Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ANA PAULA AMORIM | ||
Descritores: | PRESCRIÇÃO CASO JULGADO FORMAL | ||
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Nº do Documento: | RP20241111730/10.9TYVNG-K.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – Proferido acórdão pelo Tribunal da Relação que anula a sentença que julgou improcedente a pretensão do autor e determina a instrução do processo com realização de julgamento, tal decisão não afeta o segmento da decisão que não foi objeto de recurso e julgou improcedente a exceção de prescrição, sob pena de violação do caso julgado, atento o disposto no art.º 635º/5 CPC. II - No âmbito do mesmo processo, a apreciação da exceção de prescrição quando já tinha sido proferida decisão que julgou improcedente a exceção, com trânsito em julgado, viola o caso julgado formado com esta decisão. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Insolv-Indm-AdmJud-Inut-730/10.9TYVNG-K. P3 * * SUMÁRIO[1] (art.º 663º/7 CPC): ……………………………… ……………………………… ……………………………… --- Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório Na presente ação declarativa que segue a forma de processo comum, instaurada ao abrigo do disposto no artigo 59º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, por apenso ao processo especial de insolvência n.º 730/10.9TYVNG, em que é insolvente “A..., Lda.”, e em que figuram como: - AUTOR: Banco 1..., S.A., pessoa coletiva número ..., com sede na Avenida ..., ..., em Lisboa; e - RÉU: AA, com o NIF ... e morada profissional na Rua ..., ..., ... ..., Vila Nova de Famalicão; pediu o autor a condenação do réu no pagamento da quantia de €195.526,95, acrescida de juros vincendos à taxa legal, até integral pagamento. Alegou, para o efeito, que em 19.11.2010 foi proferida sentença que declarou A..., Lda. insolvente, e que ao abrigo do disposto no art. 52º do supra citado diploma legal foi nomeado administrador da insolvência o ora réu; mais alegou que o Banco autor reclamou os seus créditos sobre a insolvente, nos termos do art. 128º do CIRE, no valor global de €4.083.994,94, reportados à data de 8.1.2011, os quais foram devidamente reconhecidos como garantidos por hipotecas quanto aos bens imóveis identificados sob as verbas n.º 2 a 21 do auto de apreensão de bens, na relação de créditos a que alude o art. 129º do referido diploma legal, reconhecimento que se manteve (e graduação) na sentença proferida no competente apenso de reclamação e graduação de créditos, em 12.5.2014, entretanto transitada em julgado. Alegou ainda que o ora Réu diligenciou pela venda dos indicados imóveis hipotecados através da modalidade de venda em estabelecimento de leilão, fixando os correspondentes valores mínimos de licitação e indicando a sociedade leiloeira “B...” como responsável pela promoção e venda através desse leilão. A contratação desta sociedade foi levada a cabo por iniciativa do Réu, sem ter previamente comunicado aos autos as respetivas cláusulas contratuais dos serviços a prestar e, ainda, sem autorização por parte da Comissão de Credores, nos termos do art. 161º, n.ºs 1, 2, 3, al. g) e 4, do CIRE. O Autor, enquanto membro da Comissão de Credores, não teve conhecimento de qualquer cláusula contratual atinente a tal contratação. Mais alegou que antecipando a realização da venda através de leilão, o Autor apresentou proposta de adjudicação dos imóveis a si hipotecados, nos termos do art. 164º do CIRE, ao Réu, na qualidade de administrador da insolvência, antes mesmo da realização do indicado leilão, ou seja, em 10.4.2012; tal proposta foi apresentada “nos termos e sob cominação do art. 164º, n.ºs 3 e 4, do CIRE”, “para aquisição de cada verba 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21 do auto de apreensão (referentes ao “Empreendimento ...”, em Viana do Castelo), pelos valores a seguir indicados (…)”, juntando 19 cheques bancários, destinados a cobrir 20% do valor proposto para cada verba, emitidos à ordem da massa insolvente. Mais acrescentou que “face ao disposto no art. 164º, n.º 3 do CIRE, o Senhor Administrador da Insolvência, caso não aceite a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior”; pretendeu, assim, o Autor adjudicar os referidos imóveis não no âmbito do leilão que se viesse a realizar, mas sim de acordo com a prerrogativa conferida pelo disposto no n.º 3 do art. 164º do CIRE, a qual permite ao credor garantido propor a aquisição dos bens hipotecados, desde que o preço oferecido seja superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado e que tal proposta seja apresentada junto do administrador da insolvência em tempo útil. Referiu, ainda, que a apresentação da referida proposta não obstava à realização do leilão para venda dos imóveis, o qual veio efetivamente a ter lugar. Contudo, nenhuma licitação ocorreu nem ali veio a ser apresentada uma qualquer proposta de aquisição dos imóveis, com o que sobrou apenas a proposta de adjudicação do Autor, apresentada fora de qualquer leilão. Alegou que o Réu celebrou com o Autor duas escrituras públicas de compra e venda, uma em 28.6.2012 e outra em 25.07.2012, onde se procedeu à venda e compra dos imóveis supra referidos e onde expressamente se fez constar, naturalmente, que “não houve intervenção de mediador imobiliário na celebração do negócio aqui titulado” (conforme documentos 4 e 5 juntos). Não obstante o exposto, após a venda dos imóveis e após inúmeros contactos do Autor junto do Réu a insistir que não considerava a venda dos referidos imóveis como realizada ao abrigo do contrato de prestação de serviços com a leiloeira, este, sem qualquer autorização judicial ou da comissão de credores, pagou-lhe a quantia de €195.526,95, referente ao leilão realizado relativamente aos imóveis sitos em Viana do Castelo (em causa nestes autos) e €234.622,50 referente ao leilão realizado relativamente ao imóvel sito em ..., recorrendo para o efeito aos valores que se encontravam depositados à ordem da massa insolvente e que, maioritariamente, haviam sido pagos pelos credores hipotecários como caução nos termos do n.º 4 do art. 164º do CIRE, assinando os respetivos cheques sem contar com a assinatura de qualquer outro membro da comissão de credores, bem sabendo que com tal o Autor não concordava. Acresce que no apenso da prestação de contas (Apenso F), foi proferida sentença em 21.8.2015, entretanto transitada em julgado, onde se considerou que “independentemente das circunstâncias em que ocorreu a intervenção da leiloeira, o certo é que a remuneração atribuída à mesma é manifestamente desproporcional ao serviço efetivamente prestado. No contexto em causa e tendo em consideração os direitos dos credores sacrificados pelo estado da insolvência da empresa em causa afigura-se-nos que os montantes em causa pagos violam as regras da lealdade processual e configuram um autêntico abuso de direito.”. Tal recebimento configura uma verdadeira situação de enriquecimento sem causa por parte da leiloeira, pois que nenhuma causa existe que possa justificar tão avultado pagamento por, supostamente, ter promovido e divulgado dois leilões, cujos imóveis foram adjudicados pelos credores hipotecários, sendo certo que tal pagamento nunca foi acordado, aceite e menos ainda autorizado pela Comissão de Credores; deste modo, a atuação do Réu afigura-se violadora do disposto no artigo 161º do CIRE, ao proteger interesses de terceiros ao invés de proteger os interesses da massa insolvente e dos credores da insolvente. Conclui que ao atuar como atuou, o Réu assumiu a responsabilidade pelo ato cometido e pelos danos que essa conduta acarretou para os credores da insolvência, introduzindo o indicado valor nas contas que apresentou, como se de custos ou dívidas da massa insolvente se tratassem, na tentativa de que as mesmas sejam judicialmente aprovadas nos termos do art. 64º do CIRE. Estes factos mostram-se provados, nos termos da sentença proferida no apenso F (prestação de contas), pelo que têm a força de caso julgado, sendo inegável que a conduta do Réu, enquanto administrador da insolvência, constitui um fator pelo qual deve ser responsabilizado, atendendo ao disposto no n.º 2 do art. 59º do CIRE e artigo 483º do Código Civil. Efetivamente, a ilicitude da sua conduta deriva do incumprimento deliberado do previsto nos artigos 55º, n.º 2 e 5 e no art. 161º, n.ºs 1, 3, al. g) e 4, do CIRE, contribuindo para a lesão dos direitos e interesses do Autor que se encontravam protegidos por tais normativos. Considerou que o réu agiu com culpa, porquanto sabia e tinha de saber que devia ter agido de outro modo, tendo antes optado por ao arrepio dos seus deveres agir de forma ilegal; assim, ao optar por pagar à leiloeira o valor em apreço, sem qualquer autorização, o Réu, voluntária e conscientemente, impediu o Autor de ser pago pelo produto da venda dos bens que lhe estavam hipotecados na medida do valor entregue àquela, causando-lhe o correspondente prejuízo ou dano patrimonial emergente; na verdade, relativamente ao produto da venda dos imóveis que integram as verbas 2 a 21 do auto de apreensão, o Banco Autor haverá de ser pago logo depois das dívidas da massa insolvente e do crédito do Estado / Fazenda Nacional na parte em que goza de privilégio especial imobiliário – IMI, pelo que, tendo tais imóveis sido vendidos pelo valor global de €3.179.300,00 e sendo o crédito hipotecário reconhecido ao Autor no valor de €4.083.994,94, é inequívoco que o referido produto da venda assegura o pagamento dos citados créditos graduados em primeiro e segundo lugar, mas nunca será suficiente para assegurar o pagamento integral do crédito do Autor, assim se concluindo que o valor indevidamente entregue pelo Réu à leiloeira a título de comissão pela venda daqueles imóveis (€195.526,95), se assim não tivesse acontecido, reverteria na íntegra para o Autor em sede de rateio, neste valor se liquidando o dano causado pelo Réu ao Autor. Quanto ao nexo de causalidade, é manifesta a sua existência entre a conduta do Réu e o dano sofrido pelo Autor, pois não fosse a ilegítima atuação do Réu, enquanto administrador da insolvência, ao pagar a terceiros o que não podia pagar, aproveitando-se de fundos existentes na conta bancária da massa insolvente, e impedindo o Autor de receber aquilo a que teria direito, jamais se verificaria a produção de qualquer dano, emergindo este da postura irresponsável e ilícita do Réu. Por fim, alegou que de acordo com o art. 59º, n.ºs 1 e 2, do CIRE, o administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem e ainda pelos danos causados aos credores da massa insolvente se esta for insuficiente para satisfazer integralmente os respetivos direitos e estes resultarem de ato seu. Acresce que notificado judicialmente para repor os valores em apreço nos autos, até à data o Réu não o fez, apresentando a sua recusa através de sucessivas démarches processuais, em claro abuso de direito; por fim, de acordo com o disposto no art. 562º do Código Civil, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, devendo a indemnização ser fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, o que significa, na presente situação, que o Réu deve ser condenado a pagar ao Autor o valor de €195.526,95, por ser este o valor necessário a indemnizá-lo do dano sofrido. - O Réu citado, contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação. Por exceção suscitou a prescrição do direito do Autor. Por impugnação alegou, em síntese, que cumpre ao administrador da insolvência tomar a decisão sobre a modalidade da venda e indicar a empresa leiloeira responsável pela venda, sendo certo que foi comunicado ao autor os termos do acordo celebrado com a leiloeira, sendo devida a retribuição pela prestação do serviço, sem que daí resulte a violação de qualquer das obrigações e deveres que se impõem ao administrador da insolvência. Mais referiu que a sentença proferida em sede de apenso de prestação de contas não releva para o efeito de se apurar a responsabilidade civil do réu. Pugnou pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido. - O Autor apresentou articulado onde se pronunciou sobre a exceção de prescrição invocada, defendendo a sua improcedência. - Foi convocada audiência prévia, com vista a permitir às partes pronunciarem-se sobre o desfecho da causa, por se ter entendido que os autos permitiam a prolação de sentença de mérito em sede de despacho saneador. - Em sede de audiência prévia ficou consignado em ata o seguinte: “Tentada a conciliação das partes, a mesma frustrou-se, após o que a Mmª Juiz informou as partes ser sua pretensão, após estudo dos autos, decidir pela improcedência da exceção de prescrição invocada pela Ré na contestação apresentada e pela improcedência da ação, porquanto o direito (à indemnização concretamente peticionada) que o Autor aqui pretende fazer valer como seu pertence, na verdade, à Massa Insolvente. Neste momento, os Ilustres Mandatários presentes requereram a concessão de prazo para se pronunciarem por escrito sobre este previsível desfecho dos autos”. - Foi então concedido às partes prazo para sobre tal desfecho se pronunciarem, o que o Autor fez em articulado apresentado nos autos em 23.4.2018 e o Réu em articulado apresentado nos autos em 26.4.2018, mantendo ambos as respetivas posições. - Proferiu-se sentença que julgou improcedente a exceção de prescrição, com os fundamentos que se passam a transcrever: “Da alegada prescrição do direito do Autor Entende desde logo o Réu que o alegado direito do Autor se encontra prescrito, na medida em que resulta inequívoco dos autos que o leilão organizado pela sociedade leiloeira “B...” teve lugar no dia 11 de Abril de 2012; mais resulta que na sequência do referido leilão, o Administrador da Insolvência pagou à leiloeira a comissão contratualizada, no valor de €195.526,95, referente aos bens sitos em Viana do Castelo; acresce que o Autor, na pior das hipóteses, teve conhecimento desse pagamento em 17 de Junho de 2013, quando impugnou as contas apresentadas no âmbito do apenso F e onde, expressamente, entendeu ser inadmissível o pagamento à leiloeira do indicado valor. Tendo em conta esta factualidade e o disposto no art.º 59º, n.º 5 do CIRE, de acordo com o qual a responsabilidade do administrador da insolvência prescreve no prazo de dois anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, mas nunca depois de decorrido igual período sobre a data da cessação de funções, quando a presente ação foi proposta, haviam decorrido bem mais de dois anos sobre a data em que o Autor teve conhecimento da alegada lesão do seu direito. O Autor discordou, alegando para tal que apenas tomou conhecimento dos factos ilícitos praticados pelo Réu quando foi notificado, em 8.6.2013, no âmbito do apenso F, de prestação de contas, para se pronunciar sobre as contas apresentadas pelo Sr. Administrador da Insolvência; só com esta notificação os credores têm a possibilidade de conhecer e analisar as contas apresentadas, sobre elas se pronunciando, assim o querendo; por isso que, com elas não se conformando, o Autor apresentou em 17.6.2013 requerimento, onde reclamou das contas e requereu a sua não aprovação; na sequência da apresentação de tal requerimento, e de outros requerimentos idênticos por outros credores, bem como pelo Ministério Público, foi produzida prova e só após foi proferida decisão pelo juiz, em 21.8.2015, julgando parcialmente procedente a posição do Banco ora Autor, tendo, em consequência, ditado a correção das contas do administrador da insolvência; esta decisão, contudo, apenas veio a transitar em julgado em 31.10.2016, através do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu o recurso de revista apresentado pelo Réu; deste modo, só a partir deste momento (31.10.2016) se apuraram e estabilizaram os requisitos e fundamentos para a concretização da responsabilidade civil do administrador da insolvência, ora Réu, nos termos do n.º 4 do art.º 59º supra referido. Com relevo para a decisão a proferir encontram-se provados os factos supra descritos em 13, 14, 15, 16, 17 e 18. A responsabilidade em causa nestes autos encontra o seu fundamento essencialmente no art.º 59º do CIRE. De acordo com este preceito legal, cuja epígrafe é “Responsabilidade”, “1- O administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado. 2- O administrador da insolvência responde igualmente pelos danos causados aos credores da massa insolvente se esta for insuficiente para satisfazer integralmente os respetivos direitos e estes resultarem de ato do administrador, salvo o caso de imprevisibilidade da insuficiência da massa, tendo em conta as circunstâncias conhecidas do administrador e aquelas que ele não devia ignorar. 3- O administrador da insolvência responde solidariamente com os seus auxiliares pelos danos causados pelos atos e omissões destes, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos. 4- A responsabilidade do administrador da insolvência prevista nos números anteriores encontra-se limitada às condutas ou omissões danosas ocorridas após a sua nomeação. 5- A responsabilidade do administrador da insolvência prescreve no prazo de dois anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, mas nunca depois de decorrido igual período sobre a data da cessação de funções.” Como sabemos, a prescrição torna o direito inexigível (cf. art.º 304º do Código Civil), devendo ser invocada, em regra por aquele a quem aproveita, para poder ser conhecida (cf. art.º 303º do Código Civil). No caso presente, veio o Réu, a quem a prescrição aproveita, invocá-la expressamente, com o que não pode o Tribunal deixar de a conhecer e apreciar. E, neste âmbito, entende-se que o alegado direito do Autor não se encontra prescrito. Efetivamente, tendo em consideração os factos provados, não há dúvida que pelo menos com a notificação efetuada em 5.6.2013 o Autor tomou conhecimento que o Réu havia procedido ao pagamento da comissão de €195.526,95 à sociedade leiloeira “B...”, na sequência da realização do leilão de 11.4.2012. E, por isso, porque discordava de tal pagamento, contestou as contas apresentadas, por requerimento apresentado nos autos em 17.6.2013. Todavia, isso não significa que então o Autor ficou a saber do direito que (entendia que) lhe competia, pois apesar de discordar de tal pagamento, não fora ainda proferida qualquer decisão judicial no sentido de considerar tal pagamento efetivamente indevido, com o que aquele apenas dispunha de uma expectativa de direito, o que não satisfaz o disposto no n.º 5 do artigo citado. A decisão em causa só foi proferida em 21.8.2015 e transitou em julgado em 31.10.2016, podendo afirmar-se que apenas então o Autor ficou efetivamente ciente do direito que aqui veio invocar em seu benefício. Deste modo, tendo a presente ação entrado em juízo a 9.8.2017, sem necessidade de maiores considerações, não havia ainda decorrido o prazo de dois anos previsto no n.º 5 do art.º 59º do CIRE, com o que improcede a exceção perentória invocada pelo Réu”. - A sentença prosseguiu com a análise da seguinte questão: “Vejamos agora se deve o Réu ser condenado a pagar ao Autor a quantia de €195.526,95, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, vincendos até integral pagamento, quantia esta necessária a indemnizá-lo pelo prejuízo sofrido na sequência do pagamento, por aquele, da indicada quantia de €195.526,95 à leiloeira “B...”, a título de comissão, sem a tal estar autorizado e por tal pagamento não ser devido”. Apreciada a questão, proferiu-se a decisão que se transcreve: “Em consequência de tudo o acabado de expor, julga-se a presente ação improcedente e, em consequência, absolve-se o réu do pedido. Custas a cargo do Autor (art. 527º, n.º 1 e n.º 2, do CPC, ex-vi art. 17º do CIRE)”. - O Autor veio interpor recurso da sentença, no segmento que absolveu o réu do pedido. - Em 22 de maio 2019 (ref. Citius 12781882) proferiu-se acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto com a decisão que se transcreve: “Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar, em parte, procedente a apelação e anular a sentença e determinar o prosseguimento os autos para apreciação da matéria de facto controvertida, alegada na petição, com elaboração dos temas da prova, diligências de instrução, julgamento e sentença. Custas a cargo da parte vencida a final”. - O réu veio interpor recurso de revista do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto. - O recurso não foi admitido, porque a decisão proferida no acórdão não se enquadrava na previsão do art.º 671º/1 CPC. - Após baixa dos autos proferiu-se despacho que determinou a suspensão da instância até realização do rateio final no processo de insolvência. - Realizado o rateio final, proferiu-se despacho a convidar as partes a pronunciarem-se sobre a proposta de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, com fundamento no facto da autora ter procedido à cessão de créditos e ainda, com fundamento no pagamento à autora da quantia de € 225 258,29, por efeito das operações de rateio. - O autor veio defender que a cessão de créditos a C..., S.A.R.L e a habilitação deferida no processo de insolvência, não justificam a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide. - O autor veio, ainda, pronunciar-se sobre a proposta de decisão, face aos valores que recebeu em sede de processo de insolvência, alegando para o efeito que a presente ação foi intentada contra o anterior administrador da insolvência, cujo pedido é para que o mesmo seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 195.526,95, correspondente ao dano que o credor teve por ter sido este o valor indevidamente entregue pelo anterior administrador de insolvência à leiloeira, a título de comissão pela venda dos imóveis. Esse valor se não tivesse sido entregue à Leiloeira, reverteria integralmente para o credor em sede de rateio. Apesar do anterior Administrador de Insolvência ter sido notificado, por decisão já transitada em julgado, para devolução da respetiva quantia à massa insolvente, a verdade é que não o fez até à presente data. Mais alegou que de acordo com o mapa de rateio apresentado nos autos a 22 de novembro de 2022 caberia ao anterior Administrador de Insolvência, a título de remuneração variável, a quantia de 246.610,59 €. Sendo que os cálculos apresentados quanto às remunerações variáveis dos administradores de insolvências e constantes do rateio, foram objeto de parecer favorável da secretaria a 01/02/2023. A fim de evitar um maior prejuízo para o aqui credor e uma vez que a Massa Insolvente dispunha de quantias suficientes para pagamento da remuneração parcial do anterior Administrador de Insolvência, decidiu-se pela compensação de créditos. Refere, ainda, que dos montantes que já se encontravam depositados na massa insolvente, foi afeta ao aqui credor a quantia de 225.259,95 €, que serviria, de acordo com o mapa de rateio apresentado, para pagamento parcial da remuneração variável do anterior administrador da insolvência. Em sede desse mesmo mapa de rateio final, caberia ao aqui credor o pagamento da quantia total de 359.583,80 €. Sendo que, apenas lhe foi afeta a quantia de 225.259,95 €, por ser esse o montante que a massa insolvente dispunha à data. Conclui que continua a existir um dano não reparado ao credor no valor de 134.323,85 € e por isso, não pode o aqui credor concordar com a extinção da presente instância por inutilidade superveniente da lide, devendo a mesma prosseguir os seus ulteriores termos até final, sendo julgada procedente por provada e, em consequência, o réu condenado a pagar a agora quantia de 134.323,85 €, acrescida de juros vincendos à taxa legal em vigor até efetivo pagamento. - O réu veio pronunciar-se, alegando para o efeito, que na presente ação, é reclamado ao réu o pagamento da quantia de € 195.526,95. De acordo com o mapa de rateio apresentado nos autos, caberia ao Administrador de Insolvência, a título de remuneração variável a quantia de € 246.610,59. A confirmar-se a compensação promovida, resulta evidente que ficaria extinta a responsabilidade que nestes autos se reclama ao réu, não subsistindo qualquer viabilidade de prosseguimento da presente ação que, nessa medida, teria que se extinguir por inutilidade superveniente da lide, sem prejuízo, do direito do ora requerente receber o diferencial entre o valor que lhe reclamam na presente ação e o valor da remuneração variável que lhe foi fixado, a saber: € 51.083,64. - Realizou-se tentativa de conciliação, mantendo as partes as posições expressas nos respetivos articulados. - Proferiu-se sentença, com a decisão que se transcreve: “Ante o exposto, tendo sido ressarcido o dano invocado nesta ação pelo réu, torna-se inútil o prosseguimento dos presentes autos, pelo que, ao abrigo do disposto no art. 277.º, al. e), do Cód. Processo Civil, declaro extinta a instância por inutilidade superveniente da lide. Fixo o valor da presente ação em €195.526,95. Custas pelo Réu, por a impossibilidade da lide lhe ser imputável”. - O Autor veio interpor recurso da sentença. - Por acórdão do Tribunal da Relação proferido em 22 de janeiro de 2024 (ref. Citius 17668043) proferiu-se a seguinte decisão: “Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar, em parte, procedente a apelação, revogar a sentença e determinar o prosseguimento dos autos para apreciação da matéria de facto controvertida, alegada na petição, com elaboração dos temas de prova, diligências de instrução, julgamento e sentença. Custas a cargo do réu”. - Após baixa dos autos à 1ª instância, proferiu-se sentença, com a seguinte decisão: “Pelo exposto, julgo procedente a exceção de prescrição invocada pelo réu na sua contestação e, em consequência, absolvo o réu do pedido. Custas pela autora”. - C... habilitado na posição do autor veio interpor recurso da sentença. - Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões[2]: (…) - Não foi apresentada resposta ao recurso. - O recurso foi admitido como recurso de apelação e no mesmo despacho pronunciou-se o juiz do tribunal “a quo” sobre a nulidade da sentença, nos termos que se passam a transcrever: “Ex. ºs Srs. Desembargadores: No recurso interposto em 18/3/2024 o recorrente veio alegar que este tribunal ignorou uma decisão prévia e superior, apreciando a exceção de prescrição que já tinha sido julgada e considerada improcedente. Refere a recorrente que a questão da prescrição já tinha disso julgada e considerada improcedente, invocando caso julgado. Mais alega que a sentença proferida se trata de uma decisão surpresa. Dessa alegação resulta que a recorrente entende que a sentença será nula. Ora, compulsados os autos constatamos que em 30/5/2018 foi proferida uma sentença que considerou improcedente a exceção de prescrição invocada pelo réu. Em 22/5/2019 foi proferido um acórdão pelo Venerando tribunal da Relação do Porto que julgou procedente a apelação interposta e anulou tal sentença. Em 30/5/2023 este tribunal proferiu nova sentença na qual declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide. Por acórdão do tribunal da Relação do Porto de 22/1/2024 foi revogada tal sentença. Ora, tal como referido na decisão proferida em 26/2/2024, tendo sido anulada a sentença proferida em 30/5/2018, não há qualquer caso julgado quanto à exceção de prescrição invocada. Com efeito, a anulação da sentença é uma anulação de tudo o que foi apreciado na mesma. Por essa razão, entendendo este tribunal que procede a exceção de prescrição, afigura-se-nos que não poderia deixar de apreciar a mesma. Quanto à alegação de que a sentença em causa se tratou de uma decisão surpresa, salvaguardando o devido respeito por opinião contrária, tal não ocorre. E isto porque o autor já se havia pronunciado em 22/1/2018 quanto à exceção de prescrição. Ora, tendo sido notificado que o tribunal da Relação havia anulado a sentença proferida nos autos, saberia que este tribunal teria que apreciar essa exceção invocada na contestação, já que não havia qualquer caso julgado. Pelo exposto, este tribunal entende que não se verifica qualquer nulidade da sentença proferida e que este tribunal não ignorou, de forma alguma, a decisão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, sendo certo que, tendo sido determinado o prosseguimento dos autos, este tribunal tinha que apreciar a exceção de prescrição invocada em sede de contestação. V.ª Ex.ª, porém, melhor decidirão”. - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. - II. Fundamentação 1. Delimitação do objeto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso - art.º 639º do CPC. As questões a decidir: - caso julgado; e - nulidade da sentença, com fundamento no art.º 615º/1 d) CPC, por excesso de pronúncia ao ser proferida decisão surpresa; - da verificação da exceção de prescrição. - 2. Os factos Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório. - 3. O direito - Do caso julgado - Nas conclusões de recurso, sob as alíneas A) a BB), o apelante insurge-se contra a decisão recorrida por entender que ocorre a violação do caso julgado, na medida em que foi já proferida nos autos decisão que julgou e decidiu a exceção de prescrição, com trânsito em julgado e os acórdãos já proferidos nos autos apenas determinaram a instrução e julgamento da pretensão do autor. A questão que se coloca prende-se com a ofensa do caso julgado, que efetivamente ocorre, porque a sentença recorrida não atendeu à regra do art.º 628º, 619º e 635º/5 CPC. Dispõe o art.º 580.º n.º 1 do Código de Processo Civil que a exceção do caso julgado, tal como a litispendência, pressupõe a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado. Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito a exceção do caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. No art.º 581.º do CPC, estabelecem-se os requisitos da litispendência e do caso julgado: 1- Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. 2- Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. 3- Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. 4- Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido. O caso julgado pressupõe a repetição de uma causa e visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Nos termos do art.º 628º CPC a sentença transita em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação. De acordo com o art.º 619º CPC transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos art.º 696º a 702º. O caso julgado constitui um dos efeitos da sentença. A sentença transitada em julgado opera o caso julgado da decisão. A sentença converte-se em caso julgado quando os tribunais já a não podem modificar. A força do caso julgado abrange a decisão e o que ficou decidido quanto às questões que a sentença devia conhecer para poder decidir. O caso julgado tornando a decisão imodificável visa garantir aos particulares o mínimo de certeza do Direito ou de segurança jurídica indispensável à vida de relação[3]. Determina o art.º 635º/5 CPC que os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo. O princípio da proibição da reformatio in pejus consagrado no art.º 635.º, n.º 5 CPC está estreitamente relacionado com o efeito de caso julgado formado sobre a decisão recorrida, na parte não impugnada. Em anotação ao preceito, refere o Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça ABRANTES GERALDES: “ainda que por algum motivo o tribunal ad quem determine a anulação do processado, ficam salvaguardadas, em definitivo, os efeitos da decisão recorrida, na parte que não tiver sido objeto de recurso e que, por isso, já transitou em julgado”[4]. Como observa LEBRE DE FREITAS, ARMANDO RIBEIRO MENDES, ISABEL ALEXANDRE: “[a] parte não recorrida de uma decisão transitada em julgado e os efeitos assim produzidos não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, nem pela anulação do processo”[5]. Na jurisprudência, considerando o regime que decorre do preceito em análise, defende-se: - Ac. STJ 03 de março 2021, 1310/11.7TBALQ.L2.S1 (acessível em www.dgsi.pt): “O histórico deste preceito, vindo diretamente do anterior Código de Processo Civil, tinha já aí redação igual, herdada da dos art.º 685 do CPC de 1939, e revela a constância do princípio da proibição da reformatio in pejus, com o mesmo conteúdo, consistindo em se ter por transitada em julgado a parte da decisão que não for recorrida. Radica na ideia de que, num sistema processual que comporte o princípio do dispositivo, a decisão do tribunal de recurso não pode ser mais desfavorável ao recorrente que a decisão recorrida e que efeito do caso julgado que porventura já se tenha formado prevalece sobre o eventual interesse na melhor aplicação do direito, nos termos claramente deixados expressos no preceito”. - Ac. STJ de 07 de fevereiro 2013, no Proc. 1720/05.TBVC-D.P1.S1 (acessível em www.dgsi.pt): “Se uma sentença proferiu condenação dos réus e se só estes interpuseram recurso, tendo a apelação determinado a anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto, não pode a sentença que venha a ser proferida posteriormente, agravar a condenação anterior uma vez que se encontram salvaguardados, em definitivo, os efeitos da decisão, na parte que não tiver sido objeto de recurso. Dizendo-se que a reformatio in pejus não afasta a possibilidade de a condenação ter critérios ou motivos diversos e que a expressão “efeitos do julgado” do nº5 do art.º 635 deve ser interpretada como reportada à parte decisória da sentença – cf. Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes op. e loc. cit. – deve esclarecer-se, em simultâneo, que dentro dos limites que provêm da proibição da reformatio in pejus, o tribunal da Relação tem liberdade de apreciação, nomeadamente para anular, mesmo oficiosamente, a decisão e em ordem a ser ampliada a matéria de facto necessária para se decidir. Todavia, tendo procedido à anulação e destruindo tudo o que constava da sentença, essa destruição não se estende ao que a proibição da “reformatio in pejus” salvou e que compreende o que foi decidido e não foi objeto de recurso pelo réu vencido”. - Ac. STJ de 18 de dezembro de 2013, Proc. 1801/10.7TBOER.L1.S1, (disponível em www.dgsi.pt): “a) Se apenas uma das partes interpuser recurso que abarque uma parcela da decisão, não pode, sob pretexto algum, ser revogado ou modificado o outro segmento decisório em relação ao qual tenha saído vencedora a parte contrária; b) Se o recorrente, de forma expressa ou tácita, restringiu o âmbito do recurso, o Tribunal ad quem não pode interferir na parte da sentença que ficou excluída da impugnação; c) Ainda que, por algum motivo, o Tribunal ad quem determine a anulação do processado, ficam salvaguardados, em definitivo, os efeitos da decisão, na parte que não tiver sido objeto de recurso”. - Ac. STJ 21 de março de 2023, Proc. 1069/09.8TVLSB.S1 (acessível em www.dgsi.pt): “54.O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, constantemente, que o princípio da proibição da reformatio in pejus se aplica exclusivamente à decisão, i.e., à parte da decisão não recorrida — logo, não se aplica aos fundamentos, aos motivos ou às motivações. 55. Em diferentes palavras, ainda que insistindo em igual pensamento: a expressão efeitos do julgado do art.º 635.º, n.º 5, do Código de Processo Civil deve interpretar-se “como reportada à parte decisória da sentença”, e só à parte decisória da sentença. - Ac. STJ 28.02.2023, Proc. 15499/17.8T8PRT.P1.S1 (acessível em www.dgsi): Sumário: “Da conjugação dos art.º. 619.º, n.º 1, 621.º, 628.º, 635.º, n.os 2 e 5, do CPC resulta a possibilidade do trânsito julgado parcial da sentença, ou seja, parte autónoma da decisão fica estabilizada (caso julgado parcial) e sobre a mesma opera a preclusão pro judicato, pelo que o tribunal de recurso fica impedido de conhecer essa questão”. Desenvolvendo esta conclusão, refere-se: “É que a interposição de recurso obsta à produção dos efeitos de caso julgado relativamente apenas quanto à decisão por ele abrangida. Da conjugação dos art.º 619º nº1, 621º, 628º, 635º nº2 e 5 CPC resulta a possibilidade do trânsito julgado parcial da sentença, ou seja, parte autónoma da decisão fica estabilizada, e sobre a mesma opera a preclusão pro judicato, pelo que o tribunal de recurso fica impedido de conhecer dessa questão. Assim, a decisão sobre a absolvição da Ré quanto à eliminação do defeito enunciado no ponto 40 dos factos provados, transitou em julgado. Conformando-se os Autores com a decisão absolutória da eliminação do defeito descrito no ponto 40, e tendo apenas recorrido a Ré, a proibição da reformatio in pejus obsta a que a decisão seja mais desfavorável ao recorrente que a decisão impugnada, não permitindo que o Recorrente possa obter um resultado contrário ao pretendido, beneficiando-se a parte que se conformou com a decisão, por imperativo do art.º 635 nº5 CPC (“os efeitos do julgado, na parte recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, nem pela anulação do processo”). Segundo o princípio da proibição da reformatio in pejus, o recorrente não pode sair do tribunal mais prejudicado do que estava antes do recurso, sendo que o princípio limita os poderes de cognição. Na situação dos autos verifica-se clara violação do princípio da reformatio in pejus, na medida em que a Relação não podia condenar a Ré na eliminação do defeito descrito no ponto 40 e, portanto, ocorreu violação do art.635º nº5 do CPC. A lei não aponta expressamente qual a forma de impugnação, mas sabido que o princípio se funda na proteção do caso julgado, como emanação do princípio da segurança jurídica e da confiança, pode aqui ser invocada a ofensa do caso julgado. Para tanto, parece resultar do texto legal, ao referir “os efeitos do julgado na parte não recorrida”, sendo certo que a sentença constitui caso julgado “nos precisos limites e termos em que julga”. Por conseguinte, estando o princípio da proibição da reformatio in pejus colimado ao caso julgado, legitimando o recurso a coberto do art.º 629º nº2 a) CPC (cf. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª ed., pág.137), a infração legal pode ser arguida pela via da ofensa do caso julgado. Noutra perspetiva, há quem afirme também como modo de arguição a nulidade do acórdão, por excesso de pronúncia (art.º 615 nº1 e) CPC) (cf. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág.291)”. Transpondo estes considerandos para o caso concreto. Resulta dos autos que por sentença proferida em 30 de maio de 2018 (ref. Citius 392907769) julgou-se improcedente a exceção de prescrição e improcedente a ação. Desta decisão apenas foi interposto recurso pelo autor, que circunscreveu o objeto do recurso ao segmento da decisão que julgou do mérito da causa, única decisão em relação à qual ficou vencido. Interpôs recurso do segmento que julgou improcedente a ação. O réu não recorreu do segmento da decisão que julgou improcedente a exceção de prescrição. O recurso foi julgado e decidido por acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 22 de maio de 2019, que tinha por objeto apenas reapreciar a decisão que se pronunciou sobre a questão de saber se assistia ao autor o direito à indemnização reclamada. A decisão proferida neste acórdão anulou a sentença e determinou a ulterior tramitação do processo “para apreciação da matéria de facto controvertida, alegada na petição, com elaboração dos temas de prova, diligências de instrução, julgamento e sentença”. Perante as circunstâncias enunciadas o segmento da sentença que julgou improcedente a exceção de prescrição transitou em julgado, porque não foi objeto de recurso ou reclamação. A sentença nesta parte converteu-se em caso julgado, tornou-se obrigatória, impedindo que o tribunal de recurso reapreciasse tal decisão, perante os limites do objeto do recurso e a regra do art.º 635º/5 CPC. Da mesma forma, o juiz do tribunal “a quo” também não poderia voltar a pronunciar-se sobre a exceção de prescrição, pois a anulação da sentença não abarca tal segmento decisório e nessa parte, a sentença transitou em julgado. Há, assim, caso julgado. Anulando-se a decisão recorrida – única objeto de reapreciação – tal anulação nunca poderia atingir os efeitos da decisão transitada em julgado. Aliás, quer o acórdão proferido em 22 de maio de 2019, quer o proferido em 22 de janeiro de 2024, deixam bem claro qual o alcance da anulação e da revogação, respetivamente, ao determinar-se: “o prosseguimento os autos para apreciação da matéria de facto controvertida, alegada na petição, com elaboração dos temas de prova, diligências de instrução, julgamento e sentença”. Exclui-se deste objeto a apreciação das exceções alegadas na contestação, questão que sempre seria prévia à apreciação do mérito da causa, salvo se contendessem com a apreciação de factos controvertidos. Conclui-se que a decisão recorrida viola o caso julgado formado com a decisão que consta da sentença proferida em 30 de maio de 2018 (ref. Citius 392907769) e que julgou improcedente a exceção de prescrição. Ocorrendo ofensa do caso julgado, a decisão recorrida que voltou a apreciar a exceção não pode manter-se (art.º 577º i), 578º, 619º e 621º CPC). Procedem as conclusões de recurso, sob as alíneas A) a BB). - - Da nulidade da sentença e exceção de prescrição - A apelante suscitou a nulidade da sentença e a reapreciação da sentença no segmento que julgou procedente a exceção de prescrição. Nos termos do art.º 608º/2 CPC, por remissão do art.º 663º/2 CPC, a apreciação das apontadas questões ficou prejudicada pela decisão da anterior questão. - Nos termos do art. 527º CPC, as custas são suportadas pelo réu por ficar vencido. - III. Decisão: Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogar a sentença, com fundamento em ofensa de caso julgado e determinar o prosseguimento dos autos para apreciação da matéria de facto controvertida, alegada na petição, com elaboração dos temas da prova, diligências de instrução, julgamento e sentença. - Custas a cargo do réu. * (processei, revi e inseri no processo eletrónico – art. 131º, 132º/2 CPC) Ana Paula AmorimManuel Domingos Fernandes Miguel Baldaia de Morais ________________ [1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990. [2] Não se transcreveram os pontos 51 a 55 na parte final das conclusões de recurso, porque se refere a um texto que não se reporta à presente peça processual, sendo notório que se trata de um colagem indevida de uma outra peça processual. [3] ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Limitada,1985, pág. 705. [4] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil, 7ª edição atualizada, Almedina, Coimbra, março 2022, pág. 138. [5] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, ARMANDO RIBEIRO MENDES, ISABEL ALEXANDRE Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição, Almedina, Coimbra, março 2022, pág. 70. |