o prazo de prescrição do direito do empobrecido a exigir, ao enriquecido, a restituição do valor do enriquecimento, começa a correr, ao menos por regra, na data da cessação da união de facto” (in www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, no acórdão da RP de 8/02/20022 (proc. 3762/18.5T8AVR.P1; rel. Anabela Dias da Silva), pode ler-se que “O início da contagem de tal prazo ou o “conhecimento do direito” reporta-se ao conhecimento dos elementos constitutivos do direito à restituição e não ao conhecimento abstracto, jurídico, desse direito. Assim, sendo, o prazo de prescrição de três anos começa, pois, a contar a partir do momento em que a pessoa que reclama a restituição conhece os pressupostos que condicionam a responsabilidade civil como fonte da obrigação de indemnizar por enriquecimento sem causa, independentemente da consciência da valoração jurídica que sobre eles faça, e como se sabe esses pressupostos são, como decorre do n.º 1 do art.º 473.º do C.Civil, o enriquecimento de outrem, sem causa justificativa, à custa do empobrecido.
Em suma, o conhecimento do direito à restituição por enriquecimento vem a ser a consciência da possibilidade legal da restituição, ou seja, a percepção pelo empobrecido do (i) enriquecimento, (ii) da carência da causa justificativa do mesmo e (iii) de que o enriquecimento foi obtido à sua custa. Ou dito de outra forma, o prazo de prescrição de três anos do direito à restituição fundada no enriquecimento sem causa, dada a deslocação patrimonial do empobrecido a favor do património do enriquecido em razão da união de facto, surge com o termo da união de facto, cfr. Acs. STJ de 31.05.2011, 15.12.2020, ambos in www.dgsi.pt.” (in www.dgsi.pt).
Sendo assim, importa saber da data da cessação da união de facto em causa neste processo.
Para o efeito, socorremo-nos da resenha a este respeito contida no acórdão da RL de 24/04/2019 (proc. 12025/16.0T8LRS.L1-2; rel. Pedro Martins), onde se pode ler que “a separação de facto, segundo previsão expressa na lei, para poder conduzir à ruptura do casamento, implica não só a falta de comunhão de vida entre os cônjuges, mas também o propósito, pelo menos de um deles, de não a restabelecer (art. 1782 do CC). Isto porque apenas existe comunhão de vida entre os cônjuges quando eles vivem na mesma casa, dormem no mesmo leito e tomam refeições juntos, na sequência de um acordo entre eles, dirigido ao estabelecimento de uma plena comunhão de vida entre si (parafraseia-se, na parte final, a obra de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, citada, pág. 195, tendo em vista o art. 1577 do CC) e este acordo naturalmente tem de continuar a existir ao longo da comunhão.
Ora, o mesmo vale para a união de facto. Como diz Telma Carvalho “todos os autores apontam como linha comum da união de facto um projecto de vida em comum, análogo à vivência marital, ou seja, aos cônjuges. Sendo que este projecto de vida em comum é concretizado […] por uma comunhão plena de vida, nomeadamente por uma comunhão de mesa, leito e habitação. […A]mbos têm em comum a existência de uma intencionalidade, no casamento a intencionalidade de casar, tendo em conta tudo aquilo que o casamento comporta, e na união de facto, a intencionalidade de viver em comunhão plena de vida com outra pessoa. […E]xiste um acordo de vontades que se renova todos os dias.” (A União de Facto e sua Eficácia Jurídica, Comemorações dos 35 anos do Código Civil, e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, Coimbra 2004, págs. 228, 230 e 231).
Assim, para que se possa dizer que cessou a união de facto, não basta constatar a existência de uma separação de facto. Tem que se provar também que existe, da parte de pelo menos um dos unidos de facto, o propósito de não a restabelecer. E, por isso, embora o facto de os unidos de facto deixarem de dormir na mesma casa, comerem à mesma mesa e viver debaixo do mesmo tecto, aponte para a falta de comunhão de vida, tal não basta para se poder concluir pela cessação da união de facto, devendo fazer-se ainda a prova do elemento subjectivo da vontade de, pelo menos um deles, romper com a união de facto (de forma directa ou através de um conjunto suficientemente significativo de circunstâncias objectivas que apontem nesse sentido, isto é, que o permitam afirmar com base numa presunção natural ou judicial)” – in www.dgsi.pt.
De facto, a união de facto também se dissolve por vontade de um dos seus membros (art. 8.º, n.º 1, al. b) da LUF).
Na situação em análise, o que consta da factualidade apurada é o seguinte:
- fruto das discussões, por alturas do Natal de 2018, o casal decidiu romper a sua relação, no início de Janeiro de 2019 (ponto 76-A dos factos provados);
- devido à continuação da deterioração das relações entre Autora e Réu, em 31 de Janeiro de 2019, pela primeira vez em todos aqueles anos, a Autora dormiu no sofá da sala (ponto 79 dos factos provados);
-no dia 1 de Fevereiro de 2019, a Autora passou a dormir no quarto de hóspedes, para evitar qualquer conflito com o réu (ponto 80 dos factos provados);
- em meados de Março de 2019, a A. arranjou apartamento para habitação própria e A. e R. deixaram de viver juntos, no mesmo domicílio (ponto 81 dos factos provados);
- a Autora saiu da casa do Réu, em ... em março de 2019, mas já desde, pelo menos, 31 de Janeiro desse ano que, e por comum acordo, não partilhavam leito (ponto 139 dos factos provados), e
- nesse período, Autora e Réu pernoitavam alternadamente, com rotação a cada três dias, na habitação de ..., para minimizar o impacto aos filhos e enquanto a Autora não providenciava outra habitação (ponto 140 dos factos provados).
Deste conjunto de factos, extrai-se que foi no dia 31/01/2019 que as partes, por comum acordo, deixaram de partilhar o leito e que no dia seguinte, 1/02/2019, a recorrida passou a dormir no quarto de hóspedes para evitar qualquer conflito com o recorrente, o que, tendo sido precedido da decisão do casal de romper a sua relação, constitui um sinal seguro de que pelo menos no apontado dia 1/02/2019 as partes concretizaram de forma estável, completa e definitiva o fim do seu relacionamento íntimo, o que significa, o fim da comunhão de leito e, consequentemente, a extinção da comunhão de vida que caracteriza a união de facto.
Deixando de haver vida em comum, cessou igualmente a fruição comum do património que a servia, assim como cessaram as prestações e o esforço que cada uma das partes, para a manter enquanto tal, haviam feito até então, do que recorrente e recorrida, naturalmente, tinham conhecimento. Foi pelo menos naquela data de 1/02/2019, que a recorrida soube dos elementos constitutivos do direito por si reclamado à restituição, por cessação da união de facto que o justificava, do enriquecimento pelo recorrente à sua custa. A isto não obsta, antes o revela, porque distinto do que até então se passava, o facto de que enquanto não arranjou apartamento próprio, a A. contribui para as despesas da casa e com os filhos menores (ponto 82 dos factos provados).
De onde, se conclui que foi em cumprimento da decisão de romper a relação, e de assim porem fim à união entre ambos que as partes passaram a dormir em quartos distintos a 1/02/2019, dia em que a recorrida passou a dormir no quarto de hóspedes para evitar qualquer conflito com o recorrente, manifestação clara e inequívoca da cessação da comunhão de vida e consequentemente da ruptura entre o casal.
É, portanto, a partir daquela data, 1/02/2019, que se conta o mencionado prazo de três anos de prescrição do direito da recorrida, a que se aplica o regime excepcional de suspensão dos prazos de prescrição que vigorou em determinadas fases do período pandémico vulgarmente denominado de COVID 19.
Com efeito, entre as medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 e da doença COVID-19, foi determinado pela Lei n.º 1-A/2020 de 19/03, mais concretamente pelo seu art. 7.º, n.º 3, a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e de procedimentos, com efeitos desde 9/03/2020 por força das disposições conjugadas do art. 10.º, do mesmo diploma legal, do art. 37.º do DL n.º 10-A/2020 de 13/03 e dos arts. 5.º e 6.º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020 de 6/04.
Tal norma veio a ser revogada pela Lei n.º 16/2020 de 29/05 (cfr. art. 8.º) – entrada em vigor no quinto dia seguinte ao da sua publicação em 29/05/2020, ou seja 3/06/2020 - que, em todo o caso, no seu art. 6.º, alargou os prazos de prescrição e caducidade - que, dessa forma, deixaram de estar suspensos - pelo período de tempo em que vigorou a sua suspensão.
Posteriormente, a Lei n.º 4-B/2021 de 1/02 introduziu naquele diploma legal o art. 6.º-B que determinou a suspensão dos prazos de prescrição, fixando a produção dos seus efeitos a 22/01/2021 (art. 4.º). O referido art. 6.º-B foi revogado pela Lei n.º 13-B/2021 de 5/04 que entrou em vigor no dia 6/04/2021.
O prazo de prescrição em causa esteve, portanto suspenso de 9/03/2020 a 2/06/2020 (86 dias) e de 22/01/2021 a 5/04/2021 (74 dias), num total de 160 dias, cujo termo aconteceu a 11/07/2022, dia coincidente com o quinto dia subsequente ao dia em que a presente acção foi instaurada a 6/07/2022 e em que foi requerida a citação urgente do recorrente. Por sua vez, o recorrente foi citado a 13/07/2022 (acórdão do STJ de 21/04/2022, proc. 3920/18.2T8VIS.C1.S1 e acórdão da RE de 24/11/2022, proc. 1836/21.4T8PTM.E1, Vítor Sequinho dos Santos).
Ora, de harmonia com o art. 323.º, n.º 1 do CC, é com a citação e não com a instauração da acção que a prescrição se interrompe.
Sucede que a recorrida requereu a citação, no caso urgente, do recorrente, nos termos do art. 561.º do CPC, de modo a que, de acordo com o art. 323.º, n.º 2 do CC, se a citação se não fizesse dentro de cinco dias depois de ter sido requerida por causa não imputável a si, se tivesse a prescrição por interrompida logo que decorressem os cinco dias.
Como se explica no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/02/2022 (rel. Aristides Rodrigues de Oliveira): “Ao estabelecer que a prescrição se interrompe apenas com a citação e já não com a instauração da acção, o artigo 323.º do Código Civil confronta o credor com uma circunstância que ele não pode controlar: a oportunidade da realização da citação. Em condições normais, instaurada a acção, seguir-se-á a breve trecho a citação. Todavia, tal pode não suceder porque a máquina judiciária não funcionou com a diligência que era devida, porque o modo como está organizada a forma de processo conduz a que a citação apenas deva ser realizada após a prática de actos que o credor não controla ou por diversas outras razões.
Ora se a prescrição tem como motivação genética a inércia do credor, responsabilizando-o por uma omissão que ele tinha perfeitas condições para evitar, não parece compatibilizar-se com esse juízo o decurso de tempo imputável à máquina judiciária ou às regras processuais. Por outras palavras, não parece justo que a protecção do devedor vá ao tempo de fazer com que o credor suporte o prejuízo de uma demora a que é inteiramente estranho (cf. Dias Marques, in Prescrição Extintiva, p. 148, apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.03.2010, Serra Baptista, in www.dgsi.pt).
Para resolver este dilema, a norma estabelece que se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, a prescrição tem-se por interrompida logo que decorram os cinco dias. Esta solução tem como razão de ser evitar que recaia sobre o credor, ainda que o mesmo tenha, diligentemente, instaurado a acção a tempo de a citação se fazer antes de se completar o prazo prescricional, o risco de isso não suceder por questões que lhe sejam totalmente alheias, não devidas a culpa sua.
Para que a interrupção da prescrição ocorra ao abrigo do n.º 2 do artigo 323.º do Código Civil é necessário, em primeiro lugar, que o prazo prescricional ainda não esteja esgotado nem se esgote nos cinco dias posteriores à instauração da acção, depois que a citação não tenha sido realizada nesses cinco dias; a seguir que o facto de a citação não ter sido realizada nesses cinco dias não seja imputável ao credor, e finalmente que a citação venha a ser realizada (o preceito só ficciona que a mesma teve lugar em data anterior, não que ela teve lugar)” – in www.dgsi.pt.
Por seu turno, como esclarece o acórdão da RC de 25/05/2018 (proc. 2448/16.0T8LRA.C1; rel. Jorge Manuel Loureiro), “a interrupção da prescrição prevista no artº 323º/2 C.Civil opera ao sexto dia subsequente ao da propositura da ação, incluindo este, sem necessidade de que na petição inicial se requeira expressamente a citação do devedor.” (in www.dgsi.pt).
No caso, a acção foi instaurada e a citação do recorrente requerida a 6/07/2019, e, como tal, a interrupção da prescrição decorrente do disposto no art. 323.º, n.º 2 do CC operou às 00.01 h do dia 11/07/2019, em que, às 24 h, se esgotaria o prazo de prescrição, razão pela qual esta não operou.
Por tudo quanto vem de se dizer, também este tribunal de recurso conclui que o direito da recorrida à restituição fundada no enriquecimento sem causa não se extinguiu pela prescrição.

Aqui chegados, importa, pois, saber se assiste à recorrida o invocado direito à restituição com base no enriquecimento sem causa do recorrente.
O art. 473.º do CC dispõe no seu n.º 1 que aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou, e no seu n.º 2 que a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.
Explicando, Antunes Varela diz-nos que “A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:
a) É necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento. O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista. Umas vezes a vantagem traduzir-se-á num aumento do activo patrimonial...; outras numa diminuição do passivo (cumprimento efectuado por terceiro, na errónea convicção de estar obrigado a efectuá-lo)…
b) A obrigação de restituir pressupõe, em segundo lugar, que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa - ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.
O conceito de causa do enriquecimento é muito controvertido e o artigo 473.º, intencionalmente, não o define, limitando-se cautelosamente a facultar ao intérprete algumas indicações capazes de, como meros subsídios, auxiliarem a sua formulação. É essa a principal finalidade do n.º 2 do preceito, quando afirma que a obrigação de restituir tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou…
c) A obrigação de restituir pressupõe, finalmente, que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
...” (in “Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, Limitada, pág. 454).
Em geral, sobre o enriquecimento sem causa aplicado às situações de liquidação das relações patrimoniais estabelecidas em função da união de facto, a jurisprudência maioritária têm-se vindo a pronunciar no sentido positivo, clarificando e densificando os pressupostos de que esse funcionamento depende, e que, com relevância para o caso dos autos, o acórdão da RL de 26/10/2023 (proc. 106/22.5T8MTA.L1-2, rel. Arlindo Crua) sintetizou da seguinte forma:
“I – O nosso ordenamento jurídico não regula ou prevê qualquer regime de bens aplicável à união de facto, o que determina um adensar da problemática, a nível patrimonial, quanto esta tem o seu epílogo, no que concerne aos efeitos patrimoniais da sua dissolução ;
II - na resolução de tal problemática, e à míngua de um regime específico e regulado, a jurisprudência tem vindo a ser chamada no sentido de encontrar soluções e alternativas de resolução, recorrendo, fundamentalmente a mecanismos de direito comum, entre os quais o regime das sociedades de facto (num período inicial) e o regime do enriquecimento sem causa ;
III - um dos requisitos do instituto do enriquecimento sem causa traduz-se na falta ou ausência de causa justificativa da deslocação patrimonial verificada, seja porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, esta se tenha extinguido ou perdido ;
IV - cessada a união de facto, cada um dos sujeitos da relação tem direito a participar na liquidação do património adquirido pelo esforço comum, podendo esta liquidação ser efectuada com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa ;
V - no âmbito de tal instituto pode configurar-se uma obrigação de restituição na situação em que o membro da união de facto, concreto titular do direito de propriedade de bens móveis ou imóveis adquiridos na constância da união de facto (e cujo preço até pode ter sido suportado, na íntegra, à custa do seu património), beneficiou, em considerável medida, do esforço/colaboração/participação do demais membro agindo em prol da vida comum (por exemplo, por via do trabalho doméstico, prestação de cuidados na educação e criação dos filhos comuns, etc..), o que lhe proporcionou, desta forma, poupanças significativas que permitiram aquelas aquisições, bem como facilitando/incrementando a sua carreira profissional, eventualmente conducente a um auferir de réditos que, de outra forma, não lograria alcançar naquela temporalidade ;
VI - a dissolução ou cessação da união de facto traduz a ocorrência ou circunstância que consubstancia a perda da causa para a deslocação patrimonial, assim fundamentando a restituição (o nº. 2, do artº. 473º, do Cód. Civil, no segmento causa que deixou de existir);
VII - ou seja, demonstrada a existência de uma situação de transferência ou vantagem patrimonial para um dos membros da união de facto, à custa do demais e sem causa jurídica justificativa para tal deslocação patrimonial, pois, tendo-se constituído tal causa (a relação de união), deixou de existir (com a cessão ou dissolução da união), estamos perante uma subsequente ausência de causa justificativa do invocado enriquecimento ;
VIII - situação em que o membro da união que tenha contribuído para o incremento patrimonial do demais, e ainda que não figure no título aquisitivo como proprietário, sempre poderá reclamar a restituição da respectiva contribuição, por si investida, na exacta medida do enriquecimento sem causa do demais membro ;
IX - isto é, a transferência patrimonial tem de carecer de causa jurídica justificativa tutelada pelo direito, ou seja, o Autor reclamante tem que provar que se deu um enriquecimento do Réu através do seu empobrecimento, sem cobertura jurídica que a sustente, o qual se pode traduzir num aumento do activo patrimonial, numa diminuição do passivo ou numa poupança proporcionada ao Réu ;
X – exigindo-se, assim, ao Autor a demonstração de que se criou um património pelo esforço conjunto de ambos e que cumpre, pois, de alguma forma, partilhar, no intuito de impedir o enriquecimento de um à custa do outro ;
XI - efectivamente, apenas se coloca a questão do direito ao enriquecimento sem causa quando, no âmbito de uma união de facto, existem bens adquiridos com a participação de ambos os membros ;
XII - prima facie, não devem ser consideradas como situações susceptíveis de traduzirem enriquecimento/empobrecimento no âmbito da união de facto as despesas realizadas pelos membros destinadas a satisfazer as necessidades da vida em comum, nem as tarefas domésticas realizadas em sede da vida doméstica por um dos membros daquela relação, pois, na constância da união de facto, tais prestações, ainda que com conteúdo patrimonial, realizadas de forma espontânea, destinam-se à satisfação das necessidades da vida em comum, devendo presumir-se efectuadas em cumprimento de uma obrigação natural de alimentos ;
XIII - donde, em regra, o autor da prestação não poderá exigir ao demais membro convivente a restituição do que prestou naquele contexto (o artº. 403º, do Cód. Civil) ;
XIV - desta forma, e por princípio, os serviços domésticos prestados pelos membros da união de facto, bem como a efectivação das tarefas realizadas com os cuidados e educação dos filhos do casal, mais não constituem do que o cumprimento de uma obrigação natural, nomeadamente a de contribuir para a comunhão de vida (comunhão de mesa, cama e habitação) e para a economia comum dos unidos, baseada na entreajuda ou partilha de recursos e, como tal, não judicialmente exigível ;
XV - todavia, a validade deste princípio depende da circunstância da lide doméstica da casa onde ambos vivem e a educação dos filhos ser repartida pelos dois parceiros da união de facto em proporções relativamente equilibradas, sendo que tal não sucede quando essas funções são assumidas exclusivamente ou sobretudo por um deles, verificando-se um manifesto desequilíbrio na repartição dessas tarefas;
XVI - efectivamente, nestas situações de evidente e claro desequilíbrio, torna-se impossível considerar que quer o trabalho doméstico, quer o acompanhamento, cuidados e educação transmitidos aos filhos correspondam, com efectividade, a uma obrigação natural e cumprimento de um dever, antes se devendo concluir pela existência duma causa para o enriquecimento de um dos membros, resultante da desproporção na repartição de tarefas ;
XVII - desta forma, não se fundando o enriquecimento de um dos membros da união, decorrente da realização desproporcionada daquelas tarefas pelo demais convivente, numa causa legítima, em virtude de não corresponder ao cumprimento duma obrigação natural, tal encargo deverá ser contabilizado na liquidação patrimonial decorrente da cessação da relação de união de facto, pois aquelas contribuições também terão permitido ao outro membro convivente, na constância da união de facto, um acréscimo patrimonial, sendo que cessou a causa (causa finita) que o motivou, ou seja, a existência da união de facto” (in www.dgsi.pt)”.
No mesmo sentido, do acórdão da RC de 14/03/2023 (proc. 241/21.7T8TND.C1; rel. Teresa Albuquerque), também consta a ideia resumida nos seguintes termos:
“II – O convivente em união de facto, na ruptura desta, quando se considere empobrecido relativamente aos bens em cuja aquisição participou, seja directamente, seja através da apropriação de poupanças significativas ao adquirente, pode, em acção declarativa de condenação pedir que o outro convivente seja condenado a reembolsa-lo, com fundamento no enriquecimento sem causa.
III - O trabalho doméstico desenvolvido no âmbito de uma união de facto tem de ser visto como a participação livre para a economia comum, baseada na entreajuda ou partilha de recursos, configurando-se como o cumprimento de uma obrigação natural, a menos, ou na parte em que esteja em causa a realização da totalidade ou de grande parte desse trabalho por apenas um dos membros da união de facto e resulte da globalidade dos factos apurados que essa prestação se mostra desproporcionada.
IV – A mensuração dessa desproporcionalidade tem de ser feita tendo em consideração os encargos económicos implicados na vivência em comum e os proventos de cada um dos seus membros.
III – E postula transferências excepcionais, que não de gestão ordinária de património, pois as despesas comuns encontram justificação na manutenção da união de facto entre as partes” (in www.dgsi.pt).
Em particular quanto a aquisição de bens, escreveu-se no supra citado acórdão do STJ de 11/04/2019 que “o convivente que tenha contribuído igualmente para a aquisição de bens mas, não obstante isso, não conste no título aquisitivo como proprietário, poderá pedir a restituição da parcela por si investida na exata medida do enriquecimento sem causa do outro convivente. Poderá também haver obrigação de restituir nos casos em que o membro da união de facto, ainda que titular do direito de propriedade de bens imóveis ou móveis adquiridos na constância da união de facto (e cujo preço até pode ter sido suportado exclusivamente à custa do seu património), beneficiou em grande medida do esforço/colaboração/participação do outro membro em prol da vida em comum (v.g., por via do trabalho doméstico, da criação e educação dos filhos, etc.), proporcionando, desta forma, poupanças significativas e facilitando/incrementando a carreira profissional de um deles” (in www.dgsi.pt).
Nesta perspectiva, importa atentar na factualidade provada relativa ao período em que recorrente e recorrida viveram juntos em união de facto:
Recordemos essa factualidade:
- durante o período em que viveram juntos fazendo a sua vida em comum, desde Outubro de 2003 a Janeiro de 2019, recorrente e recorrida partilharam as despesas, inclusive do dia a dia, e usaram os seus rendimentos, ou o seu dinheiro próprio, para pagar os gastos correntes do agregado familiar, apresentando declaração de rendimentos conjunta (pontos 1, 3, 11, 12, 13, 15, 80 e 109);
- durante os anos de vivência em comum era a Autora quem, normalmente, preparava as refeições, quem procedia à limpeza, gestão e organização do lar, e quem tratava da roupa do Réu e dos filhos de ambos que, entretanto, vieram completar a família, havendo, em todo o caso, nas lides domésticas, uma repartição, consoante a disponibilidade de tempo, sendo que o réu contribuia para a realização dalgumas tarefas domésticas, foi um pai presente e participativo em todos os momentos do desenvolvimento dos filhos, e usufruiu de licença de paternidade, pese embora por uma questão de gestão de tempo disponível do casal, a Autora era quem contribuía mais para o serviço doméstico e gestão das questões diárias, pois o tempo estava mais limitado para o Réu (pontos 4, 109, 111, 132 e 133);
- o réu em 2003 vivia em apartamento próprio, na cidade do Porto, no qual a Autora passou igualmente a residir (pontos 5 e 106);
- a Autora, designer gráfica, trabalhou como designer na Câmara Municipal ..., em regime de prestação de serviços, com um contrato precário, desde meados do ano 2002 até meados do ano 2005, auferindo o vencimento mensal ilíquido de € 1.200,00, acrescido de algum rendimento extra com trabalho em regime freelancer (pontos 6 e 108);
- o Réu trabalhava como músico na Orquestra ..., auferindo, nessa capacidade, vencimento mensal médio na ordem dos € 1.900,00 e dava aulas na Escola Superior ..., auferindo por estas funções 1.200,00 € líquidos (pontos 7, 8 e 107);
- já desde o tempo “de solteiro”, o Réu tinha domiciliadas na sua conta tanto a prestação referente ao crédito-habitação, como as despesas de água, luz e telecomunicações, o que manteve após a união de facto (ponto 11);
- o vencimento da Autora passou a ser afectado à vida conjunta do casal (ponto 12);
- os presentes em dinheiro que a Autora habitualmente recebia pelo Natal ou aniversário eram igualmente integrados na vida do casal, para fazer face a despesas de ambos (ponto 13);
- em 2005, Autora e Réu tomaram, conjuntamente e como projecto familiar, a decisão de procederem à construção de uma moradia, para a sua habitação própria e permanente (ponto 16);
- para a implantação dessa construção, foi utilizado um terreno, em ..., cuja escritura de compra e venda foi celebrada nesse mesmo ano de 2005, com o Réu como único comprador pelo facto de o mesmo ter já pago, individualmente e em momento anterior à união com a Autora, a totalidade do preço correspondente à aquisição (pontos 17, 18, 19, 116 e 144);
- no intuito de aumentarem o espaço para a construção, porquanto o intuito do projecto familiar era a edificação de uma moradia unifamiliar independente, com espaço exterior, foi adquirido o terreno contíguo àquele, não tendo a A. aplicado qualquer dinheiro seu na aquisição dos terrenos onde foi edificada a atual moradia (pontos 20, 21, 118 e 119);
-este segundo terreno ficou registado em nome individual do Réu (pontos 22 e 144);
-autora e Réu avançaram com os primeiros passos no sentido da construção da casa de morada de família ainda no ano de 2005, tendo aplicado, neste processo, esforço e empenho conjuntos (pontos 23 e 24);
- todo o processo decisório foi desenvolvido por ambos, em termos de arquitectura, construção, escolha de materiais, etc. (ponto 25);
- o chão Revigrés para colocação nos pavimentos em cerâmico, a banheira da casa, as torneiras Ofa foi adquirido com descontos significativos, ou mesmo a “preços de fábrica”, em empresas da família e amigos da Autora, ou de parceiros comerciais do pai desta que forneceu também, a título gratuito, material, equipamentos e mão de obra da sua própria empresa, como seja todo o sistema de rega implementado no terreno da casa construída por Autora e Réu, o que este só fez por se tratar de um contributo para a casa da sua filha (pontos 28, 29, 30, 31 e 121);
- a Autora estava, desde Julho de 2005 – altura em que deixou de exercer funções na Câmara Municipal ... -, a trabalhar em regime freelancer e tinha maior flexibilidade horária (ponto 32);
- a A., com autonomia decisória, tratava, em nome do casal, dalgumas reuniões atinentes ao desenvolvimento da obra, como escolher material e equipamentos, encomendas, emails, pedido de orçamentos, negociar preços, etc (ponto 33);
- em Maio de 2006, Autora e Réu foram viver para casa dos pais daquela a título gratuito, potenciando dessa forma a economia de meios financeiros para custear a construção da casa e a fracção que deixaram desabitada no Porto, o que sucedeu até Março de 2009 (pontos 34 e 37);
- durante o ano de 2007, decidiram Autora e Réu abrir uma conta bancária conjunta (ponto 38);
- autora e Réu foram informados de que não seria possível proceder ao registo da moradia em nome de ambos, porquanto os terrenos em que a mesma ficou implantada estavam registados apenas em nome do Réu, e este não procedeu a qualquer alteração registral no que respeitava aos terrenos, o que implicou que a moradia ficasse também registada apenas em nome daquele (pontos 39 e 40);
- a Autora encerrou a sua conta bancária pessoal, de que era única titular, e pré-existente à união de facto, e passou a ser titular, apenas e exclusivamente, da conta bancária conjunta com o Réu, o que era a sua realidade à data da separação (pontos 41 e 42);
- a A. ocupou-se a tempo inteiro com um filho bebé e com as circunstâncias que rodeavam a construção da casa, tendo a própria Autora concebido a cozinha, os móveis de WC, tratado de detalhes da construção, tratado da parte de carpintaria, etc., tendo ainda lidado com o construtor e as empresas encarregadas dos acabamentos, até ao início do ano de 2009 (pontos 44 e 45);
- a Autora foi, a pouco e pouco, perdendo clientes e oportunidades de trabalho nos seus serviços em modo freelancer (ponto 46);
- autora e Réu foram mobilando a sua moradia, concluída em Fevereiro de 2009, com recurso a bens que pertenciam, individualmente, às partes e bens que ambos adquiriram especificamente para integrarem o novo espaço familiar, para o que a A. também contribui com rendimentos seus (pontos 48, 50 e 129);
- no período em que habitaram em casa dos pais da Autora, esta e o Réu foram adquirindo, em comunhão de esforços, peças diversas, que depois integraram na nova casa de morada de família: um ecrã LCD, mobiliário para quarto de criança, uma cómoda, roupa de cama, roupa de cama de criança, serviço de loiça, serviço de talheres, e peças de decoração, entre outros (ponto 51);
- em Novembro de 2007, Autora e Réu foram pais do seu primeiro filho e em Janeiro de 2010, a Autora engravidou do segundo filho do casal, e nesta fase, e após quase um ano de vida na casa nova, a Autora não tinha ainda retomado a sua actividade profissional, executando muito poucos trabalhos em regime freelancer, e permanecendo a tempo inteiro em casa com o filho bebé (pontos 35, 52 e 53);
- durante o ano de 2010, o casal tomou a decisão e começou a arrendar o apartamento do Réu, sito na cidade do Porto, que tinha sido casa de morada de família e ficado sem uso desde 2006 (pontos 54 e 128);
- a Autora desenvolveu diligências para preparação e organização do apartamento para o arrendamento, cujas rendas, sendo o pagamento feito directamente ao Réu, eram empregues nas despesas comuns (pontos 55, 56, 137 e 138);
- a grande maioria dos bens que constituíam e constituem, até à presente data, o recheio do apartamento pertencente ao Réu, uma cama, uma cómoda e uma mobília de sala, foi adquirida no ano de 2004, por ambos Autora e Réu, tendo a Autora suportado parte da sua aquisição (pontos 57, 114 e 115);
- a Autora manteve-se como cuidadora maioritária de ambos os filhos do casal até ambos terem completado os 2 anos, por decisão conjunta do casal, mantendo-se como única encarregada de educação de ambos até ao ano lectivo de 2019/2020 (pontos 58 e 59);
- durante todos os anos em que Autora e Réu viveram juntos, em termos profissionais a prioridade foi a carreira do Réu, sendo a vida familiar sempre organizada em função do seu trabalho, viagens nacionais e ao estrangeiro (pontos 60 e 61).
- a Autora praticamente deixou de trabalhar como designer para passar a ser, quase exclusivamente, dona de casa, ficando encarregada de toda a logística caseira, gestão e realização das compras domésticas, organização e confecção da alimentação, tratamento das roupas, acompanhamento escolar dos filhos, comparência e participação nas festas de escola etc., e colocando de lado a sua carreira profissional para cuidar da casa e da família, o que permitiu ao Réu um investimento total de tempo, meios e disponibilidade na sua própria formação e vida profissionais, potenciando a evolução e crescimento da sua carreira, bem como o avolumar dos seus rendimentos e da sua notoriedade dentro da área em que laborava (Pontos 61, 63, 64, 65, 66, 67);
- a Autora, a pouca actividade profissional que manteve foi como freelancer, não tendo auferido qualquer rendimento fixo mensal até 2019, exceptuando-se o ano de 2016, em que se dedicou a gerir uma unidade de alojamento local, até Fevereiro de 2017, e após estes ano o único rendimento auferido pela Autora advinha de trabalhos esporádicos como designer gráfica, em regime de “freelancer” (pontos 68, 69 e 112);
- neste período, que durou sensivelmente um ano, a Autora auferiu um vencimento líquido mensal na ordem média dos € 1.200,00 e entre 2017 e 2019, a Autora recebeu alguns rendimentos, ainda que incertos, provenientes de trabalhos artísticos esporádicos (Pontos 70 e 72);
-a Autora recebeu do seu pai durante algum tempo 500,00 mensais que foi integrado na conta conjunta do casal, e quantias, normalmente de igual valor, no seu aniversário ou Natal, para além de empréstimos ao casal quando este necessitava (pontos 73, 74 e 75);
- o Réu apresentou em 2019 a declaração de IRS conjunta, referente a 2018, beneficiando do coeficiente familiar que a presença da Autora validava e os bens adquiridos pelo casal ao longo dos anos em que viveram juntos (e.g., camas, móveis, sofás, roupas de cama, camas dos filhos, colchões, candeeiros, electrodomésticos da cozinha, máquinas de lavar e secar, moveis de jardim, ecrãs LCD, TV plasma, aparelhagens de som, sistema surround, louças, molduras, pequenos electrodomésticos, plantas, entre outros) ficaram na posse do Réu (pontos 86 e 88 dos factos provados);
- no caso dos imóveis e dos veículos, é o Réu, apenas, quem consta do título de propriedade (ponto 91);
- a A. trabalhou na Câmara Municipal ..., entre 2003 e 2005, do seu trabalho independente como freelancer, entre 2005 e o fim da união (trabalho independente esse que foi diminuindo com os anos), e como gestora de um hostel, entre 2016 e 2017 (ponto 92 dos factos provados);
- as funções relativas ao cuidado do lar eram assumidas de forma maioritária pela Autora, porquanto o Réu, músico e professor de profissão, sempre manteve uma vida profissional exigente, com eventos, com viagens, etc (ponto 93);
- foi pedido um empréstimo, em nome do réu, para custear a casa da morada de família no montante global de € 325.000,00, que tem vindo a ser pago a partir da conta conjunta do R. e da A., a partir de Março de 2009 (pontos 94, 95, 96 e 127);
- deste empréstimo encontrava-se ainda em dívida, à data de Janeiro de 2019, cerca de 250.000,00 € e em Março de 2019, cerca de de € 248.391,50 (pontos 97 e 127);
- em finais de 2015, inícios de 2016, as partes contraíram um crédito pessoal no valor de € 7.500,00 (ponto 98);
- entre Janeiro de 2016 e Fevereiro de 2018, esse crédito foi sendo pago todos os meses da conta conjunta do casal, cifrando-se em Fevereiro de 2018 em € 4.792,50 (pontos 99 e 100);
- em Março de 2018, o Réu e a Autora contraíram, novamente, para aquisição de bens e custeamento de despesas familiares, um acréscimo ao crédito pessoal no montante de € 5.000,00 que veio somar ao valor que ainda estava em dívida nessa rubrica, passando o item do passivo com a designação “crédito pessoal” a figurar com o montante global de € 9.676,18 (pontos 101 e 102), e
- entre Março de 2018 e Março de 2019, esse crédito foi sendo pago da conta conjunta do casal, todos os meses, sendo que em Março de 2019 o mesmo se cifrava no montante de € 7.358,07 (pontos 103 e 104).
Os factos assim descritos, o que, numa primeira análise, revelam, é que no período em que viveram em união de facto, desde Outubro de 2003 a Janeiro de 2019, as partes suportaram em conjunto as despesas com que se foram deparando e contribuíram com o seu trabalho para as tarefas domésticas e para a educação dos filhos comuns nascidos, o primeiro em 2007 e o segundo em 2010.
Numa segunda aproximação, verifica-se, desde logo, que as despesas que o casal suportou não puderam deixar de ser as despesas domésticas correntes, como água, electricidade, alimentação, vestuário, gasolina, e ainda as despesas com a educação dos filhos.
A par destas despesas, porque decidiram edificar uma moradia que, desde março de 2009, veio a ser a casa de morada de família, recorrente e recorrida tiveram os custos inerentes à sua construção, que foi levada a cabo em terrenos exclusivos do recorrente e com recurso a um empréstimo bancário no valor de 325.000,00 €, que, apesar de celebrado também unicamente em nome do recorrente, foi sendo pago a partir da conta conjunta das partes desde Março de 2009, permanecendo em dívida, no mês de Janeiro de 2019, o valor de cerca de 250.000,00 €.
Outrossim, as partes adquiriram mobiliário e outros utensílios domésticos para a sua habitação, primeiro na casa do recorrente no Porto e depois na moradia que construíram em ....
Finalmente, recorrente e recorrida contraíram um primeiro crédito pessoal no valor de 7.500,00 €, a que acresceu um outro no valor de 5.000,00 € contraído pelos mesmos posteriormente, passando o item do passivo com a designação “crédito pessoal” a figurar com o montante global de 9.676,18 €, que em Março de 2019 se cifrava no montante de 7.358,07 €.
Se assim do lado da despesa, do lado da receita, verifica-se que as partes beneficiaram para fazer face às despesas comuns, antes do mais, dos rendimentos do trabalho de cada uma delas ao longo da união de facto, por um lado os rendimentos do requerente, como músico na Orquestra ... e na Escola Superior ..., no valor mensal, respectivamente, de 1.900,00 € e 1.200,00 €, que o mesmo já auferia em 2003, quando começaram a vida em comum, inexistindo qualquer indicação de que esses rendimentos tenham sofrido oscilações ao longo do período da união, ao menos significativas, e por outro os rendimentos da recorrida, como designer gráfica, na Câmara Municipal ..., entre 2003 a 2005, no valor de 1.200,00 € mensais, e enquanto freelancer, o que se foi tornando cada vez mais esporádico ao longo da união, em valor não concretamente apurado, e, como gestora de uma unidade de alojamento local, durante sensivelmente um ano - 2016 e até Fevereiro de 2017 - na ordem dos 1.200,00 € mensais.
A par destas receitas, o casal beneficiou também das ajudas dos pais da recorrida, como seja a quantia mensal de 500,00 € durante um período de tempo indeterminado, das ofertas de valor idêntico no aniversário da recorrida e no Natal, a redução de custos em certos materiais e mão de obra utilizada na construção da moradia construída pelo casal para ser a casa de morada de família, da habitação que aqueles desde Maio de 2006 a Março de 2009 proporcionaram, a título completamente gratuito, ao casal, a partir de Novembro de 2007 já com o filho mais velho, e a partir de 2010 das rendas do apartamento do recorrente sito no Porto.
Por último, da leitura da factualidade apurada dá-se conta que, por decisão conjunta do casal, a A., que já não trabalhava na Câmara Municipal ... desde 2005, manteve-se como cuidadora maioritária de ambos os filhos do casal até ambos terem completado os 2 anos de idade, tendo sido ela a encarregada de educação de ambos, e tendo recaído também sobre ela a gestão e realização das tarefas domésticas, tendo praticamente deixado de trabalhar fora de casa e como designer, com excepção do período correspondente ao ano de 2016 e até Fevereiro de 2017 em que geriu uma unidade de alojamento local. Pelo contrário, o recorrente manteve a sua actividade profissional como músico, com a disponibilidade e investimento de tempo permitidos pelo facto de aquele trabalho doméstico e com os filhos ser, por dispor de mais tempo para o efeito, maioritariamente desenvolvido pela recorrida.
Em todo o caso, do complexo factual de que dispomos, retira-se, igualmente, que as lides domésticas eram repartidas consoante a disponibilidade de tempo e que o recorrente também contribuía para algumas tarefas domésticas, tendo sido um pai presente e participativo em todos os momentos do desenvolvimento dos filhos, gozando, inclusive, de licença de paternidade.
Ainda assim, é indubitável que o recorrente beneficiou da circunstância de durante a união de facto, ter sido maioritariamente a recorrida a realizar a generalidade das tarefas domésticas e a prestar os cuidados aos filhos comuns, na medida em que, desta forma, ficou mais disponível para se dedicar à actividade profissional, sem suportar o custo ou contributo para a realização por outrem da parte que lhe cabia, do ponto de vista da divisão igualitária, na execução das tarefa domésticas e na satisfação das necessidades dos filhos.
Por outro lado, a realização pela recorrida da maioria dos trabalhos indispensáveis ao cuidado da casa e dos filhos em função da sua disponibilidade de tempo revela-se desproporcional em relação ao trabalho do mesmo género desenvolvido pelo recorrente, que, contribuindo para a realização de algumas tarefas domésticas e sendo um pai presente e participativo, não era quem assegurava diária e regularmente a execução do trabalho doméstico e a satisfação das necessidades dos filhos.
A este respeito, escreveu-se no citado acórdão da RC de 14/03/2023 que “A jurisprudência tem, com frequência, assinalado que o trabalho doméstico desenvolvido no âmbito de uma união de facto tem de ser vista como a «participação, livre, para a economia comum, baseada na entreajuda ou partilha de recursos» [14], e que «tal contribuição, envolvendo necessariamente um dispêndio de energias e força de trabalho (…) mais não é, afinal, que o cumprimento de uma obrigação natural – a de contribuir para a comunhão de vida (comunhão de cama, mesa e habitação ) e para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos». Referindo-se que, «por faltarem na união de facto os deveres de coabitação, cooperação e assistência enunciados no art 1672º CC, sobretudo estes dois últimos, na modalidade de socorro e auxilio mútuos e de assunção conjunta das responsabilidades da vida familiar (art 1674º CC) e na de alimentos e de contribuição para os encargos da vida familiar de harmonia com as possibilidades de cada um através da afectação dos seus recursos», essa contribuição para a economia comum na união de facto constitui uma obrigação natural, nos termos do art 402º CC, e por isso, «não sendo o trabalho despendido no lar judicialmente exigível, a sua prestação como contribuição para a economia comum, configura-se como o cumprimento espontâneo de obrigação natural, insusceptível de ser repetido nos termos do art 403º/1 CC».
Recentemente, o STJ no Ac. 14/1/2021 [15](a que a Apelante recorre nas suas alegações[16]), veio abalar esta perspectiva, acentuando que «não se fundando o enriquecimento consequente da realização desproporcionada das tarefas domésticas por um dos elementos da união de facto, numa causa legitima, designadamente por não corresponder ao cumprimento de uma obrigação natural, não há motivos para que esse encargo não seja também contabilizado nas contribuições que permitiram ao outro membro adquirir património no decurso da relação de união de facto, tendo cessado a causa (causa finita) que o motivou – a existência da união de facto».
Como resulta desse acórdão, a descaracterização como obrigação natural do trabalho doméstico prestado em união de facto ficou reservada para «a realização da totalidade ou de grande parte do trabalho doméstico de uma casa, onde vive um casal em união de facto, por apenas um dos membros da união de facto», por, nessa situação, não poderem deixar de «relevar critérios próximos das compensações estabelecidas no art 1676º/2 do CC, para as relações conjugais», sob pena de contradição com o cuidado do legislador, na reforma do regime de divórcio operada pela L 61/2008, «em ter estabelecido mecanismos compensatórios das contribuições desproporcionadas para os encargos da vida familiar durante o casamento, (…) aí se incluindo a realização de tarefas domésticas» .
Ora, a mensuração da desproporcionalidade da contribuição implicada no trabalho doméstico por apenas um membro da união de facto, tem de ser vista, do nosso ponto de vista, da forma como, por um lado, os encargos económicos implicados na vivência dessa união, e por outro, esse trabalho e os adjacentes de cuidados aos filhos, tenham sido concretamente distribuídos entre os membros da mesma, tudo relativamente aos proventos de cada um dos seus membros.
Com efeito, e como resulta acentuado no sumário do Ac STJ de 20/3/2014[17] [18], «II -No âmbito de uma união de facto, as despesas normais e correntes (água, electricidade, gás e televisão), sendo próprias de quem vive, ainda que “informalmente”, a plena comunhão de vida de que fala o art.º 1577.º do CC, não são restituíveis, à luz do instituto do enriquecimento sem causa. III - Deve entender-se que não ocorreu uma efectiva deslocação patrimonial geradora do enriquecimento da ré à custa do autor, se durante os sete anos da união de facto mantida, o autor tiver pago várias quantias relacionadas com o imóvel, pertencente à ré, onde o casal residiu, mas beneficiado do trabalho doméstico por ela sempre prestado».
Na verdade, e como aí é referido, «tudo o que sejam as despesas normais e correntes próprias de quem vive, embora “informalmente”, a “plena comunhão de vida” de que fala o artº 1577º do CC não é repetível, finda a relação, mediante a aplicação do regime do artº 476º deste mesmo diploma; e isto porque se considera que houve então uma causa justificativa para tais atribuições patrimoniais impeditiva da conclusão de que o prestado foi indevido; essa causa justificativa reside, precisamente, na subsistência da união de facto, para a qual cada um dos membros contribuiu em termos materiais pela forma tacitamente acordada pelo casal enquanto a relação se manteve
Por isso, se dizendo no Ac R L 7/1/2021 [19], que «A transferência patrimonial baseada no enriquecimento sem causa justifica-se, desde logo, pela ausência de causa justificativa para a mais-valia patrimonial da parte, à custa da contra-parte, não sendo admissível outro meio para ultrapassar esse resultado injusto. IV. Em causa, apenas poderão estar transferências excepcionais, que não de gestão ordinária de património, que percam a sua justificação ou razão de existência, com a cessação da relação», acentuando-se, no texto desse acórdão, que «estaremos sempre fora das despesas comuns efectuadas com vista e por causa da manutenção da união de facto entre as partes»” (in www.dgsi.pt tal como o acórdão da RP de 22/09/2025, proc. 8646/20.4T8VNG.P2; Aristides Rodrigues de Almeida).
Igualmente, no acórdão do STJ de 14/01/2021 (proc. 1142/11.2TBBCL.1.G1.S1; rel. João Cura Mariano), diz-se que “I. A prestação do trabalho doméstico, assim como a prestação de cuidados, acompanhamento e educação dos filhos, exclusivamente ou essencialmente por um dos membros da união de facto, sem contrapartida, resulta num verdadeiro empobrecimento deste, e a correspetiva libertação do outro membro da união da realização dessas tarefas, um enriquecimento, uma vez que lhe permite beneficiar do resultado da realização dessas atividades, sem custos ou contributos.
II. Verificando-se, nessas situações, um manifesto desequilíbrio na repartição dessas tarefas, não é possível considerar que a realização das mesmas correspondem, respetivamente, a uma obrigação natural e ao cumprimento de um dever.
III. Não se fundando esse enriquecimento numa causa legítima, não há motivos para que esse encargo não seja contabilizado nas contribuições que permitiram ao outro membro adquirir património no decurso da relação de união de facto, tendo cessado a causa que o motivou – a existência da união de facto” (in www.dgsi.pt).
Também no citado acórdão da RC de 26/10/2023, citando jurisprudência do STJ que identifica, escreve que “Poderá também haver obrigação de restituir nos casos em que o membro da união de facto, ainda que titular do direito de propriedade de bens imóveis ou móveis adquiridos na constância da união de facto (e cujo preço até pode ter sido suportado exclusivamente à custa do seu património), beneficiou em grande medida do esforço/colaboração/participação do outro membro em prol da vida em comum (v.g., por via do trabalho doméstico, da criação e educação dos filhos, etc.), proporcionando, desta forma, poupanças significativas e facilitando/incrementando a carreira profissional de um deles”.
Note-se que as poupanças e o incremento da carreira profissional do recorrente se afere em função da diferença entre a sua situação real e aquela em que estaria se não fosse o trabalho doméstico e o trabalho com a satisfação das necessidades dos filhos prestado maioritariamente pela recorrida e de forma não remunerada. Caso não existisse esse trabalho, a dedicação do recorrente à sua profissão não estaria por essa via facilitada, e caso esse trabalho fosse remunerado, a disponibilidade financeira do recorrente seria certamente menor. O trabalho doméstico e o trabalho inerente à educação dos filhos desenvolvido sobretudo pela recorrida durante a união de facto com o recorrente contribuiu para o pagamento do empréstimo contraído por este para a construção da casa de morada de família registada em seu nome, e, como tal, com a cessação da união, o património do mesmo ficou favorecido em igual medida.
A fase da união de facto em que, sendo o trabalho doméstico e os cuidados aos filhos assegurado essencialmente pela recorrida, o empréstimo para a moradia foi sendo pago, de Março de 2009 a Janeiro de 2019, corresponde a cerca de nove anos, o que, merecendo, nos termos sobreditos, ser considerado um contributo para a aquisição da moradia em discussão, enquanto tal, em função daqueles factos e à luz de juízos de equidade, se valoriza e estima em valor equivalente a metade dos valores despendidos naquele período de Março de 2009 a Janeiro de 2019 para amortizar o empréstimo (cfr. art. 562.º, n.º 3 do CC).
Verdade que, nesse período, durante cerca de um ano, a recorrida esteve a explorar um alojamento local, altura em que, em face do conjunto dos factos provados, se pode considerar que o recorrente e recorrida contribuíam em igual medida para a execução das actividades de casa e para a satisfação das necessidades dos filhos. Porém, os factos provados também permitem concluir que o valor recebido pela recorrida de 1.200,00 €/mês foi canalizado para a conta conjunta do casal e, portanto, além do mais, para suportar o empréstimo em causa em medida idêntica ao contributo do recorrente para o efeito.
Assim, quanto ao empréstimo no montante de 325.000,00 € para custear a casa de morada de família, o valor em dívida à data de Janeiro de 2019 era de cerca de 250.000,00 €, o que significa que, com o esforço conjunto do recorrente e da recorrida, foi pago o valor de 75.000,00 €, tendo a recorrida direito a ser restituída de metade, ou seja de 37.500,00 €.
A recorrida pretende ainda ser restituída de metade do valor despendido pelo esforço conjunto do casal, enquanto unidos de facto, para satisfação de dois outros empréstimos bancários contraídos igualmente durante a união de facto.
Em relação a estes empréstimos, o que resulta dos factos provados é que, tendo sido contraídos durante a vida em comum, 2015/2016 um e 2018 outro, os mesmos correspondem a um crédito pessoal, no caso do segundo para aquisição de bens e custeamento de despesas familiares.
Ora, como vimos, a satisfação de despesas familiares correntes não dá lugar à restituição, porquanto se trata do cumprimento de obrigações inerentes à existência da própria união que se esgotam nessa finalidade. Atenta a denominação que consta da matéria assente, créditos pessoais, relativamente aos créditos associados a estes empréstimos, inexistem elementos que permitam ao tribunal considerar demonstrado que estas despesas do casal não têm como causa a própria subsistência da união de facto. De onde, nesta parte, está por demonstrar também a ausência de causa para a prestação que foi realizada pela recorrida. Assim, cabendo à recorrida/A. a prova da ausência de causa como facto constitutivo do direito por si invocado à restituição de metade do valor por enriquecimento sem causa (art. 342.º, n.º 1 do CC), é forçoso concluir que, a falta dessa prova, importa para si a improcedência do respectivo pedido (com interesse veja-se o acórdão da RC de 26/10/2023 supra identificado).
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida na parte em que fixou a cessação da união de facto entre recorrente e recorrida em 15/03/2019, e declara-se que tal cessação ocorreu a 1/02/2019, assim como se revoga a mesma sentença na parte em que fixou o valor do enriquecimento sem causa da recorrida à custa do recorrente e condenou este na sua restituição, declarando-se que esse valor é de 37.500,00 € e condenando-se o recorrente a restituir à recorrida esta quantia de 37.500,00 €, acrescida, como consta da sentença recorrida, de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Custas pelo recorrente e pela recorrida na proporção do respectivo decaimento (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663.º, n.º 7 do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, e, em consequência, da sentença recorrida revoga-se a parte final do segmento a) em que se fixou a cessação da união de facto entre recorrente e recorrida em 15/03/2019, e declara-se que tal cessação ocorreu a 1/02/2019, assim como se revoga os segmentos b) e c) na parte em que fixou o valor do enriquecimento sem causa da recorrida à custa do recorrente e condenou este na sua restituição, declarando-se que esse valor é de 37.500,00 € (trinta e sete mil e quinhentos euros) e condenando-se o recorrente a restituir à recorrida esta quantia de 37.500,00 € (trinta e sete mil e quinhentos euros), acrescida, como consta da sentença recorrida, de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Custas por recorrente e recorrida na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.

Porto, 13/10/2025
Carla Fraga Torres
Manuel Domingos Fernandes
Teresa Fonseca