Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1584/10.0TFLSB.L1-5
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
SEGURADORA
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
ELEMENTO SUBJECTIVO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Iº A autoridade administrativa é, na fase organicamente administrativa do processo de contra-ordenação, titular da pretensão sancionatória com poderes decisórios do caso e, na fase organicamente judicial, um participante especial em juízo, um órgão de apoio do Tribunal;
IIº Vários diplomas legais, entre eles o Dec. Lei nº94-B/98, de 17Abr., este em relação ao Instituto de Seguros de Portugal (art.233), atribuem à autoridade administrativa que aplicou uma coima legitimidade para recorrer autonomamente (isto é, independentemente da posição que assuma o Ministério Púbico) da sentença (ou do despacho, no caso previsto no art.64, nº2, do RGC-O) que julga a impugnação judicial;
IIIº Quando a lei reconhece à autoridade administrativa que aplica a coima legitimidade para, autonomamente, recorrer da sentença que julga a impugnação judicial da sua decisão, o seu estatuto deve ser equiparado ao do assistente em processo penal, nomeadamente para efeito de se considerar como notificada da sentença;
IVº A nula ou pouco significativa relevância axiológica das condutas que consubstanciam ilícitos de mera ordenação social reflecte-se na configuração do elemento cognitivo ou intelectual do dolo: à afirmação do dolo do tipo não bastará o conhecimento dos elementos do tipo objectivo (ou, se se preferir, o conhecimento da factualidade típica e do decurso do acontecimento), sendo ainda indispensável o conhecimento da proibição legal respectiva, praticando uma contra-ordenação a título doloso todo aquele que, no momento em que age (ora, por acção, ora por omissão), fá-lo com conhecimento e vontade de realização da factualidade material típica, ou seja, da conduta descrita como infracção contraordenacional, e com consciência da respectiva proibição;
Vº A negligência determina-se com recurso a uma dupla averiguação: por um lado, há que procurar saber que comportamento era objectivamente devido em determinada situação em ordem a evitar a violação não querida do direito e, por outro, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais;
VIº O “regime de regularização de sinistros” integra um conjunto de regras e procedimentos a observar pelas seguradoras com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de acidente no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel;
VIIº Uma companhia de seguros, tem, necessariamente, conhecimento e capacidade para levar a cabo esses procedimentos com respeito pelos prazos fixados na lei, tal como sabe que a violação dessas regras, designadamente o não cumprimento dos prazos, é punível como contra-ordenação;
VIIIº Verificada a materialidade objectiva da infracção e conhecida a proibição legal, segundo as regras da experiência comum, podemos deduzir que aquela foi cometida com dolo ou, pelo menos, com negligência;
IXº O facto da seguradora ter implementado um sistema de gestão de processos de regularização de sinistros automóveis teoricamente eficaz, só por si, não permite concluir por uma actuação cuidadosa que afaste a negligência;
Xº Não tendo a seguradora alegado e provado factos que, pelo menos, fizessem surgir uma dúvida razoável sobre a imputação subjectiva da sua conduta e concluindo o tribunal recorrido que não estão preenchidos os elementos típicos a título de imputação subjectiva, cometeu o vício do erro notório na apreciação da prova, que o Tribunal da Relação pode conhecer, apesar dos seus poderes de cognição estarem limitados à matéria de direito (art.75, do RGC-O);
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I – Relatório
Por decisão de 29.07.2010, “ISP – Instituto de Seguros de Portugal” (abreviadamente, ISP) aplicou a “Companhia de Seguros A..., S.A.”, melhor identificada nos autos, a coima única de € 44 890,00 (quarenta e quatro mil oitocentos e noventa euros), resultante do cúmulo jurídico de 69 coimas parcelares de € 1 500,00 cada uma, pela prática, em concurso efectivo, de outras tantas contra-ordenações previstas e puníveis pelo artigo 36.º, n.º 1, al. a), do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
A arguida impugnou judicialmente tal decisão e, remetido o processo ao Ministério Público junto do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, que o tornou presente ao juiz para apreciação do recurso interposto, admitido este, realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que, concedendo total provimento ao recurso, absolveu a arguida/recorrente.
Foi a vez do ISP manifestar o seu inconformismo, interpondo recurso dessa decisão absolutória para este Tribunal da Relação e concluiu a sua peça recursiva nos seguintes termos (em transcrição integral):
I. “O elemento central da sentença de absolvição recorrida consistiu no seguinte raciocínio: a prova de que a Arguida teria criado um sistema de gestão de processos com determinadas características, bem como a ausência de alegação e prova das concretas causas que estariam na origem de cada uma das 69 infracções permitiriam inferir que a Arguida A... teria actuado diligentemente, ou, pelo menos, permitiriam criar uma dúvida razoável quanto à actuação negligente da Arguida. Neste último caso, não teria chegado a provar-se a sua negligência e consequentemente esta deveria ser absolvida.
II. A pedra de toque da sentença recorrida assenta nas regras de experiência comum que estão na base da inferência factual e de que o Tribunal a quo, se bem que não explícita ou assumidamente, lançou mão para pôr termo ao dissídio.

III. A proposição implícita na sentença em apreço é a de que estas regras, quando aplicadas à matéria dada como provada, autorizariam a inferência de uma actuação cuidadosa e zelosa por parte da A... ou, no mínimo, gerariam uma dúvida razoável quanto à sua falta de cuidado e de zelo, o que, por aplicação do princípio da presunção de inocência, legitimaria a absolvição.

IV. Não nos parece ter sido acolhida na sentença recorrida a tese — de resto, manifestamente incorrecta — de que a diligência ou negligência nas infracções em apreço (as contra-ordenações previstas no art. 36.º, n.º 1 e art. 86.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto) se consubstanciaria precisamente no cuidado ou zelo do comportamento habitual ou estatisticamente dominante da empresa de seguros em causa.

V. A Meritíssima Juíza a quo parte antes do pressuposto, inteiramente exacto, de que a negligência ou diligência nas violações de prazos em causa repousa sobre as concretas acções e omissões em que se decompõe cada um dos actos relativos à regularização de sinistros automóveis e cuja execução tempestiva é imposta por lei.

VI. Portanto, a negligência ou diligência da actuação das companhias de seguros há-de ser sempre aferida em relação a cada um dos concretos prazos que tenham sido violados, não sendo só por si determinante o facto de ter sido instituído um sistema de gestão de sinistros eficaz.

VII. Simplesmente, a convicção do Tribunal a quo, é a de que, como, em primeiro lugar, não se teria logrado a prova directa dos factos individuais e concretos em que se consubstanciaria tal falta de cuidado — as «causas» do incumprimento — e como, em segundo lugar, o sistema de gestão criado pela A... permitiria deduzir, em razão das regras de inferência baseadas na experiência comum, ter ela actuado zelosamente em cada um dos processos de regularização de sinistros, justificar-se-ia a sua absolvição.

VIII. Perguntar-se-á: é suficiente invocar e provar a criação e funcionamento de um sistema de gestão de processos de regularização de sinistros automóveis eficiente para que daí se infira a uma actuação zelosa na prática de cada um dos actos em que se decompõe a regularização de um sinistro concretamente considerado?

IX. A resposta é negativa. Com efeito, pode ser posto a funcionar pelas empresas seguradoras um óptimo sistema de gestão de sinistros e, não obstante, os prazos legalmente estabelecidos serem violados dolosa ou negligentemente pelos funcionários da companhia.

X. Da mesma forma, pode não ser criado (por descuido, falta de meios, desconhecimento da lei, etc.) um tal sistema de gestão e a conduta zelosa dos agentes levar a que sejam plenamente observados os prazos legalmente previstos.

XI. Mesmo que hipoteticamente se admitisse ser relevante a existência de um tal sistema, para efeitos de inferência de uma conduta diligente em cada uma das actuações em que se desdobra a regularização de sinistros automóveis por parte das empresas seguradoras, sempre haveria que definir com rigor quais as características de um tal sistema, por forma a apurar se as mesmas estariam satisfeitas no caso concreto.

XII. Ora, a decisão recorrida é totalmente omissa neste aspecto.

XIII. Muitos e bons argumentos depõem em favor da tese de que a eficiência do sistema de gestão dos processos de regularização de sinistros se consubstancia na sua aptidão para impedir qualquer erro humano. Um sistema adequado e eficiente seria capaz de evitar a generalidade dos incumprimentos, excepto os devidos a factores incontroláveis, maxime de origem externa.

XIV. Teria ISP o ónus de invocar e provar as razões que estiveram na base dos incumprimentos da A..., «se erro humano, conduta imprópria do lesado, de terceiros, entre outras causas que podem dar origem a tais falhas» (nas palavras do Tribunal a quo), sob pena de não se dar por provada a negligência e assim se ter por justificada a absolvição?

XV. Ou, pelo contrário, as próprias infracções aos prazos impostos por lei permitem deduzir, de acordo com uma inferência factual baseada nas regras de experiência comum, uma actuação negligente, sendo certo que à Arguida caberá afastar essa presunção judicial, demonstrando que o incumprimento se deveu a obstáculos que não podia nem tinha obrigação de prever ou que não podia nem tinha o dever de controlar?

XVI. Esta última é a posição acolhida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, num recente acórdão.

XVII. Com efeito, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 23 de Fevereiro de 2010, acolheu explicitamente a tese de que «a verificação objectiva de uma infracção contra-ordenacional faz presumir, naturalmente (ou seja: por presunção natural ou judicial, “simples ou de experiência”), pelo menos a negligência na sua prática» (cf. o ponto III do sumário do acórdão, em http://www.dgsi.pt/).

XVIII. Assim, e continuando a transcrever o douto acórdão da Relação de Lisboa, suponha-se que «um condutor – necessariamente licenciado para o efeito – passa um sinal vermelho. Naturalmente que se presume que o fez, pelo menos, com negligência. Algo mais terá de haver para que se crie a dúvida sobre tal facto, dúvida que, com base no in dubio pro reo, o afastará».

XIX. Veja-se outro exemplo: «um condutor conduz um carro com carga fora das condições legais. Tendo ele que ser licenciado para a condução, terá que saber que não o pode fazer. Fazendo-o, naturalmente que se presumirá que o fez, pelo menos, com negligência. Algo mais terá de haver para que se crie a dúvida sobre tal facto, dúvida que, com base no in dubio pro reo, o afastará.»

XX. Esta tese de que a prática da infracção faz presumir a ilicitude ou tipicidade subjectiva é reforçada no caso concreto das contra-ordenações por violação dos prazos previstos no art. 36.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 291/2007, se se tiver em conta o disposto na sub-alínea xxii), da alínea a) do n.º 1, do art. 3.º da Norma Regulamentar n.º 16/2007-R (publicada no Diário da República, 2.ª Série, n.º 20, de 29 de Janeiro de 2008, que se junta sob Doc. n.º 1).

XXI. Esta alínea tem concretização na Nota de Rodapé n.º 5, da Instrução Informática n.º 34/2007, anexa à Norma Regulamentar referida.

XXII. São aí enumeradas justificações que a lei tem por admissíveis do incumprimento de cada prazo fixado na lei.

XXIII. A Norma Regulamentar permite às empresas de seguros fornecer mais de vinte tipos diferentes de justificações para o incumprimento dos diversos prazos.

XXIV. Quando uma empresa de seguros fornece ao Instituto de Seguros de Portugal, no seu reporte, a informação de que num determinado processo se verificou uma qualquer dessas justificações para o incumprimento do prazo, a aplicação informática CPRS não assinala, no relatório de incumprimentos, qualquer incumprimento de prazo.

XXV. Isto significa que os casos em que o relatório de incumprimentos assinala o incumprimento de prazos são aqueles em que a própria seguradora admite não existir qualquer justificação para esse incumprimento e, por isso, não a assinalou. Trata-se de situações em que nenhuma das justificações previstas se verificou.

XXVI. Neste específico contexto, surge reforçada a aplicação de uma presunção judicial de negligência da Arguida.
 
XXVII. Assim, existirá necessária e indubitavelmente negligência, se o prazo previsto no art. 36.º, n.º 1, alínea a) não for cumprido e, para além disso: - a apólice era válida à data do sinistro (Informação adicional 01), - a documentação foi recebida na íntegra (Informação adicional 02); - era possível a marcação da peritagem (Informação adicional 08); - no decurso do prazo não ocorreu um feriado municipal (Informação adicional 10); - não havia danos excluídos na apólice (Informação adicional 16); - não mudou a empresa de seguros (Informação adicional 17); - não houve interposição de acção judicial (Informação adicional 19); - não existiram motivos operacionais de origem externa à empresa de seguros com impacto global e significativo no seu normal funcionamento (Informação adicional 24); - não existiram motivos operacionais de natureza informática incontroláveis e com impacto global e significativo no funcionamento da empresa de seguros (Informação adicional 25);

XXVIII. Insiste-se: será quase impossível evitar a conclusão de que foi negligente a acção da empresa seguradora que, apesar da inexistência de qualquer um dos obstáculos mencionados, desrespeitou um ou mais prazos na regularização de sinistros de que tenha sido incumbida.

XXIX. Uma outra circunstância, relativa à maioria das violações de prazos que estão na origem do presente processo, depõe adicionalmente a favor da presunção (judicial ou natural) de negligência da A....

XXX. Com efeito, em muitos dos processos, o prazo de dois dias imposto pelo art. 36.º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 291/2007, foi excedido em mais do seu quádruplo.

XXXI. Nalguns casos, o atraso atingiu mais de 20 dias!

XXXII. Ora, em tais casos, não pode, sem notório vício na apreciação da prova, sustentar-se qualquer dúvida razoável ou legítima acerca da actuação descuidada da Arguida!

XXXIII. Finalmente, num caso em tudo semelhante ao presente, o Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, por sentença proferida em 26.03.2010, no Processo n.º 1881/08.5 TFLSB, que correu os seus termos no 1.º Juízo, 2.ª Secção daquele Tribunal, considerou que a então arguida havia violado, de forma, no mínimo, negligente, os prazos aí em causa (cf. a cópia da sentença que se junta sob Doc. n.º 2).
O teor de tal decisão apoia sem dúvida a conclusão de que a A... deve ser condenada por infracção negligente e que essa negligência se infere, de acordo com as regras da experiência comum, dos factos por ela transmitidos ao ISP.

XXXIV. O princípio in dubio pro reo constitui apenas um critério de decisão em caso de dúvida sobre os factos que servem de base a determinada pretensão. Não respeita aos modos de produção da prova, não afecta o princípio da livre apreciação da prova e é inteiramente compatível com presunções naturais ou de experiência que estão na base da denominada prova indiciária.

XXXV. A decisão recorrida surge, assim, viciada nos termos do art. 410.º, n.º 2 do C.P.P , por um erro notório de apreciação da prova, conjugada a decisão recorrida com a regras de experiência comum, como manda esse preceito.

XXXVI. Dos factos considerados provados, maxime do facto de ter sido criado e posto em funcionamento pela Arguida um sistema de gestão de resolução de sinistros com determinadas características, não se deduz, de acordo com as regras de inferência factual acolhidas no ordenamento, uma actuação diligente da Arguida e tão-pouco é criada uma dúvida razoável quanto às razões que terão estado na origem do seu comportamento.

XXXVII. Dos factos dados como provados na sentença, concretamente, da ocorrência de 69 violações de prazo no período em apreço, não justificadas nos termos supra descritos, infere-se antes, de acordo com as regras da experiência comum, terem as mesmas resultado de falta de cuidado da A....

XXXVIII. Também não vale a ideia, invocada pela A..., de que a taxa de incumprimento de uma empresa seguradora num determinado período constituiria só por si um indício suficiente de que a empresa de seguros teria actuado sem dolo e sem negligência em cada uma das contra-ordenações praticadas.
 
XXXIX. A tese que infere a diligência da Arguida a partir da diminuta percentagem de incumprimento não pode ser acolhida.
 
XL. Ninguém se lembraria de afirmar que aquele que conduz em excesso de velocidade não praticou o ilícito, na sua forma dolosa ou negligente, se, deliberadamente ou por desleixo, exceder ocasionalmente a velocidade permitida, ainda que esse excesso seja um acto absolutamente isolado e excepcional atendendo à forma de condução típica do agente!

XLI. Da mesma forma, ninguém ousará dizer que o fornecedor que não chega a entregar a mercadoria acordada o fez sem «culpa» só por ter cumprido as obrigações de fornecimento a que estava vinculado perante os demais clientes!

XLII. Na base da argumentação da A... está a ideia de que existiria um limite máximo do esforço a que uma companhia de seguros estaria obrigada no âmbito dos processos de regularização de sinistros automóveis e que tal limite seria atingido quando um número significativo dos sinistros regularizados em certo período não registassem quaisquer atrasos no respectivo processamento.

XLIII. Bastaria às empresas seguradoras observarem este limite para que a sua conduta se considerasse diligente, sem que isso tivesse necessariamente de se concretizar no cumprimento sem excepção de todos os prazos intercalares a que se encontram obrigadas.

XLIV. Ora, esta tese é insustentável, por variadas razões, sendo a mais eloquente o facto de tal construção fazer com que o estabelecimento de um limite de esforço exigível às companhias de seguros operasse em detrimento de apenas alguns clientes — aqueles em cujos processos ocorresse a violação de prazos — e não fosse distribuído equitativamente por todos eles.

XLV. Ora, tal oneração arbitrária de alguns dos sinistrados seria inadmissível e é contrária à lei, pois esta fixa indirectamente um limite ao esforço exigível às seguradoras, mas fá-lo em termos que repartem equitativamente os correspondentes inconvenientes por todos os sinistrados (cf. o art. 36.º, n.º 6, al. b) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto: os prazos legalmente previstos são aumentados para o dobro quando ocorram factores climatéricos excepcionais ou por qualquer outra razão, ocorram em simultâneo um número excepcionalmente elevado de acidentes).

XLVI. A decisão do Recorrente ISP, na parte relativa à graduação da coima única aplicável às 69 infracções, observou estritamente os artigos 18.º e 19.º do RGCO, devendo os mesmos ser interpretados num sentido que assegure o fim de prevenção geral que enforma o direito do ilícito mera ordenação social.
XLVII. Não pode aceitar-se a tese da Recorrida A..., nos termos da qual a gravidade das infracções praticadas e a sua culpa seriam tão diminutas que se justificaria que o tribunal substituísse a sanção aplicada por uma admoestação.
XLVIII. Com efeito, pode considerar-se os tribunais judiciais não são competentes para proferir uma decisão de admoestação no domínio contra-ordenacional. De resto, a opção pela não intervenção sancionatória traduzida na admoestação já se acha devidamente satisfeita no caso concreto, dado que o ISP já renunciou a essa intervenção ao decidir não levantar qualquer auto de contra-ordenação às entidades reguladas durante os dois primeiros quadrimestres de 2007, dando-lhes oportunidade de se adaptarem à nova lei. Finalmente, mesmo que se aceitasse a natureza sancionatória da admoestação, não se verifica, no caso concreto, o contexto especial da sua aplicação, a saber, a reduzida gravidade da infracção e da culpa”.
Por tudo isto, entende a recorrente que se justifica a revogação da decisão recorrida e a condenação dar arguida “A...” pela prática de 69 contra-ordenações na coima única de € 44 890,00.
                                                             *
O Ministério Público apresentou resposta em que faz notar que não recorreu da sentença proferida, o que demonstra concordância integral com a mesma, pelo que, por força do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 2/2011, está-lhe vedado sustentar agora posição contrária.
                                                             *
Também a arguida “A...” respondeu à motivação do recurso, apresentando o seguinte quadro conclusivo (transcrição):
1. “O Direito Contra-Ordenacional, ainda que com especialidades próprias, está, no que à ilicitude do agente concerne sujeita aos mesmos princípios que o Direito Penal como, de resto, resulta do artigo 8º do Regime Geral de Contra-Ordenações.
2. Agirá, pois, com dolo quem actuar com o propósito de praticar o facto descrito na lei contra-ordenacional e com negligência quem agir com a falta de cuidado devido provocando, como consequência, a realização de um facto proibido por lei.
3. No caso vertente, o douto Tribunal a quo deu como PROVADO que a Recorrida encerrou, no 3º quadrimestre de 2008, 12.572 processos de regularização de sinistros e que, no âmbito do seguro automóvel - danos materiais, assegurou 14.172 peritagens, promoveu 6.030 averiguações, abriu 19.040 processos, recebeu 105.192 documentos, bem como provado deu, também, que o volume do quadrimestre em causa se traduz numa taxa de incumprimento de 0,0055% (Factos 6 e 7).
4. Igualmente ficou PROVADO que a Recorrida, quando confrontada com o novo regime legal implementado, aperfeiçoou e reforçou o sistema de atendimento (call center), criou o adequado programa informático, formou e adestrou aqueles que com tal programa tinham de laborar (Facto 5).
5. Por outro lado, o douto Tribunal “a quo” considerou como “FACTO NÃO PROVADO” que “A impugnante tenha permitido que a gestão de sinistros continuasse a ser feita em moldes que não garantissem os cumprimentos dos prazos legais, conformando-se com essa situação, sem tomar o cuidado necessário para evitar a violação dos prazos verificados”.
6. Da conjugação dos factos considerados como PROVADOS com os factos considerados como NÃO PROVADOS extrai-se que a Recorrida não actuou nem com dolo por não vir demonstrado qualquer propósito de praticar o facto descrito na lei contra-ordenacional, nem com negligência pois não se descortina qualquer falta do cuidado devido que tenha tido como consequência a realização do facto proibido por lei.
7. Daí que não haja violação nem do disposto no artigo 8º do Regulamento Geral das Contra-Ordenações, nem do disposto nos artigos 14º e 15º do Código Penal.
8. Consequentemente, a douta decisão recorrida procedeu a uma adequada apreciação dos factos e a uma exacta aplicação das normas legais aplicáveis pelo que se impõe a sua inteira confirmação.
9. Sem conceder se acrescentará que, ainda a entender-se que se justificasse a aplicação de qualquer coima à ora Recorrida, sempre se revelaria injusta a pretensão do Instituto Recorrido de que a coima aplicável correspondesse à sanção máxima possível mesmo que a taxa de incumprimento fosse de 100%, quando a Arguida apenas incumpriu em 0,0055% dos casos.
10. De facto, a cada um dos incumprimentos corresponde uma coima que varia entre os € 1.500,00 e os € 22.445,00 (nº 1 do artigo 86º do Decreto – Lei 291/2007, de 21/07) pelo que aplicando-se o valor mínimo de cada uma das coimas se obtém o valor de € 103.500,00, valor esse, porém, que por força do disposto no nº 1 do artigo 86º do Decreto – Lei 291/2007 ter de ser reduzido a € 44.890,00, ou seja, o valor da coima aplicada.
11. Nunca podendo ultrapassar tal valor, quer o número de incumprimentos seja o que consta dos presentes autos, quer seja o dobro, o triplo ou o décuplo desse mesmo número.
12. E não se argumente que houve atenuação pelo facto de em relação a cada um dos incumprimentos se ter considerado o valor mínimo da coima prevista pois se fosse ponderado o valor máximo o resultado final seria sempre o mesmo, ou seja, uma coima de € 44.890,00.
13. É, pois, manifestamente iníqua a coima aplicada que não tem em consideração nem a taxa de sucesso da Arguida na gestão de sinistros sem incumprimentos – 99,0045% - nem os demais factos por ela alegados e que o Instituto de Seguros de Portugal não põe em causa e, de resto, ficaram provados em audiência de discussão e julgamento.
14. Sendo assim, como efectivamente é, impõe-se, portanto, mesmo a considerar-se que à Arguida deva ser aplicada qualquer sanção que ela deve traduzir-se numa Admoestação ou, sempre sem conceder, em montante relevantemente inferior ao que “ex adverso” vem sustentado.
15. A verdade, porém, repete-se, é que, face à matéria de facto apurada em audiência de discussão e julgamento se impõe a manutenção do decidido.
Entende, por isso, que deve ser negado provimento ao recurso e confirmar-se a decisão recorrida.
                                                             *
Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que defende a extemporaneidade do recurso, porquanto a sentença foi lida e depositada em 06.04.2011, não tendo um representante legal do ISP, ou o respectivo mandatário, estado presente, apesar de ter sido notificado da data designada para a audiência. Uma vez que a leitura da sentença equivale à sua notificação aos sujeitos processuais que devam considerar-se presentes na audiência (art.º 372.º, n.º 4, do Cód. Proc. Penal), sendo de dez dias o prazo de interposição de recurso, tal prazo estava já expirado quando, em 26.05.2011, deu entrada o requerimento e respectiva motivação de recurso do ISP, que por isso deve ser rejeitado por decisão sumária.  
O recorrente respondeu à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, defendendo que o prazo de 10 dias de que dispunha para interpor recurso se conta da notificação prevista no art.º 70.º, n.º 4, do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGC-O), não sendo aplicável ao caso o disposto no n.º 4 do art.º 372.º do Cód. Proc. Penal.    
                                                             *
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
                                                             *
Nos termos do n.º 4 do art.º 74.º do RGC-O, o recurso (da sentença que decide a impugnação[1] judicial da decisão da autoridade administrativa) segue a tramitação do recurso em processo penal, sem prejuízo das especialidades resultantes daquele regime.
Assim, uma vez concluso o processo, o relator, no exame preliminar previsto no artigo 417.º do Cód. Proc. Penal, deve, além do mais, verificar se existe algum fundamento de rejeição do recurso (n.º 6, al . b), daquele mesmo artigo).
Há fundamento para rejeição liminar do recurso – diz-nos o artigo 420.º da mesma codificação adjectiva – quando, por exemplo, “se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º”.
Nos termos desse n.º 2, não pode ser admitido o recurso que seja interposto fora de tempo, expressão que, como é bom de ver, abrange o que for interposto para lá do prazo legalmente estabelecido.
O recurso foi admitido por despacho proferido a fls. 837 e nele se afirma a sua tempestividade.
No entanto, a decisão que admita um recurso (tal como a que lhe fixa o regime de subida e o efeito) não faz caso julgado e não vincula o tribunal superior (n.º 3 do citado art.º 414.º), pelo que nada obsta, antes se impõe, que se conheça da questão prévia suscitada pela Ex.ma PGA.
Para tanto, importa ter em consideração que:
§ a designação de data (29.03.2011) para a audiência foi notificada ao ISP, que nela não compareceu nem se fez representar, quer por representante legal, quer por mandatário;
§ o acto de leitura da sentença (ao qual, também, não assistiu o ISP, nem esteve presente o seu mandatário) foi praticado no dia 06.04.2011 e nesta mesma data foi efectuado o depósito da sentença em causa (fls. 708 e 709);
§ por ofício expedido em 11.05.211, foi o ISP notificado da sentença proferida nos autos.
§ o requerimento de interposição do recurso, com a respectiva motivação, deu entrada no tribunal no dia 26.05.2011 (cfr. fls. 714).
Pelo AUJ n.º 1/2009, de 04.12.2009 (DR, I-A, de 16.01.2009), o STJ fixou jurisprudência no sentido de que “em processo de contra-ordenação, é de dez dias quer o prazo de interposição de recurso para a Relação quer o de apresentação da respectiva resposta, nos termos dos artigos 74.º, n.ºs 1 e 4, e 41.º do RGCO”.
A questão que aqui se controverte é a do dies a quo desse prazo, ou seja, desde quando se conta o prazo de interposição do recurso.
A Ex.ma PGA entende que é a partir da data em que foi lida a sentença, mas o ISP rejeita esse entendimento e defende que é a partir da data da notificação prevista no n.º 4 do art.º 70.º do RGC-O.
A questão tem manifesto interesse prático porquanto os casos em que a autoridade administrativa que aplica a coima (e eventualmente a sanção acessória) tem legitimidade para recorrer são já em número considerável e abrangem uma parte significativa do ordenamento jurídico contra-ordenacional.  
O n.º 1 do art.º 74.º do RGC-O dispõe que “o recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste”.
Não sendo particularmente feliz a redacção do preceito (pois é óbvio que a decisão por despacho, não sendo precedida de audiência de julgamento, é sempre proferida sem a presença do arguido e, portanto, tem que lhe ser notificada), ainda assim não suscita problemas de interpretação.
Como é sabido, no processo por contra-ordenação, ao contrário do que acontece com o processo penal, a regra é a não obrigatoriedade da comparência do arguido à audiência, a não ser que o juiz considere a sua presença indispensável ao esclarecimento dos factos e determine a sua comparência (art.º 67.º, n.º 1, do RGC-O).
Também não é obrigatório que o arguido seja assistido por defensor (constituído ou nomeado)[2], conforme resulta do disposto no n.º 2 daquele mesmo preceito legal e no n.º 1 do art.º 68.º do RGC-O.
Estando presente o defensor (constituído ou nomeado), este representará o arguido para todos os efeitos legais.
Podemos, assim, traçar o seguinte quadro: 
Estando o arguido e/ou o seu defensor presentes na audiência ou no acto da leitura da sentença (quando esta não é proferida imediatamente após o encerramento da audiência), o decurso do prazo do recurso inicia-se quando esta (sentença) é proferida.
Não estando presentes na audiência ou no acto da leitura da sentença, nem o arguido, nem o seu defensor, estes têm de ser notificados da decisão e o prazo do recurso inicia-se com esta notificação.
Sendo a impugnação decidida por despacho, a decisão tem de ser notificada ao arguido (e/ou ao seu defensor, caso exista) e, também neste caso, o prazo do recurso só começa a correr com essa notificação.
O RGC-O nada estabelece sobre a interposição de recurso pelo Ministério Público ou por outras entidades, nomeadamente pela autoridade administrativa.
A omissão de qualquer referência ao Ministério Público compreende-se na medida em que é obrigatória a sua presença na audiência[3] e, em caso de decisão por despacho, tal qual acontece em relação ao arguido, esta tem de ser-lhe notificada e o prazo de recurso conta-se a partir da notificação.
A explicação para a omissão de referência à autoridade administrativa nesta sede residirá na sua falta de legitimidade para recorrer. É essa a orientação firme da jurisprudência (cfr. acórdãos do TRL, de 12.11.1997, de 2.01.2002, de 05.11.2003, de 28.09.2004 e de 16.02.2006, do TRC, de 03.12.1997 e do TRE, de 12.07.1994)[4] e as razões normalmente invocadas são a inexistência de norma (no RGC-O) que atribua legitimidade à autoridade administrativa e o facto de esta, na fase judicial do processo contra-ordenacional não ter o estatuto de sujeito processual, mas antes de simples participante processual.
Uma análise mais cuidada poderá conduzir-nos a diferente conclusão.
A autoridade administrativa é notificada da designação de data para a audiência (n.º 3 do art.º 70.º do RGC-O) e esta notificação impõe-se porque lhe é reconhecido, não só o direito de presença, mas também o direito de participar na audiência e apresentar meios de prova ou quaisquer elementos que repute convenientes para a boa decisão do caso (n.º 1 do mesmo artigo)[5].
Há quem veja na atribuição deste direito ou faculdade razão para equiparar o estatuto da autoridade administrativa ao do mandatário do arguido[6], mas não parece que se possa ver nessa participação mais que uma manifestação do dever de colaboração e de prestar auxílio técnico ao tribunal, quando a situação o justifique. É essa a perspectiva de Frederico da Costa Pinto (“Revista Portuguesa de Direito Criminal”, Ano 12.º, 119) quando afirma que a autoridade administrativa é na fase organicamente administrativa do processo de contra-ordenação titular da pretensão sancionatória de natureza contra-ordenacional com poderes decisórios do caso e, na fase organicamente judicial, um participante especial em juízo, um órgão de apoio do Tribunal.
Em contraponto, não parece que a imposição de notificação da sentença e das “demais decisões finais” à autoridade administrativa (n.º 4 do art.º 70.º) se coadune com esse estatuto de mero participante, ainda que especial.
O que é que justifica essa notificação? Visará permitir à autoridade administrativa interpor recurso da decisão final?
É inquestionável que, na fase judicial do processo de contra-ordenação cabe ao Ministério Público promover o exercício do “jus puniendi”, melhor dizendo, a pretensão sancionatória, nessa fase, é assumida pelo Ministério Público, já pelo seu estatuto, já porque a lei equipara a acusação o acto de tornar presentes ao juiz os autos do referido processo (art.º 62.º, n.º 1, do RGC-O).
Também é certo que nenhuma norma do regime geral das contra-ordenações confere, expressa ou implicitamente, à autoridade administrativa legitimidade para recorrer da decisão judicial.
Por último, a autoridade administrativa não pode considerar-se prejudicada pela decisão judicial (sendo esta no sentido de alterar ou revogar a decisão de aplicação da coima proferida por aquela autoridade), ou, usando as palavras da lei, não tem a defender “um direito afectado pela decisão” a que alude a parte final da alínea d) do n.º 1 do art.º 401.º do Cód. Proc. Penal e que lhe conferiria legitimidade para recorrer.
Dúvidas não podem restar de que é o Ministério Público quem, por banda da “acusação”, tem legitimidade para recorrer das decisões judiciais (que sejam recorríveis) proferidas nos processos contra-ordenacionais e não (também) a autoridade administrativa.
Mas, se é assim no regime geral das contra-ordenações, existem hoje vários diplomas legais (que são, no fundo, codificações sectoriais dirigidas a áreas como o mercado de valores mobiliários, as actividades bancária e seguradora, as comunicações electrónicas, a concorrência, etc.) que atribuem à autoridade administrativa que aplicou uma coima legitimidade para recorrer autonomamente (isto é, independentemente da posição que assuma o Ministério Publico) da sentença (ou do despacho, no caso previsto no n.º 2 do art.º 64.º do RGC-O) que julga a impugnação judicial daquela sua decisão (naturalmente, desde que a decisão judicial admita recurso).
Assim acontece, por exemplo, com a Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro (que no seu art.º 13.º, n.º 11, atribui à autoridade reguladora nacional – ICP-ANACOM – legitimidade para recorrer autonomamente no âmbito dos processos de contra-ordenação decorrentes da aplicação do regime jurídico das comunicações electrónicas), com o Código dos Valores Mobiliários aprovado pelo Dec. Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro (que no seu art.º 416.º, n.º 7, atribui idêntica legitimidade à CMVM) e com a Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho (que no seu art.º 47.º, n.º 6, atribui a mesma legitimidade para recorrer à Autoridade da Concorrência).
O mesmo sucede com o Dec. Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril[7], que no artigo 233.º estabelece o seguinte:
Artigo 233.º
Intervenção do Instituto de Seguros de Portugal na fase contenciosa
1 - O Instituto de Seguros de Portugal ou o Ministro das Finanças, quando for o caso, poderá participar, através de um representante, na audiência de julgamento, para a qual será notificado.
2 - A desistência da acusação pelo Ministério Público depende da concordância do Instituto de Seguros de Portugal ou do Ministro das Finanças, quando for o caso.
3 - O Instituto de Seguros de Portugal ou o Ministro das Finanças, quando for o caso, tem legitimidade para recorrer das decisões proferidas no processo de impugnação e que admitam recurso.
Nenhum destes diplomas legais contém qualquer norma que nos elucide sobre a questão que nos ocupa, ou seja, que indique a partir de que momento se conta o prazo do recurso da decisão judicial quando é recorrente a autoridade administrativa.
Vejamos se no Código de Processo Penal, aplicável enquanto direito subsidiário (art.º 41.º, n.º 1, do RGC-O), podemos encontrar essa norma.
O n.º 4 do art.º 372.º dispõe que “a leitura da sentença equivale à sua notificação aos sujeitos processuais que deverem considerar-se presentes na audiência”.
No entanto, logo nos deparamos com esta dificuldade: não podendo a autoridade administrativa ser considerada “sujeito processual”, ainda assim ser-lhe-á aplicável esta regra?
Por outro lado, como decorre dos n.ºs 1 a 3 do art.º 372.º, a regra do seu n.º 4 aplica-se quando a sentença é proferida em acto seguido ao encerramento da audiência (assim, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 936), mas não assim quando é designada outra data para o efeito.
Na determinação do sentido das normas jurídicas, deve o intérprete rejeitar resultados que se traduzam em soluções desiguais para situações idênticas e seria isso que aconteceria se não se aplicasse à autoridade administrativa a norma do n.º 4 do art.º 372.º do Cód. Proc. Penal.
Com efeito, o arguido que esteja devidamente convocado para a audiência, mas a ela não comparece, considerar-se-á notificado da sentença proferida imediatamente após a sua conclusão e será a partir desse momento que se iniciará o decurso do prazo de interposição de recurso, mas já assim não seria para a autoridade administrativa porque esta não é considerada sujeito processual e porque o n.º 4 do art.º 70.º do RGC-O determina que lhe seja comunicada a sentença.
É manifesto que, a ser assim, estaria a reconhecer-se um privilégio à autoridade administrativa (na prática, disporia de um prazo mais longo para recorrer, quando, para tanto, tem legitimidade), que nada justifica.
O que se constata é que, quando a lei reconhece à autoridade administrativa que aplica a coima legitimidade para, autonomamente, recorrer da sentença que julga a impugnação judicial da sua decisão, o seu estatuto é muito semelhante ao do assistente em processo penal[8]. Ora, se o assistente em processo penal, que foi notificado para a audiência e não compareceu, é considerado como presente (art.º 331.º, n.º 1) e como notificado da sentença nos termos previstos no citado n.º 4 do art.º 372.º do Cód. Proc. Penal, não há razão válida para, em processo contra-ordenacional, não suceder o mesmo em relação à autoridade administrativa.
 Por isso, entendemos que se justifica plenamente uma interpretação extensiva da citada norma, de forma a abranger todas as pessoas e entidades que têm legitimidade para recorrer da sentença e, portanto, que têm direito a que lhes seja dado conhecimento do respectivo teor.
Assim, se a sentença em crise tivesse sido proferida logo após o encerramento da audiência (para a qual o recorrente ISP foi convocado), teria razão a Ex.ma PGA ao considerar extemporâneo o recurso interposto.
No entanto, não foi isso que aconteceu e o ISP não foi notificado da data designada para o acto de leitura da sentença, pelo que esta teria que lhe ser notificada. Uma vez que essa notificação foi efectuada por ofício expedido em 11.05.2011 e o requerimento de interposição do recurso, com a respectiva motivação, deu entrada no tribunal no dia 26.05.201, tem de considerar-se tempestivo.

II – Fundamentação
São as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, e acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).
Como resulta da extensa, mas mui douta motivação do recurso e das respectivas conclusões, a questão fundamental que aqui se discute consiste em saber em que se traduz a imputação subjectiva nas contra-ordenações e, mais precisa e especificamente, se nos processos de regularização dos sinistros com veículos automóveis, em que não cumpriu os prazos que estava obrigada a cumprir, a arguida “A...” agiu, pelo menos, negligentemente.
                                                             *
Para uma correcta apreciação e decisão da questão assim equacionada é fundamental conhecer a factualidade em que assenta a decisão recorrida, pelo que aqui se reproduzem (ipsis verbis) os factos que o tribunal recorrido deu como provados e não provados:
Factos Provados:
1. “Para dar cumprimento à obrigação de envio das informações previstas no nº 1, do art. 5.º da Norma Regulamentar do ISP nº 16/2007-R, de 20 de Dezembro (publicada no Diário da República n.º 20, II Série, de 29 de Dezembro de 2008), a arguia enviou ao ISP, por meio do Portal ISPnet, em 11.02.2009, o registo referente ao art. 3.º da Norma Regulamentar, dos prazos efectivos e circunstanciados de regularização de sinistros cujo processo foi encerrado no 3.º quadrimestre de 2008;

2. Tal registo foi enviado em substituição de um outro anterior que, em sede de audiência prévia foi considerado pela recorrente como incorrecto, o que a levou a corrigir a informação antes reportada;

3. De acordo com a informação prestada pela própria, a arguida encerrou um total de 12572 processos de regularização de sinistros no âmbito dos seguros obrigatório de responsabilidade civil automóvel e facultativo de danos próprios, correspondentes a 12572 lesados, sendo que em 105 processos se verificaram incumprimentos de prazos de regularização de sinistros com danos materiais;

4. Sendo que, 69 dos processos corresponde a dias de excesso face aos dias máximos estabelecidos no prazo legal previsto no art. 36,º, n.º 1, al. a) D.L. n.º 291/2007, de 21.08 (cfr. melhor se discrimina nos pontos I. a LXIX da decisão administrativa e para os quais se remete).

5. Com vista à aplicação dos procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 291/2007, na Norma Regulamentar do ISP n.º 13/2006-R, de 5 de Dezembro (Regulamento n.º 6/2007, publicado no Diário da República n.º 8, II série, Parte C, de 11 de Janeiro de 2007, a recorrente aperfeiçoou e reforçou o sistema de atendimento (call center), criou o adequado programa informático, formou e adestrou aqueles que com tal programa tinham de laborar;

6. No decurso do 3.º quadrimestre do ano de 2008 a impugnante, no âmbito do seguro automóvel, danos materiais, assegurou 14.172 peritagens, promoveu 6030 averiguações, abriu 19.040 processos, recebeu 105.192 documentos;

7. O que traduz uma taxa de incumprimento de 0,0055%”.

Não se provou que:
A) “A impugnante tenha permitido que a gestão de sinistros continuasse a ser feita em moldes que não garantissem os cumprimentos dos prazos legais, confrontando-se com essa situação, sem tomar o cuidado necessário para evitar a violação dos prazos verificados”.
*
Nos termos do art.º 8.º, n.º 1, do RGC-O, “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
O art.º 86.º, n.º 3, do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, diz-nos que em matéria de infracções cometidas no âmbito do regime jurídico do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a negligência é sempre punível.  
Já o Dec. Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril, estabelece no seu art.º 215.º, n.º 1 que, no âmbito do exercício da actividade seguradora e resseguradora, as contra-ordenações classificadas como graves (art.º 213.º) e muito graves (art.º 214.º) são sempre puníveis a título negligente.
Nenhum destes diplomas legais define o dolo ou a negligência nas suas várias modalidades, mas o Código Penal é subsidiariamente aplicável na fixação do regime substantivo das contra-ordenações (art.º 32.º do RGC-O) e por isso a ele recorreremos, sobretudo quando abordarmos a questão da eventual actuação negligente da arguida.   
O dolo é um elemento fundamental na definição do conteúdo material da culpa, mas é também (a par da negligência) uma forma de realização do tipo.
Um dos critérios substanciais avançados para a distinção entre crimes e contra-ordenações reside na neutralidade ética do ilícito de mera ordenação social: as condutas que integram os ilícitos contraordenacionais são axiológico-socialmente neutrais (se bem que, conexionadas com a proibição legal, passem a constituir “substrato idóneo de um desvalor ético-social”[9]).
Por isso questiona-se se deverá em rigor falar-se de culpa nas contra-ordenações, respondendo o Professor Figueiredo Dias (“O Movimento de Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social” in Jornadas de Direito Criminal, edição CEJ, 328) que aqui “não se trata de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto a responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima”.
Daí que o n.º 2 do artigo 1.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGC-O) aprovado pelo Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na sua redacção originária, admitisse a possibilidade de haver contra-ordenações em que a imputação se fizesse “independentemente do carácter censurável do facto”.
Mas, mesmo nesses casos, ainda se exigia que o facto, para ser punido como contra-ordenação, fosse praticado com dolo ou negligência, tal como dispõe o n.º 1 do art.º 8.º do RGC-O.
A nula ou pouco significativa relevância axiológica das condutas que consubstanciam ilícitos de mera ordenação social reflecte-se na configuração do elemento cognitivo ou intelectual do dolo: à afirmação do dolo do tipo não bastará o conhecimento dos elementos do tipo objectivo (ou, se se preferir, o conhecimento da factualidade típica e do decurso do acontecimento), sendo ainda indispensável o conhecimento da proibição legal respectiva.
Pode, então, dizer-se que pratica uma contra-ordenação a título doloso todo aquele que, no momento em que age (ora, por acção, ora por omissão), fá-lo com conhecimento e vontade de realização da factualidade material típica, ou seja, da conduta descrita como infracção contraordenacional, e com consciência da respectiva proibição.
Nas palavras[10] do Professor Figueiredo Dias (“Direito Penal - Parte Geral" Tomo I, Coimbra Editora, pág. 488), o “tipo de culpa doloso” verifica-se “quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas; se uma tal comprovação se não alcançar ou dever ser negada o facto só poderá eventualmente vir a ser punido a título de negligência".
Tal como sucede em processo penal, é questão de facto[11] a determinação da materialidade relativa ao tipo subjectivo do ilícito contraordenacional[12] e do elenco de factos considerados provados (e também do facto não provado) não é possível concluir pela imputação à arguida “A...” de uma conduta dolosa no (in)cumprimento das obrigações a que está adstrita no âmbito da sua actividade seguradora. A tal conclusão já havia chegado a autoridade administrativa que por isso lhe imputou a prática de 69 contra-ordenações, mas a título negligente.
Importa, então, focar a nossa atenção no “tipo de culpa negligente”.
Do conceito legal de negligência fala-nos o art.º 15.º do Cód. Penal, nos termos do qual age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ou não chega, sequer, a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente).
Temos, assim, que a violação do dever de cuidado objectivamente devido é elemento essencial e característico do tipo de ilícito negligente, com o que se pretende designar a “violação de exigências de comportamento tipicamente específicas, cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar o preenchimento de um certo tipo objectivo de ilícito”[13].
Convém, a propósito, esclarecer que, embora o ilícito negligente comporte um momento omissivo - precisamente o não ter o cuidado, ou de prever um certo resultado ou, tendo-o previsto, de evitá-lo - não se confunde com a omissão, que qualifica um tipo legal em relação à estrutura do comportamento.
A violação do dever de cuidado tanto pode traduzir-se numa acção como numa omissão.
Por outro lado, o cuidado exigível há-de ser determinado pela capacidade de cumprimento que, no dizer do Professor Figueiredo Dias ("Pressupostos da Punição" in Jornadas de Direito Criminal, ed. C.E.J., pág. 70), constitui o elemento configurador da censurabilidade da negligência, - o elemento revelador de que no facto se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever ser jurídico-penal.
"Está aqui verdadeiramente em causa - acrescenta aquele Professor (loc. cit.) - um critério subjectivo e concreto ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido - mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição".
Em suma, a negligência determina-se com recurso a uma dupla averiguação: por um lado, há que procurar saber que comportamento era objectivamente devido em determinada situação em ordem a evitar a violação não querida do direito e, por outro, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais.
Sempre que determinado comportamento se afasta daquele que era objectivamente devido numa situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, considera-se que esse comportamento preenche o tipo de ilícito do facto negligente.
Parece-nos adequado enquadrar aqui a situação concreta cuja tutela se faz através da tipificação como contra-ordenação da violação dos respectivos comandos legais.
Trata-se daquilo que é designado como “regime de regularização de sinistros”, conjunto de regras e procedimentos a observar pelas seguradoras com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de acidente no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Sempre que lhe seja comunicada a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros tem de levar a cabo uma série de procedimentos, exaustivamente descritos nos artigos 36.º e 37.º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, com prazos definidos, procedimentos esses que, no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte, hão-de culminar na apresentação de uma proposta razoável de indemnização ao lesado.
A primeira diligência a efectuar pela seguradora após a comunicação da ocorrência do sinistro de que resultaram danos materiais é contactar, no prazo de dois dias úteis, com o tomador do seguro, com o segurado ou com o terceiro lesado, marcando as peritagens que devam ter lugar (art.º 36.º, n.º 1, al. a), do citado diploma legal).
Foi este procedimento que, de acordo com a comunicação efectuada pela “A...” ao ISP em 11.02.2009, não foi respeitado, porque excedidos os prazos legalmente estabelecidos em 105 processos, tendo a autoridade administrativa considerado haver negligência em 69 desses casos.
A arguida “A...” teria, assim, incorrido na prática da contra-ordenação prevista e punível pelo art.º 86.º, n.º 1, do citado Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
Vejamos como abordou e decidiu a M.ma Juíza do tribunal recorrido esta questão, reproduzindo aqui a fundamentação da sentença, nessa parte:
“… a impugnante admite a violação no plano objectivo das supra referidas normas legais.
Coloca-se, porém, como extrema acuidade, a questão de determinar se a violação de tais regras se deve a qualquer conduta negligente da sua parte, como pugna a recorrida na decisão administrativa.
Retomando à matéria apurada em sede de audiência de discussão e julgamento, no plano subjectivo não se provou que a recorrente tenha actuado de forma deliberada, voluntária e conscientemente. Isto é, com a consciência de estar a actuar em desconformidade com a lei, não se abstendo, ainda assim de o fazer, designadamente não querendo cumprir os prazos impostos por lei”. 
Até aqui, nenhuma objecção ou censura merece a decisão recorrida, pois nada permite afirmar que o incumprimento dos referidos prazos tenha resultado de uma atitude deliberada, intencional, querida por parte da arguida e, portanto, que esta tenha agido dolosamente.
Continuando a citar a sentença recorrida:
“Apurou-se outrossim, que a recorrente com vista à aplicação dos procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 291/2007 e na Norma Regulamentar do ISP n.º 13/2006-R, de 5 de Dezembro aperfeiçoou e reforçou o sistema de atendimento (call center), criou um adequado programa informático, formou e adestrou aqueles que com tal programa tinham de laborar.
Ora, não se tendo provado os factos que permitiriam chegar à conclusão que a gestão de sinistros por parte da recorrente continuasse a ser feito em moldes que não garantissem os cumprimentos dos prazos legais, a autoridade administrativa não podia tê-lo feito também, até por que a única base probatória que tinha quanto á imputação subjectiva era a consubstanciada nos documentos juntos aos autos, a fls. 2 a 36, e nestes não se cuidou de determinar as razões que estão na base de tais incumprimentos, se erro humano, conduta imprópria do lesado, de terceiros, entre outras causas que podem dar origem a tais falhas.
A culpa pode assumir-se como dolo (a intenção de cometer o facto) ou como negligência (descuido no seu cometimento), sendo que esta última só é punível nos casos especialmente previstos na lei, por força do disposto no n.º 1 do art.º 8.º, do R.G.C.O.
A imputação subjectiva do facto ao agente não pode analisar-se numa mera relação psicológica naturalística, antes tem de se encarar como uma certa posição de agente para com o facto, capaz de ligar um ao outro e de permitir a censura em que o juízo de culpa se traduz.
Esta ligação do agente ao facto pode ter lugar por duas formas: dolo ou negligência.
Ora, o dolo é o conhecimento e a vontade da prática de um facto que preenche um tipo-de-ilícito. Podendo, o mesmo, analisar-se em dois elementos: - elemento intelectual ou cognoscitivo, que consiste na representação dos elementos essenciais – descritivos e normativos – e circunstâncias do facto que preenche o tipo legal, e consciência (conhecimento) da sua ilicitude, que se trata de um facto censurado pelo direito; - elemento emocional ou volitivo, traduzido na especial direcção da vontade de realizar o facto representado.
Aqui exigia-se à recorrente que tivesse conhecimento que o tratamento dado aos sinistros não era o correcto e de forma consciente tivesse querido não cumprir os prazos como lhe impunha a legislação entretanto em vigor.
O que, em face do exposto, manifestamente não temos por verificado no caso em apreço, deve até realçar-se, que de acordo com a matéria apurada, a recorrente empenhou-se no incremento de condutas e práticas a fim de evitar que os incumprimentos se verificassem.
É certo que ocorreram incumprimentos nos prazos, conforme aliás, a recorrente assumiu na sua defesa, porém, as razões por que os mesmos se verificaram não logrou apurar-se. Não podendo aceitar-se, como o faz a entidade administrativa, a conclusão genérica e vaga de que a gestão de sinistros por parte da recorrente continuava a ser feita em moldes que não garantiam os cumprimentos dos prazos legais.
Perguntar-se-á: Que moldes? Ora, a entidade administrativa não cuidou de fazer constar na sua decisão administrativa a forma como era feita a gestão de sinistros da impugnante, a fim de se aquilatar se os moldes em que a mesma era efectuada era incorrecta ou ultrapassada em face das novas exigências legais.
Por outro lado, o art.º 15.º do Código Penal (aplicável ex vi pelo art.º 32.º do RGCO), define que actua com negligência «quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto».
Da factualidade dada como provada, não existe um único facto que permita imputar factos objectivos ao agente a título de negligência, em qualquer uma das suas modalidades, pois, não se vislumbram quaisquer factos concretos consubstanciadores por parte da recorrente da representação do facto e a sua não actuação com a intenção de o realizar, com a omissão dos deveres de cuidado.
Consequentemente, da factualidade dada como provada, não existe um único facto que permita imputar os factos objectivos à impugnante a título de imputação subjectiva.
Há que concluir, pois, que a conduta imputada à recorrente não é típica, por não estarem preenchidos os seus elementos típicos a título de imputação subjectiva.
Conclui-se, desta forma, que nenhuma actuação da arguida/recorrente no caso sub judice, é passível de integrar o ilícito em apreciação, por falta de verificação de elementos do tipo, devendo, consequentemente, a mesma ser absolvida da prática das contra-ordenações que lhe foram imputadas”.
O recorrente não aceita a argumentação expendida na sentença e a sua discordância assenta, essencialmente, nos seguintes pontos:
§ a negligência ou diligência da actuação das companhias de seguros há-de ser sempre aferida em relação a cada um dos concretos prazos que tenham sido violados, não sendo só por si determinante o facto de ter sido instituído um sistema de gestão de sinistros eficaz;
§ ao ISP não cabe o ónus de invocar e provar as razões que estiveram na base dos incumprimentos da A..., «se erro humano, conduta imprópria do lesado, de terceiros, entre outras causas que podem dar origem a tais falhas»;
§ as próprias infracções aos prazos impostos por lei permitem deduzir, de acordo com uma inferência factual baseada nas regras de experiência comum, uma actuação negligente, sendo certo que à arguida caberá afastar essa presunção judicial, demonstrando que o incumprimento se deveu a obstáculos que não podia nem tinha obrigação de prever ou que não podia nem tinha o dever de controlar;
§ esta tese de que a prática da infracção faz presumir a ilicitude ou tipicidade subjectiva é reforçada no caso concreto das contra-ordenações por violação dos prazos previstos no art. 36.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 291/2007, se se tiver em conta o disposto na sub-alínea xxii), da alínea a) do n.º 1, do art. 3.º da Norma Regulamentar n.º 16/2007-R (publicada no Diário da República, 2.ª Série, n.º 20, de 29 de Janeiro de 2008);
§ o princípio in dubio pro reo é, apenas, um critério de decisão em caso de dúvida sobre os factos que servem de base a determinada pretensão e é inteiramente compatível com presunções naturais ou de experiência que estão na base da denominada prova indiciária;
§ a decisão recorrida surge, assim, viciada nos termos do art. 410.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal por um erro notório de apreciação da prova, conjugada a decisão recorrida com as regras de experiência comum.
Diz o recorrente que será quase impossível evitar a conclusão de que foi negligente a acção da empresa seguradora que, sem se verificar qualquer um dos obstáculos que justificam os atrasos, desrespeitou um ou mais prazos na regularização de sinistros de que tenha sido incumbida.
Nós diremos que é quase impossível não reconhecer razão ao recorrente, tão certeiros e convincentes são os argumentos que esgrime contra os fundamentos da sentença recorrida e a favor da condenação da arguida.  
Apesar das reservas e objecções[14] que, ainda, lhe são opostas, está consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indirecta[15], também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, “a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
Uma vez que em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.º do Código de Processo Penal), delas (das provas admissíveis) não pode ser excluída a prova por presunções (prevista, como noção geral, no artigo 349.º do Código Civil, mas prestável e válida como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos no processo penal) em que se parte de um facto conhecido (o facto base[16], que funciona como indício) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade[17] (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.
Neste âmbito, importam as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção, que se encontram na base de qualquer juízo probatório. São meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção, que cedem por simples contraprova, ou seja, prova que origine a dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, não havendo confissão, a prova dos elementos subjectivos do tipo (doloso ou negligente) não poderá fazer-se senão por meio de prova indirecta[18].
Não se compreendem, pois, os complexos e os pruridos que subsistem quanto à verificação do dolo por meio de presunções.
Aliás, é inteiramente lógico pensar e concluir que a pessoa (por si ou pelos seus representantes), nos comportamentos activos ou omissivos que assume, nas omissões ou actos que pratica, obedece às suas potencialidades volitivas, escolhendo, directa ou indirectamente, os resultados da sua actividade ou mantendo-se, por incúria, indiferente à produção de tais resultados.
Por isso, verificada a materialidade da infracção e conhecida a proibição legal, segundo as regras da experiência comum, podemos deduzir que aquela foi cometida com dolo ou, pelo menos, com negligência.
Pense-se, por exemplo, numa das infracções mais frequentes: a condução de veículo automóvel em estado de embriaguez.
O agente que esteve a confraternizar com os amigos e ingeriu várias bebidas alcoólicas, se, imediatamente a seguir, vai conduzir o seu veículo automóvel na via pública, sabendo que a lei proíbe e pune a condução com uma taxa de alcoolemia acima de determinado valor, e é fiscalizado, sendo-lhe detectada uma taxa de álcool no sangue de 1,5 g/litro, é inteiramente legítimo inferir o dolo ou, no mínimo, a negligência nessa conduta (assim os acórdãos do TRP, de 17.12.2003, do TRL, de 12.01.2011, do TRC, de 09.12.2009 e do TRE, de 05.04.2011, todos disponíveis em www.dgsi.pt)[19].
Se é assim no âmbito criminal, pelo menos, por identidade de razão também deve sê-lo em matéria de contra-ordenações. 
Assim, a verificação objectiva da conduta que integra a descrição típica do ilícito contra-ordenacional permite concluir, por presunção natural, judicial ou de experiência que o agente agiu, por acção ou por omissão, pelo menos, negligentemente.
No caso, estão em causa regras e procedimentos previstos no Dec. Lei n.º 291/2007, que visam garantir que, de forma pronta e diligente, logo que o sinistro lhe seja comunicado, a empresa de seguros assuma a sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas ao(s) lesado(s) em caso de acidente no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, havendo contrato de seguro válido e eficaz.
A arguida “A...”, sendo uma companhia de seguros, tinha, necessariamente, conhecimento e capacidade para levar a cabo esses procedimentos com respeito pelos prazos fixados na lei, tal como sabia que a violação dessas regras, designadamente o não cumprimento dos prazos, era punível como contra-ordenação.
Apesar disso, não obstante a singeleza das obrigações impostas[20], de fácil adimplemento, a arguida não as cumpriu em 69 casos relativos ao último quadrimestre de 2008.
Sempre que determinado comportamento se afasta daquele que era objectivamente devido (e conhecido do agente), como aqui aconteceu, considera-se que esse comportamento configura uma actuação dolosa ou, pelo menos, negligente, pois é esse juízo que se revela em sintonia com a normalidade das coisas e as máximas da experiência.
Face a este quadro, cabia à arguida “A...”, a bem da sua defesa, alegar e provar factos[21] que pusessem em crise aquela inferência, invocar circunstâncias que, pelo menos, fizessem surgir uma dúvida razoável sobre a imputação subjectiva daquela conduta, e não ao ISP apurar as razões do inadimplemento que a lei tipifica como infracção contraordenacional, como se entendeu no tribunal recorrido.
No entanto, como cabalmente demonstrou a recorrente na motivação do seu recurso, não é o facto de se implementar um sistema de gestão de processos de regularização de sinistros automóveis teoricamente eficaz que permite concluir por uma actuação cuidadosa e afasta a negligência.
Aliás, também não pode deixar de reconhecer-se razão à recorrente quando afirma que, se num universo de mais de vinte motivos de justificação atendíveis para o incumprimento dos prazos que as normas regulamentares prevêem, a arguida “A...” não reportou nenhum que pudesse ser considerado no relatório de incumprimentos, então é legítima a conclusão de que a própria seguradora admitiu que nenhum desses motivos se verificava no caso. 
                                                               *
Se é claro o art.º 75.º do RGC-O ao estatuir que o tribunal da relação só conhece de matéria de direito, nem por isso fica completamente arredada a possibilidade de sindicar a decisão sobre matéria de facto.
O diploma que contém o quadro legal das contra-ordenações sofreu já importantes alterações, concretamente, as que lhe foram introduzidas pelos Decretos-Lei n.ºs 356/89, de 17 de Outubro, 244/95, de 14 de Setembro, 323/2001, de 17 de Dezembro, e 109/2001, de 24 de Dezembro, e se não está em causa a autonomia do direito contra-ordenacional, estas alterações tiveram como efeito aproximá-lo do direito penal e processual penal, maxime no que tange às garantias (de audiência e de defesa) do arguido, que foram sendo adquiridas pelo processo contra-ordenacional, aliás, em cumprimento do comando constitucional (art.º 32.º, n.º 10, da CRP).
Determinando o art.º 41.º, n.º 1, do RGC-O, a aplicação subsidiária das normas do processo penal ao processo contra-ordenacional e sendo este estruturado em moldes idênticos ao processo-crime, não existem razões válidas para excluir a aplicação de algumas regras sobre impugnação da decisão, designadamente em matéria de facto.
No âmbito do recurso contra-ordenacional, o tribunal da relação posiciona-se como o Supremo Tribunal de Justiça se posiciona no processo penal, ou seja, funciona como tribunal de revista e apenas conhece da matéria de direito (cfr. art.º 434.º do Cód. Proc. Penal e citado art. 75.º, n.º 1, do RGC-O).
Ora, como é sabido, antes da reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, estava estabelecido um sistema designado de “revista ampliada”: mesmo nos casos em que o conhecimento se restringia a matéria de direito, o STJ podia intrometer-se em matéria de facto, quer por iniciativa própria, quer por invocação do recorrente de algum ou alguns dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
Com a aludida reforma, deixou de ser possível recorrer para o STJ com fundamento na existência de qualquer dos referidos vícios.
Constitui orientação sedimentada daquele Supremo Tribunal que a única possibilidade de conhecer dos vícios do art.º410.º, n.º 2 ocorrerá quando, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, o STJ, oficiosamente, ou seja, por sua iniciativa, decida fazê-lo. Dizendo de outro modo, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito, o STJ, excepcionalmente, deles conhecerá oficiosamente.
É essa função que, no processo contra-ordenacional, deve assumir o tribunal da relação.
Vertendo ao caso sub judice, diremos que do texto da decisão recorrida, conjugada com as regras da experiência comum, resulta que o tribunal recorrido cometeu erro notório na apreciação da prova ao não considerar verificado o nexo de imputação subjectiva, pelo menos, a título negligente, dos factos objectivos provados à actuação da arguida.
Por isso, e porque o processo fornece os elementos necessários e suficientes para tanto, há que proceder à alteração da decisão sobre matéria de facto, eliminando o facto considerado não provado e acrescentando o seguinte facto (com o número 4-A) à matéria de facto provada:
“Ao exceder os prazos máximos nos procedimentos legalmente definidos para a regularização de sinistros no âmbito do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel nos casos mencionados no número anterior, a arguida “A...”, apesar de bem conhecer as suas obrigações nesse âmbito e de ter consciência de que tal incumprimento era considerado um ilícito punível, não actuou com o cuidado que, objectivamente, era imposto e devido, e de que era capaz, em ordem a evitar a verificada violação daquelas obrigações, conformando-se com esse resultado”.
                                                           *

A autoridade administrativa, aqui recorrente, aplicou à arguida “A...” a coima de € 1 500,00 por cada uma da 69 contra-ordenações, montante que corresponde ao mínimo legal (art.º 86.º, n.ºs 1 e 3, do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto).
Por força da regra ou princípio da proibição de reformatio in pejus (art.º 72.º-A) do RGC-O, as coimas parcelares não podem ser alteradas em prejuízo da arguida e também ninguém pediu que fossem alteradas.
No entanto, a arguida “A...” pugna pela alteração da coima única aplicada, pelas seguintes razões:
§ revela-se injusta a pretensão do ISP de que a coima aplicável corresponda à sanção máxima possível, mesmo que a taxa de incumprimento fosse de 100%, quando a arguida apenas incumpriu em 0,0055% dos casos;
§ com efeito, a cada um dos incumprimentos corresponde uma coima que varia entre € 1.500,00 e € 22.445,00, pelo que, aplicando-se o valor mínimo de cada uma das coimas se obtém o valor de € 103.500,00, valor esse, porém, que por força do disposto no nº 1 do artigo 86º do Decreto – Lei 291/2007 tem de ser reduzido a € 44.890,00, ou seja, o valor da coima aplicada;
§ nunca podendo ultrapassar tal valor, quer o número de incumprimentos seja o que consta dos presentes autos, quer seja o dobro, o triplo ou o décuplo desse mesmo número;
§ é, pois, manifestamente iníqua a coima aplicada que não tem em consideração nem a taxa de sucesso da arguida na gestão de sinistros sem incumprimentos nem os demais factos por ela alegados e que o Instituto de Seguros de Portugal não põe em causa e, de resto, ficaram provados em audiência de discussão e julgamento.
Em caso de concurso de contra-ordenações, a moldura legal da coima tem como limite máximo a soma das coimas concretamente aplicadas às infracções em concurso (n.º 1 do art.º 19.º do RGC-O), o que é dizer que, no caso, esse valor máximo seria de € 103 500,00 (€ 1 500,00 x 69).
Porém, o n.º 2 do citado art.º 19.º estabelece que a coima aplicável não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso.
Sendo o limite máximo da coima aplicável às contra-ordenações imputadas à arguida de € 22 445,00, o limite máximo da moldura legal do concurso é reduzido para € 44 890,00 (€ 22 445,00 x 2).
Foi esse o valor (o máximo aplicável) da coima única que o recorrente ISP aplicou e que a arguida “A...” considera uma iniquidade.
É verdade que a norma do art.º 19.º, n.º 2, do RGC-O redunda numa distorção do princípio da proporcionalidade (pode acontecer que seja igual o limite máximo da moldura legal do concurso, quer sejam dez ou cem as contra-ordenações praticadas), mas afigura-se-nos que a irracionalidade da solução legal, devendo ser ponderada, não pode ser decisiva na fixação da medida da coima única.
Nem o RGC-O, nem os diplomas especificamente dirigidos ao sector da actividade seguradora e resseguradora (os referidos Decretos-Leis 291/2007, de 21 de Agosto, e o Dec. Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril) contêm uma norma semelhante à do artigo 77.º, n.º 1, do Cód. Penal que estabelece um critério específico para a determinação da pena única em caso de concurso de crimes (devendo ser considerados, na sua globalidade, os factos e a personalidade do agente), limitando-se o art.º 207.º, n.º 1, do segundo dos referidos diplomas legais a estabelecer genericamente que “a medida da coima e as sanções acessórias aplicáveis serão determinadas em função da culpa, da situação económica do agente e da sua conduta anterior”.
No entanto, tratando-se de efectuar um cúmulo jurídico[22], impõe-se que a determinação da coima única seja devidamente fundamentada[23].
A prevenção especial (de ressocialização) não faz sentido como factor de determinação da medida da coima, pois esta “representa um mal que de nenhum modo se liga à personalidade ética do agente e à sua atitude interna, antes serve como mera «admonição», como mandato ou especial advertência conducente à observância de certas proibições ou imposições legislativas” (Figueiredo Dias, “O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social” in “Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários”, vol. I, Coimbra Editora, 30).
Assim, será em função da culpa e das exigências de prevenção geral que a coima única há-de ser fixada.
O Dec. Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril, contém uma classificação das contra-ordenações que, em função da relevância dos interesses violados, podem ser leves, graves e muito graves (artigos 212.º a 214.º).
As infracções cometidas pela arguida “A...” são consideradas infracções graves (cfr. artigo 213.º).
Não sendo a negligência na actuação da arguida particularmente intensa, mas sendo muito relevante (a ponto de ser considerada infracção grave a sua violação) o interesse tutelado, não esquecendo que são em elevado número as contra-ordenações cometidas, situaremos a sua culpa ao nível da mediania. 
A coima, sendo uma sanção de natureza patrimonial, se não tiver uma expressão significativa, para uma empresa que evidencia um considerável poderio económico, não terá senão um valor simbólico, o que faria com que as finalidades admonitórias que lhe subjazem saíssem frustradas.
O recorrente refere na motivação do recurso que a arguida “A...” já tem uma condenação definitiva no pagamento de uma coima no montante de € 44 890,00 (já pago), também aplicada pelo ISP. No entanto, essa condenação não integra os factos provados e por isso não pode falar-se em reiteração de conduta infractora.
Assim, sendo realmente fortes, não podem ser consideradas particularmente intensas as exigências de prevenção geral, a ponto de se justificar a aplicação do montante máximo da coima.
Ponderando tudo isso, revela-se adequada e proporcional à gravidade do ilícito global a coima única de € 30 000,00 (que corresponde, aproximadamente, a dois terços do montante máximo aplicável).
Pelas razões expostas, é de primeira evidência que não há justificação para se ficar por uma simples admoestação.


III – Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto por “Instituto de Seguros de Portugal” e, em consequência:
1. alterar a decisão sobre matéria de facto, eliminando o facto considerado não provado e acrescentando o seguinte ao elenco de factos provados (com o número 4-A):
“Ao exceder os prazos máximos nos procedimentos legalmente definidos para a regularização de sinistros no âmbito do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel nos casos mencionados no número anterior, a arguida “A...”, apesar de bem conhecer as suas obrigações nesse âmbito e de ter consciência de que tal incumprimento era considerado um ilícito punível, não actuou com o cuidado que, objectivamente, era imposto e devido, e de que era capaz, em ordem a evitar a verificada violação daquelas obrigações, conformando-se com esse resultado”.
2. Condenar a arguida “Companhia de Seguros A..., S.A.”, pela prática, em concurso real, de 69 (sessenta e nove) contra-ordenações previstas e puníveis pelos artigos 36.º, n.º 1, al. a), do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, e 86.º, n.ºs 1 e 3, do Dec. Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril, na coima de € 1 500,00 por cada uma das infracções e, em cúmulo jurídico, na coima única de € 30 000,00 (trinta mil euros).
Sem tributação.

Lisboa, 10 de Janeiro de 2012;

Relator: Neto de Moura;
Adjunto: Alda Tomé Casimiro;
--------------------------------------------------------------------------------------
[1] A que a lei chama, impropriamente (pois não há nenhuma decisão judicial), recurso.
[2] No entanto, na fase administrativa do processo, será obrigatória a assistência de defensor “sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido” (n.º 2 do art.º 53.º do RGC-O).
[3] Na sua versão primitiva, o art.º 69.º do RGC-O estabelecia a não obrigatoriedade da presença do Ministério Público na audiência de julgamento. Com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, passou a dispor que o Ministério Público “deve estar presente”, mas do preâmbulo deste diploma legal resulta que a intenção legislativa é a de atribuir carácter obrigatório a essa presença e não se compreenderia que fosse de outro modo, pois compete-lhe, nomeadamente, promover a prova dos factos que considere relevantes para a decisão (art.º 72.º do RGC-O). Neste exacto sentido, M. Simas Santos e J. Lopes de Sousa, “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral”, 6.ª edição, 2011, p. 523.
[4] Todos estes acórdãos vêm mencionados na obra citada na nota anterior, 541 e segs.
[5] Para M. Simas Santos e J. Lopes de Sousa (Ob. Cit., 525), esta presença “poderá justificar-se em todo os casos em que tenham sido realizadas diligências cujo conteúdo seja susceptível de alterar a situação factual em que assentou a decisão de aplicação de coima, ou naqueles em que o arguido suscite no recurso questões de direito que não se tenham suscitado durante a fase administrativa do processo contra-ordenacional, pois na fase judicial deste processo apenas na audiência aquela autoridade tem oportunidade de se pronunciar sobre os novos elementos ou questões”.
[6] Cfr. Beça Pereira, “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”.
[7] Diploma que regula as condições de acesso e de exercício da actividade seguradora e resseguradora no território da U.E.
[8] A grande diferença estará na possibilidade, que tem o assistente, de deduzir pedido cível.
[9] Professor Figueiredo Dias (“Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, Coimbra Editora, p. 150).
 
[10] Reportando-se ao ilícito penal doloso, mas que são válidas para o ilícito contraordenacional doloso.
[11] Sendo o dolo (tal como a negligência) uma atitude pessoal do agente perante o dever-ser jurídico-penal, está relacionado com realidades psicológicas. Mas a intenção do agente - seja qual for a modalidade de dolo - mesmo requerendo a prova de um elemento do foro íntimo, e por isso só sendo alcançável por via indirecta, através de dados exteriores e apelando às regras da experiência comum, não deixa de constituir matéria de facto.
[12] Cfr., entre muitos outros, o acórdão do STJ, de 22.04.2009 (Relator: Cons. Fernando Fróis) e os arestos nele citados.

[13] Figueiredo Dias, “Temas Básicos da Doutrina Penal”, 2001, 359.
[14] Sobre as razões destas reservas, veja-se o texto de Euclides Dâmaso Simões “Prova Indiciária (Contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente)”, publicado na revista “Julgar”, n.º 02, 2007, 203 3 segs.
[15] Além do acórdão desta Relação de Lisboa citado na motivação do recurso, cfr., entre muitos outros, os acórdãos do TRP, de 28.01.2009, do TRC, de 30.03.2010 e do STJ, de 11.07.2007 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
[16] Que pode ser um único, mas, desejavelmente, devem ser factos plurais e estar inter-relacionados.
[17] O juízo de inferência, que deve ser razoável e fundamentado.
[18] Como ensinava o Professor Cavaleiro Ferreira (“Curso de Processo Penal”, II, 1981, p. 292) «existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica».
[19] No sentido de que uma presunção ilidível de dolo ou de negligência não viola a presunção de inocência, cfr. a jurisprudência do TEDH citada por Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, anotação ao artigo 127.º, p. 334.
[20] Cabe aqui relembrar que a obrigação violada consistia em proceder ao primeiro contacto com o tomador de seguro, com o segurado ou com o terceiro lesado no prazo de dois dias, marcando as “peritagens” a que houvesse lugar. Em vários casos, esse prazo foi largamente ultrapassado, chegando os atrasos a ser de vinte dias.
[21] Sem que isso signifique aceitação de um ónus de alegação e prova em processo penal ou no contraordenacional, antes decorrendo de um princípio de cooperação e lealdade processual.
[22] Obviamente, seria diferente se a lei determinasse a acumulação material das coimas.
[23] Neste sentido, cfr. o acórdão da RE, de 11.11.2008 (disponível em www.dgsi.pt).