Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5534/05.8TCLRS.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: DIREITO DE VIZINHANÇA
RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
DIREITO DE PERSONALIDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL
NEXO DE CAUSALIDADE
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: 1. O designado “direito de vizinhança” reconduz-se a um conjunto de normas com vista a assegurar a coexistência pacífica entre os vários proprietários, restringindo as suas prerrogativas individuais, regulando, ao mesmo tempo, a convivência entre eles.
2. Do âmbito das relações de vizinhança não há razões para excluir os conflitos entre os titulares de quaisquer direitos que atribuam o gozo de uma coisa, ainda que de natureza pessoal ou creditícia.
3. No domínio das relações de personalidade, a ilicitude enquanto pressuposto da responsabilidade civil por facto ilícito, advém do dever jurídico que emerge, quer da necessidade de respeitar o direito de personalidade alheio, quer da obrigatoriedade do cumprimento de lei que proteja interesses alheios de personalidade.
4. Na vertente mais ampla da teoria da causalidade – a negativa - com consagração no artigo 563º do Código Civil, o facto que foi condição de um certo dano, deixará de ser a sua causa adequada se, atenta a sua natureza geral, se revelar indiferente para a verificação do dano, tendo este ocorrido apenas porque, para a sua produção, concorreu uma outra circunstância excepcional, sem a qual não haveria risco, maior do que o comum, de o prejuízo se verificar.
5. Ainda que em termos naturalísticos esteja demonstrado que a actuação do agente foi condicionante do resultado danoso, a doutrina da causalidade adequada que a nossa lei civil perfilha impõe, num segundo momento, a verificação de um nexo de adequação desse resultado danoso à conduta praticada pelo agente, aferindo se, de acordo com as regras da experiência comum, o mesmo se impõe como um previsível efeito normal ou comum da actuação do agente.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DA 2ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
           
I.    RELATÓRIO

                       
“A” e “B”, residentes na Rua ..., n.° ..., 1.° andar esquerdo, Bairro ..., ..., L..., intentaram contra “C”  e “D”, residentes na Rua ...


, n.° ..., rés-do-chão esquerdo, Bairro ..., ..., L..., acção declarativa sob a forma de processo comum ordinário, através da qual pedem a condenação dos réus a:
a) Demolirem o telheiro construído e a retirarem o portão que instalaram no logradouro;
b) Deixarem o logradouro do prédio em que autores e réus habitam na forma em que o mesmo se encontrava antes de os réus aí terem passado a residir;
c) Pagarem-lhes uma indemnização pelos danos materiais já sofridos, que computam em € 409,34, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação;
d) Pagarem-lhes uma indemnização pelos danos materiais futuros, a liquidar a final;
e) Pagarem-lhes uma indemnização por danos morais sofridos e futuros, em quantia não inferior a € 15.000,00.

                        Fundamentaram os autores, no essencial, estas pretensões na circunstância de serem, há 47 anos, arrendatários da casa n.° ..., correspondente ao 1.° andar esquerdo do prédio sito na Rua ..., Bairro ..., ..., e serem os réus, por seu turno, arrendatários, desde 1995, da casa com o n.° ..., correspondente ao rés-do-chão esquerdo do mesmo prédio, que tem à volta um logradouro de utilização comum, pelos autores e pelos réus, pertencendo a propriedade do prédio que integra essas duas casas à Comissão de Assistência e Habitação Social (CAHS) do Governo Civil de Lisboa.

                        Entre Outubro de 2004 e fins de Janeiro de 2005, período em que os autores estiveram ausentes de casa, os réus procederam à colocação de um telheiro com cobertura de acrílico, assente em tubos de ferro e cravado na parede do prédio, ocupando toda a extensão da sua fachada. E colocaram também, os réus, um portão de ferro, com fechadura, na parte lateral do logradouro e junto à traseira do prédio, o que fizeram sem autorização ou consentimento da CAHS.

                        Invocaram também os autores que o telheiro foi colocado por baixo das janelas e varandas do 1.° andar do prédio e afecta a segurança da casa dos autores, pois facilita o acesso de estranhos às janelas e à varanda, e o portão de ferro impede o acesso dos autores ao logradouro, pois tapou uma passagem. Sabiam os réus que os autores se opunham à colocação do telheiro e do portão e por isso aproveitaram a ausência destes.

                        Devido à colocação do telheiro, os autores estão impedidos de estender a roupa no estendal da forma mais adequada para secar, tendo que o fazer dobrando-a, estando igualmente impedidos de efectuar obras ao nível do 1.° andar e na parte exterior do prédio, uma vez que não podem colocar andaimes ou escadas junto à parede do prédio.

                        Mais alegaram os autores que solicitaram aos réus que retirassem o telheiro, ou que o mudassem para outro espaço do logradouro, bem como o portão, mas estes recusam-se a fazê-lo.

                        Invocaram também que a autora vive em permanente receio pela segurança dos seus bens, da sua família e da sua vida, pois a construção do telheiro, encostado ao prédio, potencia o risco de assalto e dificulta a actuação dos bombeiros, em caso de incêndio, sendo a chapa acrílica que constitui a cobertura do telheiro material altamente inflamável.

                        A autora sofre de depressão nervosa, que estava controlada, mas a actuação dos réus fez com que a sua doença se agravasse e tivesse necessidade de retomar as consultas médicas de psiquiatria e a tomada de medicamentos, no que já despendeu as quantias de € 480,00 e de €194,33.

                        Ainda em consequência da actuação dos réus, a autora viu aumentada a sua tensão arterial, estando agora obrigada a uma vigilância constante e eficaz, sob pena de daí vir a sofrer forte e irreversível dano, de que poderá, mesmo, resultar a sua morte. A autora deixou de se alimentar convenientemente porque, acometida de profunda tristeza, não tem apetite, e deixou de conviver com os amigos e vizinhos e deixou de ter gosto pela vida. Vive em permanente receio de vir a ser assaltada, reagindo a qualquer barulho estranho na casa, recusa-se a sair de casa e tem, por vezes, apetências suicidárias.

                        Citados, os réus contestaram. Defenderam-se por excepção, invocando a "ilegitimidade parcial dos autores", e por impugnação, admitindo embora que construíram o telheiro e colocaram o portão, invocaram que o fizeram por motivos atendíveis.

                        Invocaram ainda os réus que só a CAHS (administradora do bairro) pode pedir a demolição de obras feitas pelos moradores e, por isso, os autores carecem de legitimidade em relação a tal pedido.
 
                        E, alegaram, por outro lado, os réus, que os autores sacodem os seus tapetes para o logradouro, enchendo-o de lixo, sem se preocuparem se as janelas da casa dos réus estão abertas e, quando isso acontece, uma boa parte desse lixo entra em sua casa. Os autores têm dois cães em casa e ao deitarem o lixo pela janela e ao sacudirem os tapetes entram em casa dos réus, sobretudo na cozinha, grandes quantidades de pêlo de cão. Os autores conspurcam, assim, bancadas, loiças e mesmo alimentos que estejam expostos, e que interpelados, os autores reagiram com indiferença, o que levou os réus a construir o telheiro.

                        Invocaram também os réus que na varanda da sua casa, os autores construíram uma "marquise" e aí existe uma plataforma em alvenaria que permite o fácil acesso de intrusos à casa daqueles, razão pela qual rejeitam que o telheiro constitua motivo de insegurança para a casa dos autores, e ainda que tiveram o cuidado de instalar o telheiro apenas na sua fachada e obtiveram dos restantes moradores autorização para o efeito. O portão colocado não impede o acesso, quer dos autores, quer dos demais moradores, ao logradouro e às suas casas e a sua finalidade é impedir o acesso de estranhos e animais.
                        Concluíram os réus que deve ser julgada procedente a excepção invocada e improcedente a acção.

                        Foi elaborado despacho saneador, aí se tendo julgado improcedente a deduzida excepção de ilegitimidade.

                         Proferida que foi a condensação com a fixação dos Factos Assentes e a organização da Base Instrutória, foi levado a efeito o julgamento, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, nos seguintes termos:

Julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, condeno os réus “D” e “C”:
§ a demolirem e removerem o telheiro que construíram e cravaram na parede do prédio (mais exactamente, na parede correspondente ao rés-do-chão que habitam), ocupando toda a extensão da sua fachada, sito na Rua ..., Bairro ..., ....
§ a pagarem aos autores a quantia de € 674,33 (seiscentos e setenta e quatro euros e trinta e três cêntimos) a título de indemnização pelos danos materiais por estes sofridos, a que acrescem juros de mora à taxa legal a contar da citação.
§ a pagarem à autora “B”a quantia de € 2 000,00 (dois mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais.

                        Inconformados com o assim decidido, quer os autores, quer os réus interpuseram recursos de apelação, relativamente à sentença prolatada.

                        São as seguintes as CONCLUSÕES dos autores/ recorrentes:

i) Na sua petição inicial e na réplica, em ampliação de pedido, os recorrentes peticionaram que os réus fossem condenados a pagar-lhes uma indemnização pelos danos materiais futuros a liquidar a final:

ii) Do mesmo modo, peticionaram que os réus fossem condenados a pagar-lhes uma indemnização por danos morais sofridos e futuros, em quantia não inferior a € 15.000,00;

iii) A douta sentença em crise não conheceu do pedido dos autores, quanto à condenação dos réus no pagamento de indemnização por danos materiais futuros, a liquidar em execução de sentença, tal como não conheceu do pedido dos autores quanto à indemnização por danos morais futuros;

iv) Por esse facto, o Meritíssimo juiz "a quo" deixou de se pronunciar sobre questões em relação às quais deveria ter-se pronunciado, incorrendo, assim, na violação da norma prevista na alínea d) do n.° 1 do artigo 668° do CPC;

v) A douta sentença recorrida é, pois, nula na parte em que deixou de se pronunciar em relação ao pedido de condenação dos réus no pagamento de uma indemnização por danos materiais ocorridos e que viessem a ocorrer, a liquidar em execução de sentença, e em danos morais já verificados e futuros;

vi) Deve a douta sentença ser corrigida nessa parte, condenando-se os réus no pagamento de uma indemnização por danos materiais já documentados nos autos e os que se venham a liquidar em execução de sentença, acrescidos de juros de mora à taxa legal, tudo como melhor consta do pedido dos recorrentes;

vii) Do mesmo modo, devem os réus ser condenados a pagar à recorrente mulher uma indemnização a título de danos morais futuros em montante idêntico ao dos danos morais já quantificados.

                        Os réus/apelados não apresentaram contra-alegações.

                        São, por seu turno, as seguintes as CONCLUSÕES da apelação dos réus:

i) A matéria dada como provada no ponto 22 da sentença (n° 13 da resposta a B. 1.), está em manifesta contradição com os factos considerados como não provados nos pontos G) e I).

ii) A resposta ao ponto 13 deve assim ser anulada, como dispõe o art . 712° n° 4 CPC.

iii) O Tribunal não deu como provado que existisse a violação de qualquer direito ou interesse legalmente protegido do autor “A”.

iv) O Tribunal não deu como provado que o autor “A” tivesse sofrido prejuízos patrimoniais.

v) A sentença recorrida é nula na parte em que condena os recorrentes a pagarem aos autores € 674.33,00, a título de prejuízos patrimoniais, pois os fundamentos estão em contradição com a decisão, como determina o art. 668° n° 1 al. c) CPC.

vi) Está provado que a colocação do telheiro foi feita sem qualquer incómodo ou ruído para os autores, pois estes não estavam em casa aquando da sua colocação.

vii) Não houve qualquer violação do seu direito ao sossego, ao sono ou ao bem-estar.

viii) O Tribunal "a quo deu como provado que a casa dos autores tem uma "plataforma de alvenaria... que facilita o acesso de intrusos a casa daqueles”,  e que os autores vivem na casa há mais de 47 anos.

ix) A casa dos autores sempre esteve em situação de insegurança, pelo que não foi a colocação do telheiro que criou essa situação.

x) A colocação do telheiro não constituiu qualquer ofensa ou ameaça de ofensa à personalidade física ou moral dos autores.

xi) O Tribunal “a quo" fez errada interpretação e aplicação do art. 70 n° 1 CC. aos factos.

xii) A alegada notificação feita pela CAHS aos recorrentes para retirar o telheiro não constitui um acto administrativo.

xiii) Mas ainda que tal se entendesse, esse acto é nulo, pois não foi comunicado aos recorrentes o início do procedimento administrativo: não foi feita audiência prévia de interessados; não foi identificado o autor do acto nem as suas competências, nem existe fundamentação de facto e de direito.

xiv) O acto administrativo nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos e pode a sua nulidade ser declarada por qualquer tribunal, a todo o tempo, nos termos do art . 134° do CPA.

xv) O comportamento dos recorrentes ao manter o telheiro não é ilícito.

xvi) Só existe obrigação de indemnizar quando o comportamento do agente é adequado à produção de um prejuízo, não devendo responder pelos prejuízos que só se produziram em virtude de circunstâncias extraordinárias; nisto consiste o nexo de causalidade.

xvii) A construção de um telheiro, face à experiência comum, não é um facto adequado a provocar danos do foro psiquiátrico.

xviii)  O autor “A”, vivendo na mesma casa da autora “B”, não foi afectado, nem sofreu qualquer prejuízo ou alteração da sua saúde, com a colocação do telheiro.

xix) A autora “B” já sofria anteriormente de depressão nervosa e de hipertensão.

xx) Só esta circunstância extraordinária, que os recorrentes desconheciam e não era exigível que pudessem configurar, é que motivou o alegado agravamento da situação de doença da autora “B”.
xxi) Não sendo apto a provocar os alegados prejuízos sofridos pela autora “B”, não existe obrigação de indemnizar, pelo que a sentença recorrida fez errada aplicação e interpretação das normas contidas nos arts. 483° e 563° do CC.

xxii) Em todo o caso, os valores da indemnização são manifestamente exagerados.

xxiii) Sendo hipertensa, a autora “B” já tomava medicamentos para controlar a tensão, e teria de os continuar a tomar independentemente dos factos praticados pelos recorrentes.

xxiv) Assim, não lhe resultou, nesta parte, qualquer dano patrimonial acrescido.

xxv) Sempre sem conceder, não sendo possível determinar qual o estado anterior da autora e o agravamento que terá resultado da colocação do telheiro, e não existindo dolo no comportamento dos recorrentes que são pessoas de fracas capacidades económicas, deveria o Tribunal fixar um valor de indemnização não superior a € 500.00, pelo que fez incorrecta aplicação do art . 494° CC.

xxvi) Resulta dos autos que os problemas de saúde da autora “B” não resultam directamente da colocação do telheiro, mas são anteriores.

xxvii) Os recorrentes não violaram quaisquer direitos ou interesses legalmente protegidos dos autores.

xxviii) Não existe qualquer imposição da CAHS para os recorrentes demolirem o telheiro.

xxix) Os autores não estão privados do gozo do prédio.

xxx) A decisão de condenar os recorrentes a demolir o telheiro e uma decisão excessiva, violadora do principio da proporcionalidade, que os Tribunais devem respeitar, pois constitui um princípio fundamental do Estado de Direito Democrático, instituído pela Constituição da República.

                        Pedem, assim, os recorrentes, que seja declarada a nulidade da sentença ou, assim não se entendendo, seja a mesma revogada.

                        Responderam os autores/apelados, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

i) Não existe qualquer contradição entre o facto provado com o n.° 13 e os factos que não foram dados como provados;

ii) Ao pretenderem que o facto provado com o n.° 13 seja eliminado os recorrentes estão, na realidade, a pretender recorrer da matéria de facto, fazendo-o, contudo, em violação do disposto no n.° 1 do artigo 690°-A do CPC;

iii) A colocação de um telheiro pelos réus, constituído por uma estrutura em ferro, cravada na parede e imediatamente por baixo das janelas e da varanda dos autores, afecta a segurança da casa destes, na medida em que facilita o acesso de estranhos à mesma varanda e às janelas em causa;

iv) Os recorrentes/réus bem sabiam que ao colocarem o referido telheiro, pela forma em que o fizeram, estavam a afectar a segurança dos autores, aqui recorridos, e dos bens pessoais destes;

v) Os recorrentes nunca acederam a retirar o referido telheiro, e mesmo depois de interpelados pelos recorridos e pelo proprietário do edifício;

vi) A conduta dos recorrentes é dolosa e é persistente, pois que, apesar de interpelados (pelos autores e pela proprietária do prédio) para retirarem o telheiro e o portão, não o fizeram e mantêm a actuação ilícita;

vii) O acto ilícito dos recorrentes consubstancia-se no facto de a conduta destes atentar de forma directa e intensa, contra os direitos de personalidade dos autores, tutelados, quer pela Constituição da República, quer pela Lei Ordinária, designadamente o previsto no artigo 70° do CC;

viii) A autora sofre de depressão nervosa, que, no entanto, estava controlada, mas o conflito com os réus, originado pela colocação do telheiro e do portão, fez com que a sua doença se agravasse e tivesse necessidade de retomar as consultas médicas de psiquiatria e a tomada de medicamentos;

ix) Ainda em consequência do conflito com os réus, a autora viu aumentada a sua tensão arterial, estando agora obrigada a uma vigilância constante e eficaz, sob pena de daí vir a sofrer forte e irreversível dano e, no limite, resultar a morte;

x) O agravamento da doença e o aumento da tensão arterial da recorrida mulher tem como causa a conduta ilícita dos recorrentes que se recusam a retirar o telheiro que ilicitamente colocaram por baixo da varanda e das janelas dos aqui recorridos;

xi) Os recorrentes estão, pois, obrigados a indemnizar os recorridos pelos danos materiais já ocorridos e pelos que vierem a verificar-se, a liquidar em execução de sentença, por aplicação do disposto no artigo 483° do CC;

xii) Os recorrentes estão, igualmente, obrigados a indemnizar a recorrida mulher pelos danos morais já verificados e futuros, estes em valor não inferior ao dobro do montante que à autora foi atribuído pela douta sentença, por aplicação do disposto no artigo 483° do CC;

xiii) Deve manter-se a douta decisão na parte em que condenou os recorrentes a demolir o telheiro que ilicitamente construíram.

                        Já neste Tribunal da Relação foi determinado que o processo baixasse à 1ª instância, a fim de ser dado cumprimento ao disposto no artigo 668º, nº 3 do CPC.
                       
                        O Tribunal a quo, pronunciando-se quanto ao vício da nulidade por omissão de pronúncia, veio suprir a nulidade da sentença decorrente da omissão de pronúncia quanto ao pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, aditando à parte decisória da sentença o seguinte:

i) Julgar procedente o pedido quanto aos primeiros e condenar os réus a pagar aos autores uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, a título de danos patrimoniais decorrentes da necessidade que a autora “B” tem de continuar com as consultas de psiquiatria.
ii) Julgar improcedente o pedido de indemnização por danos não patrimoniais futuros.

                        Notificados os réus da rectificação da sentença, vieram estes requerer, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 744º, aplicável “ex vi” do artigo 668º, nº 4 ambos do CPC, a subida do recurso interposto pelos autores para que a questão viesse a ser decidida por este Tribunal de recurso.

                        O Tribunal a quo, por considerar que os réus/apelantes não haviam efectuado o pagamento da taxa de justiça pelo montante correcto, ordenou o cumprimento do disposto no artigo 690º-B, nº 1 do CPC.

                        Notificado deste despacho, os réus requereram, sem êxito, a aclaração e reforma, após o que interpuseram recurso de agravo.

                        Tendo em consideração a precedência lógica da questão que se discutia no agravo interposto pelos réus, face às apelações, foi o agravo julgado em primeiro lugar, tendo este Tribunal da Relação, por acórdão datado de 14 de Dezembro de 2010, negado provimento ao recurso de agravo, mantendo a decisão recorrida.

                        Os réus/agravantes ainda neste Tribunal da Relação procederam ao pagamento da taxa de justiça em falta. E, por se considerar estar demonstrado o pagamento do complemento da taxa de justiça devido, foi determinado, por despacho de 07.02.2011, que nada obstava agora à prossecução dos termos dos recursos de apelação interpostos, quer pelos autores, quer pelos réus.

                        Colhidos novos vistos legais, atenta a ulterior tramitação processual, cumpre apreciar e decidir,
                       
                       
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II. ÂMBITO DOS RECURSOS DE APELAÇÃO


                        Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto nos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

                        A estrita ligação da argumentação invocada, quanto à questão de mérito, nos interpostos recursos de apelação, implica a sua apreciação conjunta.

                        Assim, e face às conclusões formuladas, a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões, o que se fará tendo em consideração a sua precedência lógica:


i) DA NULIDADE PREVISTA NO ARTIGO 668° N° 1, ALÍNEA D) DO C. P. CIVIL (APELAÇÃO DOS AUTORES)

ii) DA NULIDADE PREVISTA NO ARTIGO 668° N° 1, ALÍNEA C) DO C. P. CIVIL (APELAÇÃO DOS RÉUS)

iii) DA MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO (APELAÇÃO DOS RÉUS);


iv) O DIREITO DE VIZINHANÇA E O DIREITO GERAL DE PERSONALIDADE: - O SEU RECONHECIMENTO NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA;

v) DOS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL:
(a) DA ALEGADA CONDUTA VIOLADORA DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE DOS AUTORES, POR ACTO DOS RÉUS;

(b) O DIREITO DE EXIGIR DOS RÉUS, NÃO SÓ A DEMOLIÇÃO DO TELHEIRO POR ESTES CONSTRUÍDO, COMO TAMBÉM UMA COMPENSAÇÃO POR DANOS PATRIMONIAIS E NÃO PATRIMONIAIS SOFRIDOS PELA AUTORA,  JÁ VERIFICADOS E FUTUROS

( APELAÇÃO  DE RÉUS E AUTORES – esta restrita à atribuição de indemnização por danos  
morais futuros, em montante pelo menos idêntico aos        
danos morais já quantificados)


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III . FUNDAMENTAÇÃO

A - OS FACTOS
                       
                        Foram dados como provados na sentença recorrida os seguintes factos:

1. Os autores ocupam e habitam, há 47 anos, a casa n.° ..., correspondente ao 1.° andar esquerdo de um prédio sito na Rua ..., Bairro ..., ....

2. Por seu turno, os réus ocupam e habitam, desde 1995, a casa com o n.° ..., correspondente ao rés-do-chão esquerdo do mesmo prédio.

3. A propriedade do prédio que integra essas duas casas pertence à Comissão de Assistência e Habitação Social (CAHS) do Governo Civil de Lisboa.

4. Esse prédio tem um logradouro à sua volta, que é de utilização comum pelos autores e pelos réus.

5. A utilização do prédio (das casas e do referido logradouro), quer pelos autores, quer pelos réus está sujeita ao "Regulamento dos Bairros de Habitação da União das Freguesias do Concelho de Lisboa", aplicável em todo o Bairro ..., na ...

6. Entre Outubro de 2004 e fins de Janeiro de 2005, período em que os autores estiveram ausentes de casa, os réus procederam à colocação de um telheiro com cobertura de acrílico, assente em tubos de ferro e cravado na parede do prédio, ocupando toda a extensão da sua fachada.

7. Tal telheiro foi colocado por baixo das janelas e varandas do 1.° andar do prédio.

8. Além disso, os réus colocaram um portão de ferro, com fechadura, na parte lateral do logradouro e junto à traseira do prédio.

9. A colocação do telheiro e do portão foi feita sem autorização ou consentimento da CAHS.

resultantes da audiência de discussão e julgamento:

10. O portão referido na alínea h), durante um período de tempo que não foi possível determinar, esteve fechado à chave e a impedir, por esse lado, que não totalmente, o acesso dos autores, quer ao logradouro, quer ao prédio, em virtude de tapar uma passagem ali existente.

11. Os réus sabiam que os autores se opunham à colocação do telheiro e do portão, pois já antes haviam sido por estes informados de que não poderiam construir nada no logradouro nem, por qualquer forma, obstruir o acesso ao prédio e às janelas do 1.° andar.

12. O telheiro construído pelos réus afecta a segurança da casa dos autores, na medida em que facilita o acesso de estranhos à varanda e às janelas.

13. Os autores interpelaram os réus, solicitando-lhes que retirassem o telheiro e o portão, mas estes recusam-se a fazê-lo.

14. A autora receia pela segurança dos seus bens, da sua família e da sua vida, pois que a construção do telheiro, encostado ao prédio, potencia o risco de assalto.

15. O telheiro, tal como se encontra colocado, encostado à casa, dificulta o acesso à caixa de coluna da electricidade (EDP), que serve não só o prédio, mas também a iluminação da via pública, uma vez que a referida caixa se encontra na parede exterior do edifício, por cima das janela da sala do 1.° andar.

16. Para efectuarem obras ao nível do 1.° andar e na parte exterior do prédio, os autores não podem colocar andaimes ou escadas junto à parede frontal do prédio, uma vez que o telheiro, tal como se encontra construído, o impede.

17. A autora sofre de depressão nervosa, que, no entanto, estava controlada, mas o conflito com os réus, originado pela colocação do telheiro e do portão, fez com que a sua doença se agravasse e tivesse necessidade de retomar as consultas médicas de psiquiatria e a tomada de medicamentos.

18. Em consultas de psiquiatria, a autora despendeu a quantia de € 480,00 e em medicamentos a quantia de € 194,33.

19. A autora tem necessidade de continuar a frequentar a consulta de psiquiatria.

20. Ainda em consequência do conflito com os réus, a autora viu aumentada a sua tensão arterial, estando agora obrigada a uma vigilância constante e eficaz, sob pena de daí vir a sofrer forte e irreversível dano e, no limite, resultar a morte.

21. A autora deixou de se alimentar convenientemente, por falta de apetite.

22. A autora tem revelado tendência para se isolar.

23. A autora vive com receio de vir a ser assaltada.

24. Os autores tinham dois cães em casa e, recentemente, morreu um deles.

25. Na varanda da sua casa, os autores construíram uma "marquise" e, próximo dela, existe uma plataforma em alvenaria, que faz parte da construção originária do prédio, que facilita o acesso de intrusos à casa daqueles.

26. Os autores sempre tiveram acesso a sua casa através de um portão já existente há muito tempo.

27. Antes de os réus terem vedado completamente o logradouro, este era devassado por crianças e jovens e invadido por cães e gatos, que o sujavam e estragavam o que aí encontrassem.

28. Foi por esses motivos que os réus vedaram o resto do logradouro, que já tinha um muro frontal com um portão, e colocaram um portão lateral.

***

B - O DIREITO


i)   DA NULIDADE PREVISTA NO ARTIGO 668° N° 1, ALÍNEA C) DO C. P. CIVIL (RECURSO DOS RÉUS)

                        A sentença, como acto jurisdicional, pode ter atentado contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada e, então, torna-se passível de nulidade, nos termos do apontado artigo 668º do Código de Processo Civil.

                        A este respeito, estipula-se no artigo 668º do CPC, sob a epígrafe de “Causas de nulidade da sentença”, que:

    “1 - É nula a sentença:
a) Quando não contenha a assinatura do juiz;
b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão;
d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.....”

                        Os réus/recorrente imputam à sentença recorrida a nulidade prevista na alínea c) do citado artigo 668º, nº 1 do CPC, a qual se reconduz a um vício de conteúdo, na enumeração de J. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, II vol., 793 a 811, ou seja, vício que enferma a própria decisão judicial em si, nos fundamentos, na decisão, ou nos raciocínios lógicos que os ligam.

                        Doutrina e jurisprudência têm entendido que a nulidade prevista na alínea c) do citado artigo 668º, nº 1 do CPC ocorre quando os fundamentos invocados deveriam conduzir, num processo lógico, à solução oposta da que foi adoptada.
           
                        Esta nulidade – oposição entre os fundamentos e a decisão – só se verifica quando os fundamentos, quer de facto quer de direito, invocados pelo juiz devam, logicamente, conduzir ao resultado oposto ao que é expresso na sentença.

                        A contradição entre os fundamentos e a decisão a que se refere o citado normativo é uma contradição de ordem formal, que se refere aos fundamentos estabelecidos e utilizados na sentença, e não aos que resultam do processo.

                        Esta nulidade que se traduz numa desconformidade entre a decisão e o direito aplicável - substantivo ou adjectivo – não se confunde com o erro de julgamento, ou seja, na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta.

 
                        Quando o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, poderemos estar, sim, perante um erro de julgamento.   
                       
                        É que, nesse caso, o juiz fundamenta a decisão, mas decide mal. Resolve as questões colocadas num certo sentido porque interpretou
e/ou aplicou mal o direito - LEBRE DE FREITAS, CPC Anotado, vol. 2.º, pág. 670.

                        A este propósito, referem os réus que a sentença recorrida condena os réus a pagarem aos autores a quantia de € 674,33, a título de prejuízos patrimoniais, não tendo resultado provado que o autor tivesse sofrido prejuízos patrimoniais, sendo, por isso, e nessa parte, nula, pois os fundamentos estão em contradição com a decisão

                        O Exmo. Juiz do Tribunal a quo, tendo em consideração os factos apurados, aplicou o direito que julgou adequado e pertinente ao caso em apreciação.

                        Mas, provado ficou que foi a autora que despendeu em consultas de psiquiatria e em medicamentos, a quantia global de € 674,33, e será ela que tem de continuar a recorrer às aludidas consultas. E, estes fundamentos de facto, tendo em consideração o direito aplicado, teriam de conduzir, inexoravelmente, a um resultado diverso daquele que, quanto ao pedido formulado, a título de danos patrimoniais, se mostra expresso na sentença - condenação dos réus a pagarem tal quantia a ambos os autores, o mesmo sucedendo quanto aos danos futuros que motivaram o aditamento à parte decisória da sentença.
                       
                        Entende-se, assim, que ocorre, in casu, a contradição formal a que se refere o artigo 668º, n.º 1 alínea c) do Código do Processo Civil, pelo que se julga procedente o que, a este propósito, consta das conclusões 4ª e 5ª da alegação de recurso dos réus, o que importará, ao abrigo do disposto no artigo 715º, nº 1 do CPC, conhecer da decisão, também nessa parte, o que se fará em momento ulterior.

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ii) DA NULIDADE PREVISTA NO ARTIGO 668° N° 1, ALÍNEA D) DO C. P. CIVIL (RECURSO DOS AUTORES)


                        Decorre da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

                        E, é tendo em consideração o disposto no artigo 660.º, n.º 2 CPC que se terá de aferir da nulidade prevista na citada alínea d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC.

                        Como esclarece MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Processo Civil”, Lex, 1997, 220 e 221, está em causa “o corolário do princípio da disponibilidade objectiva (art. 264.º, n.º 1 e 664.º 2.ª parte), o que significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões “.

                        As questões a que alude a alínea em apreciação são, com bem esclarece ANTUNES VARELA, RLJ, Ano 122.º, pág. 112, “(...) todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes …”.

                        Para delimitar com rigor as questões suscitadas pelas partes, e, consequentemente, os limites da sentença, é necessário atender não só ao pedido, como à causa de pedir.

                        No caso vertente, verificava-se, com efeito, omissão de pronúncia relativamente ao pedido indemnizatório, com relação a danos futuros que na sentença recorrida se deram como provado. Todavia, aquando da baixa do processo à 1ª instância para se proceder à apreciação da invocada nulidade, o Exmo. Juiz do Tribunal a quo veio suprir a mesma, procedendo ao aditamento que entendeu pertinente à parte decisória da sentença.

                        Não há, pois, que apreciar tal pretensão dos autores/apelantes, ao nível da invocada nulidade da sentença (CONCLUSÕES I a VI), sem prejuízo da ulterior análise da pretensão dos autores, quanto ao valor a atribuir aos invocados danos futuros.


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iii) DA MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO (RECURSO DOS RÉUS)


                      A decisão do Tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal da Relação, nos casos previstos nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 712º do C.P.C., que aqui não têm aplicação, por inobservância dos requisitos legais aí consignados.

                      Mas, decorre do disposto no n° 4, do artigo 653° do Código de Processo Civil, que a matéria de facto que se considera provada não deve padecer de deficiência, obscuridade ou contradição.

                       Como esclarecem LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, 631, a decisão padece de "deficiência” quando não foi dada resposta a todos os pontos de facto controvertidos ou à totalidade de um facto controvertido. Ocorre “obscuridade”  sempre  que  há  respostas  ambíguas  ou  pouco  claras,
permitindo várias interpretações. Há “contradição” sempre que colidem entre si as respostas dadas a certos pontos de facto ou colidem as respostas com factos dados como assentes, sendo entre si inconciliáveis.

                               Nos termos do art. 712º, nº 4 do CPC o Tribunal da Relação, ainda que não tenham sido apresentadas reclamações e, independentemente da questão ter sido suscitada por via de recurso, pode anular a decisão de facto se reputar deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, bem como quando considerar indispensável a ampliação desta – v. a propósito,  LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, 97 e 98.
             
                        No caso vertente, entendem os réus que existe contradição:

Pela circunstância de se ter dado como provado que:
A autora tem revelado tendência para se isolar” e,

de se ter dado como não provado que:
A autora deixou de conviver com os amigos e deixou de ter gosto pela vida”
A autora recusa-se  a sair de casa”.

                        E, propugnaram os réus que a invocada contradição entre o aludido facto provado e a matéria não provada deverá acarretar a anulação da resposta dada como provada.

                        É evidente que inexiste na decisão da matéria de facto qualquer dos apontados vícios, mormente a contradição mencionada no apontado preceito legal que acarrete a anulação dessa decisão.

                        O que sucedeu é que o Tribunal a quo, atenta a prova produzida, proferiu decisão com relação ao facto que considerou provado (a tendência da autora para se isolar) e, quanto aos demais factos que reputou como não provados, ainda que alguns deles tivessem alguma ligação entre si.

                        Não ocorre, consequentemente, qualquer deficiência, obscuridade ou contradição na decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, razão pela qual improcede, nessa parte, as conclusões 1ª e 2ª da alegação de recurso dos réus.

                        Haverá então que apurar, subsequentemente, se ocorre erro de julgamento, incluindo-se nesta apreciação da decisão proferida o ulterior aditamento à parte decisória da sentença, o que impõe a análise conjunta das restantes questões controvertidas a resolver, invocadas quer pelos autores (restrito á atribuição de indemnização por danos morais futuros, em montante pelo menos idêntico aos danos morais já quantificados), quer pelos réus, nos respectivos recursos de apelação, e que se reconduzem, ao cabo e ao resto, aos fundamentos de mérito de tais recursos.

*
                                               
iv) O DIREITO DE VIZINHANÇA e O DIREITO GERAL DE PERSONALIDADE: - O SEU RECONHECIMENTO NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA

                        O comummente designado “direito de vizinhança” reconduz-se a um conjunto de normas que visa, em regra, assegurar a coexistência pacífica entre os vários proprietários, regulando as relações entre estes, e tendente a evitar abuso de direitos. Destina-se a restringir as prerrogativas individuais dos proprietários, e ao mesmo tempo, regular a convivência entre eles, pelo que se traduzem numa limitação aos poderes inerente à dominialidade, o que implica, consequentemente, a existência de direitos e deveres recíprocos.

                        No Código Civil existem normas – artigos 1344º a 1352º - que constituem autênticas restrições de interesse privado ao exercício pleno do direito de propriedade, motivadas por situações de vizinhança imobiliária, embora se deva considerar que a respectiva regulamentação é aplicável a todos os direitos reais cujo regime possa originar problemas ou conflitos de interesses idênticos – v. HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, edição de 1990, 95, nota 103.

                        Mas tão pouco se descortinam razões para excluir do âmbito das relações de vizinhança os conflitos entre os titulares de quaisquer  direitos  que atribuam o gozo de uma coisa, ainda que de natureza pessoal ou creditícia – v. a propósito, JOSÉ ALBERTO GONZÁLEZ, Restrições de Vizinhança (de interesse particular), 2ª ed., 96-102.

                       
Como ensinou VAZ SERRA, RLJ 103º/378, colidindo entre si os interesses das pessoas em consequência das relações de vizinhança , "o que há a fazer é procurar conciliar os interesses em conflito, na medida do possível e do razoável, e, quando isso não puder ser feito, dar prevalência ao interesse superior”, em conformidade com o artigo 335º, nºs 1º e 2º, Código Civil.

                        Do mesmo modo sublinha JOSÉ ALBERTO GONZÁLEZ, ob. cit., 109, que o abuso de direito continua a ser um princípio regulador dos conflitos de vizinhança, especialmente nas situações típicas do “exercício inútil danoso” ou da “desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício de outrem.
                        As relações de vizinhança, e os litígios delas decorrentes, independentemente da natureza dos respectivos direitos sobre os imóveis, têm frequentemente uma dimensão mais ampla, postulada pela tutela geral dos direitos de personalidade.
                      Como escreveu RODRIGUES BASTOS, Das Relações Jurídicas, tomo 1.º, 20/21, os direitos de personalidade têm por fim impor a todos os componentes da sociedade o dever negativo de se absterem de praticar actos que ofendam a personalidade alheia, sendo à doutrina e à jurisprudência que competirá definir os limites da sua defesa.
                        Estes direitos pertencem à categoria dos direitos absolutos, oponíveis a todos os terceiros, que os têm que respeitar e têm consagração constitucional.
                       
                        Ressalta da Constituição da República Portuguesa a ideia da protecção da pessoa humana, da sua personalidade e dignidade, falando-se, no artigo 1º, da dignidade da pessoa humana como fundamento da sociedade e do Estado; o artigo 24º, nº 1, declara que a vida humana é inviolável; o artigo 25º garante o direito à integridade moral e física da pessoa; o artigo 26º consagra também outros direitos pessoais; o artigo 27º, nº 1 consagra o direito à segurança e os artigos 64º e 66º protegem os direitos à saúde e a um ambiente salutar.

            Enquadram-se na categoria de direitos de personalidade, entre outros, os direitos à vida, à integridade física, à honra, à saúde, à inviolabilidade do domicílio, ao repouso essencial à existência - v. P. LIMA - A. VARELA, Código Civil Anotado, vol. 1.°, 55; GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 101.
                        Os direitos de personalidade estão também regulados no Código Civil, embora nele se não contenha uma definição de direito de personalidade.
                        Apenas o artigo 70º consagra o direito geral de personalidade, abrangendo, na sua protecção, no âmbito do direito civil, como refere, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, A Constituição e os Direitos de Personalidade, Estudos sobre a Constituição, vol. 2º, Lisboa, 93, todos os "direitos subjectivos, privados, absolutos, gerais, extra-patrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis, relativamente indisponíveis, tendo por objecto os bens e as manifestações interiores da pessoa humana, visando tutelar a integridade e o desenvolvimento físico e moral dos indivíduos e obrigando todos os sujeitos de direito a absterem-se de praticar ou de deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências cíveis adequadas a evitar a ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida”.   
                        Prescreve o nº 1 do artigo 70º do Código Civil que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”, o que significa a assunção e um reconhecimento da existência de um direito geral da personalidade – v. a propósito da evolução do direito de personalidade na civilística portuguesa, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Inocêncio Galvão Teles, Vol. I, 21-45.
                        E, o nº 2 do citado artigo 70º do C.C. permite ao ameaçado ou ofendido requerer, independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, as providências adequadas às circunstâncias do caso com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.
                        É certo que a Constituição da República Portuguesa também reconhece e assegura, por outro lado, os direitos de natureza económica, tais como o da livre iniciativa económica (art.º 61º) e da propriedade privada (art.º 62º n.º 1).

                        Têm, pois, quer o direito à saúde, ao repouso e à segurança, quer o direito da propriedade privada consagração na lei fundamental, sendo, por vezes, os mesmos conflituantes entre si, o que leva à necessidade de dirimir o conflito de direitos daí decorrente.
                        O recurso ao aludido instituto apenas se coloca existindo dois diferentes direitos pertencentes a titulares diversos, não se mostrando possível o exercício simultâneo e integral de ambos, o que pressupõe, evidentemente, a efectiva existência, validade e eficácia de tais direitos conflituantes.
                        No caso em apreciação, ficou provado que autores e réus habitam num prédio pertencente à Comissão de Assistência e Habitação Social do Governo Civil de Lisboa, residindo estes no rés-do-chão esquerdo e aqueles no 1º andar esquerdo, e que tal prédio tem um logradouro à sua volta, que é de utilização comum por autores e réus – v. Nºs 1 a 4 da Fundamentação de Facto.

                        Provado também ficou que, entre Outubro de 2004 e fins de Janeiro de 2005, num período em que os autores estiveram ausentes de casa, os réu, procederam à colocação de um telheiro com cobertura em acrílico, assente em tubos de ferro e cravado na parede do prédio, ocupando toda a extensão da sua fachada, tendo o mesmo sido colocado por debaixo das janelas e varandas do andar onde habitam os autores - v. Nºs 6 e 7 da Fundamentação de Facto.

                        Esta actuação, sem autorização nem consentimento da proprietária do prédio (CAHS) e contra a vontade expressa dos autores, dificulta o acesso à caixa de coluna da electricidade, impede a colocação de andaimes para efectuar obras na parte exterior do prédio, afecta a segurança da casa dos autores e, na medida em que facilita o acesso a estranhos à varanda e janelas do 1º andar, potencia o risco de assaltos á casa dos autores - v. Nºs 9, 11, 12, 15 e 16 da Fundamentação de Facto.

                        Mostra-se, pois, violado o direito dos autores a usufruírem o andar onde habitam sendo afectados os respectivos direitos à tranquilidade e segurança, os quais englobam, como acima ficou dito, direitos de personalidade constitucionalmente consagrados.

                        E não se diga que esta conduta dos réus estará neutralizada pelo demonstrado facto de fazer parte da construção originária do prédio uma plataforma em alvenaria que é, em si mesma, susceptível de facilitar o acesso de intrusos. É que, como se comprova das fotografias juntas aos autos a fls. 29, 122, 123, 264 e 265, a construção do telheiro acentua e potencia ainda mais tais riscos de assaltos à casa dos autores.

                        Acresce que, ainda que se reconheça que os réus têm, obviamente, a faculdade de exercer, em pleno, o seu direito de gozo do rés-do-chão que habitam, usando-o para os fins que entenderem, desde que legítimos, esse direito não se alarga à construção de telheiros.

                        E, independentemente da existência ou inexistência de qualquer procedimento administrativo, verifica-se uma clara violação ao Regulamento dos Bairros de Habitação da União das Freguesias do Concelho de Lisboa que rege a utilização do prédio onde autores e réus habitam, o qual, no seu artigo 5º, alínea s), impede a execução, não só de qualquer obra nas casas que integram esse prédio, suas dependências, incluindo logradouros, como também de trabalhos ou arranjos que atinjam, de que maneira for, a sua traça, carecendo, para tanto, da autorização expressa do proprietário, o que aqui não sucedeu.   

                        Daí que, nem sequer se coloca a questão de qualquer eventual colisão de direitos, não havendo, consequentemente, necessidade de proceder a qualquer ponderação sobre a hierarquização de direitos, sendo certo que a prevalência dos direitos de personalidade sempre seriam superiores a qualquer outro direito não eminentemente pessoal que, reitera-se, no caso inexiste.

                        Em face da demonstrada violação dos direitos de personalidade dos réus, bem andou o Tribunal a quo ao ordenar a demolição e remoção do telheiro que ilegalmente os réus construíram e cravaram na parede do prédio onde habitam autores e réus.
                        É que, a tutela dos direitos de personalidade implica que se tenha como referência a pessoa em concreto, sendo certo que provado ficou a afectação da segurança da casa dos autores, por acto dos réus.

                        Considerando a ocorrência de perturbação no direito à tranquilidade, à segurança, em suma, ao descanso e sossego, designadamente, da autora, importa ponderar acerca da intensidade e do desvalor dessa perturbação, o que nos reconduz à apreciação das questões subsequentes, já que há que ter presente os pressupostos, requisitos, ou elementos da responsabilidade civil extracontratual, indicados no artigo 483º do Código Civil.


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v) DOS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL:

(a) A ALEGADA CONDUTA VIOLADORA DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE DOS AUTORES, POR ACTO DOS RÉUS, E O DIREITO DAQUELES DE EXIGIREM DESTES, A DEMOLIÇÃO DO TELHEIRO QUE CONSTRUIRAM;

(b) O DIREITO DA AUTORA DE EXIGIR DOS RÉUS UMA COMPENSAÇÃO POR DANOS PATRIMONIAIS E NÃO PATRIMONIAIS, PRESENTES E FUTUROS.


                        Segundo o nº 1 do artigo 483º do Código Civil “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”, sendo que, e de acordo com o nº 2 do aludido normativo, “Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”.

                        A responsabilidade civil por facto ilícito depende da verificação simultânea de vários pressupostos: acção/facto voluntário do agente, ilicitude do facto, nexo de imputação do facto ao agente, existência de dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano - v. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I,  417. 

                        É, assim, necessário que exista um facto voluntário ilícito imputável ao lesante. Exige-se ainda que dessa violação sobrevenha dano e, que entre o facto praticado pelo lesante e o dano sofrido se verifique nexo de causalidade, de modo a poder afirmar-se que o dano resulta da violação.

                      Vejamos então se se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual geradores da peticionada indemnização decorrente da ofensa aos direitos de personalidade da autora.

                        O facto voluntário a que a lei se reporta é essencialmente a conduta controlável pela vontade do agente.

                        No caso vertente, resultou da prova produzida, a prática pelos réus de factos voluntários – nomeadamente e no que aqui mais interessa, a colocação de um telheiro com as características e consequências acima enumeradas – actuação controlável pela vontade daqueles, pelo que é notória a imputação de tais factos voluntários aos réus.
                       
                        A ilicitude, enquanto pressuposto da responsabilidade civil por facto ilícito, consiste na infracção de um dever jurídico. Indicam-se, no nº 1 do artigo 483º do Código Civil, duas formas essenciais de ilicitude. Na primeira vertente, a violação de um direito subjectivo de outrem; na segunda vertente, a violação de lei tendente à protecção de interesses alheios.
                       
                        No domínio das relações de personalidade, a ilicitude advém do dever jurídico que emerge, quer da necessidade de respeitar um direito de personalidade alheio, quer da obrigatoriedade do cumprimento de lei que proteja interesses alheios de personalidade – v. neste sentido CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, 1995, 435.

                        Ficou provado que a colocação, pelos réus, do telheiro por baixo das janelas e varandas do prédio onde habitam os autores afectaram a segurança da casa dos autores, pois potencia o risco de assalto, pelo que a autora receia pela segurança dos seus bens, da sua família e da sua vida - v. Nºs  6, 7, 12 e 14 da Fundamentação de Facto.

                        Por outro lado, o conflito com os réus, originado pela colocação, nomeadamente do telheiro agravou o estado de depressão nervosa de que a autora já padecia - v. Nºs  17 da Fundamentação de Facto.
           
                        A aludida conduta dos réus está, assim, envolvida de ilicitude.

                        E será que os réus actuaram com culpa, agindo de modo censurável do ponto de vista ético-jurídico ?

Vejamos.

                        Com é sabido a culpa lato sensu abrange as vertentes do dolo e da culpa stricto sensu, i.e., a intenção de realizar o comportamento ilícito que o respectivo agente configurou ou a mera intenção de querer a causa do facto ilícito.

     A culpa stricto sensu ou censura ético-jurídica, exprime um juízo de reprovação pessoal em relação ao agente lesante que, no caso concreto, podia e devia ter agido de modo diverso, por forma a evitar a produção do dano.

     Actua com culpa, por acto praticado por acção ou omissão, quem omite o dever de diligência ou do cuidado que lhe era exigível, envolvendo, as vertentes consciente e inconsciente. No primeiro caso, o agente prevê a realização do facto ilícito como possível mas, por precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação; na segunda vertente,  por  imprevidência,  descuido,  imperícia  ou  inaptidão, não previu a realização do facto ilícito como possível, podendo prevê-la se, como refere o Ac. STJ de 08.03.2007, www.dgsi.pt, nisso concentrasse a sua inteligência e vontade.
    
     Segundo o artigo 487º, nº 2, do Código Civil, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um “bonus pater familiae”, em face das circunstâncias do caso concreto, por referência a alguém medianamente diligente, representando um juízo de reprovação e de censura ético-jurídica, por poder agir de modo diverso.

                        Ora, no caso em apreciação ficou provado que os réus sabiam que os autores se opunham à colocação do telheiro, pois haviam sido informados de que não poderiam construir nada no logradouro, nem de qualquer forma obstruir o acesso ao prédio e às janelas do andar onde vivem os autores - v. Nºs  11 da Fundamentação de Facto sendo certo que não poderiam desconhecer que, com a sua demonstrada conduta potenciadora do risco de assalto, afectavam a segurança da casa dos autores.

                        Agiram, pois, os réus, de modo censurável do ponto de vista ético-jurídico.

                        Ocorre, por isso, o segundo pressuposto da responsabilidade civil a que se reporta o artigo 483º, nº 1, do Código Civil, ou seja, os réus actuaram com intenção de realizar o comportamento ilícito que configuraram, não desconhecendo que as tais condutas seriam susceptíveis de provocar danos, designadamente, na esfera jurídica da autora.

                        Os réus, ao infringirem culposamente os direitos de personalidade da autora, designadamente, o seu direito à segurança e tranquilidade, são responsáveis pela indemnização ou compensação dos prejuízos daí decorrentes.
                        A responsabilidade civil é uma modalidade da obrigação de indemnizar, ou seja, de eliminar o dano ou prejuízo reparável.

     O dano é a perda ou diminuição de bens, direitos ou interesses protegidos pelo direito, que pode ser patrimonial ou não patrimonial, consoante tenha ou não conteúdo económico, ou seja, conforme seja ou não susceptível de avaliação pecuniária.

     No caso em apreciação, mostra-se formulada uma pretensão indemnizatória com fundamento em danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela autora, como consequência da apontada actuação dos réus.

                        A verificação da existência de danos não patrimoniais, não avaliáveis em dinheiro, pressupõe o conhecimento da extensão da ofensa a bens de ordem moral causados ao lesado, assumindo o ressarcimento desses bens de ordem moral uma função essencialmente compensatória, não podendo, todavia, ser desprezada a envolvente de cariz sancionatória – cfr. a este propósito, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I,  Almedina, 578.

     Sucede, porém, que o facto ilícito apenas é susceptível de desencadear a responsabilidade civil desde que exista um nexo causal entre o facto praticado pelo agente e o dano, ficando aquele obrigado a indemnizar todos os danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

                        A nossa lei acolheu, no artigo 563º do Código Civil, a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual a causa juridicamente relevante de um dano será aquela que, em abstracto, se mostre adequada à produção desse dano, segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do agente.

                         A teoria da causalidade adequada apresenta duas variantes: uma formulação positiva e uma formulação negativa, sendo a primeira mais restritiva do que a segunda. Adoptou a nossa lei a formulação negativa, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, excepcionais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto – v. entre muitos e quanto às duas variantes da causalidade adequada, Ac. STJ de 24.05.2007, CJ/STJ, 2007, t.2, 82-85 e doutrina aí mencionada e também, Acs. STJ de 28.04.2004 (Pº 04ª3457) e de 24.05.2005 (Pº 05A1333), acessíveis na Internet, no sítio www.dgsi.pt.

                        No caso em análise, provado ficou que a actuação dos réus, ao construir o telheiro, potenciando o risco de assalto, fez com que a autora passasse a viver com receio de ser assaltada, receando pela segurança dos seus bens, da sua família e da sua vida, - v. Nºs  14, 17 e 23 da Fundamentação de Facto.

                        Mais se apurou que, em consequência do conflito com os réus, nomeadamente decorrente da colocação do dito telheiro, deu-se o agravamento do estado de depressão nervosa de que a autora já padecia e passou esta a ter necessidade de retomar as consultas médicas de psiquiatria e retomar a tomada de medicamentos. Viu aumentada a sua tensão arterial, estando obrigada a uma vigilância constante e eficaz sob pena de irreversível dano; deixou de se alimentar convenientemente, revelando tendência para se isolar  - v. Nºs 17, 19, 20 a 22 da Fundamentação de Facto.

                        Argumentam os réus que a construção de um telheiro, face à experiência comum, não é um facto adequado a provocar danos do foro psiquiátrico, e que os réus desconheciam que a autora já sofria anteriormente de depressão nervosa e de hipertensão.

                        Com efeito, na vertente mais ampla da teoria da causalidade – a negativa - com consagração do artigo 563º do Código Civil o facto que foi condição de um certo dano, deixará de ser a sua causa adequada se, atenta a sua natureza geral, se revelar indiferente para a verificação do dano, tendo este ocorrido apenas porque, para a sua produção, concorreu uma outra circunstância excepcional, sem a qual não haveria risco, maior do que o comum, de o prejuízo se verificar – cfr. neste sentido GALVÃO TELES, Direito das Obrigações, 7ª ed., 406 e Ac. R. Lx de 02.12.2009 (P. 1546/09.0YRLSB-7), acessível no identificado sítio da Internet.

     É patente a existência de nexo de causalidade entre a actuação dos réus e o receio em que a autora tem vivido em relação à segurança dos seus bens, da sua família e da sua vida.

     Mas, já o mesmo não sucede, relativamente ao apurado estado psíquico em que a autora se encontra, com aumento da sua tensão arterial, inclusive deixando de se alimentar convenientemente, revelando tendência para se isolar, tendo de tomar medicamentos, e de recorrer a consultas médicas de psiquiatria, consultas essas a que tem de continuar a recorrer.

     E, se é certo que, em termos naturalísticos, está demonstrado que a actuação dos réus foi condicionante da concreta situação em que a autora se encontra, a verdade é que não basta a verificação do nexo naturalístico, visto que, como se refere no Ac. STJ de 13.01.2003 (Pº 03A1902), acessível em www.dgsi.pt, a doutrina da causalidade adequada que a nossa lei civil perfilha impõe, num primeiro momento, um nexo naturalístico, e num segundo momento, um nexo de adequação.

     Importa, por isso, aferir do nexo de adequação do resultado danoso – situação psíquica em que a autora se encontra -  à conduta praticada pelos réus – construção do telheiro.

     Na verdade, segundo as regras da experiência comum, esse demonstrado estado de doença do foro psiquiátrico não é, segundo as regras da experiência comum, previsível como efeito normal ou comum da construção de um telheiro, ainda que nas condições em que os réus o efectuaram.

     E tanto não é comum que o próprio autor não sofreu quaisquer dessas consequências.

     A discórdia relacionada com a construção do telheiro foi causa do apurado estado de saúde psíquica da autora, apenas porque para ele, a par de tal actuação dos réus, concorreu a circunstância excepcional de a autora já padecer de doença do foro psiquiátrico.

                        Assim sendo, e uma vez que tão pouco se apurou que os réus tivessem conhecimento dessa situação clínica da autora, há que concluir que os réus, com a sua demonstrada actuação, apenas lesaram, com culpa, o direito à segurança e tranquilidade da autora, causando-lhe danos, consistentes no receio que passou a ter com relação à segurança dos seus bens, família e da sua vida, vivendo com receio de ser assaltada, verificando-se, nesta parte, o nexo de causalidade adequada entre o facto ilícito e culposo com relação a estes demonstrados danos morais.

                        E, não se argumente que a insegurança com que a autora vive, também pode advir da circunstância de fazer parte da construção originária do prédio uma plataforma de alvenaria que, conforme se apurou (Nº 25 de Fundamentação de Facto), facilita o acesso de intrusos à casa dos autores.

                        É que, este aspecto não anula a responsabilidade civil dos réus decorrente da respectiva conduta ilícita, relevando, outrossim, na determinação do quantitativo indemnizatório.

     Decorre do disposto no artigo 496º, n.º 1, do Código Civil, que na fixação da indemnização se deverá atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

                        Dispõe, por seu turno, o artigo 562º do Código Civil que, quem estiver obrigado a reparar um dano deve restituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

                            A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objectivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade humana.

                            Face ao que acima ficou dito, entende-se que a autora, ainda que numa vertente mais restrita, sempre terá direito a ser ressarcida, nos termos do artigo 496º, nº 1 do Código Civil.

          Tendo-se concluído pela existência da obrigação de indemnizar, em sede de responsabilidade civil por facto ilícito, há que ponderar sobre a determinação do quantitativo indemnizatório.

      A autora formulou pedido indemnizatório, no montante global de € 15.000,00, tendo o Tribunal a quo fixado a indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, no valor de € 2.674,33, bem como, quanto aos danos futuros, em indemnização a liquidar em momento ulterior.

     Conforme resulta do acima exposto, a autora apenas terá direito a ser ressarcida, com relação aos danos morais decorrentes do estado de receio em que tem vivido, em consequência da demonstrada conduta ilícita e culposa dos réus.

     Para apurar do quantum indemnizatório adequado face à identificada actuação ilícita e culposa dos réus, há que proceder à avaliação dos danos produzidos, aferindo do grau de responsabilidade dos autores da lesão, ponderação essa que terá de ser feita em função da ilicitude dos factos praticados, da culpabilidade dos réus, da situação económica destes e do lesado e das demais circunstâncias do caso, a que não poderá ser alheio a existência, na própria construção do prédio, de uma plataforma em alvenaria que também facilita o acesso à casa dos autores.
                        Como nada se apurou, em concreto, quanto à situação económica e financeira, quer da autora, quer dos réus, aceita-se que será certamente modesta, como bem se explicitou na sentença recorrida.
                        Tudo ponderado, e considerando que o montante da reparação terá de ser proporcional à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência e, num juízo de equidade perante todas as circunstâncias do caso antes enumeradas, para compensar os danos não patrimoniais sofridos pela autora, entende-se como criterioso e adequado, o montante de € 750,00, que se considera já actualizado, nos termos do nº 2 do artigo 566º do Código Civil e Ac. Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2002, de 9 de Maio, in  D.R. I s. de 27.06.2002.

     Julga-se, consequentemente, improcedente o recurso de apelação interposto pelos autores e parcialmente procedente o recurso dos réus, razão pela qual se revoga a decisão recorrida, na parte em que se condenaram os réus a pagar aos autores, a quantia de € 674, 33, a título de danos materiais e, a pagar à autora a quantia de € 2.000,00, a título de danos não patrimoniais, bem como a pagar aos autores uma indemnização a liquidar em momento ulterior, a título de danos patrimoniais (consultas psiquiátricas), substituindo-se por outra em que se condenam os réus a pagar à autora, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 750,00, mantendo-se a decisão recorrida, quanto à demolição e remoção do telheiro.

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                        Os apelantes serão responsáveis pelas custas, na proporção dos respectivos decaimentos - artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

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IV. DECISÃO

                        Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação interposta pelos autores e parcialmente procedente a apelação interposta pelos réus, razão pela qual se revoga a decisão recorrida, na parte em que se condenaram os réus a pagar aos autores, a título de danos materiais, a quantia de € 674,33, bem como a indemnização a liquidar em momento ulterior e, a pagar à autora, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 2.000,00, substituindo-se por outra em que se condenam os réus a pagar à autora, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 750,00, mantendo-se a decisão recorrida, no que concerne à demolição e remoção do telheiro que os réus construíram.

                        Condenam-se autores e réus nas custas, na proporção dos respectivos decaimentos.

Lisboa, 5 de Maio de 2011

Ondina Carmo Alves - Relatora
Teresa Albuquerque
Isabel Canadas