Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
252/05.0GTALQ-B.L1-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: OMISSÃO DE AUXÍLIO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ALCOOLÉMIA
TAXA DE ALCOOLÉMIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – O tipo incriminador contido no artigo 200.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, ao descrever a situação que impõe a acção do agente, exige que ele se encontre perante um «caso de grave necessidade» «que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa».
II – Esse caso de grave necessidade não se verifica quando a vítima morreu escassos segundos após o acidente de viação.
III – A curva de alcoolemia comporta, desde o momento em que terminou a ingestão do etanol, três fases: a da absorção, a do equilíbrio cinético e a da eliminação. A eliminação do álcool do sangue resulta da combinação dos processos de metabolismo desta substância e da sua excreção.
IV – Quando estamos perante valores médios ou moderados de alcoolemia, ou seja, entre taxas de alcoolemia que vão de 0,5 g/l a 3 g/l, podemos, para determinar uma taxa pretérita de álcool no sangue de uma pessoa partindo de um valor verificado posteriormente, aplicar a fórmula de Dubowski.
V – O designado “tempo de reacção” de um condutor abarca a percepção, que é o processo através do qual a pessoa detecta qualquer objecto ou situação perigosa que surge no decurso da condução e compreende o seu significado, e a reacção propriamente dita, que abrange a reacção mental e a reacção muscular.
VI – O tempo de reacção, para além de variáveis individuais, depende de numerosos factores que vão desde a complexidade da situação, a idade do condutor, a presença ou ausência de substâncias psicoactivas, a natureza do estímulo sensorial, a complexidade da reacção muscular exigida e o estado de fadiga do condutor.
VII – A percepção da aproximação de um veículo (que não beneficia de prioridade) de uma via que pretende vir a atravessar não impõe que o condutor do veículo com prioridade tome, desde logo, medidas para parar a sua viatura uma vez que, pelo menos até um certo momento, pode esperar que o outro condutor se comporte de forma adequada às regras de circulação automóvel, respeitando a sua prioridade.
VIII – Só assim não será a partir do momento em que tiver razões para inferir que não vai ser esse o comportamento do outro condutor, caso em que deve de imediato adoptar as medidas adequadas para, se possível, imobilizar a sua viatura ou, não sendo aquela manobra viável, para desviar a direcção da sua marcha a fim de evitar o embate.
IX – Para a determinação da sanção, o tribunal apenas pode tomar em consideração as condenações em matéria criminal e contra-ordenacional que ainda não se encontrem canceladas.
X – Muito embora o arguido tenha praticado uma contra-ordenação muito grave (uma vez que conduzia com uma TAS superior a 0,8 g/l e que não atingia 1,2 g/l), o acidente e o resultado morte que dele decorreu não podem ser imputados a esse seu comportamento, desde logo porque ele não constituiu uma conditio sine qua non da sua produção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

1 – O Ministério Público acusou o arguido C… J… da prática de um crime de homicídio por negligência, conduta p. e p. pelo n.º 1 do artigo 137.º do Código Penal (fls. 234 a 236).
No termo da fase de instrução requerida pelo arguido (fls. 278 a 293) e pelos assistentes R… R… e R… M… (fls. 305 a 319), o Sr. juiz pronunciou o arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, conduta p. e p. pelo artigo 137.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal (fls. 435 a 457).
O assistente R… R… interpôs recurso dessa decisão (fls. 480 a 492).
O Sr. juiz de instrução, no cumprimento do acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Novembro de 2007, veio a pronunciar o mesmo arguido também pela prática de um crime de omissão de auxílio, conduta p. e p. pelo artigo 200.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal (fls. 814).
Distribuídos os autos ao 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Alenquer, foi realizada a audiência de julgamento no termo da qual o tribunal, por acórdão proferido em 5 de Maio de 2010, decidiu absolver o arguido dos crimes por que tinha sido pronunciado e a “Companhia de Seguros T…, S.A.” dos pedidos de indemnização civil que contra ela tinham sido deduzidos pelo “Instituto de Segurança Social, I.P. – Centro Nacional de Pensões” e pelos demandantes e também assistentes R… R… e R… M… (fls. 1100 a 1145).
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:
1.1. No dia 20 de Agosto de 2005, cerca das 00.00 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula 00-AF-00, pelo IC2, no sentido Alenquer/Abrigada, pelo lado direito da faixa de rodagem atento o seu sentido marcha;
1.2. Sensivelmente ao km 42,6 dessa via, existe um cruzamento com uma via que provém do interior da localidade de Ota, sita do lado esquerdo do IC2, atento o sentido de marcha do arguido;
1.3. Por essa via circulava o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula 00-00-EG, conduzido por T… A…, no sentido Ota/IC2;
1.4. Ao chegar ao referido cruzamento, o condutor do veículo EG não o imobilizou em obediência ao sinal STOP que se lhe apresentava e seguiu em frente, à velocidade de cerca de 40 km/hora, procedendo à travessia do IC2 da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do arguido, quando este se encontrava a menos de 60 metros de distância;
1.5. Nessas circunstâncias, o veículo AF embateu com a frente na parte da frente da lateral direita do veículo EG (entre a roda da frente e o pilar central), sensivelmente a meio do lado da faixa de rodagem pela qual circulava o arguido (a cerca de 1,5 metros da linha marcada no pavimento, que delimita esse lado da faixa de rodagem) quando o veículo EG atingiu esse local com a parte da frente;
1.6. As condições climatéricas eram boas, não chovia nem havia nevoeiro;
1.7. No local do acidente existe iluminação pública que estava acesa, e a faixa de rodagem, dotada de piso betuminoso, desenha uma recta com cerca de 600 metros de extensão, tendo cerca de 7,40 metros de largura dividida em duas vias destinadas a sentidos de trânsito opostos, e tendo 9 metros de largura na zona do cruzamento em causa, onde, além dessas duas vias, tem uma terceira, a meio delas, destinada à execução da manobra de mudança de direcção;
1.8. A velocidade máxima permitida no IC2 no local do acidente é de 90 km/hora;
1.9. Aquando do acidente, ambos os veículos intervenientes tinham os faróis acesos e nenhum efectuou travagem;
1.10. O arguido era portador de uma taxa de álcool no sangue de cerca de 1.05 g/l e o condutor do veículo EG de cerca de 0,48 g/l;
1.11. Na sequência do embate o veículo AF despistou-se para o lado direito atento o seu sentido de marcha, embateu nos rails que ladeiam a via desse lado e caiu no fundo de uma ribanceira aí existente, com cerca de 4/5 metros de altura em declive, imobilizando-se num terreno agrícola a cerca de 10 metros de distância do IC2, enquanto o veículo EG se imobilizou sobre o lado da faixa de rodagem em que se deu o embate, em posição oblíqua, com a traseira junto da berma e a frente voltada para o sentido de Alenquer, a cerca de 56 metros do local do embate;
1.12. Em consequência do acidente, o condutor do veículo EG sofreu lesões traumáticas cranianas e toraco-abdominais – designadamente, feridas contusas nas regiões zigomática direita, frontal direita, occipital esquerda e maleolar interna esquerda; infiltração hemorrágica do couro cabeludo e aponevrose epicraniana das regiões frontal e temporal direita; fractura da calote craniana fronto-temporal direita com afundamento na região temporal; fractura cominutiva dos andares anterior e médio da base do crânio; fractura de costelas, 1.º ao 5.º arcos direitos a mais do que um nível e do 1.º ao 6.º anteriores esquerdos, com infiltração hemorrágica perifocal e laceração da pleura perietal; infiltração hemorrágica do mediastino posterior; áreas de contusão pulmonar sub pleurais; hemorragias subendocárdicas; laceração do ventrículo direito na face anterior; hemotórax bilateral de 1000 cc; fractura do baço e do fígado; rins de shock – que foram causa directa e necessária da sua morte;
1.13. A morte do condutor do veículo EG ocorreu escassos segundos após o embate;
1.14. Na sequência do acidente, em consequência do qual o arguido sofreu ferimentos ligeiros, o arguido desmaiou e, quando recuperou a consciência, saiu do veículo AF e caminhou até junto de uma ponte sita a cerca de 200 metros do local do acidente, onde ficou até ser encontrado ali por militares da GNR cerca de uma hora depois, encostado a um muro na beira da estrada e desorientado;
1.15. No veículo conduzido pelo arguido seguia sentado no banco da frente M… P… que na sequência do acidente subiu para o IC2 onde já se encontravam pessoas que ligaram para o 112;
1.16. O arguido é considerado pelos seus amigos e conhecidos como pessoa trabalhadora, bom marido e pai, e condutor responsável;
1.17. O arguido trabalha como servente em empresa de refractários auferindo o salário mensal de cerca de 1.000,00 €, e reside com a mulher, auxiliar de educação, que aufere o salário mínimo nacional, e com uma filha menor, estudante, em casa própria, adquirida com empréstimo bancário, para cuja amortização paga uma prestação mensal de cerca de 600,00 €;
1.18. Em 13/04/2007, a seguradora do veículo EG, I… B…, SA., pagou ao arguido, a título de indemnização pelos danos sofridos em consequência do acidente, designadamente no veículo AF, de sua propriedade, a quantia de 18.500,00 €;
1.19. O arguido não tem antecedentes criminais;
1.20. O condutor do veículo EG dispensava simpatia e afabilidade com quem privava e era estimado pelos seus familiares e amigos, mantendo uma relação de afectividade e cumplicidade com os demandantes, que dele sentiam orgulho e que sofreram um choque e ainda sofrem com a sua morte;
1.21. A demandante R…M… recebeu da Segurança Social subsídio por doença de 25/08/2005 a 03/01/2006;
1.22. O demandante R… R… pagou duas viagens de avião, de Luanda/Lisboa/Luanda, uma em 2007 e outra em 2010, no valor de 1.253,00 USD cada uma;
1.23. O Instituto da Segurança Social, IP pagou ao demandante R… R…, por despesas com o funeral de T… A…, a quantia de 1.356,40 €;
1.24. À data do acidente, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros, emergentes da circulação do veículo AF, encontrava-se transferida para a “Companhia de Seguros T…e, S.A.”, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ....
O tribunal considerou não provado que:
2.1. O arguido conduzia o veículo AF a cerca de 120 km/hora;
2.2. T…A…  tinha 24 anos de idade, era solteiro, não tinha descendentes, era saudável e era empregado de balcão;
2.3. T… A… sentiu desespero e agonia perante a iminência do embate e da morte e sentiu impotência para pedir ajuda pelos ferimentos sofridos ou por se encontrar inconsciente e encarcerado, tendo sido desencarcerado do veículo EG;
2.4. A demandante R… M… a esteve de baixa médica, em consequência da morte de T… A…s, desde a data do acidente até Janeiro de 2008;
2.5. Em consequência da morte de T… A…, os demandantes sofreram depressão, que exigiu consultas de psiquiatria e toma de medicação;
2.6. O demandante R… R…  teve necessidade de se deslocar por duas vezes de Angola onde reside a Portugal, a fim de acompanhar este processo e julgamento.
O tribunal fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos:
A matéria de facto descrita resultou provada por virtude da análise conjugada, à luz dos princípios da lógica e das pertinentes regras da experiência comum:
- do teor dos documentos juntos aos autos:
- a fls. 3-6 e 35, 188, 199-201 – documentos de admissão pelas 01.22 horas do cadáver de T… A…, no serviço de urgência do Hospital de Reynaldo dos Santos entregue pelo INEM, auto de exame de cadáver e autópsia e relatório de autópsia médico-legal;
- a fls. 28-34 – auto de notícia e participação de acidente elaborados pelo militar da GNR Manuel E… a, que em sede de audiência de julgamento esclareceu que a hora – 01.50 – que indicou no primeiro como sendo aquela em que o arguido foi encontrado, afinal foi a hora em que os militares que o encontraram, Rui M…o e José P…, bastante tempo antes, conforme esclarecido em depoimentos a seguir referidos, lhe fizeram entrega do mesmo para ser conduzido ao posto a fim de ser submetido ao teste de álcool, sendo o “croquis” e respectiva legenda esclarecedores das características da via no local do acidente, do local provável do embate (onde havia vestígios como vidros partidos e marcas de raspagem no pavimento) e do local onde os veículos intervenientes se imobilizaram, de forma consentânea com o teor das declarações prestadas pelo arguido e dos depoimentos prestados pelas testemunhas a seguir referidas;
- a fls. 36, 215 e 220 – talão de exame de pesquisa de álcool no sangue, efectuado ao arguido, às 02.12 horas, que permite concluir no sentido de que aquando do acidente seria portador de uma taxa de álcool no sangue próxima dessa, podendo ser superior ou inferior, conforme a influência de diversos factores, como sejam, entre outros, o grau de alcoólico das bebidas ingeridas, a hora de ingestão de bebidas alcoólicas, o eventual acompanhamento da ingestão de alimentos, as particulares características do metabolismo do arguido, factores esses que não se apuraram de forma que permitisse concluir se a taxa de álcool no sangue aumentou ou diminuiu entre a hora do acidente e a do exame, o mesmo sucedendo relativamente à taxa de álcool no sangue detectada no cadáver de T… A… e objecto de exame toxicológico;
- a fls. 42-53,  89-103, 228 e 231 e 294-297 – reportagem fotográfica do local do acidente e dos veículos intervenientes, efectuada na sequência do mesmo por militares da GNR, em que, além do mais, é visível a iluminação existente no cruzamento (fls. 45), a posição e danos do veículo EG (fls. 46-50), e o veículo AF (52-53), auto de exame directo ao local do acidente, planta topográfica e fotografia aérea do local do acidente, e mais fotografias do local do acidente;
- a fls. 67-77 e 79-87 e 148-166 – autos de avaliação dos danos nos veículos intervenientes, com reportagem fotográfica dos mesmos, efectuados pelos militares da GNR Luís R… e Rui M…, onde se vê, além do mais, que a zona de embate foi a parte da frente (entre a roda da frente e o pilar central) da lateral direito do veículo EG (cf. fls. 70-71), bem como a velocidade (cerca de 40 km/hora) e rotações (cerca de 16) a que circulava o veículo EG aquando do embate (cf. fls. 75), o que confirma as declarações prestadas pelo arguido e os depoimentos prestados pelas testemunhas a seguir referidas no sentido de que o veículo EG manteve a sua marcha e não parou em obediência ao sinal STOP à entrada no IC2 antes de iniciar a sua travessia, bem como de que surgiu a cortar a mão de trânsito do arguido quando este já se encontrava muito próximo, a menos de 60 metros de distância (distância esta na qual apenas será normalmente possível parar um veículo que circule a uma velocidade situada entre os 30 e os 40 km/hora), impossibilitando qualquer reacção adequada a evitar o embate.
Com efeito, é fisicamente impossível um veículo dotado de motor de explosão (não de motor de reacção ou a jacto), a partir da posição de parado à entrada do IC2, iniciar a marcha e atingir os 40 km/hora nos cerca de 7,5 metros que distam da entrada no IC2 ao local do embate (a cerca de 1,5 metros do limite do lado da faixa de rodagem pelo qual seguia o arguido), ou seja, na distância que o veículo EG percorreu na travessia do IC2 até ao local do embate (ver croquis de fls. 33).
Além disso, à velocidade de 40 km/hora, o veículo EG levou apenas seis décimos de segundo (mais precisamente 0,675 segundos) a efectuar a travessia do IC2 desde a entrada nessa via até ao local do embate – fazendo o cálculo com recurso a uma regra de três simples, considerando que, se à velocidade de 40 Km/hora o veículo percorre 40.000 metros em 60 minutos, ou seja, 40.000 metros em 3.600 segundos, a essa velocidade percorre 7,5 metros em 0,675 segundos.[1]
A circunstância de o veículo EG ter levado pouco mais de meio segundo a atravessar o IC2 até ao local do embate explica com clarividência porque razão nenhum dos veículos intervenientes no acidente efectuou travagem – é que nenhum dos condutores teve tempo de reacção para o fazer (o tempo médio de reacção do homem é de ¾ de segundo, sendo, pois, superior ao tempo que o condutor do veículo EG levou entre surgir à entrada do IC2 no cruzamento e chegar ao ponto do embate) o que evidencia a inevitabilidade do embate exclusivamente por virtude desta circunstância, independentemente de quaisquer outros factores, como a velocidade a que circulava o veículo AF ou o grau de alcoolemia e capacidade ou rapidez de reacção do seu condutor (que sendo humano também não reage no tempo de reacção de um motor a jacto), factores estes que nenhuma influência tiveram na dinâmica do acidente e na sua eclosão, que nas circunstâncias em que se deu não podia, em absoluto, ser evitada pelo arguido, o qual, como o seu passageiro, afortunadamente (quiçá graças ao funcionamento dos dois “air bags” frontais e do lateral do lado do condutor – cf. fls. 80 86-87 – equipamento de que o veículo EG não dispunha – cf. fls. 68), sobreviveram ao embate e subsequente despiste e queda do veículo numa ribanceira com 4/5 metros de altura, com ferimentos leves.
O relatório junto a fls. 148-166, elaborado pelos referidos militares da GNR, contém um conjunto de conclusões baseadas em suposições não estribadas nos factos concretos nele vertidos, revelando-se completamente ficcionado e desfasado da realidade. P. ex., depois de, no seu ponto 7.8. constatar a inexistência de marcas de travagem dos veículos intervenientes no acidente, no seu ponto 8.1. formula como possível a hipótese de o condutor do veículo EG ter parado ao chegar ao cruzamento com o IC2, que é, como acabamos de ver, liminarmente afastada por fisicamente impossível em face dos dados constantes do conta km e rotações do veículo EG, que nunca podia, a partir da posição de parado à entrada no IC2, atingir os 40 km/hora nos 7,5 metros percorridos até ao local do embate. E, depois, é com base nessa hipótese impossível, que o relatório avança em direcção à conclusão de que o condutor do veículo AF (arguido) teria avistado as luzes do veículo EG a uma distância que lhe permitia diminuir a velocidade ou efectuar manobra evasiva para evitar o embate.
Sendo certo que, como aí se diz, o cruzamento tinha boa visibilidade para qualquer dos veículos (100 metros para visualizar as luzes dos faróis), na situação em apreço essa visibilidade de nada serviu a qualquer dos condutores, nem ao condutor do veículo EG porque não parou à entrada do IC2 para ver se nessa via circulavam veículos antes de iniciar a sua travessia, o que lhe teria permitido avistar o veículo do arguido e ceder-lhe a passagem, nem tampouco ao arguido, que não pode ter avistado o veículo EG a uma distância que lhe permitisse evitar o embate porque este não parou à entrada no IC2 e aí chegado e tornado visível para o arguido, levou pouco mais de meio segundo a atravessar o IC2 até chegar ao ponto de embate.
Nesse relatório (em 8.3.2.1.) depois de se dizer que “Não foi verificada”, acrescenta-se, sem se dar a saber porquê, “supõe-se que foram excedidos os limites impostos pelos princípios gerais da velocidade (…) por parte dos condutores” (alínea a)), ou seja, conclui-se, sem quaisquer dados objectivos que o permitam e até com dados objectivos que o infirmam (como o registo do conta km do veículo EG e a inexistência de rastos de travagem), que “ambos os condutores não respeitaram a regra que está estabelecida no n.º 1 do artigo 24.º do Código da Estrada” (alínea b)), ou seja, que nenhum deles adequou a velocidade a que seguia às condições de trânsito que se lhe apresentavam, sendo esta, nas conclusões do relatório (8.3.3.) “a causa principal ou eficiente, sem a qual não se teria produzido o acidente”!
Acresce que ainda nele se afirma (em 8.1., fls. 162) mais uma conclusão, igualmente não estribada em qualquer facto objectivo que o permita e até contra os acontecimentos reais consistentes no desmaio e ferimentos sofridos pelo arguido na sequência do embate e subsequente queda do veículo que conduzia numa ribanceira com pelo menos 4 metros de altura, que “O condutor e passageiro do veículo AF  deveriam ter prestado o auxílio necessário ao afastamento do perigo, promovendo o socorro ao condutor do veículo EG, o que não veio a acontecer, tendo ambos se ausentado do local do acidente, o passageiro deslocou-se para o Hospital de Vila Franca de Xira no veículo de um primo e o condutor foi encontrado junto de uma ponte a cerca de 200 metros do local”, ou seja, o passageiro do veículo AF não devia ter ido para o Hospital e o arguido não deveria ter ido para outro local próximo do local do acidente quando recuperou os sentidos e deveriam antes ter ali ficado a prestar o auxílio que nessa altura em que se ausentaram já estava a ser prestado ao sinistrado e apesar de também eles estarem carecidos de assistência.
- a fls. 128 e 131-132 – fichas clínicas de atendimento do arguido e de Miguel P…  no serviço de urgência do Hospital de Reynaldo dos Santos;
- a fls. 118-119, 712-713 e 540-542 – livrete do veículo AF e documentos relativos à venda do mesmo e ao pagamento ao arguido pela seguradora do veículo EG, I… B…, de indemnização pelos danos sofridos em consequência do acidente, designadamente no veículo AF;
- a fls. 878 – apólice de seguro do veículo AF;
- a fls. 793-795 – documento relativo à ocupação profissional do arguido;
- e a fls. 887 – certificado de registo criminal do arguido;
- a fls. 919 – declaração emitida pela Segurança Social relativa ao pagamento de subsídio por doença à demandante R… M…;
- e a fls. 777 e 1070 – recibos de viagens de avião do demandante R… R… Luanda/Lisboa/Luanda datados de 2007 e de 2010;
- com o teor das declarações prestadas pelo arguido, o qual esclareceu, de forma pormenorizada, o que fez antes do acidente, juntamente com a testemunha Miguel P…, que o acompanhou durante cerca de duas horas que antecederam o acidente e que seguia com ele aquando do acidente, bem como a percepção que teve da dinâmica do acidente (lembra-se de ter visto, “mesmo em cima do cruzamento” o veículo EG a efectuar a travessia do IC2 sem ter parado à entrada dessa via) e o que se passou consigo depois do acidente até ser encontrado (ter perdido os sentidos e depois quando veio a sair e se viu sozinho no carro saiu e caminhou no escuro, desorientado, até encontrar um local onde conseguiu subir para a estrada junto de uma ponte, a cerca de 200 metros do local do acidente, onde se quedou na beira da estrada até ser encontrado), sempre num discurso coerente e consistente, de forma verosímil e consentânea, quer com o teor do depoimento prestado por essa e por outras testemunhas a seguir referidas (em especial C… e N…  que foram os primeiros a chegar ao local), quer com o que resulta dos referidos documentos e fotografias, no que respeita às circunstâncias objectivas em que se deu o acidente e às consequências do mesmo; foram ainda valoradas e mereceram credibilidade as declarações prestadas pelo arguido acerca das suas condições pessoais, corroboradas pelos depoimentos produzidos nessa matéria.
- Com o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas:
- Miguel P… – que seguia no veículo do arguido, e que igualmente esclareceu, de forma pormenorizada, coerente, consistente, consentânea com as declarações prestadas pelo arguido e com os depoimentos prestados pelas testemunhas a seguir referidas, bem como com os referidos elementos probatórios objectivos colhidos nos autos, quer acerca do que se passou nas cerca de duas horas que antecederam acidente e em que acompanhou o arguido, quer no que respeita às circunstâncias em que se deu o acidente de que também foi vítima, e ainda quanto aos acontecimentos que se passaram depois (confirmando que viu o veículo EG aparecer do lado esquerdo e atravessar a via sem parar, o arguido desacordado após o embate e sem reacção quando chamou por ele, o que o levou a pensar que estava morto, e as testemunhas C… e N…  que foram as primeiras pessoas a chegarem ao local do acidente, que encontrou quando subiu para o IC2 e a quem pediu para chamarem o 112);
- António F… – que se encontrava num posto de vigia de fogos florestais sito num ponto elevado a cerca de 600 metros de distância do local do acidente, que aquando do acidente estava a observar com os binóculos de visão nocturna a movimentação de umas pessoas que seguiam a pé pela via e no sentido em que viu depois aparecer a circular o veículo EG provindo de Ota, que viu, sempre em movimento, sem efectuar travagem nem parar, a “fazer pisca” com os faróis dianteiros e entrar no IC2, ao mesmo tempo que viu o veículo do arguido a aproximar-se a cerca de 60 metros de distância, ouvindo o estrondo do embate “numa fracção de segundo” depois de ver o veículo EG entrar no IC2 (altura em que o veículo AF estaria a sensivelmente menos de 60 metros de distância do veículo EG, uma vez que alguns metros terá necessariamente percorrido nessa “fracção de segundo”);
- C… e N… – casal que ao aproximar-se do local do acidente, de carro, viram um veículo a dar a volta e afastar-se e o veículo EG acidentado com o seu condutor dentro, parecendo sem vida, bem como a testemunha Miguel P…, com ferimentos na cara, a subir a ribanceira onde caiu o veículo do arguido e a pedir socorro dizendo que este estava lá em baixo morto, o qual porque o veículo tinha a luz interior acesa devido a ter as duas portas dianteiras abertas, a testemunha C… viu sentado no bando do condutor “com a cabeça de lado”, como se estivesse desmaiado ou morto, tendo sido estas as primeiras pessoas a chegar ao local do acidente e que logo ligaram para o 112, aguardando ali pelos bombeiros que chegaram em poucos minutos;
- Nuno N… – que mora em edifício próximo do local e se encontrava na varanda do seu apartamento quando ouviu o estrondo do embate e olhou para o IC2 vendo um veículo a deslizar na estrada, tendo-se deslocado então ao local do acidente onde já estavam algumas pessoas e viu que estava uma pessoa dentro de um veículo batido;
- António R… – comandante dos bombeiros voluntários de Alenquer, que coordenou as operações no local do acidente, e que se lembrava de que quando lá chegaram já o condutor do veículo EG estava fora do veículo e prostrado no solo, não tendo sido os bombeiros a tirá-lo do veículo – os quais levaram o carro de desencarceramento que, por isso, não chegou a ser usado –, bem como de que um dos feridos leves que tinha subido para a estrada ao pé de uma ponte foi assistido na ambulância, enquanto o outro já tinha sido levado por um familiar para o Hospital;
- Rui M…, José P…, António M…a, Manuel P… e Luís R… – todos militares da GNR que estiveram no local do acidente (onde, tendo sido chamados pelas 00.30 horas, chegaram cerca das 00.45 horas, e permaneceram até cerca das 01.50 horas) e elaboraram a participação de acidente, relatório fotográfico, exames aos veículos e ao local do acidente e relatório “técnico” supra referidos, tendo o primeiro, depois de observar os veículos e tirar várias fotografias no local do acidente, ido com um colega procurar o arguido, que encontrou encostado a um muro à beira da estrada, junto de uma ponte, parecendo desorientado, o qual “não dizia coisa com coisa”, mas confirmou que tinha tido um acidente e era o condutor de um dos veículos intervenientes, e que depois de com ele falarem levaram para o local do acidente onde o entregaram aos outros colegas que depois o levaram ao posto para ser identificado e submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue (a testemunha Manuel P… esclareceu que a hora – 01.50 – constante do auto de notícia que elaborou – fls. 29 – como sendo aquela em que o arguido foi encontrado, terá sido a hora em que lho entregaram e levou para o posto quando deixaram o local; mais esclareceu que ali escreveu que o arguido “abandonou o local sem prestar o auxílio necessário” não por entender que o arguido tinha condições de prestar auxílio e que este era necessário mas apenas e só porque não se encontrava no local do acidente).
Testemunhas estas que demonstraram conhecimento directo dos factos sobre que depuseram, de forma pormenorizada, coerente, consistente, verosímil e consentânea entre si e com o teor das declarações prestadas pelo arguido e do depoimento prestado pela testemunha Miguel P…, bem como com o que resulta dos supra referidos elementos probatórios objectivos, tendo por isso merecido credibilidade no sentido apurado.
- Foram ainda apreciados e valorados os depoimentos prestados pelas testemunhas:
- Rute M… (a quem os bombeiros ligaram do telemóvel do condutor do veículo EG e pediram para chamar um familiar que fosse ao Hospital reconhecer o corpo), José O… (inspector da Policia Judiciária aposentado, que mora próximo e conhece o local do acidente), Paulo G… (filho dos demandantes R… R… e R… M…, que depôs acerca da personalidade e relacionamento do irmão com familiares e amigos, bem como do sofrimento que a sua morte causou, a si próprio, como ao pai, que desde 2004 vive em Angola e não vem a Portugal sequer uma vez por ano, e à mãe que “não voltou a ser a mesma”), João M… (cunhado e irmão dos demandantes R…R… e R…M…, respectivamente, que depôs acerca do sofrimento dos demandantes pela morte do filho) e Maria C…  (fisioterapeuta irmã e cunhada dos demandantes R… R… e R… M…, respectivamente, que no relatório de autópsia detectou a descrição de lesão que só ocorre em vida e com base nela concluiu que o condutor do veículo EG teve escassos segundos de vida após o acidente, tendo ainda relatado o que conhecia da personalidade do sobrinho e o que presenciou do sofrimento dos demandantes pela morte do filho), que igualmente demonstraram conhecimento directo dos factos sobre que depuseram de forma consentânea entre si e que mereceu credibilidade no sentido que resultou apurado.
- E finalmente, foram apreciados e valorados os depoimentos prestados pelas testemunhas António B… (vizinho do arguido que o conhece há mais de 10 anos), Bruno F…, Nuno B… e Fernando A… (amigos de infância do arguido), que depuseram acerca da personalidade, condições de vida, inserção familiar, profissional e social do arguido, demonstrando conhecimento directo dos factos sobre que depuseram, de forma que mereceu credibilidade no sentido que resultou apurado.
Conforme resulta do exposto, a não prova da factualidade supra referida em 2., ficou a dever-se à ausência de prova objectiva ou subjectiva no sentido da sua realidade como à prova de factos de sentido contrário, designadamente porque:
- quanto ao referido em 2.1. não havia rasto de travagem nem se apurou outro elemento objectivo que permita concluir no sentido de que o arguido circulava a 120 km/hora, o que este negou e nenhuma testemunha confirmou, não sendo possível concluir nesse sentido apenas com base nos danos sofridos pelos veículos, desde logo porque um veículo como o do arguido (VW Passat) a menos de 90 km/hora é capaz de causar num veículo como o EG (VW Golf) os estragos que se verificaram, e ainda porque o veículo do arguido sofreu depois do embate do veículo EG os danos resultantes do embate nos rails laterais e da queda de uma altura superior a 4 metros;
- não foi junta certidão do assento de nascimento do condutor do veículo EG nem documento comprovativo da depressão e medicação dos demandantes, e nenhuma testemunha depôs no sentido da demais factualidade vertida em 2.2. e em 2.5.;
- quanto ao referido em 2.6., não se descortina nexo de causalidade entre o acidente e os recibos de viagens de Luanda apresentados, nem se vislumbra razão para a invocada necessidade de o demandante R… R… vir a Portugal para acompanhar o processo em 2007 e em 2010 para acompanhar o julgamento;
- relativamente ao referido em 2.4., foi junto pelos demandantes documento comprovativo de que a demandante R… M… recebeu subsídio por doença de 25/08/2005 a 03/01/2006, que só por si e desacompanhado de documento comprovativo da doença em causa, não comprova, apesar da proximidade da data, de forma necessária, relação com a morte do filho;
- o referido em 2.3. apenas seria possível se o condutor do veículo EG se tivesse apercebido da iminência do embate, o que, nas circunstâncias em que este ocorreu e  não tendo sido frontal, não é possível concluir que ocorreu, além do que nenhuma testemunha depôs no sentido de que tenha sido necessário desencarcerar o mesmo (o comandante dos bombeiros esclareceu que o veículo de desencarceramento que levaram não foi usado, pois quando lá chegaram já a vítima se encontrava fora do veículo no solo), sendo plausível a desnecessidade desse desencarceramento atenta a circunstância de o embate se ter dado do lado oposto ao do condutor, e finalmente nenhuma prova se produziu nesse sentido nem é crível que nos escassos segundos de vida após o embate até ao seu decesso praticamente imediato o mesmo se tenha mantido consciente e sentido alguma coisa.

2 – Os assistentes R… R… e R… M… interpuseram recurso deste acórdão.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
A. Em requerimento probatório apresentado atempadamente, os Recorrentes solicitaram o Exame ao Local.
B. Por despacho de fls. 620, a Mma. Juíza-Presidente do Tribunal “a quo” admitiu e ordenou que a realização do exame ao local fosse feita no início do julgamento.
C. Nem no início, nem durante, nem no final do julgamento se realizou a diligência probatória.
D. Ora, nos termos da al. d) do n.º 2 do art. 120.º do CPP, constitui nulidade a omissão de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. “No cumprimento do dever de descoberta da verdade material, podendo o tribunal investigar factos essenciais à boa decisão da causa e, omitindo esse dever, configura-se nulidade do julgamento” (Ac. TRL, de 06/02/2001, proc. n.º 93535, in www.dgsi.pt).
E. In casu, o exame ao local afigura-se indispensável à boa decisão da causa, porquanto permitiria aos Mmos. Juízes “a quo” o contacto directo com o local onde o acidente ocorreu. A admissibilidade de tal meio probatório e a devida aferição dos contornos exactos do que aconteceu pelo colectivo de juízes indicia que o reputaram como essencial à descoberta da verdade material. Todavia, relegando para o início da audiência de julgamento, e não tendo determinado hora ou dia para a sua realização aquando da abertura da sessão, os Mmos. Juízes “a quo” omitiram o dever essencial constante do art. 340.º do CPP, omissão esta que fere de nulidade todos os actos que lhe sejam subsequente e inquina, desde logo, a decisão jurídica do processo.
F. Nesta medida, o julgamento é nulo, devendo, por conseguinte, e, em conformidade, ser ordenada a sua repetição nos termos do disposto no n.º 3 do art. 410.º do CPP.
Sem prejuízo, e por mero dever de patrocínio, sempre se dirá igualmente
G. A matéria de facto assente baseia-se em erro notório de apreciação das provas, fundamentando por esta via o recurso da matéria de facto (artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP).
H. A Decisão Recorrida confunde subjectividade dos depoentes com impressividade dos depoimentos.
I. Valorizou depoimentos omissivos, contraditórios e ilógicos como foram os das testemunhas António F… e Miguel P… e as próprias declarações do arguido, desvalorizando a prova documental.
J. A prova deve ser renovada pela reinquirição de todos os depoentes acima referidos, nos termos do artigo 430.º do CPP com vista a apurar os seguintes factos erroneamente assentes:
J. - 1º - “Por essa via circulava o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula EG, conduzido por T… A…, no sentido OTA/IC2” (facto 1.3)
J. - 2º - “…embateu com a frente na parte da frente da lateral direita do veículo EG (entre a roda da frente e o pilar central)” (facto 1.5.)
J. - 3º - “Ao chegar ao referido cruzamento, o condutor do veículo EG não o imobilizou em obediência ao sinal STOP que se lhe apresentava e seguiu em frente, à velocidade de cerca de 40 km/hora, procedendo à travessia do IC2, da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do arguido, quando este se encontra a menos de 60 metros de distância” (facto 1.4.)
J. - 4º - “Aquando do acidente, ambos os veículos intervenientes tinham os faróis acesos e nenhum efectuou travagem” (facto 1.9.)
J. - 5º - “Na sequência do acidente, em consequência do qual o arguido sofreu ferimentos ligeiros, o arguido desmaiou e, quando recuperou a consciência, saiu do veículo AF e caminhou até junto de uma ponte sita a cerca de 200 metros do local do acidente, onde ficou até ser encontrado por militares da GNR, cerca de uma hora depois, encostado a um muro na beira da estrada, desorientado.” (facto 1.14)
J. - 6º - “O arguido não tem antecedentes criminais”. (facto 1.19).
K. A reapreciação dos factos é de capital importância para aquilatar, quer da forma como o acidente ocorreu, quer das condições em que o arguido conduzia, quer como reflexo directo da velocidade que imprimia, na altura, ao veículo, quer como reflexo directo do seu estado de embriaguez;
L. Os Recorrentes defendem a reapreciação dos factos por erro notório na sua apreciação porquanto, dos depoimentos prestados e da documentação constante dos autos, competiria ao Colectivo de Juízes “a quo” decisão diversa daquela que tomou, uma vez que relativamente:
i. Aos factos 1.3. e 1.5. da Matéria de Facto:
1. Decorre do croqui junto aos autos a fls. 33 que o veículo EG já praticamente tinha procedido à quase totalidade da travessia da faixa de rodagem do IC2, sendo sua intenção continuar em frente, e não seguir no sentido do IC2.
2. Das fotografias juntas aos autos a fls. 46, 47 e 48, é visível a extensão dos danos no veículo EG, ou seja, que este foi embatido em toda a extensão desde a parte da frente lateral direita até à parte de trás lateral direita, para lá do eixo central.
ii. Ao facto 1.4. da Matéria de Facto:
1. Nenhuma testemunha viu o acidente, nem nenhuma afirma peremptoriamente que o veículo EG não parou ao STOP.
2. A testemunha António F… prestou um depoimento cheio de contradições, incoerente, sem qualquer objectividade, inidóneo, pouco claro, não podendo ser considerado como adequado para o apuramento da verdade material.
3. Com efeito, esta testemunha diz “o que é que eu vi, como faço vigia naquele sítio já há muitos nãos, qualquer pessoa que passe ali ao pé ou que se desloque ali nós vemos, temos que ficar com atenção às pessoas que…e iam duas pessoas ali na estrada, como já era perto da meia-noite, eu fixei as pessoas para saber para onde é que elas iam…”; “eu não vi o embate, mas apercebo-me do embate, mas não vi, são dois carros escuros, não vi o embate, apercebi (…), houve acidente, mas não vi o embate”; “não, não vi o acidente, apercebi-me do acidente”.
4. Mais diz que o acidente ocorreu dez minutos antes da hora em que ocorreu e também diz que não viu ambulâncias, nem bombeiros, contrariando os relatórios junto aos autos e demais depoimentos: “deve ter sido dez para as vinte e quatro, mais ou menos”; “a ambulância tinha saído de lá, já tinha acontecido”; “já tinham ido todos para casa, porque os carros já tinham sido tirados”.
5. Ou seja, contrariamente ao fixado e ao relatado nos documentos juntos aos autos, esta testemunha deturpa o que aconteceu. Com que intuitos, desconhece-se…
6. Para além deste depoimento, também as considerações sobre a velocidade, distância e tempo de reacção do Colectivo de Juízes do Tribunal “a quo” merece reparo porquanto os cálculos apresentados são falíveis.
7. Dá-se por fixado que o carro EG seguia a 40 Km/hora e que, nessa medida, demorou cerca de 0,675 segundos a percorrer a distância de 7,5 metros, até ao ponto de embate. Dá-se também como assente que o carro AF não seguia a uma velocidade de 120 km/hora e que a velocidade máxima permitida no IC2 é de 90 km/hora, ou seja, pressupõe o Colectivo de Juízes que aquele veículo seguia dentro dos limites de velocidade. E, por fim, está assente que o carro do arguido, o AF, está a uma distância de menos 60 metros do ponto de embate.
8. Atenta a fórmula de cálculo empregue, se o arguido seguia a 90 Km/hora, encontrando-se a menos de 60 metros, tinha cerca de 2,4 segundos para reagir e parar a viatura, ou seja, tempo mais do que suficiente para evitar o embate, pois a viatura EG, da vítima, já teria atravessado na totalidade o IC2!
9. Mais, e para além destes cálculos matemáticos, os Recorrentes desconhecem em que estudos científicos se estriba a conclusão plasmada no acórdão de que um homem médio demora ¾ de segundos a reagir a um obstáculo.
10. Porém, convém referir que tal conclusão, a ser aceite, tem por fundamento o homem médio, normal, comum, que conduz em situação normal, usando dos cuidados necessários à condução na rodovia e que é diligente, antecipando o perigo à aproximação de um cruzamento!
11. Ou seja, quer os cálculos não demonstram a realidade dos factos quer o depoimento da testemunha António F…  não é idóneo, pelo que só se pode concluir que, a aceitar aqueles cálculos, o carro AF seguia a uma velocidade bem superior à permitida naquela via (pelos cálculos dos Recorrente, o carro seguia a uma velocidade de 200 ou mais quilómetros horas) e ao recusar-se a aceitar que o depoimento de António F… é credível, objectivo, verdadeiro, sabendo que não há testemunhas oculares do acidente, nem ninguém que possa afirmar com certeza se o veículo EG parou ou não ao STOP, não poderia o Colectivo de Juízes do Tribunal “a quo” fixar este facto como o fez, por erro notório da apreciação da situação em concreto.
iii. Facto 1.9. da Matéria de Facto:
1. Só a testemunha Miguel P…  afirma que os faróis da viatura AF estavam acesos, mas ia dentro do carro, a falar com o amigo, para além do que o seu depoimento levanta sérias reservas.
2. No entanto, é referido pela testemunha José P…, militar da GNR que quem chega ao cruzamento tem uma visibilidade para o lado direito (sentido Alenquer) para mais de 500 metros: “quem parar nesse sinal Stop tem visibilidade para o lado direito, ou seja, para o lado de Alenquer? Tem. Essa visibilidade…um condutor que pare no sinal Stop tem visibilidade para ver um veículo que aí circule a quantos metros? Não sei precisar, mas mais de 500 metros”. O que também é confirmado pelo militar da GNR Luís R…,
3. Sabe-se que os faróis médios ligados permitem iluminar para a frente a uma distância até 30 metros (cf. art. 60.º, n.º 1 al. b) do CE), logo, atenta a visibilidade que se teria do cruzamento para o lado de que vinha a viatura AF, se esta tivesse os faróis ligados, a vítima, T… A…, no seu veículo EG teria percepção de que a mesma circulava no IC2. Para além do que se tratava de uma noite de verão e a via naquela zona estava iluminada (factos 1.6 e 1.7).
4. Pelo que, das duas uma: i) o veículo AF não vinha com os faróis ligados; ii) o veículo AF não vinha a 90 km/hora.
5. Assim, deveria ter-se dado como assente que a viatura AF não tinha os faróis ligados.
6. Já em relação ao rasto de travagem, uma vez colocada em crise a tese plasmada no acórdão da velocidade do veículo EG e não sendo de aceitar o testemunho de António F..., a inexistência de rasto de travagem deste veículo só se explica porque parou, como mandam as regras, ao STOP sem necessidade de travagem brusca, avançou porque não viu nenhum carro. Já no que ao carro AF diz respeito, a confirmar-se a tese da velocidade, acrescida da constatação do álcool no sangue, houve nítida distracção e falta de controlo por parte do arguido o que não lhe permitiu ter reacção para esboçar qualquer tipo de travagem!
7. E, assim, também este facto revela o erro na apreciação crítica da prova produzida.
iv. Facto 1.14 da Matéria de Facto:
1. Não consta do relatório médico junto a fls. 131 que o arguido tenha sofrido traumatismo, contusão ou tenha feito qualquer hematoma na cabeça, o que indicia que não bateu com a cabeça, logo é inexplicável o seu desmaio, como ficou provado.
2. Aquele relatório médico só faz referência a golpes no braço e muito se estranha que, dada a situação de desmaio, não haja qualquer referência a nenhum exame complementar para desvio de um eventual traumatismo craniano, principalmente porque é a testemunha Miguel que diz ter até pensado que o amigo, aqui arguido, estivesse morto!
v. Facto 1.19 da Matéria de Facto:
1. A fls. 245 dos autos está junta informação sobre o registo criminal do arguido que, em 1999, foi condenado em multa e sancionado acessoriamente em 45 dias de inibição de conduzir por crime de condução sob o efeito do álcool.
2. No registo individual do arguido na ex-Direcção Geral de Viação (também a fls. 245), consta que o mesmo esteve inibido de conduzir por 120 dias por conduzir com uma taxa superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l.
3. Os Recorrentes questionam-se como pode considerar-se que o arguido não tem antecedentes criminais e como é que não se considerou este passado alcoólico do arguido para efeitos de apreciação da sua conduta neste processo onde lhe foi detectada uma taxa de alcoolemia de 1,05 g/l duas horas depois do acidente?!
M. Apesar de os Recorrentes entenderem que não se provou que o veículo EG não parou ao STOP, o Colectivo de Juízes do Tribunal “a quo” considerou tal facto para desculpabilizar o arguido na produção do acidente;
N. Mas, mesmo se, contra a evidência da prova a ser reapreciada, se devesse colocar a hipótese de a vítima não ter parado ao STOP, o que só se equaciona em tese, não é possível omitir que o arguido conduzia com uma taxa de alcoolemia de 1,05 g/l, que a velocidade que imprimia ao carro era excessiva, o que contribui exclusivamente para a produção do acidente.
O. A não paragem ao STOP não é um fenómeno ou facto imprevisível para qualquer condutor, tanto mais que o arguido afirma peremptoriamente conhecer muito bem aquele cruzamento, logo, seria expectável que antecipasse qualquer perigo que dele pudesse advir, nomeadamente que algum carro lhe surgisse a atravessar o caminho.
P. O álcool, a velocidade, a desatenção, a falta de cuidado e de adequação da condução às condições externas, não podiam induzir o Colectivo de Juízes a afastar a culpa do arguido na produção do acidente, mesmo com base na factualidade considerada provada pela decisão;
Q. Não podia o colectivo de juízes dar como não provado o excesso de velocidade, atento quer as marcas da violência do embate, quer a distância a que foi projectado o veículo EG;
R. Não podia o colectivo de juízes dar como não provada a relação entre o embate e a TAS, face ao circunstancialismo concreto do acidente;
S. Deveria, ainda, dar como assente que a TAS foi medida pelo menos duas horas depois do acidente;
T. Não podia dar como não provado que o arguido tivesse conhecimento de que não podia conduzir sob a influência do álcool, porque não só a ignorância da lei não releva, como é pressuposto da aptidão para conduzir, que o cidadão que o pretende fazer conheça as regras do Código da Estrada;
U. As provas produzidas, analisadas e apreciadas com objectividade, e à luz da experiência comum, permitem concluir que o acidente se deu por culpa exclusiva do veículo AF e incapacidade do seu condutor de agir de acordo com as regras mínimas de segurança rodoviária;
V. As provas constantes dos autos revelam à saciedade uma culpa grosseira, quer no embate, quer nos momentos posteriores para a imobilização do veículo, mesmo só à luz da factualidade provada;
W. Por tudo, entendem os Recorrentes que o acórdão ora recorrido enferma deste vício de erro notório na apreciação da prova e de ilogismo evidente face à experiência comum, aos factos apurados, à realidade das coisas, pelo que merece reparo.
X. E, se outra decisão deveria ter sido proferida em relação aos factos colocados em crise, não podia o Colectivo de Juízes deixar de ponderar com seriedade e com recurso às regras da experiência as questões pertinentes à análise cuidada do que realmente aconteceu, a saber: o álcool, a velocidade e a omissão de auxílio.
Y. “A prova nem sempre é directa, de percepção imediata, muitas vezes é baseada em indícios! Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas, a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra. A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material) os quais devem ser, inequivocamente, acusatórios, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar inter-relacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência. Os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP titulam a presença do ilógico numa peça processual onde deve predominar a harmonia e a coerência e põem a descoberto, relevando pela negativa, o absurdo que representaria esse ilogismo na sentença, que se há-de detectar, sem esforço de análise e, pelo texto da decisão recorrida, sem recurso a elementos estranhos a ela, sendo tais vícios de conhecimento e declaração oficiosos. O erro notório na apreciação da prova leva a uma conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum, desconhecedor dos meandros jurídicos, notado sem qualquer esforço” (Ac. STJ de 11/07/07, proc. n.º 07P1416, in www.dgsi.pt) (sublinhado, negrito e itálico nosso).
Z. É indubitável que o álcool detectado duas horas depois da ocorrência no acidente teve influência no acidente, pois sabe-se que a ingestão de álcool para além de certos limites desconcentra o condutor e potencia a verificação de acidentes automóveis por perturbar os reflexos e a coordenação psicomotora, criando lentidão no tempo de reacção e disso se tem debruçado a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores: veja-se, a título de exemplo Acs. do STJ de 08/10/2009, proc. n.º 525/04.9TBSTR.S1, de 23/04/2009, proc. n.º 09B0132, de 03/10/2006, proc. n.º 06A2334, de 11/01/2007, proc n.º 06P4101 e Ac. TRP de 07/05/2009, proc. n.º 1475/07.2TBOVR.P1, todos em www.dgsi.pt.
AA. A velocidade a que o arguido seguia é indiciariamente provada pelos cálculos apresentados pelo Colectivo de Juízes “a quo”, pela distância a que foi projectado o veículo da vítima, T… A… – 56 metros! – e pela violência dos danos físicos sofridos por este aquando do embate.
BB. Atentando-se nas palavras produzidas no acórdão ora recorrido – “… não era exigível ao arguido que adequasse a velocidade a que circulava a essa circunstância por forma a lograr imobilizar o veículo evitando embater nesse obstáculo, que surge de forma súbita e imprevisível no espaço livre e visível à sua frente” (p. 31), o Acórdão do STJ de 20 de Janeiro de 2010, proc. n.º 591/05.0TCG,R.S1 decidiu que “O advérbio ‘especialmente’, contido no art. 25.º do C. E. (…) tem o significado de ‘significativamente’, ‘de modo especial’, visando-se, com a significativa moderação ou redução da velocidade que, qualquer manobra a que o condutor tenha de proceder em determinados locais (mais propícios à ocorrência de acidentes) se possa levar a cabo em condições de segurança, evitando qualquer sinistro. O dever de moderação da velocidade respeita a todos os condutores de veículos, tenham ou não prioridade de passagem”.
CC. Portanto, competiria ao arguido adequar a sua velocidade, para além da sua conduta, à condução da sua viatura, de molde a não influir no tráfico rodoviário. Não o fazendo, circulando à velocidade que o fez, com a taxa de alcoolemia que tinha, não restam dúvidas sobre quem é o único responsável no acidente…
DD. Já quanto à omissão de auxílio também há prova directa e indirecta que demonstra que o arguido se furtou àquele dever legal porquanto pretendia escamotear a presença do teor alcoólico elevado que tinha no seu sangue para fugir às malhas da lei, só permitindo-se ser “apanhado” duas horas depois e inventando uma história de que estaria desnorteado e que havia desmaiado!
EE. Significa portanto que a convicção dos julgadores no presente processo não reflecte o que realmente se passou, não tendo estes apreciado a prova segundo critérios de valoração racional e lógica como seria exigível, nem tendo observado as regras da experiência.
FF. Deveriam os julgadores, concomitantemente com a prova testemunhal, documental e todos os indícios recolhidos, ter-se socorrido também de presunções naturais, que lhes permitiria, com certeza ter tido outra convicção e ter decidido doutra forma diferente.
GG. O “cocktail” álcool, velocidade, noite, desatenção, conversa com amigo, confiança no percurso, demonstrou ser explosivo e letal, tendo provocado a morte de um inocente que conduzia o seu veículo automóvel em cumprimento das regras estradais.
HH. Por isso, só se pode concluir que só há um único culpado neste processo, o arguido!
II. Punir uma pessoa com a morte pelo facto de se considerar que não parou ao STOP é violento, inaceitável e contra-natura!
JJ. Posto isto, e no âmbito do pedido de indemnização cível, a culpa para efeitos de responsabilidade civil extra-contratual mede-se pela diligência de um bom pai de família (art. 487.º, n.º 2 do Cód. Civ.), em face das situações concretas do caso. Ora, a diligência de um bom pai de família não é compatível com as circunstâncias do caso.
KK. A prova produzida nos autos indica que o Arguido violou com culpa grave o dever de cuidado na condução, as obrigações resultantes dos artigos 27.º e 81.º do Cód. da Estrada, e o dever geral de auxílio.
LL. A presunção natural decorrente da constatação de álcool no sangue do arguido e da velocidade, e a inexistência de outras causas externas à conduta do arguido que possam ter influenciado na dinâmica do acidente, permite estabelecer um nexo de causalidade entre o álcool, a velocidade, o acidente e a morte do T… A….
MM. Como também permite estabelecer como consequência directa da conduta ilícita e culposa do arguido a doença da mãe da vítima, aqui Recorrente, o documento junto aos autos demonstrativo da atribuição de subsídio de doença logo após o falecimento do T… A…, uma vez que, ao contrário do que o Colectivo de Juízes “a quo” entende, não é necessário juntar o comprovativo de doença, pois que este já tinha sido apresentado nos serviços da Segurança Social para atribuição daquele subsídio, pois decorre da lei que só com comprovativo de doença se pode atribuir o subsídio de doença.
NN. E ainda é possível estabelecer nexo de causalidade entre a morte do T… A…, decorrente daquela conduta culposa e ilícita e as viagens que o pai, aqui Recorrente, fez de Angola para Portugal, por mais que não seja porque se tratava do filho e daí a necessidade de um pai presente, preocupado, angustiado, que sofreu com a morte do filho, querer saber do desenrolar do processo!
OO. Por isso, mal estiveram os Mmos. Juízes “a quo” na apreciação crítica que fizeram aos factos relatados para efeitos de pedido de indemnização cível, devendo os ter considerado como provados e ter dado como assente aquele nexo de causalidade para efeitos de ressarcimento dos danos elencados.
PP. Tudo razões para se julgar procedente o recurso:
1. Declarando-se nulo o julgamento e ordenando-se a sua repetição.
Sem prejuízo,
2. Reapreciando-se a matéria de facto pela renovação da prova.
3. Revogando-se o acórdão recorrido e proferindo-se Acórdão que em consentaneidade quer com a prova já constante dos Autos quer com a renovação, julgue o Arguido culpado da produção do acidente e que quantifique a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais segundo juízos de equidade.

3 – O Ministério Público, o arguido e a “Companhia de Seguros T…, S.A.” responderam à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 1241 a 1253, fls. 1261 e fls. 1218 a 1222, respectivamente).

4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 1266.


II – FUNDAMENTAÇÃO
A questão da nulidade do julgamento
5 – Antes de nos debruçarmos sobre as questões de fundo suscitadas pelo presente recurso, importa apreciar a nulidade invocada, para o que se torna necessário clarificar a distinção que existe entre “error in iudicando” e “error in procedendo” e entre os vícios da decisão e do procedimento adoptado.
Citando Miguel Teixeira de Sousa[2], diremos que há que distinguir «o erro na apreciação da matéria de facto ou na aplicação do direito aos factos – o chamado “error in iudicando” – do erro proveniente da inobservância das regras de procedimento – o designado “error in procedendo”. O “error in iudicando” conduz ao proferimento de uma decisão injusta, sem que necessariamente ela esteja afectada por qualquer “error in procedendo”; este “error in procedendo” leva à prolação de uma decisão viciada, cujo valor é independente da eventual justiça da decisão. Por exemplo: uma decisão a que falta a fundamentação padece de um “error in procedendo” e é nula [artigo 668.º, n.º 1, alínea b)], mas isso não significa que essa decisão seja injusta, isto é, que ela também esteja afectada por um “error in iudicando”».
Acrescenta o mesmo autor, logo a seguir, que «nos vícios da decisão incluem-se apenas aqueles que a ela respeitam directamente. Quer isto dizer que não é considerado um vício da decisão a realização de um acto não permitido ou a omissão de um acto obrigatório antes do seu proferimento: tais situações são nulidades processuais, submetidas, na falta de qualquer regulamentação específica, ao respectivo regime geral …».
Vem isto a propósito do facto de os recorrentes invocarem na motivação um vício de procedimento que não respeita à decisão que constitui o objecto do presente recurso.
Se, como parece certo, o tribunal, no decurso da audiência, não se deslocou ao local para proceder ao respectivo exame, não dando execução ao despacho de fls. 619 e ss. que tinha deferido um requerimento nesse sentido formulado pelos assistentes (fls. 567 e ss.), não se pode deixar de dizer que tal omissão constitui uma irregularidade processual exterior e prévia ao acórdão recorrido. Não se trata de vício que directamente a ele respeite e que, portanto, possa ser corrigido através do recurso interposto.
Se o recorrente pretendia a correcção do procedimento adoptado, como era seu direito, deveria, de preferência no decurso da audiência, ter arguido essa irregularidade perante o tribunal de 1.ª instância, interpondo do despacho que viesse a ser proferido, caso o mesmo não lhe fosse favorável, o competente recurso.
O reconhecimento da irregularidade pelo tribunal de 1.ª instância ou pelo Tribunal da Relação determinaria a invalidade dos actos que o seu cometimento tinha eventualmente afectado, entre os quais se poderia contar o acórdão recorrido.
O recorrente não pode, porém, através da impugnação do acórdão proferido, invocando o disposto no artigo 410.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que tem por exclusivo objecto as nulidades da sentença, obter a declaração de uma irregularidade processual prévia à decisão impugnada, a qual não foi oportunamente arguida e apreciada pela 1.ª instância.
Improcede, por isso, nessa parte, o recurso interposto pelos assistentes.

A questão da absolvição do arguido da prática do crime de omissão de auxílio
6 – O arguido, como se disse, foi absolvido da prática de um crime de omissão de auxílio, conduta p. e p. pelo artigo 200.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, pelo qual tinha sido pronunciado.
Para impugnarem essa decisão os recorrentes pretendem que este tribunal altere a matéria de facto narrada no ponto 1.14, segundo a qual:
1.14. Na sequência do acidente, em consequência do qual o arguido sofreu ferimentos ligeiros, o arguido desmaiou e, quando recuperou a consciência, saiu do veículo AF e caminhou até junto de uma ponte sita a cerca de 200 metros do local do acidente, onde ficou até ser encontrado ali por militares da GNR cerca de uma hora depois, encostado a um muro na beira da estrada e desorientado;
Independentemente do juízo que este tribunal pudesse vir a fazer sobre a impugnação da decisão tomada quanto a tal facto, importa dizer que o tipo incriminador contido no aludido preceito, ao descrever a situação que impõe a acção do agente, exige que ele se encontre perante um «caso de grave necessidade» «que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa».
Ora, esse caso de grave necessidade não se verificava na altura em que, após o acidente, o arguido abandonou a sua viatura uma vez que a vítima, como resulta do ponto 1.13, morreu escassos segundos após o embate, facto que não é posto em causa pelos recorrentes[3].
Não existia, portanto, qualquer dever de «prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo» uma vez que o dano já se tinha materializado de uma forma irreversível.
Por isso, qualquer alteração do conteúdo desse ponto da matéria de facto seria completamente irrelevante para a decisão a proferir quanto à responsabilidade do arguido pela prática deste crime.
Improcede, portanto, o recurso interposto pelos assistentes quanto à decisão do tribunal de absolver o arguido da prática de um crime de omissão de auxílio.

A questão da taxa de álcool no sangue no momento do acidente
7 – O arguido foi também absolvido da prática do crime de homicídio por negligência grosseira, conduta p. e p. pelo artigo 137.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, pelo qual tinha sido pronunciado.
Antes de apreciarmos as questões mais concretas suscitadas pelos recorrentes, importa tecer algumas considerações sobre algumas afirmações gerais por eles feitas na motivação do recurso que contendem com a decisão a proferir sobre essas mesmas questões.
No ponto 1.10 da matéria de facto, o tribunal considerou provado que «[o] arguido era portador de uma taxa de álcool no sangue de cerca de 1.05 g/l», decisão que, embora não tenha sido impugnada pelos recorrentes, deu azo a que eles se tenham espraiado em considerações e insinuações sobre a real taxa de álcool no sangue que o alcoolímetro teria revelado se o exame tivesse sido realizado no preciso momento em que ocorreu o acidente e não às 2H12, ou seja, cerca de duas horas depois dele (fls. 36).
A curva de alcoolemia[4] comporta, desde o momento em que terminou a ingestão do etanol, três fases: a da absorção[5], a do equilíbrio cinético e a da eliminação.
A eliminação do álcool do sangue resulta da combinação dos processos de metabolismo desta substância e da sua excreção.
Quando estamos perante valores médios ou moderados de alcoolemia, ou seja, entre taxas de alcoolemia que vão de 0,5 g/l a 3 g/l, podemos, para determinar uma taxa pretérita de álcool no sangue de uma pessoa partindo de um valor verificado posteriormente, aplicar a fórmula de Dubowski, que é a seguinte:
Ca (mg/l) = Cb (mg/l) + ß (mg/l/h) × T (h)[6].
Aplicando esta fórmula, tendo em conta um coeficiente médio de eliminação do etanol (185/mg/l/h) e partindo do princípio que aquelas duas horas decorreram integralmente na fase de eliminação (facto que, embora provável, é desconhecido), poderíamos chegar à conclusão que o valor de álcool no sangue que o arguido poderia ter apresentado se o exame tivesse decorrido no preciso momento do acidente seria de 1,42 g/l[7] (1,05 + 0,37) e não, como afirmam os recorrentes, de 3,55 g/l.
Seja como for, o certo é que os recorrentes não impugnaram o ponto 1.10 da matéria de facto provada, razão pela qual o único valor a que este tribunal pode atender é o de 1,05 g/l[8].

A questão do tempo de reacção
8 – Os recorrentes manifestaram discordar do facto de o tribunal ter afirmado que o tempo médio de reacção de um condutor é de ¾ de segundo e de, a partir desse elemento, ter considerado que o arguido não tinha tido tempo para efectuar qualquer manobra de recurso que pudesse ter evitado o acidente a partir do momento em que a viatura da vítima entrou no IC2, que o tribunal calculou como tendo ocorrido 0,675 segundos antes da colisão.
Sobre essa matéria não poderemos deixar de tecer também algumas considerações gerais[9].
O designado “tempo de reacção” de um condutor abarca a percepção, que é o processo através do qual a pessoa detecta qualquer objecto ou situação perigosa que surge no decurso da condução e compreende o seu significado, e a reacção propriamente dita, que abrange a reacção mental e a reacção muscular.
O tempo de reacção, para além de variáveis individuais, depende de numerosos factores que vão desde a complexidade da situação[10], a idade do condutor, a presença ou ausência de substâncias psicoactivas, a natureza do estímulo sensorial[11], a complexidade da reacção muscular exigida[12] e o estado de fadiga do condutor.
Por isso, não se pode dizer, com um carácter geral, absoluto e preciso, que a reacção de um condutor tem uma determinada duração.
Isto não quer dizer que, em face de uma percepção visual inesperada, durante a noite, de uma situação de perigo, que exige a opção entre a travagem e a alteração do percurso do veículo (para a esquerda ou para a direita), ¾ de segundo não seja um valor adequado como tempo médio da reacção de um condutor experiente com a idade do arguido que, naquela mesma situação, não se encontrasse influenciado pelo álcool.

A questão da velocidade do veículo conduzido pela vítima e a questão de não ter parado no sinal de STOP
9 – O tribunal, no ponto 1.4, considerou provado que o veículo conduzido pela vítima não parou no sinal de STOP e atravessou o IC2 «à velocidade de cerca de 40 km/h», o que parece ter causado, pelo menos, alguma estranheza aos recorrentes.
O tribunal, ao fundamentar essa decisão, afirmou, nomeadamente, o seguinte:
«- a fls. 67-77 e 79-87 e 148-166 – autos de avaliação dos danos nos veículos intervenientes, com reportagem fotográfica dos mesmos, efectuados pelos militares da GNR Luís R… e Rui M…, onde se vê, além do mais, que a zona de embate foi a parte da frente (entre a roda da frente e o pilar central) da lateral direito do veículo EG (cf. fls. 70-71), bem como a velocidade (cerca de 40 km/hora) e rotações (cerca de 16) a que circulava o veículo EG aquando do embate (cf. fls. 75), o que confirma as declarações prestadas pelo arguido e os depoimentos prestados pelas testemunhas a seguir referidas no sentido de que o veículo EG manteve a sua marcha e não parou em obediência ao sinal STOP à entrada no IC2 antes de iniciar a sua travessia, bem como de que surgiu a cortar a mão de trânsito do arguido quando este já se encontrava muito próximo, a menos de 60 metros de distância (distância esta na qual apenas será normalmente possível parar um veículo que circule a uma velocidade situada entre os 30 e os 40 km/hora), impossibilitando qualquer reacção adequada a evitar o embate.
Com efeito, é fisicamente impossível um veículo dotado de motor de explosão (não de motor de reacção ou a jacto), a partir da posição de parado à entrada do IC2, iniciar a marcha e atingir os 40 km/hora nos cerca de 7,5 metros que distam da entrada no IC2 ao local do embate (a cerca de 1,5 metros do limite do lado da faixa de rodagem pelo qual seguia o arguido), ou seja, na distância que o veículo EG percorreu na travessia do IC2 até ao local do embate (ver croquis de fls. 33).
Além disso, à velocidade de 40 km/hora, o veículo EG levou apenas seis décimos de segundo (mais precisamente 0,675 segundos) a efectuar a travessia do IC2 desde a entrada nessa via até ao local do embate – fazendo o cálculo com recurso a uma regra de três simples, considerando que, se à velocidade de 40 Km/hora o veículo percorre 40.000 metros em 60 minutos, ou seja, 40.000 metros em 3.600 segundos, a essa velocidade percorre 7,5 metros em 0,675 segundos.»
Deve a este propósito, em primeiro lugar, dizer-se que, tal como aconselham os manuais[13], os investigadores destes autos tiveram o cuidado de fotografar o velocímetro do automóvel uma vez que, em determinados casos, é, através dele, possível conhecer a velocidade do veículo no momento do embate.
Foi o que aconteceu neste caso.
Como se vê da fotografia de fls. 75, o velocímetro marcava, quando o carro deixou de trabalhar, pouco menos de 40 km/h, mais exactamente, cerca de 37,5 km/h, e o motor estava a trabalhar, como se vê do respectivo contador, a cerca de 1600 rotações, o que significa que era, pelo menos, esta a velocidade do veículo e eram, pelo menos, estas as rotações do motor.
Nenhum argumento foi aduzido pelos recorrentes que contrarie tais conclusões.
Sendo esta a velocidade a que seguia o automóvel, o percurso compreendido entre o limite da faixa de rodagem do IC2 e o ponto de embate, numa extensão de 7,5 metros, foi feito em cerca de 0,7 segundos, o que, como se disse, é inferior ao tempo médio necessário para um condutor iniciar uma travagem.
Por outro lado, como se demonstra na fundamentação do acórdão da 1.ª instância, uma tal velocidade não podia ter sido alcançada naquele momento e naquele local por um Volkswagen Golf com um motor de 1400 cc, construído no ano de 1994, se o veículo tivesse parado no sinal de STOP.

A questão da impugnação da decisão de facto na parte respeitante à determinação da responsabilidade pela morte da vítima
10 – Os assistentes impugnaram a decisão tomada quanto a parte dos factos narrados sob os n.ºs 1.3, 1.4. 1.5 e 1.9[14].
No que respeita aos pontos 1.3 e 1.5 os assistentes começaram por afirmar que discordavam do facto de o tribunal ter considerado que a vítima pretendia passar a circular pelo IC2, quando é certo que ela apenas tinha intenção de atravessar aquela via.
Ora, foi nesse preciso sentido a decisão do tribunal uma vez que, como flui do ponto 1.4, o tribunal afirmou que o veículo conduzido pela vítima procedia «à travessia do IC2 da esquerda para a direita». Tal afirmação não se encontra em contradição com o facto, narrado no ponto 1.3, de que a viatura, antes de atingir o IC2, seguia no sentido Ota/IC2. Daí que não se compreenda a pretensão de alteração manifestada pelos recorrentes.
Disseram os recorrentes discordar também da decisão do tribunal quanto à parte do veículo da vítima onde se deu o embate. Apontam como prova que justificaria a sua pretensão as fotografias juntas a fls. 46 a 48 e 70 a 72.
Embora não se alcancem as consequências jurídicas que os recorrentes pretendem extrair dessa alteração da matéria de facto, sempre se dirá que o facto de os danos se terem verificado, como se constata das fotografias referidas, em cerca de ¾ da parte lateral direita do Golf não implica que o embate se tenha dado em toda a zona que acabou por ser afectada. É preciso não esquecer que os dois veículos se encontravam em movimento e que a deslocação do veículo conduzido pela vítima para o lado direito da viatura tripulada pelo arguido não cessou instantaneamente. Daí que os danos também se tenham estendido à porta traseira desse mesmo lado direito.
Isso não obsta a que o embate se tenha dado «na parte da frente da lateral direita do veículo EG (entre a roda da frente e o pilar central)».
No que respeita à impugnação do ponto 1.4, para além de se remeter para o que já se disse anteriormente, importa sublinhar que aquilo que se declara a fls. 67 é que o «conta-quilómetros não marcava os quilómetros pois é digital, mas após o acidente marca a que velocidade e rotações circulava o veículo no momento da colisão».
Ora, ao contrário do que num primeiro momento se poderia crer, estamos a falar de 3 distintos aparelhos de medida cujo funcionamento é autónomo. No indicado relatório apenas se afirma que o conta-quilómetros (que é diferente do velocímetro e do conta-rotações[15]) não indicava qualquer valor, ao contrário do que acontecia com os dois outros aparelhos que, como se vê de fls. 75, indicavam a velocidade e as rotações.
Há ainda que acrescentar que o tribunal deu como provado que o veículo conduzido pelo arguido se encontrava a menos de 60 metros do ponto de embate e não a essa distância, o que inviabiliza a realização de qualquer cálculo do tempo necessário para percorrer o trajecto até ao local da colisão, ainda por cima quando não ficou provada a velocidade a que o veículo circulava.
Note-se ainda que a percepção da aproximação de um veículo (que não beneficia de prioridade) de uma via que pretende vir a atravessar não impõe que o condutor do veículo com prioridade tome, desde logo, medidas para parar a sua viatura uma vez que, pelo menos até um certo momento, pode esperar que o outro condutor se comporte de forma adequada às regras de circulação automóvel, respeitando a sua prioridade. Só assim não será a partir do momento em que tiver razões para inferir que não vai ser esse o comportamento do outro condutor, caso em que deve de imediato adoptar as medidas adequadas para, se possível, imobilizar a sua viatura ou, não sendo aquela manobra viável, para desviar a direcção da sua marcha a fim de evitar o embate. O facto de o veículo conduzido pela vítima não ter parado no sinal de STOP não implicava só por si e necessariamente que o condutor, depois de atravessar a via destinada ao trânsito que seguia em direcção de Alenquer e a via destinada aos veículos que, vindos de Alenquer, se pretendiam dirigir à Ota, não viesse a parar para deixar passar o automóvel conduzido pelo arguido.
Quer isto significar que a reacção do arguido apenas se justificava a partir do momento em que se pudesse aperceber que o automóvel que estava a cruzar ao IC2 não iria parar onde devia.
No que respeita ao ponto 1.9, que também é impugnado pelos recorrentes, há que dizer que não foi por eles apontada qualquer prova que imponha decisão contrária, nem foi esgrimido qualquer argumento que apresente uma mínima consistência e ponha em causa o decidido pela 1.ª instância. Nada nos leva, portanto, a duvidar que ambos os veículos circulavam com as luzes acesas[16].
Improcede, portanto, pelo exposto, a impugnação da decisão quanto aos indicados pontos da matéria de facto.

11 – No que respeita ao facto narrado sob o n.º 1.19, que apenas releva para a determinação da sanção, importa dizer que para esse efeito o tribunal apenas pode tomar em consideração as condenações em matéria criminal e contra-ordenacional que ainda não se encontrem canceladas[17].
É precisamente isso que acontecia com a condenação constante do certificado de registo criminal e a contra-ordenação averbada no «Registo Individual do Condutor».
Os respectivos registos deviam ter sido cancelados decorridos 5 anos sobre a data da extinção das sanções (artigo 15.º da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, e artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 317/94, de 24 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 105/2006, de 7 de Junho), razão pela qual nem sequer deveriam ter constado dos certificados emitidos e não foram, e bem, tomadas em conta pelo tribunal.

A determinação da responsabilidade pela produção do acidente
12 – Tendo em conta a matéria de facto assente relativa à questão da culpabilidade quanto ao crime de homicídio por negligência, resta apreciar se a decisão proferida pela 1.ª instância quanto à inexistência de responsabilidade do arguido pela produção do acidente deve ser mantida e, consequentemente, se se deve confirmar a absolvição decretada ou se, pelo contrário, ele deve ser condenado pelo crime de homicídio por negligência grosseira por que foi pronunciado e se a demandada deve ser condenada nos pedidos de indemnização civil contra ela deduzidos.
A solução jurídica deste problema é, a nosso ver, perfeitamente clara.
Muito embora o arguido tenha praticado uma contra-ordenação muito grave (uma vez que conduzia com uma TAS superior a 0,8 g/l e que não atingia 1,2 g/l), o acidente e o resultado morte que dele decorreu não pode ser imputado a esse seu comportamento, desde logo porque ele não constitui uma conditio sine qua non da sua produção.
De facto, não se encontra provado qualquer facto que indique que a embriaguez do arguido contribuiu, de alguma forma, para a ocorrência do evento danoso.
O acidente e a morte da vítima ficaram a dever-se exclusivamente ao não respeito por parte desta do sinal de STOP que se encontrava colocado na parte terminal da via por onde circulava.
Foi esse não acatamento que originou a colisão.
Nada há, pois, a alterar no que respeita à decisão de absolvição do arguido da prática do crime de homicídio por negligência por que foi pronunciado e de absolvição da Companhia de Seguros dos pedidos de indemnização civil contra ela deduzidos.

A responsabilidade pelas custas
13 – Uma vez que os assistentes decaíram no recurso que interpuseram são responsáveis pelo pagamento de taxa de justiça (artigos 515.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 3 do artigo 87.º do Código das Custas Judiciais a taxa de justiça varia entre 1 e 15 UC.
Tendo em conta a complexidade do processo e do recurso interposto, que envolveu a reapreciação da decisão de facto, julga-se adequado fixar essa taxa, quanto a cada um dos recorrentes, em 4 UC.


III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em:
a) Julgar improcedente o recurso interposto pelos assistentes R… R… e R… M….
b) Condenar cada um dos recorrentes no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa, para cada um deles, em 4 (quatro) UC.

Lisboa, 3 de Novembro de 2010

Carlos Rodrigues de Almeida
Horácio Telo Lucas
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[1] 40.000 metros – 3.600 segundos    
   7,5 metros      - X
    X = (3.600 x 7,5) : 40.000
    X = 27.000 : 40.000
    X = 0,675 segundos
[2] In «Estudos sobre o Novo Processo Civil», Lex, Lisboa, 1997, p. 216.
[3] Para além disso, na altura já outros tinham promovido a intervenção dos serviços de socorro, tendo ligado para o 112.
[4] Sobre a cinética do etanol pode ver-se, entre outras, a obra de ALHAMBRA PÉREZ, Maria Pilar, e SEGURA ABAD, Luís J., «El alcohol: questiones jurídico-médicas – Aspectos civiles, penales, administrativos y laborales. Jurisdicción de menores. Valoración de la prática médico forense», Editorial Comares, Granada, 2001, p. 551 e ss., que acompanharemos de perto.
[5] «Pode estabelecer-se que a absorção de uma moderada quantidade de etanol (0,6 – 0,8 g/kg) em jejum atinge uma concentração sanguínea (CES) máxima entre 30 e 60 minutos. Na presença de alimentos a máxima concentração de etanol no sangue verifica-se bastante mais tarde, entre 1 e 2 horas após a ingestão» (ob. cit. p. 553).
[6] Em que Ca é a taxa que se quer determinar, necessariamente anterior à taxa conhecida (Cb), em que ß é o coeficiente de eliminação do etanol, que para os homens pode variar entre 150 e 220 mg/l/h, e em que T é o tempo expresso em horas.
[7] Embora não exista uma correlação absoluta entre a taxa de alcoolemia e o grau de intoxicação alcoólica (que varia devido à tolerância provocada pelo consumo habitual de etanol, a factores metabólico-genéticos, estados fisiológicos e patologias associadas, e ainda com o tempo de duração da própria intoxicação), podemos com segurança considerar que, com uma taxa de álcool no sangue de 1,42 g/l, o arguido se encontrava no princípio do estado de excitação.
O estado de excitação caracteriza-se pela intensificação das perturbações neurológicas do primeiro estado da intoxicação, o da euforia, e pelo surgimento de uma grande instabilidade emocional, um incremento da desinibição dos impulsos, uma profunda alteração da capacidade de julgamento e de valoração crítica das circunstâncias exteriores, com o desaparecimento progressivo da capacidade de compreensão da linguagem, dos símbolos visuais e das situações vivenciais que se presenciam. Nesta fase, as funções mnésicas são muito dificultadas ou desaparecem mesmo totalmente, havendo um acentuado retardamento das respostas motoras aos estímulos visuais e acústicos (sobre tudo isto veja-se ob. cit, p. 649 a 659, que se acompanhou de perto).
[8] Com uma taxa de álcool no sangue de 1,05 g/l, o arguido encontrava-se provavelmente no estado de euforia.
No estado de euforia «a pessoa mostra-se loquaz e com bom humor, perde algumas inibições, razão pela qual se facilitam as relações sociais, sente-se segura de si mesma e capaz de empreender complexas e arriscadas tarefas. Neste primeiro período pode detectar-se, por meio de provas adequadas, uma diminuição da atenção para algumas tarefas (especialmente as que requerem a atenção dividida), a capacidade de valoração dos factos e circunstâncias envolventes encontra-se diminuída e o controlo de alguns impulsos relaxa-se (há autores que falam de um “disparo dos impulsos”). Algumas funções senso-perceptivas começam a ressentir-se ainda que isso não seja evidente num exame superficial ou realizado por pessoas não treinadas nestas explorações. Podem destacar-se alterações no controlo da visão binocular e defeituosa reacção pupilar – acomodação à luz e à distância» (ob. cit. p. 650).
[9] V. FRICKE, Linn B. in «Traffic Accident Reconstruction» (volume 2 of the «Traffic Accident Investigation Manual», Northwestern University), Evanston, Illinois, USA, 1.ª edição, 1990, p. 64-3 e ss., que se seguirá de perto. Existe uma 2.ª edição de 2010.
[10] Existem reacções simples – em que a pessoa está já de sobreaviso, o estímulo é nítido e está pré-determinada a conduta a adoptar – e reacções mais ou menos complexas – em que o estímulo surge de uma forma inesperada, existem factores que dificultam a sua percepção e compreensão e a pessoa tem de optar por uma entre várias reacções possíveis.
[11] Os estímulos visuais desencadeiam uma reacção mais lenta do que os estímulos auditivos e tácteis.
[12] O simples carregar num botão não demora o mesmo tempo que retirar o pé do acelerador e colocá-lo no travão. O desviar a direcção do veículo é um movimento muito mais rápido mesmo que se desconsidere a distância de travagem implicada por esta manobra. Se se observarem com atenção as fotografias do veículo conduzido pelo arguido, nomeadamente as de fls. 92 a 94, nota-se que ele se encontra mais danificado na parte frontal esquerda do que na frontal direita, o que indicia que o condutor ainda desviou o veículo para a direita, sendo o ângulo formado pelas linhas que indicam as direcções dos dois veículos no momento da colisão ligeiramente inferior a 90º.
[13] V., nomeadamente, «Traffic Collision Investigation», Northwestern University Center for Public Safety, Evanston, Illinois, 10.ª edição, 2002, p. 104.
[14] Os recorrentes impugnaram ainda o ponto 1.14, que se refere à culpabilidade pelo imputado crime de omissão de auxílio, cuja desnecessidade de apreciação já foi fundamentada, e o ponto 1.19, que se refere a um facto respeitante à eventual determinação da sanção, cuja apreciação só se justificaria, em rigor, se viesse a ser revogada a decisão de absolvição do arguido. Note-se que os recorrentes não impugnaram a decisão quanto a qualquer dos factos não provados, nomeadamente o relativo à velocidade do veículo (facto 2.1).
[15] O conta-quilómetros mede a distância percorrida pelo veículo desde a sua construção ou, nalguns modelos, também desde um dado momento, o velocímetro mede a velocidade instantânea do veículo e o conta-rotações, como o próprio nome indica, as rotações a que o motor do veículo se encontra a funcionar.
[16] Independentemente de não se ter determinado ser as luzes eram os médios ou os máximos.
[17] COSTA, António Manuel de Almeida, in «O Registo Criminal», Separata do Boletim da FDUC, Coimbra, 1985, p. 377 e ss. No mesmo sentido, em face do direito alemão, ROXIN, Claus, «Derecho Procesal Penal», Editores del Puerto, Buenos Aires, 2000, p. 192.