Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES DA CUNHA | ||
| Descritores: | PROCESSO PENAL AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO PRESENÇA DO ARGUIDO OBRIGATORIEDADE EXCEPÇÕES AUDIÊNCIA NA AUSÊNCIA DO ARGUIDO AUDIÇÃO DO ARGUIDO MEIOS DE COMUNICAÇÃO À DISTÂNCIA VÍDEO-CHAMADA ÂMBITO DE APLICAÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RP20241030757/22.8T9OAZ-A.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/30/2024 | ||
| Votação: | MAIORIA COM 1 VOT VENC | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
| Decisão: | JULGADO IMPROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
| Indicações Eventuais: | 4. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Em processo penal, por via de regra, é obrigatória a presença física do arguido na audiência de julgamento, mas essa obrigatoriedade não é absoluta, prevendo a lei exceções, permitindo o início e a realização de julgamento na ausência do arguido, bem como permitindo que a audiência se realize na total ausência do arguido. II - Inexiste norma que preveja a audição dos arguidos na fase do julgamento através dos adequados meios de comunicação à distância, ao contrário do que acontece com os assistentes, as partes civis, as testemunhas, os peritos ou os consultores técnicos. III - Todavia, como assinala a parca jurisprudência conhecida, também nenhuma norma o impede expressamente, pelo que não deverá afastar-se a hipótese de, excepcionalmente, e quando razões suficientemente ponderosas o justifiquem, os arguidos poderem participar na audiência de julgamento através do uso de meios de comunicação à distância, nomeadamente através de video-chamada, desde que realizada em direto. IV - Tal será o caso de o arguido residir no estrangeiro, desde que o tribunal não considere indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença física e, por via de regra, não estarmos perante uma acusação de crimes graves. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo: 757/22.8T9OAZ-A.P1
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO: Nos presentes autos de processo comum e com a intervenção do Tribunal Singular, por despacho de 10.03.2024, a Senhora Juiz de Direito decidiu autorizar a intervenção da arguida AA na audiência de discussão e julgamento por videochamada. Inconformado, o Ministério Público recorreu. Termina com as seguintes conclusões [transcrição]: * Não foi apresentada resposta. * O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer no sentido da procedência do recurso. Em síntese, para além de concordar inteiramente com o entendimento de que, face à nossa lei processual penal, não é legalmente admissível ao arguido intervir na audiência de julgamento através de comunicação à distância, acrescenta o seguinte: De resto, atente-se no disposto no n.º 1 do art.º 275.º-A CPP quando dispõe que “A tomada de declarações a qualquer pessoa que não seja arguido no processo e que resida fora do município onde se situam os serviços do Ministério Público competentes para a realização da diligência pode ter lugar noutros serviços do Ministério Público ou nas instalações de entidades policiais, por videoconferência ou outros meios telemáticos adequados que permitam a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real. Ora, o arguido residente no estrangeiro, que na fase de inquérito ficou excluído da possibilidade de ser ouvido por através meio de comunicação à distância, já poderia, na fase de julgamento, ser ouvido nesses termos? E a intervenção do arguido em audiência reduz-se meramente à prestação de declarações? ENTENDEMOS que a resposta só poderá ser negativa, pelo que o recurso deverá ser provido, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra que indefira o requerimento da arguida. * Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta. Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência. *** II – FUNDAMENTAÇÃO:
Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso. No caso concreto, considerando tais conclusões, a questão que importa decidir é a seguinte: ** Despacho recorrido [transcrição]. Analisado o requerimento em apreço e formulado pela arguida AA, resulta que mercê da sua deslocação recente para França, e não prescindindo de ser ouvida na audiência, requer seja ouvida à distância. O Digno Magistrado do Ministério Público promoveu no sentido do respetivo indeferimento. Com efeito, esta pretensão, assim formulada pelo defensor nos autos, mais não é, a nosso ver, do que o exercício do direito à audição pessoal, que integra o conjunto de direitos que constituem o núcleo fundamental e irredutível dos direitos de defesa em processo penal, cujo modo de exercício só ao próprio cabe definir. (AC TRC de 13/9/2023 ou Ac. TRG de 7/11/2022 - como se escreve no Ac. da Rel. de Évora de 8-11-2022 (processo n.º 478/15.8TXEVR-L.E1), “a audição presencial não se opõe a audição por vídeo-conferência, que não deixa de ser uma audição presencial, embora com presença à distância, em “directo”.) Por assim entendermos, e na esteira daquela jurisprudência dos tribunais superiores, que a audição da arguida, no caso em apreço, por videoconferência integra-se no conceito de “audição presencial” _ desde que se entenda, como normalmente se entende, que esta implica a sua realização em direto e com recurso a equipamento tecnológico que permita comunicação visual e sonora em simultâneo, permitindo que o arguido veja e ouça o tribunal e vice-versa, em boas condições técnicas de transmissão – deferimos o requerido. ** Decidindo a questão objeto do recurso Encontrando-se a residir em França, a arguida requereu que fosse autorizada a sua intervenção na audiência de julgamento por vídeo-chamada, através de Wattsapp, para o seu número de telemóvel ...78, o que foi deferido pelo Tribunal a quo. Ministério Público insurgiu-se contra o decidido, alegando que não é admissível que a audição de um arguido, em sede de audiência de discussão e julgamento, tenha lugar por meios de comunicação à distância. Para o efeito, e em síntese, alega que contrariamente ao que acontece noutras situações [v.g. fase da execução da pena, em caso de incumprimento de deveres, regras de conduta ou obrigações; substituição de suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art. 495.ºnº2 do Código de Processo Penal; caso de anomalias no cumprimento da pena de substituição de trabalho a favor da comunidade, nos termos do art. 498.º nº 3 do Código de processo Penal], na fase do julgamento não há qualquer norma que preveja ou exclua a possibilidade de a audição do arguido ter lugar por meios de comunicação à distância. Vejamos. Por via da regra, em processo penal é obrigatoria a presença física do arguido na audiência de julgamento, como decorre do disposto no art.º 332.º, n.º 1, do CPP. Essa obrigatoriedade não é, porém, absoluta, prevendo exceções. Desde logo, o n.º 1 do art.º 333.º do CPP permite o início e a realização de julgamento na ausência do arguido regularmente notificado quando não compareça e a sua presença física não seja considerada pelo tribunal absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material. Por sua vez, o n.º 2 do art.º 334.º do CPP prevê que o arguido requeira ou consinta que a audiência tenha lugar na sua ausência sempre que se encontrar praticamente impossibilitado de comparecer à audiência, nomeadamente por idade, doença grave ou residência no estrangeiro. Como assinala o Ministério Público, inexiste norma que preveja a audição dos arguidos na fase do julgamento através dos adequados meios de comunicação à distância, ao contrário do que acontece com os assistentes, as partes civis, as testemunhas, os peritos ou os consultores técnicos (cfr. art.º 318.º, n.º 1, do CPP)[1]. Todavia, como assinala igualmente, também nenhuma norma o impede expressamente. Não deve, pois, sem mais, retirar-se a conclusão de que a falta de expressa previsão legal impede sempre, de forma absoluta, o recurso a meios de comunicação à distância para garantir a (adequada) presença de um acusado em audiência de discussão e julgamento onde e quando tal se mostre inequivocamente necessário[2]. Em suma, não afastamos a hipótese de, excecionalmente e quando razões suficientemente ponderosas o justifiquem, os arguidos poderem participar na audiência de julgamento através do uso de meios de comunicação à distância. No caso concreto, residindo em França, a arguida pode optar por não intervir de todo no julgamento, requerendo que a audiência de julgamento seja realizada na sua ausência. Por maioria de razão, não vemos que não possa, também, intervir à distância, através de video-chamada[3], desde que realizada em direto[4]. Com efeito, o Tribunal a quo não considerou indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença física, indispensabilidade que, aliás, o Ministério Público não invoca. Por outro lado, não estamos perante uma acusação de crimes graves, circunstância que, em nossa opinião, afastaria, em princípio, a possibilidade de intervir à distância[5]. Improcede, pois, o recurso. ** IV – DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo a decisão recorrida. * Sem custas. * * Porto, 30 Outubro de 2024 José António Rodrigues da Cunha João Pedro Pereira Cardoso - [Declaração de voto de vencido: - A solução que obteve vencimento no presente acórdão, se bem a interpretamos, assenta na ideia de que a falta de referência ao arguido na previsão dos art.s 318º e 319º, ambos do Código Processo Penal, constitui uma omissão, em sentido próprio, do legislador, já que não prevê, mas também não impede a audição daquele à distância e fora do tribunal. Ora, sendo de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, a solução admitida no acórdão não encontra na letra da lei, atenta a não inclusão do arguido, um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (art.9º, nº2 e 3, do Código Civil). As sucessivas alterações aos art.s 318º e 319º, do Código Processo Penal, mantendo o arguido excluído da sua previsão, são também fatores hermenêuticos bastantes para arredar da sua dimensão normativa a silenciada possibilidade legal daquele sujeito processual participar à distância no julgamento e fora do tribunal. A leitura conjugada do nº1 e 5, do art.318º, art.325º e 332º, todos do Código Processo Penal, deixam claro que a presença a que ali se alude corresponde à comparência física e no tribunal, sem prejuízo das normas que expressa e excecionalmente dispensem o arguido de comparecer ou permitam à sua audição à distância e noutro lugar. A presença física em julgamento e no tribunal constitui um direito e dever fundamental do arguido, que tem subjacente razões de politica criminal que se prendem com irrenunciáveis exigências das mais amplas e efetivas garantias de defesa, imediação, contraditório, assistência jurídica com o advogado e de descoberta da verdade na administração da justiça penal. Daí que a falta de regulamentação da audição do arguido à distância e fora do tribunal não traduza uma lacuna em sentido próprio que careça de suprimento pelo juiz. “Razões político-jurídicas ponderosas podem estar na base da abstenção do legislador. Esses «silêncios eloquentes da lei» não têm de ser supridos pelo juiz, ainda que este, porventura, em seu critério entenda o contrário. Diz-se, por isso, que tais faltas de regulamentação constituem lacunas impróprias (de lege ferenda, de jure constituendo, político-jurídicas, críticas, etc.), que eventualmente poderão vir a desaparecer em futuros desenvolvimentos do sistema, a cargo dos órgãos normativos competentes” – cfr. sobre omissão própria e imprópria Acórdão STJ n.º 2/95, de 12 de junho, D.R. n.º 135/1995, Série I-A de 1995-06-12. No caso estamos perante uma omissão em sentido impróprio, insuscetível de integração por analogia. No respeito pelo princípio da legalidade, apenas nos casos previstos na lei deve ser autorizada a participação do arguido à distância e fora do tribunal. Foi o que ocorreu, a título de exemplo, no regime transitório, durante a pandemia COVID 19, nele incluída a tomada de declarações ao arguido, conforme o art.6º-B, nº7 a 9, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março. Contudo, querendo o arguido participar no julgamento, como aqui sucede, mas encontrando-se a residir em França, o art.35º, nº2, Lei n.º 88/2017, de 21 de agosto (que aprovou o Regime da Decisão Europeia de Investigação (DEI) em Matéria Penal), prevê a audição do arguido por videoconferência ou outros meios de transmissão audiovisual perante a autoridade de execução nas condições ali estabelecidas. Os casos que vêm sendo admitidos na jurisprudência superior citada relacionam-se com atos de audição isolada do arguido. Argumentar que o arguido, a residir no estrangeiro, até podia estar ausente do julgamento, em nada o dispensa, quando manifesta vontade de nele participar, de o fazer à distância nas condições de forma e lugar excecionalmente previstas na lei. Não cabe ao julgador substituir-se ao legislador na admissão e regulação de novos procedimentos, ainda que de jure constituendo se intua o seu pragmatismo, relativos ao uso de meios de comunicação à distância como forma de participação dos acusados na audiência de julgamento. O direito a estar presente no julgamento é um dos direitos fundamentais dos arguidos, donde o dever de os tribunais adotarem as condições necessárias a assegurar tal presença, no sentido de garantir o direito de um arguido a estar presente na sala de audiências, o que constitui um dos requisitos essenciais do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Por essa razão, o mesmo TEDH vem adotando uma posição restritiva relativamente ao uso de meios de comunicação à distância como forma de participação dos acusados na audiência de julgamento. A propósito, o sumário preparado pelos serviços do referido Tribunal, Article 6 (criminal limb): Hearings via video link, disponível online em https://ks.echr.coe.int/documents/d/echr-ks/hearings-via-video-link, concluindo que “o uso de videoconferência em julgamentos não é automaticamente considerado uma violação do direito a um julgamento justo, mas precisa ser justificado por objetivos legítimos e deve ser implementado de modo a respeitar as garantias processuais fundamentais”. O direito do acusado a estar fisicamente presente na audiência, fora dos casos expressamente ressalvados na lei (art.32.º, nº6, da C.R.P.), tem sido considerado essencial para a correta administração da justiça penal, como também para a concretização das garantias de defesa, do contraditório, da assistência jurídica com advogado e da imediação da prova. Por conseguinte, não havendo razões substanciais suficientemente relevantes que legitimem o afastamento dos mecanismos de cooperação internacional com vista à audição à distância, nas condições previstas no art.35º, nº2, Lei n.º 88/2017, de 21 de agosto, acompanhando a jurisprudência do ac RP 24.01.2024, processo 588/19.2PAESP.P1, www.dgsi.pt, daria provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida.]. _______________________________ |