Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
811/23.9T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MIRANDA
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO
CADUCIDADE DA AÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RP20250225811/23.9T8GDM.P1
Data do Acordão: 02/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os contratos de prestação de serviços públicos têm natureza jurídico-privada, e destinam-se a satisfazer interesses essenciais dos cidadãos.
II - Por não conferirem direitos indisponíveis ao utente, a caducidade da acção não pode ser conhecida oficiosamente pelo tribunal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 811/23.9T8GDM.P1


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Relatora: Anabela Miranda
Adjunto: João Proença
Adjunto: Ramos Lopes




Sumário
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I — RELATÓRIO



“A..., S.A.”, pessoa coletiva ...51, com sede na Rua ..., ... ... intentou a presente acção condenatória e a acção n.º 1546/23.8T8GDM contra AA, residente na Rua ..., ... ..., ..., pedindo que seja condenado no pagamento da quantia global de €9.237,14, acrescida de juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento.
No processo apensado (n.º 1546/23.8T8GDM) a Autora peticionou a condenação do Réu no pagamento do montante de € 6.482,29 emergente de incumprimento de contrato para prestação de bens e serviços de telecomunicações celebrado a 12 de Outubro de 2021 e nestes autos a condenação no pagamento do montante de € 2.754,85 emergente de incumprimento de contrato para prestação de bens e serviços de telecomunicações celebrado a 11 de Agosto de 2022.
Para tanto, e em resumo, alegou que celebrou com o Réu três contratos de prestações de serviço de telecomunicações, pelo período mínimo de permanência de 24 meses, que as partes convencionaram que, em caso de incumprimento do período de permanência, seria devido pelo Réu um valor indemnizatório, a título de cláusula penal; após a celebração dos contratos, iniciou a prestação dos serviços, enviando as faturas, não tendo o Réu pago os valores a que se obrigou, pelo que suspendeu os serviços e rescindiu o contrato, por perda de interesse na sua manutenção e reclamou do Réu o valor dos serviços prestados e não pagos e da cláusula penal contratual. Acrescenta que o Réu é devedor dos encargos que a Autora teve de suportar nas tentativas de cobrança da dívida em fase prévia à entrada da ação.
Regularmente citado, o Réu não contestou.
Foi proferido despacho saneador, no qual, ao abrigo do disposto no art. 567.º n.º 1 do Código de Processo Civil, consideraram-se confessados os factos articulados pela Autora, com as exceções previstas no art. 568.º do mesmo código.
Notificada ao abrigo do artigo 567.º, n.º 2 do Código de Processo Civil e ainda para se pronunciar sobre a verificação da exceção de caducidade do direito de ação, a Autora apresentou alegações, peticionando que, atenta a confissão tácita do Réu, os pedidos sejam procedentes na íntegra.
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Proferiu-se saneador-sentença que julgou improcedentes ambas as acções (apensadas) e absolveu o Réu dos pedidos.
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Inconformada com a sentença, a Autora interpôs recurso finalizando com as seguintes
Conclusões
1. O Tribunal a quo, sem que a ação tivesse sido contestada e sem designar audiência final julgou a ação totalmente improcedente, por falta de prova e por caducidade.
2. Salvo, porém, o devido respeito, a sentença recorrida é nula porque: conheceu, ilegalmente, da caducidade; constitui uma decisão surpresa e violou os princípios do contraditório e da igualdade das partes.
3. Com efeito e em relação à caducidade:
- as faturas em causa nos autos não são relativas à diferença entre o consumo real e o consumo estimado, não se enquadrando, por isso, na previsão do art.º 10º da Lei 23/96 de 26.07 e no prazo de caducidade nele estabelecido;
- ademais, o Recorrido não invocou a caducidade. Pelo que, estando em causa direitos disponíveis, estava o Tribunal recorrido impedido de a conhecer oficiosamente.
4. A sentença recorrida constitui, ainda, uma decisão surpresa, uma vez que, após ter considerados confessados os factos articulados na ação, ao não ter marcado audiência final e de ter notificado a Recorrente para alegar - assumindo o Tribunal a quo que poderia conhecer, imediatamente, do mérito da causa, sem necessidade de mais provas -, considerou não provados grande parte dos factos articulados na ação.
5. A haver factos cuja prova não tivesse sido feita, não poderia o Tribunal recorrido deixar de prosseguir com a ação, identificando o objeto do litígio e enunciando os temas da prova, designado data para audiência final.
6. Não o tendo feito, o Tribunal recorrido violou o princípio da igualdade das partes, em claro benefício do Recorrido, e o princípio do contraditório, já que retirou à Recorrente a oportunidade do julgamento para fazer toda a prova dos fundamentos da ação.
7. A decisão recorrida negou, ainda, a aplicação do efeito cominatório estabelecido no art.º 567º n.º 1 do CPC, já que grande parte dos factos elencados como “não provados” na sentença resultam confessados pela falta de contestação do Recorrido.
De tudo quanto ficou exposto, resulta que, a decisão recorrida é nula, porque:
- conheceu, oficiosamente, da caducidade, em clara violação do art.º 10 da Lei 23/96, de 26.97, art.º 333º, n.º 1 do CC e art.º 579º do CPC;
- violou o princípio da proibição de decisões surpresa e o princípio do contraditório consagrados no art.º 3º do CPC;
- violou o princípio da igualdade das partes, consagrado no art.º 3º do CPC;
- negou a aplicação do efeito cominatório estabelecido no art.º 567º n.º 1 do CPC para a falta de contestação.
Deverá, consequentemente, ser declarada nula e substituída por decisão que revogue a sentença recorrida, (i) suprindo a nulidade resultante do conhecimento oficioso da caducidade, (ii) ordenando a aplicação do efeito cominatório previsto para a falta de contestação (iii) e, caso o Tribunal a quo considere que existam factos que careçam de prova, a identificação do objeto.

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II—Delimitação do Objecto do Recurso
As questões principais decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em saber se ocorrem as nulidades apontadas pela Recorrente designadamente se foi violada a aplicação do efeito cominatório por falta de contestação e se a caducidade (não) é de conhecimento oficioso.
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Das nulidades
A primeira questão que nos parece essencial prende-se com a aplicabilidade do efeito cominatório semipleno decorrente da falta de contestação do Réu.
O Réu não apresentou contestação.
Segundo o art. 567.º, n.º 1 do C.P.Civil “Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa…consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.”
Portanto, a revelia do réu decorrente da falta de contestação, determina que se considerem confessados tacitamente os factos articulados pelo autor-é a designada confissão ficta.
Nas palavras de A. dos Reis[1]”Entende-se que o réu confessou esses factos ou os reconheceu como verdadeiros (art.560.º);e como a confissão constitui prova plena contra o confitente (art.565.º) é claro que não carece o autor de produzir qualquer outra prova.
Por outras palavras, a questão de facto está inteiramente arrumada. Só há que cuidar agora da questão de direito.”
Para Lebre de Freitas,[2] concordando com a perspectiva de Manuel de Andrade[3], entende que a consequência da revelia é prova dos factos por admissão que se distingue, no seu regime, da confissão propriamente dita.
Pese embora a falta de contestação, não se aplica o regime da revelia nos casos previstos no art. 568.º, als. a) a d) do CPC, dos quais destacamos o último, ou seja, quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito, por se tratar de uma formalidade ad substantiam (art. 364.º/1do CC).
A norma adjectiva plasmada no citado art. 568.º do CPC está em conformidade com o disposto no art. 354.º, al. a) do C.Civil: a confissão não faz prova contra o confitente se for declarada insuficiente por lei.
Ou seja, o facto não pode ser considerado confessado se a lei exigir para a sua demonstração a apresentação de documento escrito.[4]
Porém, neste particular, importa salientar que a necessidade de documento escrito em resultado da insuficiência da confissão para prova do facto, radica na exigência “de uma forma especial para a existência do acto, como, por exemplo, escritura pública; já não quando essa exigência se destine à simples prova da declaração (cfr. art. 364.º, n.º 2).”[5]
Com efeito, o art. 364.º, n.º 2 do C.Civil estabelece que “Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, devendo neste último caso constar de documento de igual ou superior valor probatório.”
Outra nota que nos parece ser relevante, atendendo ao sucedido nos presentes autos, refere-se ao âmbito de aplicação destas regras probatórias materiais: só estão abrangidas as “declarações negociais ou outros elementos que devam constar do documento[6], pelo que o envio e recepção de uma missiva, ou seja, a interpelação do devedor ou a mera comunicação de uma intenção resolutiva, não se enquadra neste preceito. (sublinhado nosso)
Assim, quando verifique uma situação de revelia, o juiz deve proferir despacho a considerar, ao abrigo do citado normativo, confessados os factos articulados pelo autor, o que não há dúvida que foi feito na presente acção.
Em bom rigor, ao invés da argumentação recursória, não se pode afirmar que o tribunal não aplicou o efeito cominatório semipleno resultante da revelia.
O que sucedeu consubstancia uma questão diferente.
Na verdade, apesar de, nos autos, se ter declarado confessados os factos articulados pela Autora e a acção, nessa sequência, dever ser julgada conforme for de direito (n.º 2 do art. 567.º do CPC), o tribunal entendeu dar como não provados determinados factos, sem discussão da causa, por se ter entendido que a Autora não juntou determinada prova documental sobre factos que não respeitam a declarações negociais mas tão-só atinentes à comunicação das facturas e à resolução dos contratos.
Ora, como acima se explico, e acompanhando o ensinamento de A. Varela, M. Bezerra e Sampaio e Nora,[7] a excepção acima mencionada na al. d) do art. 568.º “…refere-se aos factos para cuja prova se exija documento escrito.”
Ora, esta hipótese não se verifica no caso em apreço uma vez que a lei não exige prova documental para serem julgados provados os factos em causa, ou seja, podem ser admitidos pelo réu.
A confissão do Réu, por falta de contestação, determinou a prova de todos os factos alegados pela Autora e, nesta conformidade, este Tribunal irá sanar o vício decorrente da não aplicação in totum do efeito cominatório semipleno, ficando prejudicado o conhecimento da nulidade decorrente da decisão surpresa invocada pela Recorrente com base na decisão de facto de forma desfavorável sem julgamento.

O tribunal julgou ainda a acção improcedente por ter conhecido oficiosamente da caducidade, justificando que estamos perante direitos de interesse público.
Como corolário do princípio do dispositivo, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras—v. art. 608.º, n.º 2 do C.P.Civil.
Por conseguinte, se conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, a sentença é nula nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d) do C.P.Civil.
A questão para efeito de julgamento alicerça-se na causa de pedir (factos concretos que sustentam o pedido) e/ou nas excepções invocadas pelo réu.
No caso em apreço, atendendo à falta de contestação do Réu, não foi invocada a caducidade do direito da Autora.
O fundamento da caducidade, como ensinava M. de Andrade,[8] é o da necessidade da certeza jurídica. Explicando que “Certos direitos devem ser exercidos durante certo prazo, para que ao fim desse tempo fique inalteravelmente definida a situação jurídica das partes. é de interesse público que tais situações, fiquem, assim, definidas duma vez para sempre, com o transcurso do respectivo prazo.”
O tribunal conhece oficiosamente das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do titular-cfr. art. 579.º do CPCivil.
Aos contratos de prestação de serviços públicos, objecto da nossa reapreciação, é aplicável o disposto no art.º 10.º da Lei n.º 23/96 de 26.07 sobre prescrição e caducidade.
Nos termos do n.º 4 do citado normativo “O prazo para a propositura da ação ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.”
A questão que se suscita no recurso é justamente a de saber se o prazo de caducidade é de conhecimento oficioso do tribunal, o que implica averiguar se estamos perante direitos indisponíveis.
Com efeito, à luz do art.º 333, n.º 1 do Código Civil “A caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes.”
Ricardo Bernardes[9], na anotação a este preceito legal, refere que “Se a matéria não estiver na disponibilidade das partes, é porque foi estabelecida por razões que excedem o interesse dessas mesmas partes. Faz então sentido que o tribunal dela possa conhecer oficiosamente, conforme resulta do n.º 1. Também se compreende que possa ser alegada em qualquer fase do processo, como igualmente autoriza este n.º 1. Cabem aqui casos como os da ação de investigação de paternidade ou de maternidade, ou de um direito real de aquisição (v. Menezes Cordeiro, cit., pp. 226 a 227, e Ana Morais Antunes, cit., p. 353).”
Sobre o conceito de direitos indisponíveis, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10/01/2019[10], citando Ana Prata esclarece que ““Indisponível” é o bem ou direito de que o respectivo titular não pode dispor, ou porque a lei determina que esse seja, temporária ou definitivamente, o seu regime, ou porque, por sua natureza, não é alienável – ut Ana Prata, Dicionário Jurídico, pg. 541.
“Indisponíveis”, no sentido apontado, são as normas de interesse e ordem pública, posto que reguladoras de interesses gerais e considerados fundamentais da colectividade – são inderrogáveis por convenção das partes.
Não dispor de um direito é não poder transigir sobre ele, como é o caso, do direito ao divórcio, o direito à vida, e todos os direitos ligados à personalidade e filiação.”
A sentença apelou, e bem, à reflexão doutrinária de Ana Filipa Morais Antunes sobre os critérios destinados a apurar quais os direitos subtraídos à disponibilidade das partes: “A disponibilidade do prazo para a proposição de uma dada ação, fixado por lei, é designadamente indiciada pelos seguintes elementos: em primeiro lugar, a natureza negocial do ato constitutivo da relação jurídica em causa; em segundo lugar, a natureza jurídico-privada dos sujeitos da relação jurídica ou, na hipótese de terem natureza jurídica pública, o facto de a respetiva atuação não ser acompanhada de prerrogativas especiais de autoridade; em terceiro lugar, a natureza patrimonial dos direitos implicados; em quarto lugar, a inexistência de ponderosos interesses de ordem pública tutelados pela norma” (in Algumas Questões sobre Prescrição e Caducidade, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, 2010, Coimbra Editora, disponível em: https://www.servulo.com/pt/investigacao-econhecimento/Algumasquestoes-sobre-prescriçãocaducidade/5279)
Reflectindo e acompanhando a doutrina citada sobre a temática dos designados contratos de prestação de serviços públicos essenciais Jorge Morais de Carvalho[11] esclarece que “Apesar da referência a serviços públicos, os contratos a que a Lei n.º 23/96 se refere são contratos de direito privado, independentemente de o prestador de serviço ser uma entidade pública ou privada, sendo competentes para a resolução dos litígios os tribunais comuns e não os tribunais administrativos. Estes contratos são atualmente celebrados, na maioria dos casos, com exceção dos serviços de fornecimento de água, de gestão de resíduos sólidos urbanos e de recolha e tratamento de águas residuais, geridos em regra pelos municípios, entre os utentes e as empresas privadas que prestam os serviços previstos no diploma, ainda que no âmbito de um contrato de concessão.” (negrito nosso)
Acrescentando que “O caráter público dos serviços está essencialmente relacionado com o interesse geral nestes serviços, que devem estar acessíveis ao público na sua globalidade. Neste sentido, seria porventura preferível a referência a serviços de interesse geral em detrimento de serviços públicos essenciais.” (sublinhado nosso)
Nesta conformidade, não devem ser confundidos, neste tipo contratual, interesse público que pressupõe um plus decorrente da actividade administrativa do Estado, do interesse geral dos cidadãos em obterem a satisfação de necessidades consideradas básicas a uma vivência condigna.
Neste sentido, José Engrácia Antunes[12] sublinha que “A terminologia legal é equívoca. A expressão “serviços públicos essenciais” pode inculcar a ideia errónea de que tais contratos são relativos a serviços ou atividades levados a cabo pela Administração Pública, quando, na verdade, a sua caraterística distintiva consiste em tratar-se de Serviços económicos de interesse geral que visam satisfazer necessidades essenciais à vida dos cidadãos e da comunidade em geral, independentemente de serem prestados por entidade pública ou privada. Por essa razão, tais contratos melhor seriam designados de “contratos de prestação de serviços de interesse económico geral.”
Por isso, afigura-se-nos manifesto, tal como se conclui na sentença, que os direitos em causa são de natureza patrimonial, emergentes de negócios celebrados entre pessoas jurídico-privadas e, ao contrário do que foi sustentado, a norma do art. 13.º do citado diploma, de conteúdo protecionista do utente dos serviços não se afigura suficiente para declarar indisponíveis os direitos aqui em discussão.
Na verdade, o art. 13.º limita-se a determinar a sanção de nulidade a “qualquer convenção ou disposição que exclua ou limite os direitos atribuídos aos utentes pela presente lei.”
Pese embora se reconheça que o regime legal concede uma protecção à parte mais vulnerável, o consumidor/utente, como sucede em outras temáticas jurídicas, e que existe um interesse público no fornecimento desses bens essenciais, daí não resulta necessariamente que seja um direito em relação ao qual a lei não permite que o contratante não possa dispor.
Sobre a questão, acompanhamos o esclarecedor Acórdão desta Relação, de 14/07/2010[13]: “Na verdade, não dizendo a lei que os direitos protegidos são direitos indisponíveis, o interesse público aqui em presença só justificará o conhecimento oficioso da caducidade, se o direito em que a acção se funda, puder ser qualificado como direito indisponível,[3] ou seja, se a relação jurídica estabelecida for de molde a criar interesses de que os próprios titulares não possam abrir mão, através da confissão, da desistência ou da transacção, por a afirmação de tal vontade estar vedada quando se está na presença de direitos indisponíveis, conforme decorre do artigo 299.º, n.º 1 do CPC e artigos 354.º e 1249.º do Código Civil.
Ora, o que sucede no que concerne ao direito dos consumidores, incluindo os direitos decorrentes da prestação de serviços públicos essenciais, é que a sua protecção constitucional, ainda que enquadrada em sede de direitos fundamentais, equiparáveis a direitos, liberdades e garantias, imediatamente accionáveis, são direitos que não têm natureza homogénea, uma vez que, para além de estarem sob a salvaguarda da regulamentação estadual, de carácter imperativo, no que concerne às medidas de intervenção pública relativas à actividade dos fornecedores de bens e serviços necessários para os implementar, que impõem elevados níveis de eficácia e de protecção quanto aos mecanismos de defesa,[4] não deixam de estar sujeitas à disciplina jurídico-privada dos contratos de prestação de serviços (artigos 1154.º e seguintes do Código Civil).
E, nessa medida, o contrato de fornecimento celebrado entre o utente/consumidor (que tanto pode ser uma pessoa singular como colectiva) e o fornecedor daqueles serviços, tem carácter formal, bilateral, sinalagmático, cria prestações duradouras, de execução continuada e de trato sucessivo, obrigando-se o utente a pagar um determinado preço pelos serviços prestados.
Tratando-se, pois, de prestações de carácter pecuniário estabelecidas num contrato de carácter privado, está o seu não pagamento sujeito às regras gerais aplicáveis a um contrato dessa natureza.
Por isso, aplicam-se-lhe as regras gerais relativas ao incumprimento, à mora, ao incumprimento definitivo ou impossibilidade de cumprimento, etc.,[5] e as especialmente previstas, mormente quanto à prescrição e caducidade insertas no artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26.07.[6]” (…)Mas se da proibição das cláusulas exoneratórias resulta o afastamento da renúncia antecipada ao exercício dos direitos, não significa que os mesmos não possam ser renunciáveis a posteriori, desde logo, pela não invocação da nulidade ou pela opção da manutenção do contrato não obstante a nulidade da estipulação.
Esse é o sentido expresso no artigo 13.º da Lei n.º 23/96, quando prescreve que a nulidade é invocável apenas pelo utente e que o mesmo pode optar pela manutenção do contrato quando alguma das suas cláusulas seja nula.
E, sendo assim, a caracterização deste tipo de direitos como indisponíveis fica imediatamente afastada, porque a indisponibilidade é absoluta, nunca relativa, impondo-se ao sujeito independentemente da sua vontade.”
A fundamentação clara e extensa deste aresto[14] sobre o regime e natureza dos direitos que emergem deste diploma legal, permitem-nos concluir que a caducidade só pode ser conhecida se for invocada pelo beneficiário/titular.
Assim sendo, verifica-se que a sentença é nula por ter conhecido de uma excepção que não foi invocada pelo Réu.
A mencionada nulidade pode e deve ser sanada por este Tribunal.
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III—FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS

1)A Autora emitiu as seguintes faturas:
- Fatura n.º FT 202102/138551, emitida em 09.12.2021 no valor de €514,87, vencida em 29.12.2021 e de que permanecem em dívida €235,01, fatura relativa à mensalidade e serviços do período de novembro de 2021;
- Fatura n.º FT 202202/9889, no valor de €130,57, emitida em 07.01.2022 e vencida em 27.01.2022, fatura relativa à mensalidade e serviços do período de dezembro de 2021;
- Fatura n.º FT 202202/21351, no valor de €391,94, emitida em 06.02.2022 e vencida em 26.02.2022, fatura relativa à mensalidade e serviços do período de janeiro de 2022;
- Fatura n.º FT 202202/25743, no valor de €201,46, emitida em 07.03.2022 e vencida em 27.03.2022, fatura relativa à mensalidade e serviços do período de fevereiro de 2022;
- Fatura n.º FT 202212/170871, no valor de €324,39, emitida em 07.04.2022 e vencida em 27.04.2022, fatura relativa à mensalidade e serviços do período de março de 2022;
- Fatura n.º FT 202212/216714, no valor de €129,99, emitida em 06.05.2022 e vencida em 26.05.2022, fatura relativa à mensalidade e serviços do período de abril de 2022;
- Fatura n.º FT 202212/262335, no valor de €3.961,03, emitida em 07.06.2022 e vencida em 27.06.2022, fatura relativa à mensalidade e serviços do período de maio de 2022 e que incluiu o valor da cláusula penal, de €3.157,97 + IVA;
- Fatura n.º FT 202212/304823, no valor de €103,34, emitida em 07.07.2022 e vencida em 27.07.2022, fatura relativa à mensalidade e serviços do período de junho de 2022;
- Fatura n.º FT 202212/354373, no valor de €11,39, emitida em 05.08.2022 e vencida em 25.08.2022, fatura relativa à mensalidade e serviços do período de julho de 2022.
2)No dia 12 de agosto de 2022, a Autora e o Réu outorgaram um contrato, ao qual foi atribuído o número de conta cliente/contrato ...64, nos termos do qual o Réu solicitou a manutenção dos seguintes serviços de telecomunicações a serem prestados pela Autora: 3 Planos Mobilidade Sem Limites Max, assumindo o Réu a obrigação do pagamento de uma mensalidade de € 89,73 acrescidos de IVA.
3) Como contrapartida pelo fornecimento dos serviços e das demais ofertas contratuais, assumiu o Réu a obrigação de proceder ao pagamento tempestivo das faturas, a devolver, no termo do contrato, os equipamentos da Autora instalados na sua morada para receção dos serviços e a manter o contrato pelo período contratualmente acordado, de 24 meses.
4)Após a celebração do contrato referido em 2), a Autora iniciou a prestação dos serviços, emitindo as faturas correspondentes, designadamente as seguintes:
- Fatura n.º FT 202202/96097, no valor de €21,72, emitida em 07.09.2022 e vencida em 27.09.2022, fatura relativa à mensalidade e serviços do período de 18.08.2022 a 31.08.2022;
- Fatura n.º FT 202202/106606, no valor de €110,69, emitida em 07.10.2022 e vencida em 27.10.2022, fatura relativa à mensalidade e serviços de setembro de 2022;
- Fatura n.º FT 202202/117316, no valor de €113,58, emitida em 08.11.2022 e vencida em 28.11.2022, fatura relativa à mensalidade e serviços de outubro de 2022;
- Fatura n.º FT 202202/123461, no valor de €2.020,23, emitida em 09.12.2022 e vencida em 29.12.2022, fatura relativa à mensalidade e serviços do período de novembro de 2022 e ao valor da cláusula penal contratual, de €1.595,16 + IVA;
- Fatura n.º FT 202302/9483, no valor de €3,00, emitida em 06.01.2023 e vencida em 26.01.2023, fatura relativa a encargos contratuais decorrentes do atraso no pagamento.
5)No dia 12 de outubro de 2021, a Autora e o Réu outorgaram um contrato, ao qual foi atribuído o número de conta cliente/contrato 1.70553288, de acordo com o qual a Autora obrigou-se à prestação de serviços de telecomunicações nos termos dele constantes, tendo o Réu aderido aos seguintes planos:
- 2 Planos Mobilidade;
- 1 Plano Mobilidade Sem Limites, assumindo o Réu a obrigação do pagamento de uma mensalidade de €92,51 acrescidos de IVA.
6)No dia 14 de dezembro de 2021 o Réu solicitou uma alteração ao contrato, passando a dispor dos seguintes serviços:
- 1x Internet Mobilidade 7GB Promo
- 1x Plano Mobilidade 30GB 10000Min/SMS EEE CC
- 2x Mensalidade Plano Mobilidade
- NOS4i_200Mb + Móvel PM_Ben (015)
- 1x Novo Kanguru XL + Equipamento
- 2x Mens Internet Mobilidade 7GB Promo
- 1x Aditivo Internet - Renovação mensal_new - 15GB mediante pagamento de uma mensalidade de €203,66 acrescidos de IVA, obrigando-se a manter o contrato pelo período de 24 meses.
7) Como contrapartida pelo fornecimento dos serviços e das demais ofertas contratuais, assumiu o Réu a obrigação de proceder ao pagamento tempestivo das faturas, a devolver, no termo do contrato, os equipamentos da Autora instalados na sua morada para receção dos serviços e a manter o contrato pelo período contratualmente acordado, de 24 meses.
8)Após a celebração do contrato referido em 6), a Autora iniciou a prestação dos serviços e, consequentemente, emitiu as faturas elencadas em 1) que enviou ao Réu.
9)Pelo facto de o Réu não ter pago as faturas elencadas em 1), apesar de interpelado para o efeito, a Autora suspendeu os serviços em 19 de maio de 2022 e rescindiu o contrato por perda de interesse na sua manutenção e reclamou do Réu o valor da cláusula penal contratual, determinada pelo valor das mensalidades desde a suspensão e até final do período de permanência;
10) As faturas referidas em 1) e em 4) foram enviadas ao Réu.
11) Pelo facto de o Réu não ter pago as faturas elencadas em 4), apesar de interpelado para o efeito, a Autora suspendeu os serviços em 16 de novembro de 2022 e rescindiu o contrato por perda de interesse na sua manutenção e reclamou do Réu o valor da cláusula penal contratual.
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IV-DIREITO

A Autora celebrou com o Réu contratos de prestação de serviços de comunicações eletrónicas, tendo ficado adstrito ao pagamento das mensalidades constantes das facturas que lhe foram remetidas e não foram liquidadas (cfr. art. 1154.º do CC).
Como acima tivemos oportunidade de esclarecer, a doutrina designa “por contratos de prestação de serviços públicos essenciais” (“general economic interest service contracts”, “daseinvorsorge verträge…”) os contratos celebrados entre empresários prestadores de certos serviços de interesse económico geral e os respetivos utentes.”[15]
Os contratos de prestação de serviços públicos essenciais, nas palavras de José Engrácia Antunes[16] “…são contratos de direito privado, e não de direito público. (…)
Acrescentando que “…apesar da equivoca terminologia legal (“serviços públicos”), encontramo-nos diante de verdadeiros contratos privados, usualmente reconduzíveis ao figurino de contratos mistos de compra e venda, de fornecimento e prestação de serviços, sujeitos enquanto tais às disposições gerais da lei civil e comercial — mormente, da LDC (quando neles intervenha um utente-consumidor), mas também das demais leis privatísticas, v.g., LCCG (cf. arts. 32, nº 1, c) e 9º, nº 3) - e sujeitos também à jurisdição dos tribunais comuns - independentemente de serem celebrados por entidades públicas ou entidades privadas concessionárias (cf. Ainda art. 4º, nº 4, ¢) do ETAF)".
Por ser considerado um serviço público relevante, aplica-se ao contrato de fornecimento de comunicações telefónicas a Lei n.º 23/96 de 26.07.[17]
Ficou provado que o Réu assumiu, como contrapartida pelo fornecimento dos serviços e das demais ofertas contratuais, a obrigação de proceder ao pagamento tempestivo das faturas, a devolver, no termo dos contratos, os equipamentos da Autora instalados na sua morada para receção dos serviços e a manter os contratos pelo período contratualmente acordado, de 24 meses.
Do quadro factual resulta que, pouco tempo após o fornecimento dos serviços, o Réu deixou de pagar as mensalidades a que se encontrava vinculado.
Ora, da cláusula 12.6 das condições gerais dos contratos ficou estabelecido que a Autora poderá rescindir o contrato mediante notificação prévia ao Cliente efetuada com uma antecedência mínima de 8 (oito) dias (salvo quando a lei imponha outro prazo, caso em que será esse o aplicável), no caso de mora do Cliente igual ou superior a 20 (vinte) dias no caso de Clientes não consumidores”.
Pelo facto de o Réu não ter pago as faturas acima elencadas apesar de interpelado para o efeito, a Autora suspendeu os serviços, e em 19 de maio de 2022 e em 16 de novembro de 2022 rescindiu os referidos contratos por perda de interesse na sua manutenção e reclamou do Réu o valor da cláusula penal contratual, determinada pelo valor das mensalidades desde a suspensão e até final do período de permanência.
Com efeito, nos termos da cláusula 10 das condições gerais ficou previsto que “Em caso de resolução do Contrato pela NOS no decurso do prazo fixado nos termos da cláusula 4.1. com fundamento no incumprimento do Cliente, bem como no caso de cessação antecipada do Contrato durante o período de fidelização, por iniciativa do Cliente, este ficará obrigado a pagar à NOS uma compensação calculada nos termos indicados no Formulário ou nas Condições Específicas, sem prejuízo do direito a eventuais valores vencidos e juros moratórios.”
Como se explicou no Acórdão desta Relação e secção, de 20/05/2014[18] “No que respeita à cláusula penal propriamente dita, ou seja, à indemnização, por violação da “cláusula de fidelização”, correspondente às mensalidades que se venceriam até ao fim do período de fidelização, não deixa de constituir um preço, pelo serviço globalmente considerado e é uma cláusula acessória do núcleo do contrato e quer pela sua localização sistemática, e, muito particularmente, pela sua articulação lógica com o n.º 1 do art.º 811.º, o art.º 810.º n.º 1, também, do C.Civil, ao referir-se à “indemnização exigível”, cujo montante pode ser, previamente definido, através de cláusula penal, tem em vista as situações de inadimplemento, cumprimento a destempo ou cumprimento defeituoso da obrigação.”
No sentido sobre a validade da cláusula penal decorrente da violação do período de fidelização, o Acórdão desta Relação e secção, de 10/11/2015[19] fazendo apelo ao Acórdão subscrito anteriormente pelo mesmo relator, de 01 de Abril de 2014, consignou que “… a fidelização estaria justificada, no essencial, como forma de compensar a operadora da despesa acrescida implícita na promoção associada, designadamente em termos de tarifário para captação do cliente, e a cláusula penal permitiria, por um lado, contrabalançar, através da fixação acordada de uma indemnização, o custo associado ao desrespeito pelo utente do compromisso assumido que tornaria inútil o benefício concedido que dependeria de um período temporal de vários meses. Defendeu-se, nesta perspectiva, que o legislador permitiria o estabelecimento de cláusulas penais em caso de incumprimento dos períodos contratuais mínimos, conquanto que tais condições não sejam, em qualquer caso, desproporcionadas ou excessivamente onerosas.”[20]
Por todas estas razões, assiste à Autora o direito a reclamar o pagamento das quantias peticionadas, devendo, por isso, ser o Réu condenado a pagá-las, com excepção dos encargos com as tentativas de cobrança da dívida.
Com efeito, neste segmento, concorda-se com a sentença quando aí se observou que nenhuma factualidade sobre esse pedido foi alegada, pelo que deverá improceder nesta parte.
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V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso e consequentemente, condenam o Réu a pagar à Autora a quantia global de € 8.178,30, acrescida de juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento.

Custas pela Recorrente e Recorrido na proporção das respectivas sucumbências.

Notifique.




Porto, 25-02-2025.

Anabela Miranda

João Proença

João Ramos Lopes

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[1] Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 9.
[2] A Acção Declarativa Comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 87, nota 9.
[3] Noções elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra Editora, pág. 246.
[4] v. Varela, Antunes e outros, “Manual de Processo Civil”, 2.º edição, pág. 351.
[5] Código Civil Anotado, Lima, Pires de, e Varela, Antunes, vol. I., 4.ª edição, pág. 314, nota 2.
[6] Lima, Pires de e Varela, Antunes, ob. cit., pág. 323, nota 5.
[7] Manual de Processo Civil, 2.º edição, pág. 350.
[8] Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Coimbra, 1983, págs. 464 e segs.
[9] Anotação ao artigo 333.º do C.Civil Anotado, Ana Prata e outros, Vol I, 2021, pág. 438.
[10] Rel. Isoleta Costa, disponível em www.dgsi.pt
[11] “Os contratos de prestação de serviços públicos essenciais” in Pessoa, Direito e Direitos, Colóquios 2014/2015, Coord. Nuno Miguel Pinto Oliveira e Benedita Mac Crorie, Univ. Minho, 2016.
[12] Direito do Consumo, Almedina, 2024, págs. 467-468.
[13] Rel. Maria Adelaide Domingos, disponível em www.dgsi.pt.
[14] Conhecedor do Ac. do STJ de 03/11/2009 disponível em www.dgsi.pt em sentido contrário no sumário mas no qual não se encontrou justificação pois não era essa a questão a decidir.
[15] v. José Engrácia Antunes, ob. cit., pág. 476.
[16] ob. cit., 469-470.
[17] Alterada pelas Leis 12/2008 de 26.02, 24/2008 de 02.06, 6/2011 de 10.03, 44/2011 de 22.06, 10/2013 de 28.01 e 51/2019 de 29.07
[18] Rel. Anabela Dias da Silva, disponível em www.dgsi.pt.
[19] Rel. Igreja Matos disponível em www.dgsi.pt.
[20] No mesmo sentido e acompanhando esse aresto, v. Acórdão da mesma secção de 28/04/2015, Rel. Vieira e Cunha, disponível em www.dgsi.pt.