Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MOREIRA RAMOS | ||
Descritores: | CRIME DE ABUSO SEXUAL DE MENOR DEPENDENTE CRIME DE TRATO SUCESSIVO | ||
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Nº do Documento: | RP20190925245/18.7JAPRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 09/25/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º811, FLS.2-32) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | O crime de trato sucessivo pressupõe, para além da reiteração de uma atividade ilícita desenvolvida de forma essencialmente homogénea durante um cero lapso de tempo, uma mesma e persistente resolução criminosa. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 245/18.7 JAPRT.P1 Tribunal da Relação do Porto Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:(2ª Secção Criminal – 4ª Secção Judicial) I – RELATÓRIO: No processo supra identificado, por acórdão datado de 02/05/2019, depositado na mesma data, e no que ora importa salientar, decidiu-se:– absolver o arguido B… da prática de: ● um crime de abuso sexual de menores dependentes, previsto e punível pelo artigo 172º, n.º 2, por referência aos artigos 171º, n.º 3, alínea a) e 170º, todos do Código Penal, e de ● um crime de abuso sexual de menores dependentes, previsto e punível pelo artigo 172º, n.º 2, por referência aos artigos 171º, n.º 3, al. a) e 170º, todos do Código Penal. – condenar o referido arguido, pela prática, como autor material e em concurso efetivo, de: ● três crimes de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelo artigo 172º, nº 1, por referência aos artigos 171º, nº 1, ambos do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão por cada um deles; ● seis crimes de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelo artigo 172º, nº 1, por referência ao artigo 171º, nº 2, ambos do Código Penal, na pena de três anos de prisão por cada um deles; ● um crime de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelo artigo 172º, nº 2, por referência aos artigos 171º, nº 3, alínea b) e 170º, todos do Código Penal, na pena de dez meses de prisão; ● fixando-se, em cúmulo jurídico, a pena única em oito anos de prisão. Mais se decidiu condenar o mencionado arguido/demandado no pagamento à demandante civil do montante de vinte mil euros a título de danos não patrimoniais sofridos pela menor C…, em virtude dos crimes por si cometidos na pessoa da menor, acrescido de juros legais de mora a contar da data da prolação do acórdão, até efetivo e integral pagamento. Inconformado com a sobredita decisão, dela veio o arguido recorrer em termos que aqui temos como renovados (refª 22680903), tendo formulado, a final, as seguintes conclusões (transcrição): A – DA MATÉRIA DE FACTO 1. O contexto dos SMS trocados entre o Arguido e a menor Ofendida, concretamente os constantes das pág.s 1 a 5, 7, 8, 13 a 17 e págs. 23 de 54 da transcrição dos SMS, bem assim como no SMS constante da pág. 3 de 54 daquela transcrição, cujo teor aqui se dá por reproduzido. 2. O depoimento gravado no Sistema Integrado de gravação digital, com início pelas 15 horas e 48 minutos e termo pelas 15 horas e 58 minutos da testemunha D…, Motorista do ATL, a instância da Defesa, a partir dos 16 minutos do referenciado depoimento, até ao final, 19 minutos do depoimento; 3. Pelo que se impunha ao Tribunal “a quo” que considerasse NÃO PROVADA a matéria constante do ponto 20. dos atos provados, que se crê incorretamente julgado, e cuja alteração da decisão no sentido pretendido se requer. 4. As fotografias e os vídeos de conteúdo pornográfico extraídos do telemóvel da menor, constantes de fls 39 a 42 dos autos, nomeadamente o vídeo da própria menor em pleno ato de masturbação, e o teor dos SMS transcritos na pág. 85 de 113 da transcrição dos SMS do dia 08.12.2017 (fls 116 dos autos) são de molde a considerar PROVADO que a menor C… já havia tido experiências sexuais anteriores. 5. A impor a alteração da decisão nesse sentido, que aqui se requer, devendo a matéria de facto constante do ponto 27. dos factos provados, por incorretamente julgada, ser considerada e declarada NÃO PROVADA, na parte que respeita à ausência de experiências sexuais anteriores da menor. 6. O texto da fundamentação da Decisão colocada em crise, consigna contraditoriamente dois factos como provados, como seja (i) que o Arguido apenas confessa o óbvio, (ii) e que confessa factos cuja prova positiva relativamente aos mesmos “apenas” poderia o coletivo contar com a credibilidade decorrente das declarações da menor prestadas em sede de declarações para memória futura, conjugados com a prova pericial realizada nos autos, e que como tal não são óbvios. 7. Esta circunstância, contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, o que constitui erro notório na apreciação da prova, vício da Decisão previsto no art. 410º, nº 2, c), do CPP, mas também contradição insanável da fundamentação da Decisão, previsto no n.º 2, alínea b) do mesmo dispositivo, que se alega e invoca para todos os legais efeitos. 8. Em todo o caso, as declarações do Arguido prestadas em Audiência de Julgamento, conjugadas com o teor do texto manuscrito pelo Arguido, junto a fls 221 pela Defesa, em 29.04.2019, em sede de pronúncia quanto ao Despacho de alteração de qualificação jurídica e factualidade indiciada, implicam necessariamente a convicção segura e processualmente adquirida de que o mesmo se mostra arrependido, facto que se impunha ao Tribunal recorrido concluir, estando assim incorretamente julgado o ponto 42. dos factos provados. 9. Consequentemente, tem para si o recorrente que a matéria de facto constante daquele ponto 42. dos factos provados merece alteração, no sentido de que dela passe a constar como PROVADO que o Arguido está arrependido dos factos por si praticados e ali descritos, o que assim se requer. B - DA MEDIDA DAS PENAS PARCELARES E DA PENA DE CONCURSO ou PUNIÇÃO COMO CRIME DE TRATO SUCESSIVO 10. A decisão do quantum, quer individual quer global das penas, proferida pelo Tribunal “a quo”, é merecedora de censura e, como tal, deve ser modificada. 11. Os limites legalmente estipulados para a pena, tendo em conta as categorias dogmáticas da culpa e da prevenção, e procedendo à analise e aplicação ao caso sub judice dos fatores exemplificativamente enunciados no n° 2 do art. 72° do C.Penal, a medida concreta das penas parcelares de prisão aplicadas ao arguido não estão bem doseadas, revelando-se, por isso, não serem justas nem adequadas. 12. As circunstâncias apuradas e plasmadas no Acórdão, nomeadamente a confissão por parte do arguido, revestem grande relevância, na medida em que é, em alguma medida, e conforme inserto no Acórdão, a única e decisiva forma de confirmação dos referidos factos. 13. A Confissão e Arrependimento do Arguido, ressaltam de todo o processado e, a final, mais do que serem considerados, deveriam até, no entender do Recorrente, conduzir a uma atenuação especial da pena. 14. As condições pessoais do Arguido, as circunstâncias apuradas, a ausência de antecedentes criminais, são atenuativas da pena, dado que o mesmo tem assegurado projeto de vida, dispõe de perspetivas de emprego, integrado social e familiarmente, não se antevendo o perigo de cometimento de novos crimes. 15. As exigências de prevenção geral, atento o grande número de casos idênticos que todos os dias ocorrem e dada a notória necessidade de manter a confiança da comunidade nas normas violadas, o caso sub judice, fica a “anos luz” dos casos gravíssimos que vêm sendo noticiados e sentenciados com penas muito mais brandas. 16. Não é ajustada a pena dos autos, nem mesmo sob o prisma da prevenção geral, sequer consentânea com qualquer estabilização de expectativas da comunidade, sendo até injusta. 17. Ao decidir de forma diversa, violou o Tribunal “a quo” o disposto nos art. 40° e 71°, n°s 1 e 2 do C.Penal. 18. Considera-se que justas e adequadas, seriam as seguintes penas parcelares: a. 1 (um) ano de prisão para cada um dos 3 (três) crimes de abuso sexual de menores dependentes, previsto e punível pelo artigo 172º, n.º 1 por referência aos artigos 171º, n.º 1 todos do Código Penal ((factos descritos em 8. e 9. (na 3ª semana de setembro de 2017, no ATL em Matosinhos o arguido beijou a menor na boca, com introdução de língua) e 12. (por duas vezes, em outubro de 2017, o arguido beijou a menor da boca, apalpou-lhe as coxas e as nádegas por cima da roupa)); b. de 2 (dois) anos de prisão para cada um dos 6 (seis) crimes de abuso sexual de menores dependentes, previsto e punível pelo artigo 172º, n.º 1, por referência ao artigo 171º, n.º 2, ambos do Código Penal ((factos descritos em 15. a 17. (manteve o arguido cópula vaginal completa com a menor em 23.10.2017) e 18. (manteve o arguido cópula vaginal completa com a menor, pelo menos, mais cinco vezes); c. de 6 (seis) meses de prisão para o crime de abuso sexual de menores dependentes, previsto e punível pelo artigo 172º, n.º 2, por referência aos artigos 171º, n.º 3, alínea b) e 170º, todos do Código Penal (factos descritos em 19. e 20. - o arguido manteve com a menor…”. 19. Ponderados os fatores a que alude o art. 77 ° do C.Penal (grau de ilicitude dos factos, modo de execução destes e gravidade e suas consequências; trajeto de vida do arguido e a sua personalidade revelada; as elevadas exigências de prevenção geral) afigura-se ser justa e bem doseada a pena única máxima (admissível) de 4 anos de prisão. 20. O Tribunal recorrido, por força da errada determinação das penas parcelares, também não respeitou o procedimento de determinação da pena única do concurso, e violou, deste modo, o disposto nos arts. 77° e 78° do C.Penal. 21. Mesmo que se considere que aquelas citadas penas (parcelares) foram fixadas de acordo com as regras que acabamos de descrever e que são, por isso, justas e adequadas, o certo é que nunca deveria ter sido aplicada a pena única de 8 anos de Prisão, manifestamente excessiva e desproporcionada. 22. A pena única, nunca poderia exceder os 4 anos, mesmo aceitando o quantum individual das penas. 23. E deverá ser suspensa na sua execução, pois que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, resultando claro o juízo de prognose favorável relativamente ao arguido. 24. Tendo a comunidade em geral sentimentos de grande repulsa pelos crimes contra a autodeterminação sexual, em situações como a dos autos, a execução da pena deve ser suspensa, uma vez que não se compreenderia que a punição por estes crimes fosse maior do que a punição alcançada por pedófilos, violadores e autores de crimes sexuais contra crianças, por natureza e número, bem mais elevados. 25. A medida da pena e a expectativa da comunidade, têm que compatibilizar-se com a ressocialização do criminoso em liberdade, ou seja, as exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 26. Devendo ser revogada a Decisão também nesta parte em que condenou o arguido nas penas parcelares e consequentemente, deve ser substituída por outra que condene o mesmo nas penas parcelares supra enunciadas e, em seguida, na pena única de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução. 27. Ainda que se entenda, face à factualidade apurada, que estejamos perante um crime de trato sucessivo, após operar a agravação dos limites mínimo e máximo da moldura aplicável, seria adequada a pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, ante as considerações acima expandidas. 28. Ao decidir em sentido diverso, o Tribunal recorrido violou o disposto nos art.ºs 72º/2, 40º, 71º/1 e 2, 77º e 78º do CP, 374º/2 do CPP. O recurso foi regularmente admitido, embora sem fundamentação jurídica (refª 404760901). O Ministério Público respondeu nos termos que aqui temos como renovados (refª 23037372), concluindo no sentido que deveria ser negado provimento ao recurso. Respondeu também ao recurso a assistente E… com os fundamentos que se consideram aqui repetidos (refª 23041390), tendo concluído que o mesmo deveria ser julgado improcedente. Neste tribunal, o Ex.mo PGA emitiu o parecer que se considera aqui como renovado (refª 12958747), através do qual, sufragando integralmente, a posição assumida pelo Ministério Público na sua resposta, entendia o acórdão recorrido não merecia qualquer censura, devendo ser integralmente confirmado. No cumprimento do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi aduzido. * II – FUNDAMENTAÇÃO: a) a decisão recorrida: No que aqui importa reter, o acórdão recorrido é do teor seguinte (transcrição, sem destacados, nem sublinhados e com formatação diversa): Factos Provados constantes da acusação pública, para a qual remeteu a decisão instrutória 1. O arguido nascido a 15.07.1960, é sócio da ‘F…, S.A.’, sociedade com sede na Rua …, n.º …., na … – Matosinhos, cujo objeto social é “centro de explicações, creche, centro de atividades de tempos livres, serviços de educação pré-escolar e transporte de crianças”. 2. A menor C… nasceu no dia 26.03.2003 e é filha de E… e de G…, tendo sido por estes plenamente adotada por sentença proferida a 16.05.2011, pelo Tribunal de Família e Menores de Matosinhos, quanto tinha sete anos de idade. 3. No início do ano letivo de 2015/2016 (setembro de 2015) os pais inscreveram a C… no ATL da ‘F…’ para complemento aos estudos daquela, então a frequentar o 7º ano de escolaridade na Escola Secundária H…. 4. O arguido acordou com os pais da C… que ao abrigo desse contrato de prestação de serviços, ele próprio daria explicações da disciplina de matemática à menor, o que sucedeu. 5. A C…, à semelhança dos demais alunos que frequentavam a instituição, tratava o aqui arguido por “Tio B1…”. 6. Em março de 2017 foi diagnosticado ao pai adotivo da C… um tumor cerebral com prognóstico reservado, o que afetou a atenção e acompanhamento prestados pelos pais à filha e deixou esta psicologicamente muito abalada, factos que eram do conhecimento do arguido. 7. No dia 30 de junho de 2017, pelas 17:29 horas, o suspeito enviou a seguinte mensagem escrita para o telemóvel da C…: “Estas mesmo muito bonita!!!!”. Obtendo dela a resposta “Obg mesmo você está sempre!!”. O arguido enviou pelas 18:17 horas desse mesmo dia outra mensagem dizendo “Tu Também (!!!!), mas hoje estas especialmente bonita!!!!.”. 8. Em dia não concretamente apurado da terceira semana de setembro de 2017, o arguido convidou a C… a acompanhá-lo a outras instalações da ‘F…’ situadas na Rua …, n.º …, …, …, em Matosinhos, fazendo-se transportar no seu veículo de marca e modelo “Porsche …”. 9. Nessa ocasião e estando a sós com a C…, como havia planeado, o arguido beijou-a prolongadamente na boca, com introdução de língua. 10. No dia 20 de setembro de 2017, pelas 22:03 horas, o arguido remeteu através do seu telemóvel n.º ……… para o telemóvel da C… a seguinte mensagem escrita: “Pois. Eles são muito importantes numa relação! E dar beijinhos na boca é das coisas mais maravilhosas que existem!! E como já não dava há muito tempo, os teus são muito importantes e doces!!!”. 11. E no dia 29 de setembro de 2017, pelas 22:34 horas, o arguido enviou à C… a seguinte mensagem: “Não te dei mais beijinhos porque tive medo que alguém visse!”. 12. Pelo menos por mais duas vezes no mês de outubro de 2017, em dias não concretamente apurados, o arguido levou a C… às instalações referidas em 8. e nessas duas ocasiões beijou-a novamente e demoradamente na boca, apalpou-lhe as nádegas e as coxas por cima da roupa. 13. O arguido remeteu à menor C… diversas mensagens escritas e fez-lhe telefonemas de voz prolongados onde lhe fazia declarações de amor. 14. No dia 14 de outubro de 2017, após as 22:07 horas, quando à pergunta da C… sobre há quanto tempo gostava dela o arguido respondeu: “Desde as explicações” e “Mas tinha muito medo de o demonstrar e não sabia se ia ser correspondido. E tu?”. 15. No dia 23 de outubro de 2017, como previamente planeado, o arguido levou novamente a C… para as instalações referidas em 8., agora desativadas, beijou-a na boca e acariciou-a. 16. De seguida despiu-se, colocou um preservativo no seu pénis ereto e introduziu-o na vagina da C…, efetuando movimentos ritmados de cima para baixo. 17. Apesar da C… se ter queixado de dores, por ser até então virgem, o arguido respondeu-lhe que era normal, e continuou a penetração e os movimentos ritmados até ejacular no interior da vagina dela. 18. Entre esse dia 23 de outubro de 2017 e o dia 22 de janeiro de 2018, pelo menos por cinco vezes, ao início da tarde, o arguido levou a C… às instalações referidas em 8. e com ela manteve relações sexuais semelhantes, com cópula completa e ejaculação. 19. No período temporal compreendido entre, pelo menos, 01 de junho de 2017 e 24 de fevereiro de 2018 o arguido manteve com a C… diversas conversas através de chamadas de voz bem como de mensagens escritas, num total de pelo menos 8.304 (oito mil trezentas e quatro), enviadas e recebidas do/no seu telemóvel número ……… para o telemóvel número ……….. usado pela menor. 20. Em muitas dessas mensagens escritas – que estão transcritas entre as fls. 46 e fls. 72v e a fls. 74 a fls. 130 dos autos e que aqui se dão por reproduzidas e fazem parte deste despacho para todos os efeitos legais – o arguido demonstrou que sentia ciúmes dos relacionamentos que a menor tinha com os jovens da idade dela e fez referência aos relacionamentos sexuais que tinham mantido com a menor e àqueles que gostava de manter com esta. Entre essas mensagens descrevem-se as seguintes, em que as identificadas como “De: ……….. – Amor – Tio B1…” são as que foram enviadas pelo arguido à C… e as identificadas como “PARA: ……….. – Amor – Tio B1…” são aquelas que a C… enviou ao arguido, nas datas e horas mencionadas: (…)[1] 21. No dia 23.01.2018 a mãe da C… acedeu ao telemóvel desta e ao conteúdo das mensagens, assim tomando conhecimento dos factos, e entregou o telemóvel às autoridades policiais. 22. Ao perceber que a C… deixara de ter acesso ao seu telemóvel, no dia 05.03.2018 o arguido, com a finalidade de perpetuar a sua atividade, que sabia ser criminosa, comprou o telemóvel da marca e modelo ‘Alcatel …’ com o IMEI n.º …………… e no dia 07.03.2018 ofereceu-o à C… para que continuassem a comunicar entre si. 23. No dia 24.05.2018 o arguido tinha na sua posse o telemóvel com o cartão n.º ……… que utilizava para comunicar com a menor durante os meses anteriores e através do qual enviou as mensagens supra transcritas, bem como guardava em cima de um móvel do escritório da sua residência, situada na Rua …, n.º …, em … – Matosinhos, a caixa de cartão referente ao telemóvel da marca “Alcatel” com o IMEI n.º ……………. que tinha comprado e oferecido à C…. 24. A C… evidencia um quadro de forte instabilidade afetiva e emocional, com isolamento social, sinais de angústia e ansiedade, medo associado à figura do abusador, pensamentos intrusivos com a temática do abuso e afastamento do grupo de pares. 25. O arguido B… bem sabia que os atos que praticou, de forma reiterada, ainda que com o consentimento da menor, eram abusivos da inexperiência de vida da C… e do contexto de fragilidade emocional em que ela vivia em virtude da doença do progenitor. 26. Ciente da responsabilidade acrescida que lhe advinha do facto de a C… ter-lhe sido confiada pelos progenitores para educação no âmbito do contrato de prestação de serviços de ATL e de explicação de …, o arguido aproveitou-se dessa relação de confiança e dos horários em que ela lhe estava confiada, para manter com a jovem contactos pessoais em nada relacionados com as suas funções educativas, com o propósito, concretizado, de satisfazer instintos lascivos e libidinosos. 27. Fê-lo indiferente ao facto da C… ter apenas catorze anos de idade e não ter nenhuma experiência sexual anterior, sabendo que foi com ele que ela perdeu a virgindade no contexto descrito. 28. O arguido atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem ciente da censurabilidade e punibilidade de todas as suas condutas. Mais se provou 29. O descrito em 4. verificou-se a partir de finais do 1º período/início do 2º período do ano letivo referido em 3. 30. As explicações referidas em 4. eram individuais e no decurso das mesmas o arguido conversava por longos períodos com a menor, dizendo-lhe várias vezes que era seu professor, que podia confiar nele. 31. Sem prejuízo do descrito em 13. e 19., no período compreendido entre 30.06.2017 e 09.09.2017 o arguido e a menor C… trocaram-se as SMS documentadas a fls. 130 e 129 v.º dos autos, cujo teor damos aqui por reproduzido. 32. Na SMS referida em 11., o arguido referiu-se a beijos que tinha trocado com a jovem à porta das instalações do ATL. 33. Nas circunstâncias descritas em 16. A menor C… encontrava-se totalmente despida. 34. Numa das ocasiões das descritas em 15. A 18., e por uma vez, o arguido introduziu os seus dedos no interior da menor C…. 35. Os factos descritos em 15. a 17. ocorreram a uma segunda feira. 36. Os factos descritos em 18. ocorreram à segunda feira, à exceção de uma das vezes, que se verificou a uma quinta feira. 37. Os factos descritos em 15. a 17. e 18. ocorreram no período da pausa escolar de almoço da menor C…. 38. A menor C… tem memórias da sua infância até ter sido adotada. 39. A menor C… verbalizou perante as testemunhas I… e J…, respetivamente no início do ano de 2017 e no início do ano letivo de 2017/2018, “tenho nojo do tio B1…”, referindo-se ao aqui arguido. 40. A menor C… manifestou por diversas vezes, junto das testemunhas I… e K…, que não queria ter mais explicações de matemática com o arguido. 41. O arguido assumiu a prática dos factos descritos em 3., 4, 7 a 16., 17. (2ª parte), 18 a 21. e 22. (oferta do telemóvel). 42. O arguido não está arrependido dos factos por si praticados e supra descritos. Antecedentes pessoais …………………………………………………………… …………………………………………………………… …………………………………………………………… 2 – do crime de trato sucessivo. Nesta matéria, começando por anotar que a factualidade apurada era revestida de uma conjuntura que tinha como peculiar e que, caso a lei o permitisse, ante a conduta e a sua forma de atuação, estaríamos perante a figura do crime continuado, com considerável diminuição da culpa do agente, portadora de uma só resolução, a recorrente alega depois que a jurisprudência e a doutrina, perante situações de evidente ausência de renovação do processo de motivação, como é o caso, trata o chamado crime prolongado ou de trato sucessivo, consentâneo com uma “unidade resolutiva”, com aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável, conceito que exige, além da identidade da vítima, homogeneidade na conduta do agente, que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, protegem um bem jurídico semelhante, tal como aqui sucede (cita o acórdão do STJ datado de 29/11/2015, no âmbito do proc. Nº 862/11.6TAPFR.S1) Assim sendo, sustenta, adotando-se esta doutrina, a punição faz-se pelo crime mais grave, entretanto cometido, agravada nos termos gerais, o que, no caso, não poderá ultrapassar os três anos e seis meses de prisão, sendo que, ante as considerações por si expandidas ao tratar a questão do concurso de crimes, e bem assim face às necessidades mínimas de prevenção especial, deveria ficar suspensa na sua execução. O Ministério Público, em ambas as instâncias, não tratou esta específica questão. Por seu turno, a assistente respondeu para anotar a um tal propósito que, embora aludindo a crime de trato sucessivo, o recorrente nada alega que permita compreender sequer qual a censura que pretende dirigir à decisão e, na ausência de tal censura, tal decisão tem de ser conformada, sublinhando ainda que dos factos provados e cuja decisão não foi impugnada por aquele, resultam muito claras e muito bem individualizadas as condutas puníveis que lhe são imputadas, inexistindo razões para ficcionar algo para além dessa realidade que o mesmo aceitou, pelo que a pena aplicada dever ser mantida. Apreciando. Contrariamente ao alegado pelo recorrente, entendemos que as condutas apuradas, além de estarem arredadas da mera continuação criminosa[2], também não consubstanciam a prática de apenas um crime de abuso sexual de crianças de trato sucessivo, já que, apesar de cometidas durante um período temporal não muito alongado, embora apenas porque a mãe adotiva da menor acedeu ao seu telemóvel e, percebendo o que se estava a passar, entregou-o às autoridades, delas resulta evidenciada a inexistência de uma só resolução criminosa, bem como de uma unificação de condutas a coberto de uma mesma e persistente resolução, ainda que sem diminuição da culpa, no caso do trato sucessivo, ou, agora nas palavras de Santos Cabral, não existe aqui um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas, nem uma homogeneidade das condutas, o que significa que “…nenhum elemento da materialidade provada permite a redução do processo volitivo do arguido a uma linha uniforme sem qualquer fratura temporal”[3], e, ao invés, é inequivocamente sintomática de uma clara renovação delituosa, sendo prova disso o teor das muitas e persistentes mensagens que o mesmo enviou à menor, bem como o facto de, quando se apercebeu de que a menor deixara de ter acesso ao seu telemóvel, e com o fito de perpetuar a sua atividade criminosa, ter-lhe comprado um telemóvel para que continuassem a comunicar entre si (ver pontos 21 e 22 dos factos provados), o que, logicamente, nos arreda da tese que vem suportada pela jurisprudência citada pelo recorrente e que, do que se apreende, não traduz sequer a maioria do sentir jurisprudencial, mormente do STJ. A corroborar o que vai dito pode citar-se um recente aresto daquele tribunal datado de 23/05 de 2019 e proferido no âmbito do processo nº 134/17.2JAAVR.S1, cujo sumário[4] reza o seguinte: “I – O denominado crime de trato sucessivo pressupõe, para além da reiteração de uma atividade ilícita desenvolvida de forma essencialmente homogénea durante um certo lapso de tempo, a unidade de resolução, que não única resolução. II – O STJ vem entendendo que no crime de abuso sexual de crianças não se verifica a unidade de resolução. E não se verifica porque, para tanto, seria indispensável a ocorrência, entre o mais, de uma conexão temporal que permitisse admitir que o agente executou toda a atividade criminosa no quadro de um dolo inicial que, por não ter sido renovado, é comum a todos os ilícitos. III – A prática reiterada de atos ilícitos integradores dos crimes de abuso sexual de crianças, não derivando de uma situação exógena ao agente facilitadora do seu sucumbir criminoso, só pode ter sido provocada, buscada e delineada pelo seu agente, pelo que não poderá ter como efeito a diminuição da sua culpa, mas antes a sua agravação. IV – Se a alteração introduzida no art. 30.º pela Lei 40/2010 – aditou o n.º3 – teve em vista afastar a possibilidade de a pluralidade de crimes contra bens eminentemente pessoais ser punida como um só crime continuado, mal se compreenderia que, por via de uma ficção do julgador se viabilizasse a sua punição por apenas um crime de trato sucessivo, defraudando o propósito do legislador”. Neste global contexto, e sem mais delongas, resta concluir pelo naufrágio desta pretensão recursiva. ……………………………………………….. ……………………………………………….. ……………………………………………….. * III – DISPOSITIVO: Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes nesta Relação acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, em consequência do que decidem confirmar integralmente o acórdão recorrido. Custas pelo recorrente, fixando-se em cinco UC a taxa de justiça devida. Notifique. * Porto, 25 /09/2019[5].Moreira Ramos Maria Deolinda Dionísio ___________________ [1] Não se transcreve esta parte porque não se tornou possível manter a sua correta formatação. [2] A qual, no tocante aos bens eminentemente pessoais, e caso a vítima fosse a mesma, seria possível após a publicação da Lei nº 59/2007, de 04/09, e até à publicação da Lei nº 49/2010, de 03/09, alteração que, enquanto vigorou, terá tido a sua soberana aplicação no processo conhecido por “Casa Pia”, que estava pendente à data da publicação daquela primeira lei citada, o que não deixa de constituir uma interessante, quando não, mesmo uma inédita coincidência. [3] Acórdão proferido pelo referido relator no âmbito do processo nº 182/10.3 e datado de 22/11/2013, aqui parafraseado e parcialmente citado, a consultar in http://www.dgsi.pt. [4] Já efetuado com vista à sua oportuna publicação na CJ do STJ. [5] Texto escrito conforme o acordo ortográfico, convertido pelo Lince, composto e revisto pelo relator (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal). |