Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7511/2007-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: CHEQUE
SAQUE
IRREGULARIDADE
BANCO
PAGAMENTO
RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- O desconto de cheques sacados sobre conta bancária há-de ser feito sempre no respeito do quadro normativo estabelecido entre o banqueiro e o cliente.
II- Apelando tal quadro à consideração dos requisitos de validade do cheque, estabelecidos na Lei Uniforme sobre o Cheque, as disposições daquela, porém, não esgotam necessariamente o conteúdo do sobredito quadro.

III- Incorre em responsabilidade perante o cliente, sociedade comercial, o Banco que dá pagamento a um cheque apresentado por terceiro, seu beneficiário, assinado pelo representante legal da sacadora, mas sem aposição de carimbo da sociedade, conforme exigido nas condições de movimentação constantes da ficha de assinaturas respectiva.

IV- A «especial relação obrigacional complexa, de confiança mútua e dominada pelo intuitus personae», iniciada com a negociação e celebração do contrato de abertura de conta «imporá, mesmo no silêncio do contrato, à instituição financeira, padrões profissionais e éticos elevados, traduzidos em deveres de protecção dos legítimos interesses do cliente, em consonância com os ditames da boa-fé.».

V- Também por isso, pagando a instituição bancária um cheque com saque irregular, em contrário do estabelecido na convenção de cheque, não poderá remeter para o cliente, titular da conta, o ónus da prova da falta de “causa” da deslocação patrimonial assim operada daquele para o beneficiário do cheque.

(E.M.)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação


I- O C M P  intentou acção declarativa, com processo comum, sob a forma sumária, contra BANCO pedindo a condenação da Ré a pagar à A. a quantia de € 12 719,35,/2.550.000$00, acrescida de juros à taxa legal em vigor, desde 12-07-1994, até efectivo pagamento.

Alegando, para tanto, e em suma, que a Ré, em 12-07-1994, lhe debitou na sua conta D.O. o valor de 2.550.000$00, resultante do desconto de cheque sacado sobre a conta D.O. da A.

O qual não deveria ter tido lugar por isso que, embora assinado por gerente da A., o cheque não tinha o carimbo daquela, como expressamente era exigido na respectiva ficha bancária, sendo, nessa circunstância, “falsificado”.

Assim ocasionando à A. um prejuízo igual ao valor do cheque, acrescido dos correspondentes juros.

Que se não teria verificado se a Ré cumprisse os seus deveres de verificação e controlo.

Contestou a Ré, sustentando a nada mais estar obrigada do que a conferir a conformidade da assinatura do sócio gerente.

Até porque não tinha em seu poder qualquer elemento que lhe permitisse conferir carimbo que aposto fosse no cheque.

Rematando com a improcedência da acção.

Frustrada uma aprazada tentativa de conciliação, foi proferido saneador-sentença que, julgando a acção procedente, condenou a Ré a pagar à A. a quantia de € 12.719,35, acrescida de juros à taxa legal desde 12 de Junho de 1994, até integral pagamento.

Inconformada, recorreu a Ré, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:

“1ª. Nos presentes autos, a douta sentença recorrida condenou a recorrente por ter pago um cheque sobre conta bancária titulada pela apelada, sem aposição de carimbo, reputado este como elemento essencial;

2ª. A exigência constante da ficha de assinaturas de aposição de carimbo e a falta deste não são factos que, por si só, possa conduzir à condenação da recorrente;

3ª. O que a lei impõe é que o cheque seja emitido por quem tenha poderes, sendo no caso vertente o sacador uma sociedade comercial;

4ª. Sociedade esta que se vincula pela assinatura de M E F S;

5ª. A ordem de pagamento consubstanciada no cheque é uma ordem pura e simples, não subordinada a qualquer condição;

6ª. Não resulta dos autos que a gerente da apelada, quem validamente a obriga, não tenha emitido o cheque em causa, preenchendo-o integralmente e apondo nele a sua assinatura;

7ª. De que decorre que foi a mesma gerente quem efectivamente preencheu o título cambiário na sua totalidade, apondo-lhe a sua assinatura;

8ª. O cheque em apreço entrou, por força disso, no circuito cambiário de forma válida e foi pago correctamente;

9ª. O    art. 1º da LUC tem carácter imperativo, não podendo as partes contrariá-lo ou condicioná-lo atribuindo a um mero carimbo poderes que extravasam largamente o previsto na LUC;

10ª. A sentença recorrida conclui singelamente que a apelada sofreu um prejuízo igual ao do cheque;

11ª. Ora, como vimos supra, o cheque em causa foi preenchido na totalidade – data, valor, beneficiário – pela apelada, ou seja pelo seu sacador, razão porque o cheque foi pago pela apelante em cumprimento de ordem de pagamento pura e simples;

12ª. Não existem nos autos quaisquer factos, alegados e dados por provados, reveladores do prejuízo da apelada;

13ª. Inexistindo nos autos um elemento que seja revelador de que essa ordem de pagamento não tinha sustentação na respectiva relação subjacente;

14ª. Ainda que se admitisse ter existido uma conduta ilícita por parte da apelante, e não existe, ainda assim não existia fundamento para a condenação da recorrente por manifesta falta de demonstração do dano, bem assim do nexo causal entre o facto e o dano;

15ª. A sentença recorrida não pode pois manter-se;

16ª. Tendo violado, por errada interpretação e aplicação da lei, as normas legais ínsitas nos arts. 1º da LUC; 483º do CC e 264°, n.º 1 e 2 do CPC.”.

Requer a anulação da decisão recorrida substituindo-se por outra que decrete a total absolvição da apelante.

Contra-alegou a Recorrida, pugnando pela manutenção do julgado.

II- Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil -  são questões propostas à resolução deste Tribunal:

- a licitude do pagamento do cheque dos autos, pela Ré.

- na negativa quanto àquela, se estão alegados factos de que decorra, em termos de nexo de causalidade adequada, o prejuízo para a A., concluído na sentença recorrida.


*

Considerou-se assente, na 1ª instância que:

I. A Autora possui e é titular da conta de depósitos à ordem com o n° … na agência do BANCO, em cuja ficha (e não “fixa”) de assinaturas se textua: "Condições de movimentação - Assinatura da sócia gerente e carimbo da sociedade (...) Sócia gerente - M E F S".

IV. Em 12 Jul 1994 foi debitado o valor de 2 550 000$00 mediante desconto do cheque n.° 2248686443, sacado sobre a identificada conta da autora e assinado por M E F S.

III. O cheque foi depositado na conta da C I M D.

IV. A A. procedeu ao desconto do cheque sem atentar (que) neste não se encontrava aposto o carimbo da autora.

V. Passados dez dias sobre o saque, a sócia gerente dirigiu uma carta à R., na qual alegava que este e outros cheques haviam sido furtados.

VI. A A. sofreu prejuízo igual ao valor do cheque.


*

O que de tal elenco integra efectiva factualidade, não sofreu impugnação.

Sendo já, porém, que, como visto, sustenta a Recorrente, nas suas alegações, não existirem nos autos “quaisquer factos, alegados e dados por provados, reveladores do prejuízo da apelada;”, e a “manifesta falta de demonstração do dano…”.

E, efectivamente, afirmar-se que “A A. sofreu prejuízo igual ao valor do cheque”…corresponde, de modo flagrante e incontornável, à produção de mero juízo conclusivo.

Que nada substancia em sede de perda patrimonial ocasionada pelo comportamento da Ré.

Certo a propósito que ao próprio “prejuízo” corresponde um conceito jurídico, aliás objecto de obra de João de Castro Mendes, dada ao prelo em 1953.[1]

Distinguindo aquele A., adentro tal conceito, os danos emergentes, os lucros cessantes – na forma tradicional do conceito – os “gastos extraordinários” e o dano consistente no “desaproveitamento de despesas feitas para certo fim”.[2]

E, como também se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-09-2007,[3] “III - O conceito de prejuízo para efeitos de responsabilidade civil não coincide com o seu conceito económico, competindo, assim, ao lesado provar a existência de uma diminuição patrimonial resultante de uma actuação ou omissão do lesante, não sendo bastante a simples demonstração de uma qualquer perda patrimonial.”.

O que tudo nos leva à consideração como não escrita de tal al. VI da “matéria de facto”.

E, deste modo, presente o disposto no art.º 646º, n.º 4, do Código de Processo Civil, que referindo-se expressamente às “questões de direito” cobra também aplicação aos casos de conclusões de facto, as quais, como referem José Lebre de Freitas. A. Montalvão Machado. Rui Pinto,[4] devem, para o efeito, ser assimiladas, por analogia, às conclusões de direito.


*

Corrigindo-se, por outro lado, o manifesto lapso da referência, em IV da matéria de facto, a que “A A. procedeu ao desconto…”, e posto que se terá pretendido dizer que a Ré procedeu ao desconto…”. 

*

Vejamos então:

II-1- Da (i)licitude – por violação de deveres contratuais – do pagamento do cheque dos autos, pela Ré.
1. Aquele mostra-se sacado por reporte a uma “conta” titulada pela A., no Banco Réu.

A abertura de conta, e nas palavras de Menezes Cordeiro,[5] “pressupõe elementos próprios da conta-corrente…” e “é…o negócio bancário nuclear. Ela marca o início duma relação complexa entre o banqueiro e o seu cliente e traça o quadro básico do relacionamento entre essas duas entidades”.

Quadro esse que, como também se considerou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-12-2006,[6] se deve pautar por deveres de conduta, derivados da boa fé, dos usos bancários ou dos acordos particulares que celebrarem, à luz do princípio da liberdade contratual.

O contrato, que assim é disso que se trata, de abertura de conta, prevê um quadro para a constituição de depósitos bancários que o banqueiro se obriga desde logo a receber, e regula a conta-corrente bancária. Prevê regras sobre os seus movimentos, incluindo juros, comissões e despesas que o banqueiro poderá debitar e sobre os extractos.

Assentando, “no essencial, nas cláusulas contratuais gerais dos bancos e nos usos bancários…”.[7]

Sendo de anotar que “é concebível uma abertura de conta com a subsequente conta-corrente bancária, sem qualquer depósito: a conta funcionaria na base da concessão de crédito ou de cobranças feitas, pelo banqueiro, a terceiros”.[8]

Por outro lado, as cláusulas contratuais gerais atinentes à abertura de conta prevêem, ainda, entre outros e pelo que aqui agora pode interessar, os aspectos essenciais relativos ao “negócio subsequente” da “convenção de cheque”.[9]

Trata-se assim de um contrato normativo, com traços de “contratação mitigada”, e com “efeitos jurídicos imediatos: a conta-corrente bancária, o serviço de caixa por parte do banqueiro, o dever, deste, de receber depósitos, de prestar informações e de efectuar comunicações e toda uma série de traços resultantes das cláusulas contratuais gerais”.[10]

2. O que se deixou dito quanto ao contrato de abertura de conta leva-nos à consideração da natureza do depósito bancário, que, com referência a uma determinada conta, pode ser feito.

Mantendo-se a autonomia dessas duas modalidades de convenção.[11]


Trata-se, entre nós, como noutros ordenamentos jurídicos, de uma vexata quaestio, sendo dois os entendimentos prevalentes na doutrina.
Assim para alguns autores, como Antunes Varela,[12] Menezes Cordeiro,[13] e João Calvão da Silva,[14] tratar-se-á de um verdadeiro contrato de depósito, irregular, em que sobrelevará a função de custódia, e o interesse do depositante.
Para outros, como Ferreira de Carvalho[15] e Paula Ponces Camanho,[16] revestirá a natureza jurídica de mútuo.
A jurisprudência acolhe maioritáriamente a primeira tese. Assim, v.g.,  o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-04-2006,[17] no sentido de o depósito bancário ser “um depósito irregular, sendo-lhe aplicável, na medida do possível, as norma relativas ao contrato de mútuo.”, cfr. art.ºs  1185º, 1205º e 1206º, do C. Civil. 

3. De qualquer forma, o desconto de cheques sacados sobre a conta em que se mostram constituídos os depósitos, e assim com débito na expressão contabilística destes, há-de ser feito sempre – e tal como antecipado já – no respeito do quadro normativo estabelecido entre o banqueiro e o cliente.
E se esse quadro normativo apela, desde logo, à consideração dos requisitos de validade do cheque, estabelecidos na Lei Uniforme sobre o Cheque –  vd. As disposições imperativas dos art.ºs 1º e 2º da mesma Lei – ponto é que, diversamente do pretendido, de forma engenhosa, pela Ré, a verificação daqueles – e,  no particular da assinatura do sacador, por confronto com a assinatura constante da ficha preenchida aquando da abertura de conta – não esgota o estabelecido a propósito no sobredito quadro.

Com efeito, como da ficha de assinaturas respectiva  - referida em I da “Matéria de Facto Assente” e junta por cópia a fls 66 – se alcança, foram estabelecidas, como “condições de movimentação” da conta, a “Assinatura da sócia gerente e carimbo da sociedade” (o realce a negrito é nosso).

Deste modo, o desconto de cheque sacado sobre tal conta, embora assinado pela sócia gerente com poderes para o efeito, mas sem a aposição de carimbo da sociedade, redunda em flagrante e incontornável incumprimento do convencionado em matéria de movimentação da conta, e, logo, de pagamento de cheques, cfr.  art.ºs 405º, 406º, n.º 1 e 762º, n.º 1, do Código Civil.     
E, assim, independentemente de, nos estritos quadros da LUL, o cheque preencher os requisitos da sua “perfeição” como tal.
Certo a propósito, que ainda quando se entenda que, na sequência do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, não é já sustentável a inexistência da obrigação legal de pagamento pelo banco ao portador,[18] sempre estaria legitimada, in casu a recusa de pagamento, face ao convencionado entre o Banco R. e a A., e assim mesmo que, com Oliveira Ascenção,[19] “vejamos na convenção de cheque um contrato em favor de terceiros”.
Pois são oponíveis ao terceiro, por parte do promitente, todos os meios de defesa derivados do contrato, cfr. art.º 449º, do Código Civil.  
E, pelo que ao próprio sacador respeita, sempre lhe poderia ser contraposta a inobservância do requisito adicional estabelecido nas sobreditas “condições de movimentação”.

Requisito a respeito do qual não colhe a objecção de não constar da ficha de assinaturas nenhum fac-simile, com o qual pudesse assim ser verificada a conformidade do carimbo aposto nos cheques da Recorrida.
Trata-se de falsa questão.

Nos termos convencionados, a Ré apenas tinha que verificar, para além da assinatura, se no cheque fora aposto um carimbo da sociedade, que, o mesmo é dizer, um carimbo com caracteres correspondentes à identificação da sociedade A.
Se esse carimbo era o efectivamente em uso pela sociedade ou não, é ponto transcendendo já os deveres de verificação assim assumidos pela Ré.
A qual, em caso de pagamento de cheque com carimbo não usado pela sociedade Ré, mas correspondente à identificação desta, teria cumprido, e bem.

4. E como também ensina Menezes Cordeiro,[20] “A natureza híbrida da responsabilidade civil portuguesa tem consequências importantes, na responsabilidade bancária. Na presença dum acordo entre o banqueiro e o seu cliente, ou, de modo mais lato, na de vínculos obrigacionais específicos, a simples falta do resultado normativamente prefigurado – como será a recusa de pagamento de cheques que não preencham as acordadas condições de movimentação, acrescentaremos nós - implica presunções de ilicitude, de culpa e de causalidade”, (o sublinhado é nosso).

Diga-se, em qualquer caso, que infringida a cláusula negocial relativa à movimentação da conta, e assim estabelecida a objectiva ilicitude da conduta da Ré, também a culpa dos prepostos desta emerge de modo inquestionável.
E posto que os cuidados mínimos exigíveis num sector de actividade como é a bancária, de elevada responsabilidade e suposto profissionalismo, impunham que os funcionários do Banco Réu tivessem verificado, na ficha de assinaturas respectiva, a integralidade das condições de movimentação da conta.

Tendo-se pois como merecendo a conduta omissiva daqueles a reprovação ou censura do direito, por, em face das circunstâncias concretas da situação, ser de concluir que eles podiam e deviam ter agido de outro modo.

Assim se apelando a um critério da apreciação da culpa em abstracto, que se mostra consagrado no art.º 487º, n.º 2, do Cód. Civil. [21]

Certo a propósito que, como também refere João Calvão da Silva,[22] a «especial relação obrigacional complexa, de confiança mútua e dominada pelo intuitus personae», iniciada com a negociação e celebração do contrato de abertura de conta «imporá, mesmo no silêncio do contrato, à instituição financeira, padrões profissionais e éticos elevados numa política de “conhece o teu cliente”, traduzidos em deveres de protecção dos legítimos interesses do cliente, em consonância com os ditames da boa-fé (art.º 762º, n.º 2, do Código Civil; art.ºs 73º e seguintes da Lei-Quadro bancária):  deveres de diligência e cuidado, deveres de alerta, aviso, advertência e prevenção…deveres de informação, deveres de discrição…cuja inobservância ou violação poderá pôr em causa a uberrima fides do cliente e o intuitus personae da relação e assim originar a responsabilidade de instituição financeira imprudente ou não diligente…responsabilidade contratual perante o credor».
 
Sendo que a Ré, sociedade comercial, responde civilmente pelos actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos seus comissários. Vd. artºs 2º, do Cód. Soc. Comerciais,  157º e 165º, do Cód. Civil.
E isto, assim, quer a título contratual quer extra-contratual, como se considerou, v.g., no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-03-99.[23]
Com remissão, portanto, para o artº 500º, do Cód. Civil, e, logo, para a responsabilidade objectiva da sociedade comercial, relativamente ao facto danoso praticado pelo orgão agente ou mandatário, no exercício da função ao mesmo confiada, e pressuposto que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar, como é meridianamente o caso.
E o artº 800º, n.º 1 do mesmo Cód., ao responsabilizar o devedor perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação – círculo de âmbito menor que o correspondente ao exercício da função – mostra que « Dominam nesta matéria os princípios que justificam a responsabilidade do comitente pelos danos que o comissário causar (artº 500º)...».[24]

II-2- Do prejuízo da A.
1. Provado está ter o Réu procedido “ao desconto do cheque”, o que implica, como decorre da natureza do contrato de abertura de conta, que o montante daquele foi levado a débito da A. na conta-corrente respectiva.
Questão sendo a de saber se tal corresponde a uma efectiva perda patrimonial, em valor correspondente àquele montante, assim ocasionada pelo acto ilícito e culposo da Ré.
Note-se que a A., em sede de contra-alegações de recurso, veio invocar factos que  não alegou oportunamente, nos articulados da acção, como sejam a diversa autoria da assinatura no cheque, relativamente à da letra “que consta dos outros campos preenchidos”, e que tal cheque “e outros da Banco foram furtados ao apelado…por alguém que preencheu os outros campos, e os depositou, como se fossem seus…apoderando-se, fazendo suas e gastando em proveito próprio essas quantias ”.
Não podendo tais factos – posto que verdadeiros factos novos – ser considerados para efeitos de se substanciar o prejuízo da A.

Pois no direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento[25].

São meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.[26]

Deles se dizendo, por isso, que são recursos de revisão ou reponderação.

Não sendo, assim, admissível, a invocação de factos novos, tanto nas alegações como nas contra-alegações de recurso,[27] sem prejuízo das hipóteses, de que nenhuma aqui se configura, de factos novos de conhecimento oficioso  e funcional  bem como dos factos notórios, vd. artº 514º do Cód. Proc. Civil.

Certo ainda, quanto a este ponto, que nem a alegação, pela Ré, na sua contestação, de lhe ter a sócia-gerente da A. “passados dez dias após o saque…dirigido uma carta à Ré na qual alegava que este e outros cheques haviam sido furtados” – com documentação de tal carta, aliás – tem a virtualidade de suprir o correspondente “défice” de alegação, de banda da A.
Desde logo, tal alegação, pela Ré, não corresponde à afirmação de que o cheque em causa foi furtado à A.
Depois, recaindo o ónus de alegação e prova dessa referida circunstância, sobre a A. – cfr. art.º 342º, n.ºs 1 e 3, do Código civil – que o não actuou oportunamente, não tinha que ser considerada, em sede condensatória, a alegação, pela Ré, de que a A. lhe havia escrito a dizer que o cheque lhe havia sido furtado.

2. Porém, e como visto já, em matéria de responsabilidade bancária, e na presença de vínculos obrigacionais específicos, o pagamento de cheque com saque irregular, face ao estipulado na “convenção de cheque”, implica, e designadamente, presunção de causalidade.
Que a Ré, na sua contestação, não ensaiou, de todo, ilidir.
Atendo-se à sustentação do cumprimento das suas obrigações, no tocante à conferência do cheque.
Apenas nas suas alegações de recurso, sustentando que “Nenhum facto concreto e objectivo foi alegado ou dado como provado que sustentasse o prejuízo da apelada”, e “não existe nenhuma demonstração nos autos de que tenha existido efectivamente um dano na esfera patrimonial da apelada, e como tal, muito menos qualquer nexo causal”.
O que, em qualquer caso, nada questiona quanto à factualidade de que se concluiu a perda patrimonial e o nexo de causalidade.
E, por isso, nunca abriria as portas à contraprova do referido prejuízo.

Diga-se, ainda, que pagando a instituição bancária um cheque com saque irregular, em contrário do estabelecido na convenção de cheque, remeter para o cliente, titular da conta, o ónus da prova da falta de “causa” da deslocação patrimonial assim operada daquele para o beneficiário do cheque, representa um mau princípio.
Que arredando a concedida presunção em matéria de causalidade, postergaria também a consideração subjacente àquela solução, a saber, que “No direito bancário como, em geral, na vida dos negócios e na vida pessoal, os acordos devem ser cumpridos a todo o custo, apenas nos limites últimos da boa fé.”.[28] 

Ao fim e ao cabo, tratar-se-ia de perante um cheque mal pago pela instituição de crédito sacada – posto que sendo o saque irregular face às convencionadas condições de movimentação, em geral, e à convenção de cheque, em particular – colocar o cliente na situação de ter de suportar o prejuízo correspondente ao indevido desconto do cheque…desde que não lograsse provar que aquele havia saído da sua esfera de disponibilidade, contra a sua vontade.
O que, como é bom de ver, conduziria, por via de regra, à libertação das entidades bancárias de quaisquer consequências dos seus incumprimentos, onerando os clientes com a prova de facto negativo, qual seja a inexistência de relação causal determinante da emissão do cheque…

*
Em suma, mostram-se reunidos os pressupostos da responsabilidade civil, contratual, assacada à Ré, como na sentença recorrida se concluiu, com referência aos art.ºs 562º, 563º, 564º, n.º 1, 566º, 798º e 808º, n.º 1, do Código Civil.

Improcedendo pois, in totum, as conclusões de recurso.

Sem embargo de se ressalvar um outro manifesto lapso – porventura de génese “informática” – da mesma sentença, qual seja a definição de custas – imediatamente antes da parte decisória – “a cargo das partes na proporção do decaimento”.
Prevalecendo pois a condenação em custas, na referida parte decisória, da Ré.

III- Nestes termos, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando a, aliás douta, sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 2007-11-08


(Ezagüy Martins)

(Maria José Mouro)

(Neto Neves)

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[1] In “Do conceito jurídico de prejuízo”, 1953, Jornal do Foro, Lisboa
[2] Idem, págs. 29-30.
[3] Proc. 07B1982, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[4] In “Código de Processo Civil, Anotado”, Coimbra Editora, 2001, pág. 605.
[5] In “Manual de Direito Bancário”, Almedina, 2ª Ed., 2001, págs. 489 e 500.
[6] Proc. 06A3629, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[7] Menezes Cordeiro, in op. cit. pág. 489.
[8] Menezes Cordeiro, in op. cit. pág. 501.
[9] Ibidem.
[10] Menezes Cordeiro, in op. cit. pág. 510.
[11] Cfr. João Calvão da Silva, in op. cit. pág. 344.
[12] In  “Depósito Bancário”, Revista da Banca, n.º 21, Janeiro/Março de 1992, Associação Portuguesa de Bancos, Lisboa, 1992, pág. 49.
[13] In op. cit., págs. 525-526. 
[14] In “Direito Bancário”, Almedina, 2001, pág. 349.
[15] In “Natureza Jurídica e Função do Cheque”, Revista da Banca, n.º 18, Abril/Junho de 1991, pág. 106, quanto ao particular do depósito a prazo. 
[16] In “Do contrato de depósito bancário”, Almedina, 1998, pág. 208.
[17] Proc. 06A579, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[18] Assim, Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Cheques, Anotada”, 4ª ed., Livraria Petrony, 1983, pág. 174, citando Ferrer Correia e António Caeiro, In “Revista de Direito e Economia”, 4-447 e seguintes, em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-12-1977, refere que “À face do nosso direito, o tomador de um cheque não tem acção de natureza cambiária ou de direito comum contra o Banco sacado que se recusa a pagá-lo, muito embora o cheque haja sido apresentado em tempo útil e a conta sacada disponha de provisão suficiente”.
[19] In “Direito Comercial”, Vol. III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1992, FDL.
[20] In op. cit., pág. 397.
[21] Vd. A. Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10ª Ed., Almedina, 2003, págs. 562 e seguintes.
[22] In op. cit., pág. 335-336.
[23] In CJAc.S.T.J., Ano VII, Tomo I, pág. 129.
[24] Vd. P. Lima e A. Varela. in “Código Civil, Anotado”, Coimbra Editora, Vol. II, 4ª ed., 1997, pág. 56.

[25] Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, LEX, 1997, pág. 395.
[26] Vd. Acs. do Supremo Tribunal de Justiça, de 03-02-1999, proc. n.º 98A1277 e de  11-04-2000, proc. n.º 99P312, in www.dgsi.pt/jstj.nsf; e desta Relação, de 08-02-2000, proc. n.º 0076737, e de 12-12-2002, proc. n.º 0054782, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[27] Assim, Teixeira de Sousa, op. cit. págs. 395 e 454;  Armindo Ribeiro Mendes, in “Os Recursos no Código de Processo Civil Revisto”, LEX, 1998, pág. 52; e João de Castro Mendes, in “Direito Processual Civil (Recursos)”, Ed. da AAFDL, 1972, págs. 23-24.
[28] Menezes Cordeiro, in op. cit., pág. 397.