Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MICAELA PIRES RODRIGUES | ||
Descritores: | INJÚRIA EXPRESSÃO “CALOTEIRO” | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/20/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | (da responsabilidade da relatora): I. Para determinar se certa expressão, imputação ou formulação de juízos de valor são ofensivas da honra e consideração de outra pessoa, importa, em primeiro lugar, ter presente o contexto situacional de vivência humana em que as mesmas foram proferidas; II. Em segundo lugar, há que ter presente que o direito penal tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito, não devendo intervir para criminalizar simples desrespeitos, grosserias, descortesias ou más educações; III. Por último, dentro do próprio tipo, conflituam bens jurídicos fundamentais com assento na Constituição: por um lado, o direito de todos os cidadãos à sua integridade moral, ao bom-nome e à reputação - artigo 26º da CRP – e, por outro, o direito de cada um exprimir e divulgar livremente o seu pensamento através da palavra, da imagem ou qualquer outro meio – artigo 37.º, n.º 1 da CRP-, importando encontrar uma solução que procure a sua harmonização ou concordância prática, atendendo ao caso concreto segundo critérios de proporcionalidade; IV. O sentido comum do epíteto de caloteiro é o de designar pessoa que caloteia, que não paga o que deve (dicionário Priberam on line, pesquisa em 04.06.2024). A palavra foi proferida em assembleia de condóminos [momento particularmente relevante da vida do condomínio, propício à ocorrência de algum grau de conflitualidade, com discussões mais acaloradas e manifestações exageradas], resultando dos autos que o arguido tinha dívidas para com o condomínio [dívidas que disse que “queria pagar mas que não ia andar a bater à porta de ninguém para o efeito”]; V. Não obstante o sentido depreciativo com que foi dita, a expressão em causa [caloteiro] apresenta um certo grau de adequação ao contexto em que teve lugar e à perceção/opinião do recorrente sobre o particular modo de agir do arguido; VI. Atendendo ao contexto em que foi proferida, a expressão “caloteiro” deve ser considerada como a formulação de um juízo crítico por parte do recorrente, enquanto manifestação de indignação, face à conduta do arguido, pois encerra a constatação de uma atuação deste arguido, e não da sua personalidade, e não ultrapassa de forma desproporcional o exercício do direito de manifestar a sua opinião crítica e, como tal, não tem a virtualidade de alcançar, à luz dos princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade, um patamar de gravidade que demande ou justifique a intervenção do direito penal [sendo irrelevante que o arguido se tenha sentido vexado e humilhado, na medida em que não incumbe ao direito penal proteger a sua sensibilidade pessoal, no âmbito de uma relação conflituosa de vizinhança]. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO 1. No Juízo Local Criminal do Seixal (Juiz 3) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no âmbito do processo comum n.º 631/20.2T9SXL, em que são arguidos AA e o ora recorrente BB, por sentença proferida em 11.01.2024 foi decidido: «[A]bsolver o arguido BB da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 13.º, nº 1 do Código Penal. Mais decide o Tribunal: A- Condenar o arguido AA pela prática, em concurso real, de: 1 – Um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, numa pena de 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, com sujeição ao dever de pagar a BB a indemnização que a seguir se fixa pelos danos não patrimoniais que lhe causou, até ao termo do prazo da suspensão, apresentando o respectivo comprovativo desse pagamento nos autos ou declaração de quitação; e à regra de conduta de não contactar ou se dirigir por qualquer meio a BB durante o período da suspensão, nos termos dos artigos 50.º, 51.º, n.º 1, alínea a) e 52.º, n.º 2, do mesmo código; 2 -Um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, numa pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o montante global de €330,00 (trezentos e trinta euros); Penas estas que se cumulam materialmente, em face da sua diferente natureza originária, nos termos do artigo 77.º, n.º 3, do Código Penal; B- Condenar o arguido BB pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, numa pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €8,00 (oito euros), perfazendo o total de 480,00 (quatrocentos e oitenta euros). Por fim, o Tribunal decide: 1- Julgar parcialmente procedente, porque provado apenas em parte, o pedido de indemnização civil deduzido por AA contra BB e, consequentemente, condena este último a pagar ao primeiro uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de €300,00 (trezentos euros), actualizada na presente data, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde hoje e até integral e efectivo pagamento, absolvendo o demandado civil BB do demais peticionado; 2- Julgar totalmente procedente, porque provado o pedido de indemnização civil deduzido por BB contra AA e, consequentemente, condena este último a pagar ao primeiro uma indemnização no valor de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) actualizada na presente data, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde hoje e até integral e efectivo pagamento.» 2. Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso o arguido BB, formulando as seguintes conclusões: «1. O presente recurso vem interposto da sentença proferida em 11 de ... de 2024, por via do qual o tribunal a quo, se decidiu pela condenação do ora recorrente BB, pela prática, de um crime de injúria, p.e p. pelo artigo 181º nº 1 do Código Penal e na indemnização a pagar ao arguido AA no valor de 300,00€ (trezentos euros) a que acrescem juros de mora. 2- Tais factos afiguram-se-nos incorrectamente julgados a luz dos seguintes meios de prova: - Teve-se em conta os testemunhos oferecidos em audiência de julgamento o que, no contexto dos autos, não permite concluir pela actuação do arguido BB dada por provada. 3. compulsada e analisada toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, resulta da circunstância de ter ficado evidente que o arguido era administrador do condomínio, e que o arguido AA, como condómino devia uma importância ao condomínio de 400,00€ a 600,00€, e que a intervenção do arguido BB, visava apenas o interesse legítimo do condomínio. Pelo que, entendemos por excessivo, porque para além da prova objectiva produzida e existente nos autos, concluir que, o arguido BB, tivesse praticado o crime de injurias em que foi condenado. 4. O arguido AA, no seu depoimento em audiência confessa que “ (...) sempre teve problemas com o arguido BB, que era administrador do condomínio (...), mais acrescenta que que no dia da reunião e quando pretendida dar a sua opinião, “foi logo mandado calar pelo arguido BB, que disse que ele era um caloteiro e como não pagava o condomínio não podia participar”, facto que foi dado como não provado na douta sentença, que acrescenta “(...) e que tal tenha sido ouvido por todas as pessoas que se encontravam na reunião de condomínio.” (cfr - depoimento do arguido transcrito na sentença) 5. A testemunha CC, no seu depoimento disse, que pouco depois da reunião de condóminos ter iniciado, (..) entrou o arguido AA, vindo da rua e abordou DD, questionando se era uma reunião e que queria pagar o que estivesse em dívida (...)”, “ foi então que o arguido BB, ainda que falando para o geral das pessoas , disse não queriam ali caloteiros;” sendo este testemunho fundamental para se considerar como provado o facto julgado como provado. 6. Porém, o tribunal a quo, e “... atentendo-se aos factos que resultaram provados ...” ficou convencido de que “a conduta do arguido BB no dia 31.01.2020 preenche objectivamente o tipo de crime de injuria, pois o mesmo, no contexto em que falou a expressão “não queriam ali caloteiros”, ainda que de forma enviesada, como que falando para o geral das pessoas que estavam na reunião de condomínio, estava era a dirigir ao arguido AA tais palavras...”. 7. Ora, tal matéria, constitui, a nosso ver, um erro notório na apreciação da prova, traduzindo-se num ponto de facto incorrectamente julgado, atendendo ao afirmado pela testemunha CC no seu depoimento (registado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática do tribunal). 8. A verdade é que não existe mais prova que corrobore a conclusão retirada pelo tribunal a quo para decidir no sentido condenatório do arguido BB na prática de um crime de injúrias, p.e p. pelo artigo 181º nº 1 do Código Penal e na indemnização a pagar ao arguido AA no valor de 300,00€ (trezentos euros) a que acrescem juros de mora designadamente, não foi efectuada prova cabal da intenção do arguido BB querer ofender a honra e consideração do arguido AA, na medida em que o arguido BB, como administrador do condomínio, falou no plural, em nome do condomínio, para o condomínio e em defesa do interesse legitimo do condomínio, como ficou provado. Razão pela qual pugnamos que estes factos foram dados por provados sem prova suficiente que permita, para além de toda a dúvida razoável, a respectiva condenação pela prática de um crime de injúrias, p.e p. pelo artigo 181º nº 1 do Código Penal e na indemnização a pagar ao arguido AA no valor de 300,00€ (trezentos euros). 9. Isto é, em que se baseou o Tribunal a quo, quais a provas de que dispõe e que foram produzidas em audiência ou constem nos autos que sustem a prova de que o arguido BB pretendia ofender o arguido BB. Afigura-se-nos credível que não existem provas da autoria, pelo arguido BB, dos factos contidos na acusação particular.» Terminou pedindo a procedência do recurso e consequente absolvição do arguido do crime pelo qual foi condenado. 3. O Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao recurso no sentido do seu não provimento, nos seguintes termos: «Sobre a matéria de facto dada como provada Ao longo da motivação o recorrente, com o devido respeito, vai misturando diversas questões relacionadas com a decisão sobre a matéria de facto que, sendo distintas, obrigavam a tratamento diferenciado. De tal modo, que se fica sem se saber se pretende impugnar a matéria de facto, nos termos do art.º 412º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, ou se invoca os vícios do art.º 410º, nº 2 do mesmo diploma legal (ou se pretende fazer as duas coisas em simultâneo). Em qualquer dos casos, fá-lo de forma incorrecta. Se pretendeu impugnar a matéria de facto, nos termos do citado art.º 412º, nº 3 e n.º 4 do Código de Processo Penal, a motivação parte de um equívoco: o entendimento de que o Tribunal da Relação pode fazer um novo julgamento, indicando, mediante a leitura das transcrições feitas (o que foi realizado de forma muito residual e esporádica pelo recorrente, ao arrepio do determinado pelo citado nº 4), os factos que considera provados e não provados. O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art.º 127º do Código de Processo Penal. O recorrente não cumpriu, com rigor e plenitude, o formalismo previsto naquele n.º 3, especificando quais os factos que considera incorrectamente julgados e, relativamente a cada um deles, quais as provas que impunham decisão diversa e o sentido ou a redacção correcta da decisão. Quanto aos vícios previstos no art.º 410, nº 2 do Código de Processo Penal, todos eles têm forçosamente, como decorre do texto do corpo do n.º 2, que resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo possível, para a sua demonstração, o recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações prestadas ou documentos juntos, ou a própria interpretação sobre tais elementos probatórios. E da simples leitura da sentença recorrida verifica-se que a mesma não enferma de qualquer dos vícios em referência. Percorrendo a decisão recorrida também não vislumbramos o vício de contradição a que se reporta a alínea b) do art.º 410º do Código de Processo Penal, nem qualquer erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do mesmo preceito. O erro notório na apreciação da prova nada tem a haver com a simples divergência quanto àquilo que o Tribunal deu como provado e o recorrente não daria e daí o seu desacordo com aquela, sendo irrelevantes as considerações que este faz, no sentido de pretender discutir a prova feita no julgamento e de solicitar que o Tribunal de recurso modifique tal prova e passe a aceitar como realidade aquilo que o recorrente pretende corresponder ao sentido do que teria resultado do aludido julgamento. Na verdade, o recorrente, em nosso entender, invoca esse mesmo vício, porquanto, afinal, discorda da forma como o Tribunal valorou a prova produzida. Com efeito, atentando quer nos fundamentos do recurso, quer nas suas conclusões, logo se vê que o recorrente apenas pretende que a Meritíssima Juiz “a quo' devia ter formado convicção em sentido diferente, ou seja, discorda, afinal e apenas, da valoração que o julgador fez da prova produzida em audiência de julgamento. Do que se trata realmente, quanto à matéria de facto, é que o recorrente valora e sopesa meios de prova, de forma diversa da levada a cabo pelo Tribunal “a quo'. Nenhuma censura merece a matéria de facto julgada provada e não provada, face à inexistência dos invocados vícios da sentença, nomeadamente, do enumerado na alínea c) do art.º 410º, nº 2 do Código de Processo Penal. Havendo total acerto no que foi julgado de facto, deve ter-se por assente a factualidade dada como provada e não provada na sentença recorrida. Sobre a violação do princípio in dúbio pro reo Relativamente à suposta violação do princípio in dúbio pro reo, também alegada pelo arguido, ora recorrente (apenas de passagem e nas suas motivações), sempre se dirá que sendo este uma emanação do princípio da presunção de inocência, previsto no art.º 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, surgindo como uma resposta a problemas de incerteza em processo penal, impõe que qualquer non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. Ou seja, se a final da produção de prova, permanecer alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido, impõe-se uma sentença absolutória. E para que exista violação deste princípio é necessário que o tribunal tenha tido, ou devesse ter tido dúvidas (não uma qualquer dúvida subjectiva, mas sim uma dúvida razoável e insanável que seja objectivamente perceptível no contexto da decisão proferida, de modo a que seja racionalmente sindicável) acerca da culpabilidade do recorrente ou do modo como os factos ocorreram e, não obstante, tenha decidido contra àquele. No entanto, resulta claramente da motivação de facto da douta sentença proferida, que a Mmª Juíza do tribunal à quo, através da análise criteriosa e pormenorizada da prova produzida, bem como das ilações que dela retirou, conseguiu dirimir todas as dúvidas com que se deparou, sem que qualquer uma delas tenha subsistido ou devesse ter subsistido, tendo formado a sua convicção com base no que se lhe apresentou como credível, lógico e coerente e decidindo em conformidade. E da prova produzida, não se afigura que a mesma pudesse ter suscitado ao Tribunal quaisquer dúvidas que pudessem fundamentar outro tipo de decisão, nomeadamente a absolvição do arguido, ora recorrente. Da medida da pena Insurge-se ainda o arguido (apesar de o fazer, igualmente, apenas nas suas motivações), quanto à alegada severidade da pena, que lhe foi aplicada. Ora, nos termos do art.º 40.º do C. Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa. Daqui resulta haver, no âmbito da moldura penal abstractamente aplicável, um limite mínimo correspondente às expectativas da comunidade perante a gravidade da norma violada e um limite máximo fixado pela culpa do agente, que, em caso algum, pode ser ultrapassado. Será dentro destes limites que se realizarão as necessidades de prevenção especial ou ressocialização do agente. Sendo o crime em causa punido com pena de multa ou de prisão, há sempre que ter em conta o disposto no art.º 70º do C. Penal, segundo o qual deve dar-se preferência às medidas não privativas da liberdade, desde que estas realizem, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, plasmadas no art.º 40.º do C. Penal. Quanto à medida da pena, dispõe o art.º 71.º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal que “a determinação da medida da pena (...) é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, devendo ter em conta “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”, referindo algumas dessas circunstâncias. Ora, a moldura abstracta da pena quanto ao crime de injúria é de pena de prisão de 1 mês a 3 meses ou pena de multa entre 10 a 120 dias. Antes de mais, tendo em atenção que são altos os índices de criminalidade da região, e que este tipo de crime tem uma frequência também elevada, é de concluir que se mostram consideráveis as necessidades de prevenção geral positiva. No que toca às necessidades de prevenção especial, considera-se que as mesmas são medianas, uma vez que o arguido se encontra socialmente integrado e não regista antecedentes criminais, sendo esse, aliás, o dever cívico de qualquer cidadão médio. No vertente caso, terá que ainda que se ter em conta que o arguido agiu com dolo directo, bem como o grau de ilicitude demonstrado, que não deve ser considerado médio, mas antes algo elevado, considerando que a expressão que dirigiu ao ofendido para lesar a sua honra e consideração, foi produzida na presença de outras pessoas. No que respeita à culpa do arguido, que é o limite inultrapassável da pena, entendeu-se e bem, que a mesma é elevada, atentos os contornos da prática dos seus actos. Neste enquadramento, não poderemos chegar a outra conclusão que não seja a razoabilidade e a adequação da decisão recorrida, ao fixar a pena aplicada, na metade da pena abstracta aplicável ao crime em causa. Assim e tendo sido aplicada ao arguido uma pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 8,00€ (oito euros), não se poderá dizer é que o tribunal a quo não tenha sido benevolente e ponderado. Face ao exposto, não podemos, assim, concordar com as teses defendidas pelo recorrente, dado que, a douta sentença recorrida não merece qualquer reparo, pelo que deve a mesma ser mantida, integralmente, negando-se provimento ao recurso interposto.» 4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, acompanhando a resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância. 5. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal (doravante CPP), o recorrente apresentou resposta, terminando como no recurso. 6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência. Cumpre apreciar e decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Delimitação do objeto do recurso Conforme doutrina e jurisprudência sedimentada, o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Caso as conclusões fiquem aquém da motivação, a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil, porquanto o tribunal de recurso só estas pode considerar e, caso as conclusões vão além da motivação, não devem aquelas ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (vd., Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, pp. 335 e 336 e Acórdão do STJ de 14.09.2023, Processo n.º 39/21.2YGLSB.S1). No caso, atentas as conclusões do recurso, a única questão que cumpre apreciar é a da impugnação da matéria de facto, excluindo-se a dosimetria da pena aplicada, por não constar das conclusões. 2. Decisão recorrida. No que releva para a apreciação do presente recurso, a sentença recorrida apresenta o seguinte teor (transcrição): «Fundamentação: Factos Provados: 1) No dia … de 2020, pelas …h…min, no átrio de entrada do prédio sito na ..., BB e AA travaram-se de razões, no decurso de uma reunião de condomínio que se encontrava a decorrer, por motivos relacionados com supostas dívidas mantidas pelo segundo ao condomínio em causa; 2) Mais concretamente, quando tal reunião de condomínio estava a decorrer, havia uns 10 minutos, o arguido AA entrou no prédio e invocou que não tinha sido convocado para a assembleia de condóminos, ao que DD, que ali se encontrava no âmbito de uma empresa de gestão de condomínios, lhe disse que estava afixada a convocatória na entrada; 3) A seguir, o arguido BB perguntou se o arguido AA tinha direito de voto na assembleia, porque tinha valores em dívida ao condomínio, ao que DD lhe respondeu que o arguido AA tinha o direito de assistir e votar e o arguido AA retorquiu que queria pagar o que estivesse em dívida, mas não ia andar a bater à porta de ninguém para o efeito; 4) Foi então que o arguido BB disse que não queriam ali caloteiros; 5) Essa expressão foi ouvida por CC, que se encontrava na reunião do condomínio; 6) A seguir, o arguido AA dirigiu-se ao arguido BB e disse “O que é que tu queres filho da puta?”; 7) Tais palavras foram dirigidas ao arguido BB pelo arguido AA em voz alta e de molde a serem ouvidas por terceiros, e foram escutadas por quem se encontrava nessa assembleia de condóminos, mormente DD e CC; 8) Logo a seguir a ter proferido tal expressão, o arguido AA dirigiu-se ao arguido BB, empurrou-o contra uma parede do átrio do prédio e, acto contínuo, desferiu-lhe murros na cara, atingindo-o inclusivamente no olho direito; 9) O arguido BB ainda colocou as mãos à frente da cara e a seguir agarrou-se ao arguido AA, procurando segurar-lhe os braços, para que este parasse de lhe bater, ao que este último o segurou então pela roupa; 10) O arguido BB ainda tentou libertar-se e tirar uma das mãos de AA que o segurava pela roupa, não o conseguindo, andando os dois depois a agarrarem-se um ao outro pelo átrio do prédio, até que o arguido AA empurrou o arguido BB contra a porta do prédio, levando a que o vidro da mesma se partisse; 11) O arguido AA continuou a empurrar o arguido BB até que ambos caíram ao chão, ficando o arguido AA por cima, voltando então a desferir murros na cara e corpo do arguido BB; 12) BB e AA foram separados por EE, seu vizinho, que levou o arguido AA para fora do prédio, permanecendo o arguido BB no interior, tendo-se sentado nos degraus das escadas no átrio desse edifício; 13) Contudo, quando EE este se ausentou momentaneamente do local, para trocar de roupa, cerca de 5 minutos depois, o arguido AA entrou de rompante no prédio, dirigiu-se ao arguido BB, que permanecia sentado nas escadas e nem estava a dizer-lhe nada, e desferiu neste último um soco na cara, fazendo-o cair para trás e posicionou-se por cima dele; 14) Estando o arguido AA por cima do seu corpo a dar-lhe murros, o arguido BB deu-lhe então também murros que o atingiram na cara, ao mesmo tempo que procurava movimentar o corpo para sair debaixo dele, tendo-o o arguido AA ainda mordido no lado direito da testa, na região parietal desse lado, junto aos cabelos; 15) BB e AA apenas cessaram os comportamentos descritos, quando voltaram a ser separados por EE, que segurou no arguido AA, passando-lhe um braço à volta do pescoço e levou-o para fora do prédio; 16) Em consequência da conduta do arguido BB, o arguido AA sofreu dores nas regiões atingidas, assim como escoriações na face, tendo recebido assistência hospitalar, e tendo tais lesões determinado, como consequência directa e necessária, 5 (cinco) dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral; 17) Em consequência da conduta do arguido AA, BB sofreu dores nas regiões atingidas, assim como ferida frontal, com perda de substância e hematoma peri orbitário direito, tendo recebido assistência hospitalar, e tendo tais lesões determinado, como consequência directa e necessária, 21 (vinte e um) dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral; 18) O arguido BB sabia que as suas condutas eram aptas a molestar a integridade física de AA e, não obstante, quis agir dessa forma, visando com os seus comportamentos, nos dois momentos supra descritos, fazer com o arguido AA parasse de lhe bater e para dele se soltar e escapar; 19) O arguido BB proferiu as expressões supra enunciadas com o propósito de atingir o arguido AA na sua honra e bom nome, o que logrou conseguir; 20) O arguido AA sabia que as suas condutas eram aptas a molestar a integridade física de BB e, não obstante, quis agir da forma por que o fez, com o propósito de alcançar tal resultado, o que conseguiu; 21) O arguido AA proferiu tal expressão supra referida ao arguido BB livre e conscientemente, com a intenção de atingir o bom nome e a reputação deste último, o que logrou conseguir; 22) Os arguidos actuaram sempre e cada um de forma livre, deliberada e consciente. 23) Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas, e, ainda assim, não se coibiram de as adoptar; Dos pedidos de indemnização civil: 24) Em virtude das expressões que o arguido BB lhe dirigiu, o arguido AA sentiu-se vexado e humilhado e nos dias seguintes recordava frequentemente o acontecido; 25) Em consequência das expressões que o arguido AA lhe dirigiu, BB sentiu-se ofendido na sua honra e consideração, com vergonha e vexado, para mais tendo as mesmas sido ouvidas por terceiros; 26) Em virtude dos actos do arguido AA, nas noites que se seguiram, o arguido BB quase não conseguia dormir, tendo dificuldade em descansar; 27) O arguido BB passou a ter receio de regressar a casa, não o conseguindo fazer com tranquilidade, tendo medo de voltar a ser agredido. Mais se provou: 28) Já depois destes acontecimentos, o arguido AA, ao cruzar-se com o arguido BB, disse-lhe “Isto ainda não acabou”; 29) O arguido BB tem a profissão de …, estando a trabalhar e a auferir um salário mensal no valor de €2.300,00 líquidos; 30) O arguido BB vive com a esposa, que trabalha e recebe um ordenado no valor mensal líquido de €1200,00, fazendo também parte do agregado familiar um filho com 30 anos, que trabalha, mas não contribui para as despesas da casa; 31) O agregado familiar do arguido BB vive em casa própria, que se encontra paga e não suporta o pagamento de empréstimos; 32) O arguido AA encontra-se desempregado e não está inscrito no centro de emprego, sendo que ajuda a sua mãe num restaurante que ela tem, recebendo €400,00 mensais; 33) O arguido AA vive com uma companheira, a qual trabalha e aufere um salário mensal no valor de €1.000,00 e um filho desta, que terminou a faculdade, mas não se encontra a trabalhar; 34) O agregado familiar do arguido AA vive em casa que lhe é facultada pelo tio do mesmo, nada pagando pelo seu uso; 35) O agregado familiar do arguido AA suporta o pagamento de um crédito pessoal no valor mensal de €220,00; 36) O arguido AA confessou parcialmente os factos; 37) Os arguidos não têm antecedentes criminais. Factos não provados: Não se provou, com relevância para a decisão, nenhuma da factualidade que não se compagina com a supra descrita, designadamente que: - o arguido BB tenha dito ao arguido AA que “era um caloteiro” e que tal tenha sido ouvido por todas as pessoas que se encontravam na reunião de condomínio; - o arguido AA ainda tenha tentado explicar que fazia que fazia desde sempre um único pagamento anual da sua parte das despesas do condomínio e que nada devia e que, acto contínuo, o arguido lhe tenha desferido vários socos com força na face, ao mesmo tempo que o acusava de não pagar a sua comparticipação ao condomínio; - o arguido AA tenha por diversas vezes dito ao arguido BB “És um filho da puta”; - o arguido AA tenha desferido pontapés nas pernas do arguido BB; - no primeiro momento de contenda física, mormente quando ambos caíram ao chão, o arguido BB tenha desferido murros na cara de AA; - quando EE se ausentou, os arguidos se tenham envolvido simultaneamente numa luta corpo a corpo; - o arguido AA tenha desferido murros e uma dentada na zona da cabeça do arguido BB porque este o estava a agarrar e dele não se conseguia libertar; - os arguidos BB e AA estivessem posicionados de lado no chão, por se terem movimentado, quando voltaram s ser separados por EE; - o arguido BB tenha actuado com o único fito de molestar a integridade física do arguido AA; - o arguido AA tenha actuado, visando com as suas condutas, nos dois momentos supra descritos, fazer com que o arguido BB parasse de lhe bater e para dele se soltar e escapar; - o arguido AA tivesse vergonha ao se cruzar com outras pessoas que tinham assistido ao comportamento de BB e que tenha desabafado com amigos próximos a vergonha que sentia e como a sua exposição pública o tinha afectado; - o arguido AA quando saía de casa para trabalhar, ir às compras ou passear, estivesse sempre a pensar que podia encontrar o arguido BB e que este o voltaria a ofender e tal lhe causasse ansiedade. Motivação: O Tribunal formou a sua convicção quanto à matéria de facto, estribando-se na análise crítica das declarações dos arguidos e na prova testemunhal produzidas em audiência de julgamento, bem como na prova documental e pericial constante dos autos, nos termos que se passam a expor. Cumpre referir que o tribunal foi confrontado com versões contraditórias acerca do sucedido neste dia 31-1-2020, cada uma delas exposta por cada um dos arguidos e em que, basicamente atribuem ao outro o ter iniciado quer agressões verbais, quer físicas para consigo. Também ficou patenteado o clima de crispação existente ainda na actualidade entre ambos os arguidos, vizinhos residentes no mesmo prédio. Contudo, adiante-se já, ainda que os depoimentos produzidos, em geral, se tenham mostrado parcelares, não havendo nenhuma testemunha a afirmar que tenha assistido aos acontecimentos entre ambos os arguidos do princípio ao fim, ou seja, de forma integral, os mesmos como se completam e permitem alcançar, em conjugação com a prova documental e pericial, adiante-se já como é que o conflito começou e quem o começou, quer verbalmente, quer fisicamente. Comecemos por atentar nas declarações dos arguidos, que foram ouvidos separadamente, nos termos do artigo 343.º, n.º 4, do Código de Processo Penal. O arguido BB descreveu estes acontecimentos de forma calma e fluente, mas negando mesmo a totalidade do que lhe foi imputado, alegando o seguinte: - no dia em questão, foi iniciada a reunião de condomínio do prédio, cuja convocatória estava afixada no átrio e estando nesse mesmo local, entre outras pessoas, a representante do condomínio, DD, sendo que o arguido AA saiu do prédio e depois voltou, perguntando o que era aquilo, tendo-lhe aquela respondido que estava ali a convocatória da reunião; - nesse momento, ele, que desempenhava na altura as funções de administrador do condomínio, perguntou a DD se o arguido AA tinha direito de voto na reunião, uma vez que ele tinha dívidas para com o condomínio; - foi então que o arguido AA começou a esbracejar, ao mesmo tempo que dizia que pagava o que estivesse em dívida, que não era nenhum caloteiro, mas que não tinha era que ir pagar nada a casa de ninguém; - ele ficou estupefacto a olhar para aquilo e disse que desde que o arguido AA pagasse estava tudo bem (na altura este arguido devia ao condomínio entre €400,00 a €600,00, atinente a um período de mais de 2 anos, sendo que ele antes tivera a casa arrendada e eram os inquilinos que pagavam aos administradores, não sendo verdade que fizesse o pagamento anualmente); - sem mais, o arguido AA chamou-lhe filho da puta e tomou a iniciativa de lhe bater a si, dando-lhe um primeiro murro que o atingiu no seu olho direito, ao que ele se limitou a agarrar-se a ele, procurando abraçar-lhe os braços com os seus e a encolher-se; - não fez nada mais do que isto, nem sequer empurrando o arguido AA, que lhe continuou a desferir murros pela cara, pelo corpo, bem como pontapés nas pernas e o empurrou contra a parede do prédio e também contra a porta de entrada do mesmo, partindo-se até o vidro; - continuou a ser empurrado pelo arguido AA até ficar caído nos degraus da escada, com o arguido AA por cima dele a dar-lhe murros; - a vizinha CC fugiu dali, bem como outras pessoas que ali estavam, tendo a primeira ido pedir ajuda a EE, que foi quem tirou o arguido AA de cima de si, separando-os, tendo-se ele levantado e depois sentado nas escadas; - DD voltou a entrar no prédio e a situação ficou mais calma e pediu o telefone para chamar a polícia, mas o arguido AA entrava e saia do prédio, parecendo desorientado, irado e voltou a chamar filho da puta, mas ele ficou ali sossegado nas escadas; - foi então que, a dado momento, o arguido AA voltou outra vez a aproximar-se de si e, sem que tivesse feito nada, o arguido AA agarrou a sua cabeça e deu-lhe uma dentada na mesma, na zona que fica por cima do olho direito e arrancou-lhe mesmo um bocado de carne; - EE veio novamente, colocou-se atrás do arguido AA, passou-lhe um braço à volta do pescoço, segurando-o e separando-o de si, após o que levou aqueloutro arguido para o exterior do prédio e acabou por chegar a polícia; - quando as autoridades policiais apareceram, o arguido AA permanecia no exterior e a partir daí não houve mais nada; - na altura em que o arguido AA lhe começou a bater, quem estava presente era DD e CC, sendo que o vizinho FF saiu antes; - foi chamado o serviço de emergência médica 112, tendo ele sido assistido na ambulância e foi-lhe então dito que a ferida que tinha na cabeça necessitava mesmo de tratamento hospitalar; - para além dessa ferida, em virtude da actuação do arguido AA ficou com hematomas na cara , no tronco de lado e nas costas e nas pernas dos pontapés desferidos; - na altura ele tinha 62 anos e o arguido AA uns 40, sendo que ele não conhecimento de artes marciais ou afins e tem 1,70 m de altura; - não ficou internado no hospital, mas foi seguido em termos médicos posteriormente por causa da ferida na cabeça, tendo que ir fazer pensos à mesma no centro de saúde, de dois em dois dias, por uns 15 dias, ferida essa que cicatrizou, ficando apenas com uma mancha na pele um pouco mais escura, mas sem afundamento do tecido (o que foi constatado em audiência de julgamento); - teve também dores, sobretudo na cabeça e mais inicialmente; - passou a sentir-se inseguro e com medo de AA, pois se este arguido adoptou este comportamento na frente de outras pessoas, ficou a temer o que lhe possa fazer caso o encontre sozinho, até pela sua própria vida, pelo que só excepcionalmente entra e sai sozinho da sua casa, saindo mais cedo de casa e a chegando mais tarde, para não se cruzar com esta pessoa, que mora logo no rés-do-chão, para mais, tendo-lhe ele dito a si já posteriormente, à frente da sua esposa, que dava cabo de si, só cessando com estas atitudes quando a acusação foi deduzida; - sendo então confrontado com o que consta da documentação clínica quanto ao arguido AA, de fls. 135 e 136, disse que podia ter havido algum contacto com aquele por ele movimentar os braços, mas negando que tenha ido de propósito com as mãos a cara daqueloutro, ainda que fosse para se defender; - a companheira do arguido AA não esteve presente, só surgindo no fim de tudo, já estando separados de vez; - já antes tinha tido desentendimentos com AA, por terem apresentado queixa por obras que o mesmo estava a fazer no quintal que era dele; - sentiu-se humilhado e incomodado por ser alvo da expressão “filho da puta” e também passou a acordar sobressaltado muitas vezes logo na altura e agora com menos frequência, lembrando-se daquilo que lhe aconteceu. A outra versão dos acontecimentos foi a exposta pelo arguido AA, tendo o mesmo falado num tom algo crispado e o que invocou foi: - sempre teve problemas com o arguido BB, que era o administrador do condomínio, mormente pelo facto da casa onde mora estar alugada, chegando também a telefonar-lhe para ele assinar um documento por causa de um toldo, e quanto aos pagamentos, apesar de saber que isso não correcto, somente os fazia no final do ano; - no dia desta reunião, que estava a decorrer no átrio do prédio, ele chegou atrasado, sendo que toda a gente falou o que tinha que falar e quando ele tentou interromper para dar a sua opinião quando estavam a debater o assunto do elevador, foi logo mandado calar pelo arguido BB, que disse que ele era um caloteiro e como não pagava o condomínio não podia participar; - ele chamou então “filho da puta” ao arguido BB, o qual lhe deu então um murro que o atingiu na cara, na bochecha e ele empurrou-o para não ser agredido, entrando em confronto físico, tendo ele dado também murros na cara daquele e andaram ali agarrados um ao outro, chegando a ir contra a porta do prédio e quebrando o vidro; - a dada altura, caíram os dois ao chão, perto do elevador, ficando ele por cima do arguido BB, o qual lhe continuava a dar murros na cara e ele também o tentava agarrar e dava-lhe murros, mas para dele se defender; - depois surgiu EE, que o agarrou a si e o levantou, apartando-os; - ele entrou na sua casa, porque a cara lhe estava a arder e foi lavá-la, mas depois saiu novamente de casa, porque estava a ser ofendido pelo arguido BB, que lhe chamava porco e caloteiro; - ao sair de casa, e estando o arguido BB mesmo em frente, junto ao elevador, envolveram-se os dois um com o outro novamente, começando os dois ao mesmo ao murro um ao outro, assumindo ter atingido BB na cara, até que foram ao chão, ambos posicionados de lado, porque BB o estava a agarrar e como ele não se conseguia libertar e continuava a ser agredido, para se soltar, deu-lhe uma dentada; - foram depois apartados, vindo também pessoas que estavam no café e o levaram para a rua, só depois precisando que, afinal, foi novamente EE que interveio, e o agarrou com um braço à volta do pescoço, logo a seguir a ter dado a dentada, não tendo nenhuma explicação para ter sido ele o agarrado e não o outro arguido; - chegaram depois as autoridades policiais, desconhecendo ele quem as chamou, sendo que ele, estando em casa, não lhe ocorreu fazer isso, e também surgiram os bombeiros, tendo BB recebido assistência dos mesmos, mas ele não; - foi depois ao hospital, porque tinha muitos inchaços na cara e na boca; - sendo confrontado com as fotos de fls. 15 a 19, do arguido BB, reiterou que lhe deu a dentada porque aquele o estava a agarrar pelos braços e pelos ombros e não se conseguia levantar; - na altura tinha 40 anos e mede 1,86 m de altura, sendo que, BB tinha 50 e poucos anos; - em virtude dos actos do arguido BB, ficou arranhado na cara e inchado por debaixo dos olhos, tal como a boca sangrava por dentro, sendo que, quando cuspia deitava sangue, mas não falou com os bombeiros e foi antes a hospital, apresentando as fotos que foram juntas aos autos quanto a tais lesões (fotos essas que, nos detalhes do telemóvel deste arguido, que exibiu, constam como sendo do dia 31-1-2020, entre as 21H52 e as 22H04); - ficou assim por uns 4 a 6 dias e teve dores; - depois destes acontecimentos, cruzou-se uma vez com BB, tendo olhado muito um para o outro, sendo que, não mudou os seus hábitos e não ficou com medo. Temos depois a prova testemunhal produzida e como se referiu, cada uma das pessoas ouvidas que alegou ter presenciado os factos, apenas o fez em termos parcelares, ou seja, assistiram a um fragmento dos mesmos e se dissonâncias se registam entre algumas delas, afigurou-se-nos que tal se deveu essencialmente ao seu diferente posicionamento no quadro dos factos e no que captaram dos mesmos: 1 – DD, com um discurso desenvolto e assertivo, contou o seguinte: - em … de 2020, à noite, a partir das …H…, no prédio sito no … da ..., decorria uma reunião de condomínio, em que ela ia entrar como administradora do prédio através de uma empresa de gestão de condomínios, tendo sido contactada pelo arguido BB a esse respeito e sendo esse um dos assuntos a deliberar; - quando chegou, quem estava presente no átrio do prédio eram o arguido BB, CC e FF, tendo começado a reunião e logo nessa altura, o arguido AA saiu de casa, passou por eles dizendo “Boa noite” e saiu; - passado uns 10 minutos, o arguido AA entrou no prédio e perguntou se estavam a fazer uma reunião, tendo sido ela que lhe respondeu em sentido afirmativo, sendo que, quando aquele disse que não tinha sido convocada, ela apontou para a convocatória que estava afixada; - o arguido BB perguntou se o arguido tinha direito de voto na reunião, porque tinha valores em dívida para com o condomínio, ao que ela lhe respondeu que tinha direito a assistir e a votar; - foi então que o arguido AA se dirigiu ao arguido BB, perguntando o que é que ele queria e dizendo “Achas que mandas aqui, que és dono disto, seu filho da puta?”; - ficou espantada com isto e tentou acalmar a situação, não ouvindo o arguido BB dizer nada, mas o arguido AA foi na direcção de BB e deu-lhe um soco e a seguir outro, sendo que eles a seguir se “enrolaram”, vendo o arguido AA a pegar na roupa do outro arguido, puxando-o e este tentava ela libertar-se, agarrando a mão do arguido AA para que ele o largasse, e também colocando as mãos à frente da cara; - os socos desferidos pelo arguido AA atingiram o arguido BB na cara, perto dos olhos, ao que ela saiu do prédio para pedir ajuda e o número de telefone da PSP, estando os dois ainda pegados; - telefonou para a linha 112 e pediu auxilio, dando depois conta que o vidro da porta da entrada estava partido, com vidros espalhados do lado de fora, ao que regressou ao interior do prédio, vendo um rapaz a chegar e a separar os arguidos, cuja posição ao certo já não se lembrava qual era; - esse rapaz puxou o arguido AA para fora do prédio, ficando ali à porta, ao passo que o arguido BB ficou no interior, sentando-se nas escadas e ali permaneceu; - o arguido AA ficou uns 5 minutos ali fora, ao passo que ela entrava e saia do prédio para ver se o carro da PSP chegava e que tivesse dado conta, aquele nunca foi a casa; - ao fim desses 5 minutos, permanecendo o arguido BB sentado e não estando a dizer nada, o arguido AA entrou de rompante no prédio e sem dizer nada voltou a bater no primeiro com socos na cara, tendo BB caído para trás e posicionando-se o arguido AA por cima dele enquanto o socava; - enquanto tal sucedia, o arguido BB fazia movimentos laterais e mexia os punhos e os pés, mas não tem ideia que tivesse atingido o arguido AA; - depois o mesmo rapaz voltou a puxar o arguido AA para fora do prédio; - o arguido BB ficou bem marcado na cara e num sobrolho, com uma ferida com sangue, em que lhe faltava um bocado de carne e mostrava-se nervoso, sendo que, quando a PSP chegou é que ela saiu do átrio e veio à rua, mas não tomou atenção como estava o arguido AA, porque queria era ir ao encontro da polícia; - chegou também uma ambulância, tendo o arguido BB sido assistido no local e depois sido conduzido ao hospital; - quer da primeira, quer da segunda vez em que houve agressões foi o arguido AA que as iniciou; 2 – EE, fez uma descrição dos factos fluente e o que mencionou foi: - vive com a mãe em casa sita na... e em data que não conseguia precisar, há uns 3, 4 anos atrás e ainda antes do surgimento da pandemia do Covid-19, cerca das 20, 21 horas, estava na sua residência, quando a vizinha CC lhe bateu à porta, aflita, a perguntar se podia ajudar , porque estavam a ocorrer agressões no hall de entrada do prédio; - na altura, deu conta de haver barulho de confusão, mas não ouviu nomes; - conforme desce, viu que os arguidos estavam envolvidos em agressões físicas, ao murro, sendo que a percepção que teve era a de que o faziam mutuamente e ele pôs-se no meio, afastando-os e disse para se acalmarem, tendo a ideia dos mesmos estarem em pé, no átrio; - quando os afastou, eles estavam de cabeça quente a olhar um para o outro e se houve alguma “boca”, não se recordava, tendo a situação apaziguado; - ele voltou novamente para casa e foi trocar de roupa, pois saíra de pijama; - conforme desce, para garantir que estava tudo tranquilo, já os arguidos estavam envolvidos novamente, ao pé, em confronto físico, com socos, ambos se mexendo e caíram ao chão, meio de lado, mas não estava ninguém em cima de ninguém; - ele agarrou o arguido AA porque era quem estava mais perto de si e levou-o para fora do prédio, só depois precisando ao ser questionado que, afinal lhe fez um mata-leão, para o segurar, e também este arguido não o tentou impedir; - que se recordasse, não viu o arguido AA com marcas na cara, mas sim pequenas lacerações nas mãos; - quanto ao arguido BB, reparou que o mesmo tinha uma ferida por cima do sobrolho, como se lhe faltasse um bocado de pele, de carne, e mostrava-se chocado e nervoso; - também havia estilhaços de vidro no prédio; - a percepção com que ficou foi que andavam os dois à pancada, mas também não viu o arguido AA a dar uma dentada no arguido BB; 3 – CC, de forma espontânea, e deixando transparecer somente querer contar aquilo de que tinha certeza, descreveu o seguinte: - os arguidos são seus vizinhos e não tem uma relação de proximidade com nenhum deles em particular; - quando chegou à reunião de condóminos, no final do mês de … de 2020, já depois do jantar, pelas 21 horas, estavam presentes o arguido BB, FF e uma senhora de nome DD, da empresa de gestão de condomínios; - pouco depois, entrou o arguido AA, vindo da rua e abordou DD, questionando se era uma reunião e que queria pagar o que estivesse em dívida, mas não ia andar a bater à porta de ninguém; - foi então que o arguido BB, ainda que falando para o geral das pessoas, disse que não queriam ali caloteiros; - o arguido AA diz ao arguido BB “O que é tu queres, filho da puta?”, dirigindo-se ao mesmo e a percepção que teve foi a de que empurrou o arguido BB contra a parede, ao que ela subiu as escadas e foi ao andar de cima pedir ajuda, e DD e FF saíram; - EE, cuja mãe era polícia, foi quem veio, dizendo que se ia calçar e ela ouviu vidros a partir e foi ainda bater à porta da casa do arguido BB, para pedir ajuda à esposa dele; - quando desceu, ainda sozinha, ou seja, sem a esposa do arguido BB, estava sentado nos degraus da escada, sozinho, ferido, arranhado, e dizia “Não acredito”; - pouco tempo depois, o arguido AA voltou a entrar no prédio, vindo da porta da rua e foi direito ao arguido BB, agarrou-o e deitou-o ao chão, ficando por cima dele; - ela estava ali ao pé, com aquilo a acontecer no chão, mas nem conseguia descrever o que o arguido AA fazia; - EE surgiu novamente e tirou o arguido AA para fora do prédio, ao passo que ela ficou lá dentro, vendo o arguido BB ferido na testa; - quanto ao arguido AA, não viu como é que ele ficou; 4 – FF, com uma postura já diferente das anteriores testemunhas, evidenciou uma postura esquiva, pouco esclarecendo acerca dos acontecimentos em questão, apresentou um depoimento que se traduziu no seguinte: - começou logo por dizer que não podia contar nada, porque não tinha visto nada, mas sendo questionado, acabou por dizer que esteve presente no início da reunião de condomínio, por volta das 20H30, mas uma vez mais alegou que se foi embora ainda antes da zaragata; - referiu que no começo da reunião estava presente o arguido BB, tendo chegado depois CC e a seguir DD, tendo o arguido AA saído da casa dele e dito boa-noite, após o que saiu para a rua; - a seguir, o arguido AA voltou e perguntou se era uma reunião de condomínio que ali estava a decorrer, que não tinha sido convocado, tendo a conversa começado a ficar intranquila e ele, no meio disto, saiu e foi ver o jogo de futebol no café; - sendo-lhe perguntado em que se traduziu essa intranquilidade, respondeu que houve uma troca de palavras mais acesa, mas não conseguia precisar o que fora dito; - depois de ter ido ver como estava o jogo de futebol, regressou até junto da porta do prédio e aí, do lado de fora, viu os dois arguidos agarrados um ao outro, ao que voltou ao café para pedir ajuda, para que fossem separar, sendo que ele é pessoa doente e não se quis envolver; - as pessoas saíram todas e ele ficou no café; - depois já só viu a ambulância, o arguido BB no hall junto com a esposa, não se apercebendo de ferimentos do mesmo; - quanto ao arguido AA, viu-o no café a ir lavar as mãos no lavatório, pois estavam sujas de sangue e depois não mais o viu; - na altura daquela reunião de condóminos, o arguido AA tinha dívidas para com o condomínio; 5 – GG apresentou um relato que deixou transparecer uma relação de maior proximidade com o arguido AA e também algum desagrado para com o arguido BB, e o que contou foi: - estava no café e viu que o arguido AA entrou e foi lavar a cara, num lavatório que ali tem e está à vista; - na altura, não viu que ele tivesse nada na cara, e depois esse arguido saiu; - ele achou aquilo estranho e foi atrás dele, vendo que o arguido AA entrou no prédio e quando ele ali chegou, viu que os arguidos estavam os dois no chão, a brigar um com o outro, agarrados um ao outro; - a ideia que tinha era de que o arguido AA estava por cima do arguido BB, tanto que ele e EE o tentaram puxar, até que este último lhe fez um “mata-leão” e AA teve que sair; - EE levou o arguido AA para a rua; - deu conta que o arguido AA tinha a cara um pouco vermelha, uns arranhões e se mostrava desorientado, chateado; - por sua vez, o arguido BB, que se levantou sozinho, não estava muito magoado na cara, mas também não esteve a olhar muito para ele; - não deu conta dos arguidos chamarem nomes um ao outro; - não tem nada que dizer contra o arguido AA, sendo que quanto a BB nunca falou com ele, sabendo é que havia alguém no prédio que fazia queixa quanto ao funcionamento do café; 6 – HH, companheira do arguido AA, prontamente assumiu nada ter presenciado da interacção de ambos no dia em questão, limitando-se a dizer o seguinte: - em ... de 2020 houve um conflito entre os arguidos; - ela nesse dia chegou a casa, adormeceu e deu conta que o arguido AA entrou na residência e o seu filho lhe dizia para ter calma, ao que ela o viu arranhado, ensanguentado na cara; - o arguido AA volta a sair de casa e ela foi-se vestir, sendo que quando chegou ao hall do prédio o que viu foi o vidro partido e o seu companheiro já fora do prédio, com uma nódoa negra, nem tendo ela visto o arguido BB, mas dando conta que havia a ambulância e que lá estava a polícia; - o arguido AA estava também transtornado, triste com a situação e envergonhado; - a mais do que isto não assistiu, sendo o mais que sabe contado pelo arguido AA; - o arguido BB é um pouco conflituoso, tendo ligado várias vezes por causa de um abaixo-assinado por questões relacionadas com o café, tal como era chamada a policia por motivos de ruido e também no decorrer de uma obra que fez em que houve um entupimento; - é raro cruzar-se com o arguido BB no prédio, tendo tal ocorrido duas vezes depois destes factos, estando numa ocasião com a esposa dele e noutra sozinho; 7 – II, agente da PSP, assumiu ter uma memória muito difusa acerca destes factos, recordando-se somente de ter ido ao local, em ... de 2020, já de noite, por motivo de um desentendimento numa reunião de condomínio e havia um senhor que sangrava da cabeça; 8 – JJ, esposa do arguido BB, também nos pareceu isenta e conseguir distanciar-se dessa relação familiar ao afirmar que: - quando estes factos ocorreram, ela estava em casa; - sendo confrontada com fls. 15 e seguintes, aludiu a que era aquele o estado do arguido BB no seguimento da reunião do condomínio, vendo ela o estado em que o marido estava: pálido, a sangrar da cara e muito triste, sem dizer nada enquanto aguardava pela ambulância; - nos dias seguintes, o arguido BB esteve com insónia e depois tal foi sendo mais espaçado, mas de vez em quando acontece, não conseguindo dormir e antes não tinha problemas quanto ao sono, pondo-se a pensar no que aconteceu; - o arguido BB ficou com medo de ser novamente agredido pelo arguido AA, sendo que se ela chegar mais cedo a casa, o seu marido telefona-lhe, ela manda o elevador para baixo e abre-lhe a porta; - já chegou a acontecer cruzarem-se na rua e o arguido AA a dizer “Isto ainda não acabou”. Temos depois a prova documental e pericial constante dos autos e de onde se extrai o seguinte: - a fls. 4 e 5 consta auto de notícia lavrado pelo agente da PSP II, onde o mesmo consignou que, no dia 31-1-2020, pelas 23H41, se deslocou à ..., no Seixal, por noticia de agressões entre vizinhos, ali tendo contactado com DD, que lhe reportou que momentos antes, na reunião de condóminos, os arguidos se tinha envolvido em agressões mútuas, tendo sido danificada a porta do prédio, tal como contactou com os arguidos; - a fls. 10 consta auto de exame médico, datado de 11-2-2020, relativamente ao arguido BB e no qual a senhora perita médica consignou que, nessa data, este apresentava ferida contusa, em cicatrização, na região frontal direita, na transição para a região zigomática, junto a inserção dos cabelos, com 1,5 cm x 0,5 cm, sendo que os movimentos da boca se faziam simetricamente e dentro dos limites normais, com dores; - a fls. 12, 37 e 38, consta documentação clínica do ..., de acordo com a qual o arguido BB ali deu entrada no dia 31-1-2020, pelas 21H34, apresentando ferida na fronte do lado direito, por mordedura, com 2 cm de diâmetro, com falta de tecido, pequena hemorragia incontrolável, que depois deixou de estar activa e hematoma periorbitário à direita, com queixa de dor local; - a fls. 15 a 19, 64 a 65 constam então fotografias de BB, apresentando o mesmo o olho direito negro, uma ferida aberta, com falta de tecido, na fronte do lado direito e vários arranhões, escoriações na face, mormente do lado direito; - a fls. 40 a 42 figura documentação clínica quanto ao arguido BB do ..., de acordo com a qual o mesmo foi alo de consulta m 3-2-2020, apresentando ferida na zona frontal à direita com perda de substância por mordedura humana, tendo sido encaminhado para acompanhamento em sede de ..., para realização de penso a essa ferida, o que teve lugar em 3, 5, 7, 11, 17 e 20 de Fevereiro de 2020; - a fls. 52 e 53 consta auto de denúncia, apresentando pelo arguido BB em 4-2-2020, no qual o mesmo reportou às autoridades policiais que no dia 31-1-2020, pelas 20H30, na sequência dele ter interpelado DD sobre se o arguido AA tinha direito de voto na reunião de condomínio que decorria, por ter dívidas para condomínio, este arguido, para além de, por diversas vezes o ter apodado de “filho da puta”, lhe começou a bater, desferindo-lhe vários murros na cara e cabeça e o empurrou contra a porta do prédio, cujo vidro, até que foram separados por EE, que foi chamado por CC; que enquanto aguardavam a seguir a chegada da polícia, o arguido AA lhe foi bater novamente, desferindo-lhe vários murros, atirando-o ao chão e a seguir o mordeu na cabeça, até que EE os apartou novamente; - a fls. 64 a 65 consta auto de denúncia apresentado pelo arguido AA em 17-6-2020, manifestando o desejo de procedimento criminal contra o arguido BB pelos factos constantes do citado auto de notícia, onde ele reportara às autoridades que aquele arguido o apodara de caloteira e a seguir se tinham envolvido em agressões mútuas, sendo de salientar que tal queixa surge precisamente na véspera de AA ser constituído como arguido nos autos – cfr. fls. 130; - a fls. 105 e 106 consta aditamento à queixa apresentado pelo arguido AA no qual o mesmo invoca que o arguido BB, para além de o de ter acusado de ser caloteiro, lhe tinha começado a bater com socos na cara e na face, onde o feriu; foi a casa e depois voltou ao átrio do prédio e foi novamente o arguido BB que se lhe dirigiu e envolveram-se em agressões mútuas; - a fls. 134 a 136 consta documentação clínica proveniente do ..., de acordo com a qual o arguido AA ali de entrada em sede de urgência de 31-1-2020, pelas 23H45; apresentando escoriações na face e discretas dores, não tendo outras queixas; - a fls. 174 consta auto de exame médico relativamente ao arguido BB, no qual a senhora perita médica concluiu, tendo já em conta a documentação clínica junta que as lesões traumáticas descritas no anterior exame resultaram de traumatismo de natureza contundente, podendo a ferida ser devida a mordedura e o hematoma periorbitário à direita devido a mãos, essas lesões traumáticas determinaram um período de 21 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho em geral e das lesões resultaram como consequência permanente cicatriz; - a fls. 179 figura auto de exame médico atinente ao arguido AA, datado de 9-7-2021, no qual a senhora perita concluiu, em face da documentação clinica constante dos autos que as lesões traumáticas descritas na mesma, que correspondiam a escoriações na face, resultaram de traumatismo de natureza contundente podendo serem devidas a mãos, e determinaram um período de 5 dias de doença, sem afectação para a capacidade de trabalho em geral, sem consequências permanentes; - as fotos juntas aos autos nas quais se visualiza o arguido AA com arranhões e vermelhidão na face. Aqui chegados e analisando criticamente todos estes dados de prova, afigura-se-nos patente que se é verdade que em três pontos que a seguir se elencam, as declarações do arguido BB não se mostram consistentes e por isso, não convencem, evidenciando o mesmo claramente querer minimizar os seus actos e colocar-se somente como vítima, então as declarações do arguido AA são ainda muito mais frágeis e em muitos, numerosos pontos não merecerem credibilidade. Por outras palavras, denota-se falta de isenção nas palavras de um e outro arguido, mas tal foi muito mais gritante e extenso por parte de AA Mesmo atentando na versão do arguido AA isoladamente, pela forma como apresenta os factos, procurou criar a ideia de que, num primeiro momento, foi BB que iniciou as agressões e depois ele lhe quis bater também e, num segundo momento, ambos em simultâneo se voltam a agredir fisicamente. Ora, o tribunal não acreditou nesta versão, pois mesmo considerando isoladamente o declarado pelo arguido AA, à luz das regras da lógica e da experiência comum: - se a iniciativa das agressões físicas, era do arguido BB, porque motivo, o arguido AA, já estando apartados, é que vai ao encontro daquele, regressando ao átrio do prédio? A resposta que se impõe é a de que lá vai porque lhe quer bater mais; - sendo AA muito mais novo, com menos 20 anos do que BB, pois tinha com 40 anos, ao passo que BB tinha 60 anos, e sendo o primeiro de compleição física mais forte, não só pela sua altura, mas também por aquilo que se pode constar do seu aspecto físico em audiência de julgamento, estando ambos agarrados no chão não é credível que o arguido AA tivesse dificuldade em libertar-se daquele ao ponto de ter que lhe dar uma dentada. O que transparece até quanto a tal dentada é que foi por BB se debater ante os seus actos e estar a obstar a que ele conseguisse continuar a esmurrá-lo, pela raiva de que estava tomado, o arguido AA chegou ao ponto de morder a cabeça daquele seu vizinho e arrancar-lhe um pedaço de carne. E a falta de credibilidade em muito do invocado pelo arguido AA torna-se mais patenteada quando se entram em linha de conta com os demais dados de prova já elencados e o mesmo sucede quanto a três aspectos do invocado pelo arguido BB (de que nada chamou a AA; que foi por ele pontapeado e nunca o socou). Assim, aquilo que se nos impôs concluir da conjugação dos dados de prova coligidos e de acordo com as regras da lógica e da experiência comum foi: - desde logo, quanto ao começo do conflito, resultou demonstrado que o arguido AA chegou à reunião do condomínio logo com uma postura litigante, alegando não ter havido convocatória, o que não só foi mencionado pelo arguido BB, mas também pelas testemunhas DD e FF, pelo que, para além do parágrafo 1.º do objecto processual, com os aditamentos devidamente comunicados aos arguidos, no que houve a assunção pelos arguidos, o parágrafo 2.º também ficou provado; - resulta da declarações do arguido BB em conjugação com as palavras de DD que o primeiro questionou se o arguido AA tinha direito de voto e aquela lhe respondeu afirmativamente, ao que o arguido AA disse que queria pagar o que devia, mas não tinha que andar a bater à porta de ninguém – o que é também sustentado por CC e por isso o parágrafo 3.º do objecto processual ficou provado; - quanto ao que sucede a seguir, não convence nem o alegado por BB, nem por AA: pelo depoimento de CC, o que aconteceu foi que o arguido BB disse que “não queriam ali caloteiros”, ou seja esta expressão parte deste arguido, ao contrário do que o mesmo quis fazer crer, sendo que, apesar de DD a tal não fazer menção, afigura-se-nos que tal se deveu ao hiato temporal volvido e ao clima de confusão ali instalado, até porque CC se mostrou sincera e fidedigna, apenas querendo afirmar ao Tribunal aquilo de que tinha certeza; - ora com tal expressão, ainda que de forma enviesada, pois não disse directamente a AA que ele era um caloteiro, o que BB quis dizer àquele era que não queria ali quem fizesse calotes, dívidas e aquele tinha-as para com o condomínio, bem percebendo o mesmo que dessa forma dizia a AA que ele era um caloteiro, que não o queria ali, e tanto que foi assim que AA o entendeu, ainda que não mencione a expressão exacta referida, não merecendo credibilidade a negação faz quanto a tal, pelo que o parágrafo 4.º do objecto processual foi assim considerado parcialmente provado, ou seja, naquilo que coincide com o descrito pela testemunha CC; - a seguir, o que acontece é o arguido AA dizer a BB “o que é que queres filho a puta”, o que o próprio AA confessou ter feito e também BB, DD e CC referem; - quanto ao que se passa depois, merece prevalência o invocado por BB sobre a versão de AA, ou seja de que foi este último que foi bater no primeiro, não havendo nenhum dado de prova que sustente o contrário, ao passo que a corroborar o invocado pelo arguido BB temos os depoimentos de DD e de CC, que atestam que foi AA que tomou a iniciativa de lesar o corpo de BB, empurrando-o contra uma parede e dando-lhe murros na cara; - e não procede a alegação de AA de que o arguido BB lhe desferiu murros neste primeiro momento de contenda física: BB nega-o, e DD, ainda que não tenha estado o tempo todo no local, descreveu a postura do primeiro como se limitando a colocar as mãos à frente da cara e andaram ali agarrados um ao outro, vendo depois os vidros da porta do prédio partidos, o que vai no sentido do descrito pelo arguido BB; - acresce que, o próprio arguido AA assume que nesta altura, vão os dois ao chão e ele fica por cima de BB, ou seja, numa posição dominante a que acresce que se percebe pelo depoimento de GG que, logo a seguir, o arguido AA foi ao café, lavou a cara, mas ele não lhe viu nada nesta parte do corpo, e é já só no fim de tudo que o vê arranhado na face; - assim, tivesse o arguido BB desferido algum murro ou ido com as mãos à cara de AA alguma marca ou até vermelhidão ali deixaria, mas GG neste primeiro momento não dá conta disso e FF o que diz é que vê o arguido AA a lavar as mãos no tal lavatório e que as tinha sujas de sangue, mas não refere ferimentos na cara; - por conseguinte, resultou demonstrado que o arguido BB, neste primeiro momento, se limitou a colocar as mãos à frente da sua cara e a agarrar o arguido AA, por estar a ser por ele agredido, não merecendo credibilidade o invocado por AA; - agora também não ficou demonstrado o invocado por BB de que também levou pontapés do arguido AA, não se mostrando credível e antes deixando transparecer querer empolar o acontecido – nenhuma das demais pessoas ouvidas alude a que tivessem visto o arguido AA a desferir pontapés, o próprio BB, na queixa que apresenta não o invoca, nem na acusação particular que deduziu e de acordo com a documentação clínica junta aos autos e exame médico de que foi alvo escassos dias depois do evento não se alude a qualquer lesão que tivesse nas pernas compatível com tal, o que seria se esperar ao ser pontapeado por algum possante como AA, pelo que tal foi dado como não provado; - por conseguinte, o facto do parágrafo 5.º foi dado como não provado; do parágrafo 6.º apenas se provou que tal expressão proferida por BB foi ouvida por CC; o parágrafo 7.º foi dado como provado, quanto a AA ter dito “O que é que queres, filho da puta?” e o demais como não provado; o vertido no parágrafo 8.º, foi dado como provado, sendo essa expressão proferida por AA ouvida por DD e por CC; os parágrafos 9.º e 10.º foram dados como provados; o parágrafo 11.º foi dado como provado, excepto quanto ao arguido AA ter desferido pontapés nas pernas de BB; o parágrafo 12.º ficou provado em parte, não estando demonstrado que, estando os arguidos caídos no chão, o arguido BB tenha desferido murros na cara de AA; o parágrafo 13.º não está provado; o parágrafo 14.º ficou provado, mas estando já abrangido pelos parágrafos 9.º e 12.º.; - resulta também não só do alegado pelos arguidos, mas também pelo depoimento de DD e de EE que é este último que vai apartar os arguidos, levando o arguido AA para fora do prédio e ficando BB sentado nas escadas no interior do mesmo, ficando pois o parágrafo 15.º provado; - agora, quanto ao que EE invoca de que ambos se agrediam mutuamente, o seu depoimento nesta parte não nos pareceu fiável, sendo de dar prevalência ao que DD refere, corroborando BB, não só porque EE chega, depara com um cenário de contenda física e quis foi separar as pessoas, mas a que ambos estavam em pé, quando AA alude a que estavam no chão e ele por cima de BB, o que torna mais patente que EE ficou com uma percepção distorcida neste momento; - quanto ao que se passa a seguir, o que resulta não só do declarado por BB, mas também do depoimento de DD, FF e GG é que o arguido AA foi levado para a rua e depois vai é ao café e não a casa (como o mesmo e a sua companheira tentaram fazer crer) e é vindo da rua e não da sua casa que irrompe pelo átrio do prédio, o que também é referido por CC e vai, como esta atestou e DD, bater outra vez em BB, socando-o e colocando-o no chão; - ou seja, também neste segundo momento, temos as testemunhas DD e CC a sustentarem o dito por BB e por isso se deu prevalência a tal e não o alegado por AA de que simultaneamente se agridem neste segundo momento; - agora, apura-se que já no chão, o arguido BB não ficou quieto ao ser alvo dos socos do arguido AA e fez mais do que agitar o corpo: DD refere que se apercebe que BB mexe os punhos e EE e GG referem que no chão ambos se agrediam um ao outro, andavam ao murro um ao outro e a verdade é que resulta da documentação clínica, bem como das fotos juntas aos autos, que AA ficou com escoriações na cara; - ora, ainda que os ferimentos na cara do arguido AA se mostrem muito menos gravosos do que os de Calos Farto, pelo que consta das fotos, documentos clínicos e exames médicos de um e outro, a verdade é que foram produzidos e tal vai no sentido do invocado por AA, EE e por GG de que BB farto também deu socos na cara de AA; - todavia, há que ver que, como diz DD e também GG, o arguido AA estava por cima do arguido BB a bater-lhe e já pela segunda vez, sendo aquele homem de compleição física mais forte do que o segundo, percebe-se que BB, ainda que o tenha negado, o foi atingir na cara que era onde conseguia, evidenciando tal que queria era ver se dessa forma conseguia que ele parasse de lhe bater; - e é por BB reagir, que AA o resolve morder na cabeça, como assume ter feito, e não para dele se libertar, e note-se que a bem a elucidar a confusão ali estava instalada e o que tal dificultou a exacta percepção do que se passava aos presentes, temos o facto de nenhuma das testemunhas mencionar ter visto esse acto de morder levado a cabo por AA, sendo este então dali puxado por EE, com um braço à volta do pescoço; - em face do contado por DD e por GG e sua coincidência, deu o tribunal prevalência ao que dizem sobre AA e EE de que este arguido quando foi puxado, estava, como BB, de lado no chão, pois aquelas outras testemunhas referem que era AA que estava posicionado por cima de BB e também não vemos como é que EE conseguiria fazer a tal manobra de agarrar AA pelo pescoço com o tal “mata-leão” se ele estivesse de lado; - por conseguinte, o vertido no parágrafo 16.º foi dado como não provado; os parágrafos 17.º e 18.º ficaram provados; os parágrafos 19.º e 20.º, face à sequência apurada nos dois parágrafos anteriores, não ficou provado; e o parágrafo 21.º ficou provado, excepto quanto aos arguidos estarem posicionados de lado no chão; - os factos dos parágrafos 22.º e 23.º ficaram provados em face das fotos, documentação clínica e autos de exame médico constantes do processo; - no que respeita ao elo psicológico dos arguidos com a sua conduta em termos de contenda física, o que sobressai é que o AA, em dois momentos distintos, tomou a iniciativa de bater em BB, porque sempre actuou imbuído do escopo de lesar o corpo daquele e não para que ele não o agredisse ou para dele se libertar, ao passo que BB agiu, ciente de que lesava o corpo de AA, mas visando que ele parasse de lhe bater, pelo que o parágrafo 24.º foi dado como provado, excepto que o fim pretendido por BB farto fosse molestar a integridade física de AA e o parágrafo 26.º também ficou provado em parte, não se demonstrando que AA tenha agido para fazer com que BB parasse de lhe bater e para dele se soltar e escapar; - os factos dos parágrafos 25.º e 27.º ficaram provados, resultando das regras da lógica e da experiência comum que ambos os arguidos, com as expressões que dirigiram um ao outro, no contexto existente, pretenderam atingir a honra e consideração do outro e estando bem cientes de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, estando também provados os parágrafos 28.º e 29.º. No que concerne aos factos específicos do pedido de indemnização civil deduzido por AA, não só em face do invocado pelo mesmo, mas também pela sua companheira, ficou demonstrado que o mesmo se sentiu envergonhado, enxovalhado com as palavras que BB lhe dirigiu, mas o demais foi considerado como não demonstrado, pois nenhum dado de prova o sustentou, mormente que tivesse ficado ansioso no seu quotidiano, pois o próprio arguido AA referiu que em nada o alterou e não ficou com receio. Já os factos específicos do pedido de indemnização civil deduzido por BB ficaram demonstrados, em face das suas declarações e do depoimento da sua companheira JJ, ambos referindo que, em virtude dos actos de agressão física e insulto levados a cabo pelo arguido AA, o primeiro se sentiu envergonhado, humilhado, com dificuldade em dormir e com medo, ao ponto de alterar os seus hábitos a entrar e a sair de casa, para com aquele não se cruzar. O Tribunal também teve em consideração o relatado por JJ, de que AA, em data já depois dos factos, chegou a dizer a BB “Isto ainda não acabou”. Por fim, quanto às condições pessoais e de vida dos arguidos, o Tribunal teve em conta o que resultou das suas declarações e quanto aos seus antecedentes criminais, atentou nos certificados de registo criminal mais actualizados juntos aos autos. ** Do enquadramento jurídico-penal dos factos provados: (…) II) Do crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal: Cada um dos arguidos foi também acusado da prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal. De acordo com o artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, comete o crime de injúria quem imputar a outra pessoa factos, mesmo sob a forma de suspeita ou lhe dirija palavras, que sejam ofensivos da sua honra e consideração, sendo a pena aplicável de prisão até três meses ou então pena de multa até 120 dias. Assim, o tipo objectivo do crime de injúria integra os seguintes elementos: - imputação de facto ofensivo da honra ou consideração de outrem ou a prolação de palavras ofensivas da mesma; - prática dessas condutas, dirigindo-se directamente à vítima, ou seja, apreendendo esta, sem a intermediação de terceiros, a imputação ou o juízo feito. Na integração do primeiro elemento é crucial definir o que se deve entender por ofensivo da honra, ou seja, quais os contornos deste bem jurídico e quando é lesado. No nosso ordenamento, conforme salientam o Prof. KK 1 e ZZ 2, a honra é um bem jurídico complexo, que congrega não só o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, mas também a sua reputação exterior, a valoração social que é feita da sua imagem. Para que seja alvo de lesão, é necessário que o facto imputado ou o juízo formulado sejam idóneos a causar, objectivamente, um desvalor para a imagem e reputação sociais e pessoais do visado. Portanto, daqui ressalta que o conceito de honra e consideração não se considera dependente das concepções éticas, morais e educacionais de cada um, mas antes é gizado à luz dos valores da comunidade, considerando-se haver uma lesão a este bem jurídico quando objectivamente, de acordo com os mesmos, se entende haver um denegrir da reputação social do visado. Depois, na apreciação do cariz ofensivo da imputação dos factos ou das expressões há que ter em conta o valor, em termos de uso, que lhes é atribuído no contexto em que são utilizadas e ainda que o direito penal tem carácter fragmentário, ou seja, apenas deve intervir para tutelar um conjunto de bens jurídicos fundamentais para a comunidade face a lesões relevantes aos mesmos, dado que a sua aplicação necessariamente comporta uma restrição dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. No que tange ao elemento subjectivo, é hoje entendimento pacífico que não é necessário para o preenchimento do tipo de crime a existência de animus injuriandi, ou seja, a concreta e específica intenção de ofender, bastando tão-somente que o agente tenha noção ou, pelo menos, preveja como possível que as expressões que profira sejam susceptíveis de ofender a honra e consideração. 1 - Quanto ao arguido BB: Atentando-se nos factos que resultaram provados, afigura-se-nos que a conduta do arguido BB no dia 31-1-2020 preenche objectivamente o tipo de crime de injúria, pois o mesmo, no contexto em que falou a expressão “não queriam ali caloteiros”, ainda que de forma enviesada, como que falando para o geral das pessoas que estavam na reunião de condomínio, estava era a dirigir ao arguido AA tais palavras, o qual as percepcionou directamente e sem a intermediação de terceiros, palavras essas que continham ínsito o juízo de estar a chamar a este, no fundo. de caloteiro e que, por isso mesmo, se mostram ofensivas da honra e consideração do visado, quer em termos internos, quer de reputação na comunidade. Na verdade, tendo o arguido AA acabado de reconhecer que tinha valores em dívida para com o condomínio, que as pretendia pagar mas não tinha que andar a ir à porta de ninguém, logo após o arguido BB ter a iniciativa de aludir a tais dívidas e questionar se tinha direito de voto, o sentido comum para um homem médio de tal expressão neste circunstancialismo era o de que AA era um dos caloteiros que ele ali não queria ali, que era uma pessoa que fazia calotes e não honrava as suas obrigações e foi esse o sentido também percebido por AA. Tal frase de BB não foi meramente grosseira e ainda contida no exercício da liberdade de expressão, mas antes tendo um cariz pejorativo notório, sendo atentatório da honra e consideração de AA, e extravasando já o exercício desse direito, tendo relevo penal. No que respeita à imputação subjectiva deste crime, que é doloso – artigo 13.º do Código Penal – o mesmo se verifica, sendo que o arguido BB agiu com dolo directo, ou seja, sabia que, ao proferir tais palavras relativamente a AA, ofendia a sua honra e consideração, tendo vontade de assim agir. Inexistem causas que justifiquem tal conduta do arguido BB, sendo o seu comportamento ilícito e foi também culposo por saber que a mesma era proibida por lei e tendo liberdade para se determinar de acordo com tal. Em razão do exposto, incorreu o arguido BB na prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal. (…) III) Da escolha da pena e sua determinação em concreto: Cumpre então proceder à escolha do tipo de pena a aplicar aos arguidos em relação aos crimes cometidos e à sua determinação em concreto. Nos termos do artigo 70.º, n.º 1, do Código Penal, aplicando-se a um dado crime, em alternativa, pena de prisão e uma pena não privativa da liberdade, haverá que dar preferência a esta última, sempre que realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Ora, os fins das penas, de acordo com o artigo 40.º do mencionado código, consistem, por um lado, na protecção de bens jurídicos, restabelecendo-se a paz jurídica afectada pela prática do crime (prevenção geral positiva ou de integração). Por outro lado, traduzem-se na reintegração do agente que cometeu o crime, preparando a sua personalidade para o respeito pelas normas (prevenção especial positiva), assim como a sua inocuização quanto à prática de futuros crimes (prevenção especial negativa). Será, pois, mediante a valoração destas necessidades de prevenção que, em concreto, se verifiquem, que se determinará o tipo de pena a aplicar. Já na determinação da medida concreta da pena, conforme estatui o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, deve-se considerar a culpa do agente, a qual é seu limite e, novamente, as exigências de prevenção geral e especial que se façam sentir. Neste âmbito, há que começar por traçar os limites mínimo e máximo da chamada moldura de prevenção, a qual é definida pelas exigências de prevenção geral positiva que no caso se verifiquem, ou seja, de restabelecimento da paz jurídica no seio da comunidade. Para tanto, vai-se avaliar o que é que a violação de certos bens jurídicos implicou e qual a protecção que lhes deverá ser dada para garantir que o respeito pelas normas se mantém. Então, o limiar mínimo dessa moldura de prevenção será aquele abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se colocar em causa a sua função tutelar de bens jurídicos e de estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada. O seu limite máximo corresponderá à medida máxima e óptima de tutela dos bens jurídicos e aquilo que a comunidade espera a esse nível – cfr. KK, in “As consequências jurídicas do crime”, AEQUITAS, Editorial Notícias, 1993, § 305 e 330. Chegando-se deste modo à medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, deve atender-se, depois, à culpa do agente e, por último, às necessidades de prevenção especial. Para aferir do limite da culpa e dessas necessidades de prevenção especial vão então relevar todas as circunstâncias concretas que, não fazendo parte do tipo legal convocado, deponham quer a favor quer contra o agente, constando as mesmas do elenco, não exaustivo, do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal. Cumpre agora transpor tais considerações para o caso sub júdice. (…) 2 – Quanto ao arguido BB A moldura abstracta da pena quanto ao crime de injúria é de pena de prisão de 1 mês a 3 meses ou pena de multa entre 10 a 120 dias. Quanto aos aspectos a considerar, temos que: - O grau de ilicitude dos factos praticados pelo arguido BB, dentro da moldura de danosidade ao bem jurídico tutelado, é algo elevado, tendo em conta a expressão que empregou para lesar a honra e consideração de AA, na presença de outras pessoas, mormente CC; - o arguido BB actuou com dolo intenso, na modalidade de dolo directo; - o arguido BB mostra-se socialmente integrado, exercendo a profissão de engenheiro como forma de angariar o seu sustento e goza de apoio familiar, vivendo com a esposa e o filho; - o arguido BB é pessoa de boa condição económica, uma vez que o seu agregado familiar, composto por 3 pessoas, tem rendimentos mensais no valor de €3.500,00, não tendo despesas com a habitação e não suporta o pagamento de empréstimos; - o arguido BB não tem antecedentes criminais. Relativamente ao tipo de pena a aplicar, tendo em atenção que são altos os índices de criminalidade da região, e que este tipo de crime tem uma frequência também elevada, é de concluir que se mostram consideráveis as necessidades de prevenção geral positiva. Já quanto às necessidades de prevenção especial que se fazem sentir neste caso, entendo que as mesmas ainda têm uma feição mediana, pois abona a favor do arguido BB a sua integração social e a ausência de antecedentes criminais. E em face destas necessidades de prevenção geral e especial e face ao clima de conflitualidade entre este arguido e AA, bem como o contexto em que este comportamento surge, entendo que não é de aplicar a dispensa de pena prevista no artigo 186.º, n.ºs 2 e 3 do Código Penal, porque dessa forma não ficam acauteladas as finalidades da punição. Destarte, tudo ponderado, entendo que as finalidades da punição ficarão acauteladas pela aplicação ao arguido BB de uma pena de multa pelo crime de injúria cometido. Passando agora para a determinação da pena em concreto, há que começar por estabelecer a moldura de prevenção. Conforme já se referiu, as exigências de prevenção geral positiva neste caso têm uma feição elevada, pelo que as mesmas ficarão satisfeitas com uma pena situada entre 40 e 100 dias de multa quanto a cada crime. No que respeita à culpa do arguido BB, que é limite inultrapassável da pena, entendo que a mesma é elevada, atentos os contornos da prática de tais actos, mas não permite ir além de 80 dias de multa. Considerando tal, bem como as necessidades de prevenção especial, as quais são medianas, julgo adequada a aplicação ao arguido BB uma pena de 60 (sessenta) dias de multa pelo crime de injúria. Quanto à fixação do quantitativo diário dessa pena de multa, cumpre atentar que, de acordo com o que logrou apurar, o arguido BB tem uma condição económica desafogada, pelo que, em conta a actual redacção do artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, que veio fixar o limite mínimo do quantitativo dessa pena em €5,00, fixo a taxa diária da pena de multa a aplicar no presente caso em €8,00 (oito euros), perfazendo assim a multa a aplicar €480,00 (quatrocentos e oitenta euros). IV - Do pedido de indemnização civil deduzido por AA contra BB: AA deduziu pedido de indemnização civil contra BB, peticionando a condenação deste no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos no valor de €3.000,00 (três mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação do pedido de indemnização civil e até integral e efectivo pagamento. Tal vai então ser realizado à luz da lei civil, como determina o artigo 129.º do Código Penal. Assim, procedendo à subsunção dos factos provados, há que apreciar se a obrigação de indemnizar existe por parte de BB, em virtude de responsabilidade extracontratual deste, a aferir face ao disposto no artigo 483.º do Código Civil. De acordo com este preceito, em regra, a obrigação de indemnizar eclode mediante a reunião dos seguintes pressupostos: conduta dominada ou dominável pela vontade; ilicitude dessa conduta, por violar o direito de outrem ou uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios; imputação do facto ao lesante, através de dolo ou negligência; existência de um dano; e nexo de causalidade entre o facto e o dano. In casu, constata-se que todos estes pressupostos se verificam, na medida em que, pelo que resultou provado: - BB, ao dizer que não queriam ali caloteiros na reunião de condomínio, referindo-se a AA praticou actos dominados pela sua vontade; - a conduta de BB foi ilícita, por violar o direito do demandante civil à honra e consideração, conforme o artigo 70.º do Código Civil tutela, ilicitude essa que não foi excluída, conforme atrás se explanou; - o demandado agiu com dolo, sabendo que praticava tais actos e querendo fazê-lo; - o demandante civil sofreu danos não patrimoniais, consubstanciados em sentir-se envergonhado, vexado; - esses danos foram consequência directa e necessária da conduta assumida pelo demandado, porquanto sem a mesma não ocorreriam, ao mesmo tempo que não sobrevieram outras condutas extraordinárias, fortuitas ou excepcionais para a sua verificação. Assim, BB está obrigado a indemnizar AA pelos danos sofridos, nos termos dos artigos 496.º e 562.º a 564.º do Código Civil. O princípio geral quanto ao conteúdo da obrigação de indemnizar é o da reconstituição natural, repondo-se o lesado na situação que existiria se não se tivesse produzido o dano, princípio este acolhido expressamente no aludido artigo 562.º. Somente quando a reconstituição natural não for possível, não seja idónea ou se revele injustamente onerosa para o devedor, haverá que proceder à fixação da indemnização em dinheiro – artigo 566.º, n.º 1, do mencionado código. Quanto aos danos não patrimoniais, dada a sua natureza, a indemnização arbitrada não pode assumir uma função reconstitutiva, mas antes de compensação, de forma a proporcionar alguma satisfação ao lesado. In casu, atento o disposto no artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, afigura-me que os danos não patrimoniais sofridos pelo demandante civil e originados pelo comportamento do arguido BB assumiram uma gravidade que faz com que sejam claramente merecedores da tutela do direito, não tendo aquele que os suportar se não fossem as lesões infligidas pelo demandado à sua honra e consideração. Assim, há que proceder à fixação do respectivo montante indemnizatório, de harmonia com o disposto no artigo 496.º, n.º 3, 1.ª parte, e o artigo 494.º para o qual este remete, ou seja, considerando que “O montante da indemnização por danos não patrimoniais deve ser calculado com prudente bom senso prático e criteriosa ponderação das realidades da vida, segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à situação económica dele e do lesado, e às flutuações do valor da moeda, devendo ser proporcional à gravidade do dano.” – in Acórdão da Relação do Porto de 13-02-1996 (Proc. n.° 66935), disponível no site www.dgsi.pt. Há ainda que atender a que essa indemnização deve ser actual, aplicando-se-lhe também a regra constante do artigo 566.º, n.º 2, do mesmo código – assim, Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2002, Diário da República, I Série A, n.º 146, de 27/09/2002. Tendo presente os supra referidos critérios de equidade, há a considerar que: - os danos causados a AA tiveram uma feição moral, face aos sentimentos de vexame, humilhação experienciados; - o demandante civil é pessoa de condição económica algo modesta, ante os rendimentos do seu agregado familiar e sua composição; - o demandado civil também é pessoa de condição económica desafogada. Tudo ponderado, entendo que o valor peticionado pelo arguido AA se mostra manifestamente excessivo e antes fixo, por julgar adequado, equitativo e justo o valor da indemnização a pagar pelo arguido BB em €300,00 (trezentos euros), valor esse actualizado na presente data. Sobre esse montante acrescem juros de mora, à taxa legal, em face do previsto no artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil, desde a presente data, uma vez que o valor da indemnização foi actualizado à data de hoje, e até integral e efectivo pagamento. Assim, este pedido de indemnização civil deve ser considerado parcialmente procedente, porque provado apenas em parte. (…)» 3. Apreciação do mérito do recurso 3.1. Da impugnação da matéria de facto: Como tem sido reiteradamente salientado, a matéria de facto pode ser sindicada em recurso por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do mesmo diploma (vd., por todos, Acórdão do TRC de 11.03.2009, Processo n.º 4/05.7TAACN.C1). No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios da decisão previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como expresso no preceito, tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. No segundo caso temos a invocação de erros de julgamento, visando o recurso o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção a partir delas. No caso, o recorrente invocou as duas vias. Vejamos. Pretendendo o recorrente impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto, impõe-se que dê cumprimento a um tríplice ónus, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 412.º do CPP, especificando a) “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados”; b) “as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” e c) “as provas que devem ser renovadas”. Assim, atentando nas duas primeiras especificações, únicas relevantes no caso, impõe-se ao recorrente que indique, com toda a clareza e precisão, os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que considera incorretamente julgados e, bem assim, o conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova, com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Nos termos do n.º 4 do artigo 412.º do CPP e concretamente no tocante às declarações e depoimentos prestados em audiência, a especificação das “concretas provas” deve ser feita com referência ao consignado na ata quanto ao início e termo da gravação, devendo os recorrentes indicar concretamente as passagens (das gravações) em que funda a impugnação, procedendo o Tribunal, neste caso, à audição das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no n.º 6 do mesmo artigo 412.º. Como vem sendo consensualmente entendido, o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento, não podendo o Tribunal da Relação aniquilar sem mais a livre apreciação da prova do julgador da 1.ª instância, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade, e reapreciar totalmente os elementos de prova produzidos e documentados em 1.ª instância. O recurso em matéria de facto para a Relação constitui antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente (cf. Acórdãos do STJ de 14.04.2005, Processo n.º 05A3416 e de 17.02.2005, Processo n.º 04P4324). Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se “os concretos pontos de facto” que o recorrente considera incorretamente têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e “as concretas provas” indicadas pelo recorrente. Por outro lado, a reapreciação só pode determinar a alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa, e não quando apenas permitem uma outra decisão. Como se diz no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.04.2008, Processo n.º 360/08-01: «Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.» Delimitado o campo de intervenção deste Tribunal, vejamos o caso em apreço. Com recurso ao corpo da motivação, verifica-se que o recorrente considera incorretamente provados os factos descritos sob os n.ºs 1 a 7, 19, 24 e 25 da factualidade provada. Quanto às “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, apenas poderá ser considerado o depoimento da testemunha CC, relativamente ao qual o recorrente, no corpo da motivação, identificou concretamente a passagem em que funda a sua impugnação. No mais, o recorrente limitou-se a remeter genericamente para os “testemunhos oferecido em audiência de julgamento” e para as declarações do arguido AA por remissão para a fundamentação da matéria de facto da decisão recorrida, não tendo, nem na motivação, nem nas conclusões, cumprido minimamente o ónus de especificação das concretas provas gravadas, com indicação concretizada das passagens das gravações que suportam a sua pretensão impugnatória e que são aquelas que o tribunal deveria ouvir (para além de outras que reputasse relevantes). Quanto aos pontos 1 a 7 dos factos provados Estes pontos têm a seguinte redação: 1) No dia ... de 2020, pelas 20h30min, no átrio de entrada do prédio sito na ..., BB e AA travaram-se de razões, no decurso de uma reunião de condomínio que se encontrava a decorrer, por motivos relacionados com supostas dívidas mantidas pelo segundo ao condomínio em causa; 2) Mais concretamente, quando tal reunião de condomínio estava a decorrer, havia uns 10 minutos, o arguido AA entrou no prédio e invocou que não tinha sido convocado para a assembleia de condóminos, ao que DD, que ali se encontrava no âmbito de uma empresa de gestão de condomínios, lhe disse que estava afixada a convocatória na entrada; 3) A seguir, o arguido BB perguntou se o arguido AA tinha direito de voto na assembleia, porque tinha valores em dívida ao condomínio, ao que DD lhe respondeu que o arguido AA tinha o direito de assistir e votar e o arguido AA retorquiu que queria pagar o que estivesse em dívida, mas não ia andar a bater à porta de ninguém para o efeito; 4) Foi então que o arguido BB disse que não queriam ali caloteiros; 5) Essa expressão foi ouvida por CC, que se encontrava na reunião do condomínio; 6) A seguir, o arguido AA dirigiu-se ao arguido BB e disse “O que é que tu queres filho da puta?”; 7) Tais palavras foram dirigidas ao arguido BB pelo arguido AA em voz alta e de molde a serem ouvidas por terceiros, e foram escutadas por quem se encontrava nessa assembleia de condóminos, mormente DD e CC. Ouvido o registo do depoimento da identificada testemunha CC, verifica-se que o mesmo não põe em causa os factos em análise, antes pelo contrário, confirma-os parcialmente nos termos referidos pelo tribunal a quo. Em particular no tocante ao ponto n.º 4, foi o mesmo dado por provado pelo tribunal recorrido precisamente “naquilo que coincide com o descrito pela testemunha”. Não merece, pois, qualquer censura a decisão do tribunal a quo, mantendo-se inalterada a factualidade descrita nos pontos 1 a 7. Quanto ao ponto n.º 19 dos factos provados: Este ponto tem a seguinte redação: 19) O arguido BB proferiu as expressões supra enunciadas com o propósito de atingir o arguido AA na sua honra e bom nome, o que logrou conseguir. Neste particular, lê-se na motivação da decisão de facto da sentença recorrida que tal facto ficou provado, “resultando das regras da lógica e da experiência comum que ambos os arguidos, com as expressões que dirigiram um ao outro, no contexto existente, pretenderam atingir a honra e consideração do outro e estando bem cientes de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”. Decorre da sentença recorrida que a prova deste facto é indissociável do entendimento de direito do tribunal a quo sobre a tipicidade, no plano objetivo, da expressão caloteiro proferida pelo recorrente. Na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos do tipo objetivo e ter consciência do seu carácter ilícito, a prova do elemento subjetivo, por via de regra, faz-se de forma indireta, com recurso a inferências lógicas e presunções ligadas às regras da experiência comum, a partir dos factos conhecidos que são os modos de execução dos tipos de crime, associados à capacidade de discernimento e à liberdade de vontade do autor desses factos. A «intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)», como se reconhece no Acórdão do TRP de 27.01.2021, Processo n.º 473/14.4JAPRT.P1. No caso, analisando a factualidade objetiva considerada provada à luz das regras da experiência comum e da lógica corrente, o tribunal a quo inferiu que o recorrente sabia e quis ofender o arguido AA na sua honra e consideração. Vejamos se assim é. Conforme resulta do disposto no artigo 181.º do Código Penal, o tipo objetivo do crime de injúria preenche-se mediante a imputação a outra pessoa de factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou juízos de valor ofensivos da honra ou consideração. Como se vem entendendo, o bem jurídico protegido pelo crime em apreço é a honra ou consideração do visado. Na lição de Beleza dos Santos, in “Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, RLJ ano 92, n.º 3152, p.167-168, a honra consubstancia-se “naquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale” e a consideração é “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa (…) ao desprezo público. (…). A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social ou ao menos de não o julgar um valor negativo”. Os direitos à integridade moral e ao bom-nome e reputação dispõem de respaldo no texto constitucional e são emanação da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da Lei Fundamental). O n.º 1 do artigo 25.º da Constituição da República dispõe que “[a] integridade moral e física das pessoas é inviolável”. E o artigo 26.º do mesmo diploma estabelece que “[a] todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”. Para determinar se certa expressão, imputação ou formulação de juízos de valor são ofensivas da honra e consideração de outra pessoa, importa, em primeiro lugar, ter presente o contexto situacional de vivência humana em que as mesmas foram proferidas. Como refere Faria Costa, “o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas no momento em que apreciamos o significado”, o que não significa que não haja palavras “cujo sentido primeiro e último é tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, p. 630). Como defendido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.10.2008, Processo n.º 1376/06.1TACVL.C1, “no domínio dos crimes contra a honra, em que está em causa determinada frase ou uma simples palavra, a adequação está fortemente dependente do lugar, do modo, do meio, da pessoa que pratica o ato ou daquela a quem é dirigido, do grau de educação e instrução, dos hábitos de linguagem, do relacionamento antecedente entre as pessoas, da disposição, das finalidades prosseguidas, enfim do contexto em que ocorre a prática dos factos. A adequação da palavra, escrita ou verbalizada, para ofender a honra e consideração de outrem depende decisivamente do contexto em que é proferida ou escrita.” Em segundo lugar, há que ter presente que o direito penal tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito, não devendo intervir para criminalizar simples desrespeitos, grosserias, descortesias ou más educações. Como ensina Costa Andrade, a conduta típica configura sempre “a concretização de uma expressão paradigmática de danosidade social intolerável” e, como tal, digna de tutela penal e carecida de tutela penal. Segundo este Professor: “É a dignidade penal que dá expressão ao mandamento constitucional segundo o qual só os bens jurídicos fundamentais merecem a tutela penal e, por via disso, assegura eficácia à exigência constitucional da proporcionalidade. Por seu turno, é a carência de tutela penal que garante vigência ao imperativo constitucional da subsidiariedade (ou última ratio), por força do qual só será admissível o recurso à criminalização de condutas quando esta se revele idónea e necessária. Isto é, quando não seja possível assegurar a proteção dos bens jurídico-criminais por forma igualmente eficaz e menos gravosa para a liberdade. Resumidamente (…): é a dignidade penal que assegura à criminalização a indispensável legitimação negativa; mas é a carência de tutela que mediatiza a não menos irrenunciável legitimação positiva.” Salienta o autor que estas considerações ganham “pertinência e alcance” precisamente face ao problema da proteção jurídico-penal de bens jurídicos como a honra, a privacidade/intimidade, a palavra e a imagem (“Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, Coimbra, 1996, pp. 178-179 e 182-184). Conforme Acórdão do TRP de 07.11.2012, Processo n.º 18515/11.3TDPRT.P1, «[F]ace à existência de uma margem de conflitualidade social tolerável, o direito penal só pode intervir quando a linguagem utilizada, para além de incomodar ou ferir a suscetibilidade do visado, atinge o núcleo essencial das qualidades morais dessa pessoa. A análise deve incidir, pois, sobre o significado próprio das palavras usadas e sobre o contexto geral em que são proferidas. Há palavras tidas, pela comunidade, como naturalmente [expressamente] ofensivas da honra e consideração mas que, analisadas à luz do contexto em que foram proferidas, não preenchem a conduta típica dos crimes de que falamos. Só em face dessa ponderação o tribunal pode afirmar a “carga ofensiva” (…), o “grau de ofensividade penalmente relevante” ou “a relevância injuriosa” da expressão e, nessa medida, configurar a prática do crime correspondente.» Por último, dentro do próprio tipo, conflituam bens jurídicos fundamentais com assento na Constituição: por um lado, o direito de todos os cidadãos à sua integridade moral, ao bom-nome e à reputação - artigo 26º da CRP – e, por outro, o direito de cada um exprimir e divulgar livremente o seu pensamento através da palavra, da imagem ou qualquer outro meio - artigo 37.º, n.º 1 da CRP-, importando encontrar uma solução que procure a sua harmonização ou concordância prática, atendendo ao caso concreto segundo critérios de proporcionalidade. Conforme se lê no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.02.2023, Processo n.º 1493/20.5T9VFR.P1: «Manuel da Costa Andrade (in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal – Uma Perspectiva Jurídico-Criminal, Coimbra Editora, 1996, pgs. 232 a 240) é claro ao considerar atípica a crítica objetiva, ou seja, a crítica de obras, prestações, realizações e atuações. Essa crítica pode situar-se nos âmbitos político, artístico, desportivo, ou outros. Estaremos perante uma situação de atipicidade, e nem sequer perante uma justificação, nos termos do artigo 31.º, n.º 2, c), do Código Penal, de uma conduta típica pelo exercício de um direito (neste caso, o direito de crítica). Na verdade, da redação dos artigos 180.º, n. 1, e 181.º, n.º 1, do Código Penal resulta que os crimes de difamação e injúria supõem a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos, atuações, obras, prestações ou realizações. Estes juízos, que são cobertos pela liberdade de expressão e crítica, não configuram elemento constitutivo de algum desses dois tipos de crime.» Cumpre agora apreciar o caso concreto à luz dos considerandos expostos. Concorda-se com o tribunal recorrido quando afirma que, quando o arguido BB disse que “não queriam ali caloteiros”, tais palavras eram dirigidas ao arguido AA, apelidando-o assim de “caloteiro". O sentido comum do epíteto de caloteiro é o de designar pessoa que caloteia, que não paga o que deve (dicionário Priberam on line, pesquisa em 04.06.2024). A palavra foi proferida em assembleia de condóminos, o que constitui um momento particularmente relevante da vida do condomínio, propício à ocorrência de algum grau de conflitualidade, com discussões mais acaloradas e manifestações exageradas, sendo certo que, segundo resulta dos autos, entre os arguidos já existia uma conflitualidade antiga e recíproca com origem em desacordos relacionados com relações de vizinhança. Em particular, o incumprimento do pagamento da quota parte de comparticipação de cada um dos condóminos nas despesas de conservação e fruição das partes comuns do edifício e nos serviços de interesse comum é uma das situações que mais facilmente conduz a um choque de interesses, que causa grande animosidade e exacerbação de atitudes, resultando dos autos que, à data dos factos, o recorrente era administrador do condomínio e o arguido AA tinha dívidas para com o condomínio, dívidas que disse que “queria pagar mas que não ia andar a bater à porta de ninguém para o efeito” (cf. facto n.º 3). Não obstante o sentido depreciativo com que foi dita, a expressão em causa apresenta um certo grau de adequação ao contexto em que teve lugar e à perceção/opinião do recorrente sobre o particular modo de agir do arguido AA. Atendendo ao contexto em que foi proferida, a expressão “caloteiro” deve ser considerada como a formulação de um juízo crítico por parte do recorrente, enquanto manifestação de indignação, face à conduta do arguido AA, pois encerra a constatação de uma atuação deste arguido, e não da sua personalidade, e não ultrapassa de forma desproporcional o exercício do direito de manifestar a sua opinião crítica e, como tal, não tem a virtualidade de alcançar, à luz dos princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade, um patamar de gravidade que demande ou justifique a intervenção do direito penal. Assim sendo, é irrelevante que o arguido AA se tenha sentido vexado e humilhado, na medida em que não incumbe ao direito penal proteger a sua sensibilidade pessoal, no âmbito de uma relação conflituosa de vizinhança. Concluímos, pois, contrariamente à sentença recorrida, que, no contexto em que o recorrente a usou, a expressão “caloteiro” não é ofensiva da honra e consideração do arguido AA, não sendo, assim, de aceitar, de acordo com as máximas da lógica e da experiência comum, que o recorrente a tenha proferido com essa intenção, o que implica a eliminação do facto n.º 19 do elenco dos factos provados e o seu aditamento ao elenco dos factos não provados. Consequentemente, cumpre eliminar a referência ao arguido BB do ponto n.º 23 da factualidade provada, que passa a ter a seguinte redação: “Bem sabendo o arguido AA que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida e, ainda assim, não se coibiu de a adotar”, e acrescentar ao elenco dos factos não provados o seguinte ponto: “Bem sabendo o arguido BB que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida e, ainda assim, não se coibiu de a adotar”. Posto isto importa concluir que não se mostram preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do ilícito típico de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual o recorrente vem condenado. Tanto basta para se mostrar prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo recorrente, nomeadamente a impugnação dos pontos 24 e 25 da factualidade provada, e para se julgar procedente o recurso, revogando a sentença recorrida e, consequentemente, absolver o recorrente tanto da prática do identificado crime, como da condenação no pagamento ao arguido AA da importância de €300,00, acrescida de juros, a título de indemnização por danos não patrimoniais, dado que esta indemnização se fundava na prática do crime por parte do recorrente. III. DECISÃO Pelo exposto, os Juízes que integram a 9.ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido BB, decidindo, em consequência: - eliminar o facto descrito sob o n.º 19 do elenco da factualidade provada, adicionando-o ao elenco dos factos não provados; - eliminar a referência ao arguido BB do facto descrito sob o n.º 23 da factualidade provada, que passa a ter a seguinte redação: “Bem sabendo o arguido AA que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida e, ainda assim, não se coibiu de a adotar”, e acrescentar ao elenco dos factos não provados o seguinte ponto: “Bem sabendo o arguido BB que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida e, ainda assim, não se coibiu de a adotar”; e - absolver o arguido BB da prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, e do pedido de indemnização civil, pelos quais vinha condenado. Sem custas. Notifique. Lisboa, 20 de junho de 2024 Os Juízes Desembargadores, Micaela Pires Rodrigues Paula Cristina Bizarro Jorge Rosas de Castro |