Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2383/19.0T8LSB.L1-2
Relator: RUTE SOBRAL
Descritores: PERSI
CARTÃO DE CRÉDITO
MEDIDA DE RESOLUÇÃO
TAXA DE JURO
INSTITUIÇÃO DE CRÉDITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):
I – A integração em PERSI (processo de regularização de situações de incumprimento, previsto no DL 227/2012, de 25/10), assume uma vertente negocial que pode ser extraída da sequência de atos e comunicações praticados entre o banco e o cliente bancário, desde que evidenciem a análise do incumprimento e da situação financeira do devedor, bem como a aceitação de proposta de regularização da dívida por ele apresentada.
II – Corrobora tal integração a comunicação junta aos autos, pela qual é expressamente transmitida ao devedor a extinção de PERSI e mencionada a data da integração.
III - O bloqueio de contas bancárias do réu, operado na sequência de medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal ao Banco B…, ainda que persista até à atualidade, não é suficiente para demonstrar a impossibilidade de pagamento de montantes devidos por força da utilização de cartão de crédito, dado não se ter apurado que o réu não possuía outros rendimentos ou património que lhe permitissem liquidar os montantes em dívida.
IV– Aos juros contratualizados para as operações ativas das instituições de crédito ou sociedades financeiras, sujeitas à supervisão do Banco de Portugal, não se aplicam os limites estabelecidos para a usura nos artigos 559º-A, 1146º do Código Civil e 102º do Código Comercial, por estarem liberalizadas as respetivas taxas desde 1993, na sequência do Aviso do Banco de Portugal nº 3/93, de 20-05.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:

I - RELATÓRIO
1.1.O autor Banco C…SA, identificado nos autos, instaurou em 01-02-2019 a presente ação declarativa comum contra o réu A…, igualmente identificado nos autos, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 23.044,50, acrescida de juros e imposto vincendos, calculados às taxas de 29,256%, 19,4% e 4% ao ano, a partir de 01-02-2019 até pagamento integral da dívida.
Para tanto, alegou o autor o seguinte:
- O réu efetuou diversos saques com um cartão de crédito que o autor lhe concedeu no exercício da sua atividade bancária, apresentando a conta associada um saldo negativo de € 9.914,84 de capital desde 08-10-2014;
- Tal dívida não foi regularizada apesar dos contactos estabelecidos para o efeito, pelo que os respetivos juros e imposto devidos assumiam em 01-02-2019, data da entrada da petição inicial em juízo, o valor de € 13.102,56;
- O réu procedeu ainda à abertura de uma conta de depósitos à ordem, no C, SA, comprometendo-se a mantê-la provisionada, por forma a suportar todos os débitos e demais despesas originadas com a sua manutenção;
- Sucede que a referida conta apresenta desde 01-01-2018 um saldo devedor de € 22,23, montante a que acrescem juros e imposto no valor de € 4,87, à data da entrada da petição inicial em juízo.
1.2 – Pessoal e regularmente citado, o réu deduziu contestação, em 04-07-2019, apresentando defesa por exceção e por impugnação.
Assim, alegou ter sido surpreendido, no dia 03-08-2014, com o comunicado do Banco de Portugal respeitante à aplicação de medidas de resolução ao Banco A…, SA. Entre tais medidas, foi determinado o bloqueio das contas bancária que o contestante ali possuía, juntamente com a esposa, em face das relações de parentesco e de afinidade mantidas com o ex-Presidente do Conselho de Administração daquele banco (sendo o contestante seu filho e a esposa sua nora). Desde então, o contestante e a família ficaram sem acesso aos fundos depositados nas referidas contas bancárias, tendo visto diminuir de forma significativa o seu património.
Alegou ainda pender no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, sob o nº 2591/14.0BELSB, ação por si instaurada contra o Banco de Portugal e o aqui autor, que visa impugnar o ato administrativo de bloqueio das contas bancárias, as quais sempre estiveram munidas dos valores suficientes para o pagamento atempado dos movimentos com o cartão de crédito, considerando que a mesma constitui questão prejudicial da presente, cuja suspensão requereu, nos termos do artigo 92º do Código de Processo Civil.
Mais alegou o contestante ter agido em estado de necessidade ao recorrer ao cartão de crédito, dado que foi surpreendido pelo inusitado bloqueio das contas (as únicas que o contestante e esposa possuíam) e precisava de prover às necessidades da sua família. Assim, a cobrança dos juros calculados com recurso a taxas elevadíssimas, na situação descrita, corresponde à exploração do seu estado de necessidade, e torna usurário o negócio em causa nos autos, sendo ainda usurária a taxa de juros peticionada. Consequentemente, considerou impor-se a anulação do contrato ou, pelo menos, a sua redução nos termos do disposto no artigo 1146º, nº 2 do CC.
Mais alegou que com a revogação do artigo 145º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), perdeu fundamento legal o bloqueio das suas contas, pelo que quer o autor, quer o Banco de Portugal, deveriam ter providenciado pela sua cessação.
Considerou ainda não ter incorrido em incumprimento contratual, pois sempre manteve provisionadas as contas do BES associadas ao cartão de crédito, não sendo por isso devido o pagamento de juros. Ao invés, na perspetiva do contestante, existe mora do credor, dado que o autor possuía o domínio da situação financeira e bancária do réu, tendo sido incumbido pelo Banco de Portugal de gerir o procedimento de aferição de legitimidade e de legalidade das contas bancárias, demitindo-se de atos de colaboração essenciais ao desbloqueio das contas, o que está na origem da impossibilidade de cumprimento por parte do réu. Assim, considerou que o autor atuou com abuso de direito ao impedir o seu cumprimento e, simultaneamente, cobrar juros desproporcionados.
O contestante apresentou ainda defesa por impugnação, reiterando não lhe poder ser apontado qualquer incumprimento contratual.
Requereu a intervenção principal provocada do Banco de Portugal, considerando que tal entidade não agiu de modo diligente, ao perpetuar o bloqueio das suas contas, contribuindo para o incumprimento invocado pelo autor.
Deduziu o contestante reconvenção, apontando ao autor incumprimento do contrato de depósito bancário entre ambos celebrado por lhe inviabilizar o acesso às quantias que ali depositou, situação que já perdura desde 03-08-2014, solicitando a sua  condenação na entrega dos valores que ali estavam depositados, naquela data, no valor de € 367.946,57, acrescido de juros vencidos e vincendos sobre essas quantias, tendo calculados os primeiros, à data da interposição da ação, em € 72.260,36.
1.3 – O autor replicou, por articulado apresentado em 14-08-2019, reiterando o alegado na petição inicial, negando que o bloqueio das contas bancárias do réu tenha resultado da sua atuação, considerando, em consequência, que a ação em que foi invocada a ilegalidade de tal bloqueio não constitui questão prejudicial da presente. Mais alegou que o réu aceitou todas as condições contratuais quando em 04-03-2009 contratou o cartão de crédito, designadamente o ali estipulado quanto a taxas de juro. Aliás, sendo o réu colaborador do Banco B… no cargo de subdiretor, não poderia ignorar o clausulado, designadamente que o bloqueio das contas não constituía impedimento ao cumprimento do contrato, já que o pagamento poderia ser feito por qualquer forma.
Deduziu o autor expressa oposição à intervenção do Banco de Portugal por considerar que o desbloqueio das contas bancárias sempre teria que ser discutido em sede própria, que não a presente ação.
Considerou inadmissível a reconvenção, por via da qual o réu requer a devolução dos montantes bloqueados nas suas contas, dado que apenas quem ordenou o bloqueio das contas poderá determinar o seu desbloqueio.
Reiterou encontrar-se impossibilitado, por força do disposto no artigo 145º-H do RGICSF de disponibilizar os fundos depositados nas contas bloqueadas, considerando inexistir qualquer nexo causal entre a sua conduta e quaisquer prejuízos sofridos pelo autor.
Concluiu reiterando o pedido por si deduzido, pugnando pelo indeferimento da suspensão do processo por inexistência de causa prejudicial, pela improcedência do incidente de intervenção provocada deduzido pelo réu, e pela rejeição do pedido reconvencional. Para o caso de admissão do pedido reconvencional, pugnou pela remessa dos autos aos juízos centrais cíveis, defendendo, de todo o modo, a sua improcedência.
1.4 – Em 02-10-2019, foi proferido despacho que fixou o valor da causa em € 463.251,43, julgando incompetente, em razão do valor, o juízo local cível de Lisboa onde fora instaurado e determinou a sua remessa para o juízo central cível da Comarca de Lisboa (referência 390180554).
2 – Em face da situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 na altura existente, colhido o acordo das partes, foi dispensada a realização de audiência prévia e elaborado, por escrito, o despacho saneador.
Em tal despacho, foi indeferido o pedido de suspensão da instância com base na existência de causa prejudicial, aí se considerando que o desfecho do processo n.º 2591/14.0BELSB, que corria termos no tribunal administrativo do círculo de Lisboa, não influenciava o desfecho dos presentes autos, “uma vez que o crédito aqui reclamado e que o R. reconhece como tal, pelo menos no que concerne ao capital em dívida, existe independentemente de ser dada procedência à referida ação administrativa intentada pelo aqui R contra o aqui A. bem como existe a obrigação de a pagar com qualquer outro meio de pagamento, o que por si só afasta a prejudicialidade duma ação em relação à outra”.
Não foi admitido o pedido de intervenção principal provocada do Banco de Portugal, aí se tendo exarado que “(…) os tribunais comuns, mormente a secção cível da instância central da comarca de Lisboa, sempre seria incompetente, em razão da matéria, para apreciar e julgar a responsabilidade civil extracontratual, do Banco de Portugal, na situação em análise (tanto assim é que o próprio R. já intentou uma ação administrativa que corre sobre o processo 2591/14.0BELSB contra o aqui A e o Banco de Portugal em que visa a impugnação do ato administrativo de bloqueio das contas bancárias)”.
Por outro lado, não foi admitida a reconvenção, por a pretensão reconvencional não se subsumir a nenhum dos fundamentos previstos nas alíneas do n.º 2 do artigo 266º do CPC.
No despacho saneador, foi afirmada a regularidade da instância, e foram enunciados o objeto do litígio e os temas de prova (despacho de 26-01-2021 – referência 401057353).
3 – Realizada audiência de julgamento, em 24-10-2022, constatando-se que em sede de produção de prova e em alegações sobre a matéria de facto e de direito fora suscitada pelo réu a questão do incumprimento pelo autor do PERSI, ou seja, do processo de regularização de situações de incumprimento, previsto no Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de outubro, foi determinada a reabertura da audiência, tendo sido o autor notificado para juntar aos autos as comunicações ao réu nesse âmbito.
3.1 – Por requerimento de 09-02-2023 (referência 45680782), o autor veio informar que a integração do réu no PERSI ocorreu em 12-11-2014, tendo-se verificado a sua extinção em 28-11-2014. Mais referiu que a documentação em questão já não se encontra disponível, tanto mais que nos termos do disposto nos artigos 11º-C, nº 2, e 20º, nº 2, do DL nº 227/2012, de 25/10, as instituições de crédito estão obrigadas a conservar os processos/documentos apenas no prazo de 5 anos. Por fim, considerou que a prova documental e testemunhal já produzida autorizaria uma decisão segura e conscienciosa relativamente à questão suscitada.
3.2 - O réu pronunciou-se em 21-02-2023 (referência 44788677), considerando não ser possível, com segurança, afirmar qual a data de integração em PERSI. E mesmo que tal integração tenha ocorrido em 12-11-2019, na data de interposição da presente ação – em 01-02-2019 - vigorava ainda o período de conservação obrigatória da documentação. Mais considerou que o documento nº 10 junto pelo autor com a petição inicial, referente à extinção de um alegado procedimento PERSI, não comprova a integração do réu, nem o cumprimento de todas as fases do mesmo.
Concluiu que o autor deve sujeitar-se à cominação legal decorrente da falta de prova do processo de regularização de situações de incumprimento (PERSI), procedendo a correspondente exceção dilatória insuprível, devendo ser determinada a extinção da instância, defendendo (por lapso manifesto), a sua consequente absolvição do pedido.
3.3 - Exercendo contraditório sobre tal requerimento, em 02-03-2023 (referência 44890195), o autor alegou que o seu comportamento não configura recusa de apresentação de documentação, e que a invocada exceção de não cumprimento do PERSI se mostra precludida, pois deveria ter sido invocada pelo réu na sua contestação. Mais alegou que o réu não impugnou o documento por si junto com o nº 10, no qual é comunicada a extinção de PERSI, além de que o encadeamento dos factos demonstra inequivocamente a integração em PERSI. E tanto mais que o réu era, à data, quadro superior do Banco C… SA, com a categoria profissional de diretor, filho do Presidente da Comissão Executiva do Banco B…, tendo sido a proposta para o pagamento aprovada no próprio dia em que foi apresentada. Considerou o autor que a invocação, pelo réu, em audiência de julgamento, de incumprimento de PERSI configura abuso de direito. Mais alegou que o cumprimento de PERSI pode ser demonstrado por qualquer tipo de prova. Concluiu referindo que a procedência da exceção apenas poderia dar origem à absolvição da instância, e não do pedido
3.4 - Ambas as partes apresentaram alegações por escrito, na sequência de convite que lhes foi dirigido para o efeito (despacho com a referência 425595511, de 15-06-2023), após o que foi proferida sentença, em 23-08-2023, que julgou improcedente por não provada a exceção dilatória de incumprimento do PERSI, bem como as demais exceções arguidas, e parcialmente procedente a ação.
Consta do dispositivo:
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, julga-se parcialmente procedente, por provada, a presente ação, e em consequência condena-se A… a pagar ao A Banco C…:
- a quantia de € 9914,84 (nove mil e novecentos e catorze euros e oitenta e quatro cêntimos) correspondente a capital, acrescido de juros e respetivo imposto, vencidos e vincendos, contados à taxa contratualizada entre as partes de 26,256% ao ano, acrescida de 3%, contados desde 7-01-2015, a que se somam as comissões no valor de €68.71, até integral pagamento da dívida.
- a quantia de € 22,23 (vinte e dois euros e vinte e três cêntimos), a título de capital, acrescido de juros vencidos e vincendos apenas desde a citação a 14-05-2019, à taxa de juros acordada entre as partes outorgantes para os saldos devedores de descobertos em conta, acrescida de juros de mora contabilizados a partir daquela data até efetivo e integral pagamento”.
4 - Não se conformando com a decisão proferida, o réu dela interpôs recurso, ao qual solicitou que fosse atribuído efeito suspensivo, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que, alterando a matéria de facto, julgue verificada a exceção dilatória relativa a falta de inserção em PERSI, ou caso assim não se entenda, julgue que o autor ficou impossibilitado de amortizar o valor da dívida, contabilizando-se os juros vencidos apenas desde a data da sua citação, e ainda  que a aplicação da taxa de juros contratual reveste a natureza de negócio usurário, devendo ser aplicada a taxa de juros civil, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“A. O presente recurso vem interposto da sentença que condenou o Recorrente ao pagamento (i) da quantia de € 9.914,84 (nove mil, novecentos e catorze euros e oitenta e quatro cêntimos) correspondente a capital, acrescido de juros e respetivo imposto, vencidos e vincendos, contados à taxa contratualizada entre as partes de 26,256% ao ano, acrescida de 3%, contados desde 07-01-2015, a que se somam as comissões no valor de € 68,71, até integral pagamento da dívida; e (ii) da quantia de € 22,23 (vinte e dois euros e vinte e três cêntimos), a título de capital, acrescido de juros vencidos e vincendos apenas desde a citação a 14-05-2019, à taxa de juros acordada entre as partes outorgantes para os saldos devedores de descobertos em conta, acrescida de juros de mora contabilizados a partir daquela data até efetivo e integral pagamento, tendo o A., aqui Recorrente, sido absolvido do restante pedido contra si deduzido;
B. Sucede, porém, que tendo em consideração a prova testemunhal e a prova documental produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, não permitiriam ao Tribunal a quo extrair as conclusões da forma como o fez na sentença recorrida, não tendo feito o mais correto julgamento dos factos, nem a mais correta interpretação e aplicação do Direito.
C. O Tribunal a quo considerou provado que “Por comunicação enviada ao R datado de 28-11-2014 pelo A, consta “assunto extinção do procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), contrato n.º 24004290434, processo 018267677 consta “(…) vem por este meio informá-lo que procedeu nesta data à extinção do procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento “PERSI”, no qual foi integrado em 2014/11/12 (…)”
D. Na sentença recorrida, o Tribunal a quo considerou que pese embora o Autor, ora Recorrido não tenha procedido à junção aos presentes autos da carta de integração do Recorrente no PERSI, tal não invalida que tal integração tenha sido feita, até porque terá havido uma negociação entre as Partes com vista a alcançar um acordo e, sendo esse o objetivo último do PERSI, no entendimento do Tribunal a quo, a questão da falta de junção dos elementos relativos ao PERSI, por parte do Recorrido, ficou sanada.
E. Entende o Recorrente que tal conclusão não poderia ter sido extraída pelo Tribunal a quo, devendo a decisão relativamente à existência de inserção do Recorrente no PERSI ser revogada.
F. Nos termos do Decreto-Lei n.º 227/2012, é à entidade bancária, ora Recorrido, que incumbe provar a inserção dos Clientes e, no caso concreto, do Recorrente no âmbito do PERSI, nomeadamente através da prova do envio de receção das cartas de integração e de extinção do PERSI, devendo as comunicações serem efetuadas em suporte duradouro.
G. De acordo com a prova documental e testemunhal efetuada no âmbito dos presentes autos, resultou claro que nenhuma prova foi feita da inserção do Recorrente no PERSI.
H. Todas as testemunhas inquiridas a propósito desta questão referiram desconhecer a existência de inserção do Recorrente no PERSI, todas elas intervenientes em várias fases do processo de recuperação - dentro da estrutura do Banco, aqui Recorrido - que estivessem no início ou no final da “cadeia de cobrança” do Recorrido.
I. O facto de ter sido apresentada uma proposta por parte do Recorrente, no dia 28.11.2014 (precisamente a mesma data em que, alegadamente, o Recorrido procedeu ao envio da carta de extinção do PERSI ao Recorrente), não exime o Recorrido da responsabilidade da prova da inserção do Recorrente no PERSI.
J. Assim sendo, não poderia o Tribunal a quo extrapolar o facto de ter sido apresentada uma proposta de pagamento por parte do Recorrente, para considerar ter existido uma integração no PERSI.
K. Nenhuma das testemunhas referiu ter tido conhecimento e/ou contacto com alguma destas alegadas comunicações com o Recorrente, pese embora todas elas tenham exercido ou exerçam funções em departamentos diferentes do Banco Recorrido, nomeadamente a testemunha D (no balcão), a testemunha E (no departamento de pré-contencioso) e a testemunha F (do departamento de backoffice).
L. Nenhuma delas demonstrou ter qualquer conhecimento (ainda que indireto) do envio das comunicações no âmbito do PERSI ao Recorrente.
M. O que o Tribunal a quo pretendeu fazer foi substituir-se ao legislador, quando refere que pese embora não exista qualquer prova do envio da carta de inserção no PERSI, tal facto fica prejudicado pela existência de uma proposta de acordo que, diga-se, foi feita pelo Recorrente e precisamente na data em que, alegadamente, o Recorrido enviou a carta de extinção do PERSI ao Recorrente, carta esta que nunca este recebeu e que não foi feita qualquer prova, por parte do Recorrido, quer que a mesma tivesse sido enviada, quer que tivesse sido recebida pelo Recorrente.
N. A falta de inserção do Recorrente no PERSI constitui uma exceção perentória inominada, que tem como consequência a absolvição da instância.
O. Contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, aliada à falta de prova documental, da prova testemunhal também não resultou provado o cumprimento dos requisitos previstos no Decreto- lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, pelo que se impunha a prolação de uma decisão diversa à que foi tomada.
P. Ao decidir da forma como decidiu, o que o Tribunal a quo fez foi inverter o ónus da prova, passando a ser o Recorrente a ter de provar a sua não inserção no PERSI e não o Recorrido a fazer prova da sua inserção, o que jamais poderá ser admissível.
Q. E não se diga que o facto de ter existido uma carta remetida para o Recorrente, cuja prova do recebimento nem sequer foi feita por parte do Recorrido, faz com que se encontre provada a inserção do Recorrente no PERSI, sendo exigido que tivesse sido feita prova (documental ou testemunhal, direta ou indireta) do envio das cartas do PERSI ao Recorrente, o que não foi feito.
R. O facto já terem decorridos 5 (cinco) anos sobre o início do alegado processo de inserção no PERSI e, como tal, já não haver uma obrigatoriedade de manutenção dos registos físicos, não poderia levar o Tribunal a quo a concluir pela inexigibilidade de junção dos referidos elementos aos presentes autos, como foi feito pelo Tribunal a quo.
S. Tendo também considerado provado que o Recorrente sempre quis pagar ao Recorrido.
T. Assim como que “Na sequência do bloqueio da sua conta bancária, após a Resolução do Banco Espírito do Santo, o R. viu-se impedido de a movimentar e realizar movimentos a débito”.
U. Ora, encontrando-se no Algarve, longe de casa, com a esposa e a filha de 1 (um) ano, o Recorrente viu-se impedido de proceder ao pagamento de despesas básicas para a sua manutenção, tendo, contudo, considerado como não provado que o Recorrente estivesse impedido de proceder ao pagamento do valor em dívida por impossibilidade de acesso às suas contas bancárias.
V. Ora, entende o Recorrente que este facto deveria ter sido considerado como provado, face à prova documental e à prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
W. O Recorrente, vendo-se a braços com a necessidade de prover sustento à sua família, encontrando-se ainda sem acesso a esses depósitos, que correspondiam à totalidade do seu património financeiro.
X. Só posteriormente é que foi levantado o bloqueio de valores depositados pelo Recorrente e pela esposa, embora digam respeito a contas bancárias de um valor residual e que, obviamente, não permitiriam a liquidação do valor em dívida.
Y. Do documento produzido pelo Banco de Portugal, com a referência IFI/2014/00004197 e datado de 04 de novembro de 2014, resulta que o Banco C, propôs o desbloqueio das contas tituladas pelo Recorrente, sendo certo que até à presente data, as contas mantém-se bloqueadas.
Z. Se não existia acesso aos constantes que se encontravam nas contas bancárias, não poderia o Recorrente proceder ao pagamento do valor em dívida.
AA. As únicas contas que foram desbloqueadas, já após novembro de 2014 foram duas contas bancárias com valores muito reduzidos, encontrando-se depositados nas mesmas apenas €2.285,97 (dois mil duzentos e oitenta e cinco euros e noventa e sete cêntimos) e €10,11 (dez euros e onze cêntimos).
BB. À data da resolução bancária do B(4 de Agosto de 2014), operada no âmbito de uma legislação que nunca tinha sido aplicada, com todas as vicissitudes que tal implica, o Recorrente encontrava-se de férias com a filha de 1 (um) ano, pelo que teve necessidade de recorrer ao cartão de crédito para fazer face ao pagamento das despesas correntes, conforme foi comprovado pela testemunha ….
CC. Ao invés de retirar de tal facto as consequências jurídicas que se impunham, o Tribunal a quo limitou-se a decidir que uma vez que a taxa de juro tinha sido acordada entre as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, não existe qualquer negócio usurário.
DD. O Recorrente ficou impedido de ter acesso às suas contas bancárias, tendo apenas sido desbloqueadas muito tempo depois ficando numa situação de grande precariedade e sem dinheiro para proceder ao pagamento das suas despesas correntes, pelo que o que deveria ter sido decidido pelo Tribunal a quo deveria ter sido em sentido contrário ao constante da sentença recorrida.
EE. O facto de o Recorrente ter sido forçado a proceder ao levantamento do dinheiro para proceder ao pagamento das despesas básicas de sobrevivência, subsume-se a uma situação de estado de necessidade, com a consequência prevista no artigo 282.º do Código Civil.
FF. O facto de ter sido utilizado o cartão de crédito para o pagamento destas despesas, implicou a aplicação de juros de mora de mais de 26%, acrescido de 3%, o que motivou um benefício excessivo e injustificado do Recorrido.
GG. Aliás, a aplicação desta taxa de juro de mais de 29% apenas teve como pressuposto a existência de um estado de necessidade por parte do Recorrente.
HH. Impunha-se, assim, que o Tribunal a quo tivesse considerada como provada a circunstância da necessidade de prover pelo sustento e pela manutenção do pagamento das despesas básicas da sua família, por parte do Recorrente.
II. A aplicação de uma taxa de juro superior a 29%, na sua globalidade, no caso dos presentes autos, reveste a natureza de negócio usurário, o que deveria ter sido considerado pelo Tribunal a quo.
JJ. Pelo que deverá a sentença recorrida ser revogada e, em sua substituição, deverá ser considerado provado que existiu uma verdadeira impossibilidade de o Recorrente proceder ao pagamento do valor em dívida, por impossibilidade de acesso às suas contas bancárias, tendo procedido ao levantamento dos valores no âmbito de um estado de necessidade e que aplicação da taxa de juro contratada, num contexto de utilização dos valores conforme foi considerado pelo Tribunal a quo resulta na existência de um negócio usuário, o que desde já se requer que seja decidido.
5- Contra-alegou o autor, opondo-se à atribuição de efeito suspensivo ao recurso, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
6.  Foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata e nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
7.  Remetidos os autos a este Tribunal em 01-03-2024, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II –  QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Consequentemente, nos presentes autos, constituem questões a decidir as suscitadas no âmbito da impugnação da matéria de facto (defendendo o recorrente que não ficou demonstrada a sua inserção em PERSI, e ainda que deverá considerar-se provada a sua impossibilidade de liquidar os montantes em discussão nos autos por força do bloqueio das suas contas).
Já no âmbito da apreciação do mérito do recurso, para além das consequências a retirar do resultado da impugnação da matéria de facto, constituem questões a decidir as  de saber se os juros devem considerar-se vencidos apenas desde a data da citação do réu, e se devem ser contabilizados à taxa de juros civil,  por a taxa contratada se revelar usurária.          
III – FUNDAMENTAÇÃO
A – Foram os seguintes os factos considerados provados pelo tribunal recorrido:
1-O A. é uma instituição de crédito, que se dedica à atividade bancária.
2- No exercício daquela atividade bancária, o A C SA, anteriormente C1, a pedido do R. A… concedeu a este um cartão de crédito n.º …15, com um plafond, originariamente no valor de €5000,00 aumentado, em 13-07-2009 para €10.000,00 através de contrato e aditamentos datados e assinados, por ambas as partes em 04-03-2009 e 13-07-2009, respectivamente – cfr doc fls. 6 a 11 cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
3- O R. efetuou diversos saques a descoberto, com o cartão de crédito referido em 2, da conta associada a tal cartão, apresentando um saldo negativo, no valor de €9914,84 de capital, desde 08-10-2014, conforme extrato bancário e mapa de responsabilidades juntos a fls. 11v a 16v cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
4. O anterior … Comercial de Lisboa (atual C SA) a pedido do R. A, procedeu a 04-03-2009, à abertura de uma conta de Depósito à Ordem (D/O), à qual foi atribuído o nº 0234 9574 0003 - conforme ficha de abertura de conta junta a fls. 22 e 23 cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.
5.- Aquela conta de depósito à ordem foi, desde sempre, movimentada a crédito e a débito pelo seu titular, aqui R. A.
6. - Naquela conta bancária eram creditados os valores depositados pelo R. ou por terceiros e debitadas as ordens de pagamento dadas pelo mesmo, bem como as obrigações e responsabilidades por aquele assumidas.
6-1- A conta de depósito à ordem referida em 4 apresentava um saldo negativo, no valor de €22,23 de capital, desde, pelo menos, 01-01-2018, que corresponde a capital, juros, comissões, impostos, despesas – cfr doc fl.s 31 e 32, cujo teor integralmente se dá por reproduzido.
6-2- A taxa de juros para o saldo negativo em conta era de 16,47% para os saldos devedores, acrescida de 3% - cfr doc fls. 33v cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
7- Nas condições especiais de utilização dos cartões …VISA para clientes particulares, do cartão de crédito identificado em 1, nas cláusulas 4 e 5, com as epígrafes “liquidação do extrato conta corrente” e “taxas de juros”, respetivamente, consta:
 4.2. o pagamento do montante em dívida será efetuado por ordem de débito permanente à conta de depósitos à ordem associada à conta-cartão, numa das seguintes modalidades: (…)
4.3. caso não exista no B… em nome do titular uma conta de depósito à ordem associada à conta cartão, o pagamento do montante total em dívida será efetuado por qualquer outra forma que seja aceite pelo banco designadamente através das caixas automáticas da rede multibanco dos terminais de pagamento automático ou através de sistema de débitos diretos.
4.7. se o titular pretender efetuar pagamentos por montantes diferentes (superiores ou inferiores) da ordem de débito por este inicialmente indicada, caso exista, poderá efetuá-los através das caixas automáticas da rede multibanco (o titular poderá ainda efetuar essa operação em determinados terminais de pagamento automático que permitam realizar essa operação). (...)
5.1. O não pagamento da totalidade do saldo indicado no extrato de conta cartão implicará o pagamento por débito nessa conta de juros que incidirão sobre o montante remanescente em dívida os quais serão calculados a partir da data limite de pagamento
5.2. Os juros referidos no ponto anterior encontram-se estipulados no preçário em anexo.
5.3 A taxa de juro, o período de amortização e o montante de cada prestação serão atualizados em conformidade com as alterações introduzidas na legislação sobre cartões de crédito ou em consequência da modificação das taxas de juro praticadas no mercado.
5.4. O não pagamento do montante correspondente ao mínimo obrigatório a pagar ou ao valor do montante fixo, indicado no extrato de conta cartão, implica que à taxa de juro mensal referida no precário em anexo, acresça uma penalização de 1% ao mês. cfr doc fls. 6 a 9 cujo teor se dá inteiramente por reproduzido
8º - As condições especiais que integram o contrato de utilização dos cartões …VISA para clientes particulares referidas em 7 estão subscritas pelo A e R.
9º - O R., à data da sua subscrição do cartão de crédito em causa nos autos, era colaborador do B… a exercer funções de subdiretor na ESAF. – cfr doc fls. 10v cujo teor se da integralmente por reproduzido.
10º- Nos extratos de conta cartão do A., datados de 8-8-2014; 8-09- 2014; 8-10-2014, consta a opção do pagamento do extrato de cartão por multibanco com a identificação da entidade, referência e mínimo a pagar. – cfr doc fls. 11 v a 15 cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
11º - No extrato de conta cartão de 8-11-2014 lê-se: “ a sua conta cartão encontra-se em atraso de pagamento pelo que, neste momento, não é possível transacionar com o cartão. Deverá pagar o valor indicado neste extrato. O C tem presente as dificuldades que muitos dos seus clientes atravessam atualmente e pode propor opções alternativas para a regularização. Se é seu caso. Fale connosco.” – cfr doc fls. 14 cujo teor se dá teor se dá por reproduzido.
12º- No extrato de conta cartão de 8-11-2014 lê-se “verificamos que os montantes mínimos dos dois últimos extratos da sua conta cartão não foram pagos pelo que o seu processo foi enviado para a área de recuperação de dívidas do Grupo B….”- cfr doc fls. 15v cujo teor se dá teor se dá por reproduzido.
13º- No dia 14 de agosto de 2014, o R. estava a passar férias com a sua mulher e filho, à data com 1 ano de idade.
14º- Na sequência do bloqueio da sua conta bancária, após a Resolução do Banco B…, o R. viu-se impedido de a movimentar e realizar movimentos a débito.
15º- Como precisava de pagar as despesas diárias com alimentação, deslocação e saúde do bebé, alojamento, e não tinha acesso à sua conta bancária identificada em 4, usou o cartão de crédito referido em 1. nos dias e semanas seguintes para fazer face tais despesas.
16º- Tanto o R. como a mulher, naquela data, 14/08/2014, não tinham outra conta bancária para além das que foram bloqueadas.
17º- O R., a 28 de novembro de 2014, pelas 14:06 envia mail a D (C Sede Colaboradores), com assunto acordo para pagamento do cartão, referindo “Caro D…, tal como combinado fica acordado pagar €700,00/mês, a dia 30 de cada mês, começando em dezembro. “- cfr doc de fl.s 17v, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
17º1- D (C sede colaboradores) envia mail a 28-11-2014, pelas 14h24, a G… (C recuperação) com o assunto: acordo pagamento do cartão, referindo: “conforme falado, encaminho mail que o Dr A… me enviou com indicação do valor a pagar mensalmente e respetiva data, bem como contacto telefónico para envio de SMS com entidade e referência”- cfr doc de fl.s 17, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
17º-2- O A., a 10 de dezembro de 2014, pelas 15:20 envia mail a D (C Sede Colaboradores), com assunto acordo para pagamento do cartão, referindo “Caro D…, como não obtive resposta, apenas queria confirmar que estava tudo encaminhado. É assim?” (…) – cfr doc fls. 86v cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
17º-3: D (C sede colaboradores) envia mail a 10-12-2014, pelas 16h57 envia o mail a A… com o assunto: acordo para pagamento de cartão: “Boa tarde Dr A…, A informação que tenho é que o acordo foi aprovado pelo Banco no próprio dia em que falámos, 28/11. Como lhe disse na altura, o C… enviar-lhe-á uma carta com o acordo de pagamento, na qual constará a entidade, montante e referência para efetuar os pagamentos mensais. Paralelamente receberá no contacto do telemóvel indicado um SMS dias antes do dia 30 de cada mês também com a entidade e referência “. – cfr doc fls. 86 cujo teor se dá por reproduzido.
18º- O A. comprometeu-se para com o R. a fazer o pagamento em prestações do valor em dívida, no valor de €700,00 mensais até ao integral pagamento, com início em dezembro de 2014;
18º-1: O A., a 7 de janeiro de 2015, pelas 16:21 envia mail a D (C Sede Colaboradores), consta: “com assunto acordo para pagamento do cartão. Tal como falamos telefonicamente, vai-me ser impossível cumprir os pagamentos faseados da dívida em questão (do cartão de crédito). Este pagamento que vos sugeri após um acordo com uma terceira pessoa que iria fazer os pagamentos em meu nome. Surgiram contratempos com este terceiro, pelo que vai-me ser impossível efetuar os pagamentos. Explico-vos isto porque é e sempre foi minha vontade saldar esta dívidas do cartão de crédito, como aliás sempre fiz. também sabem que devido à resolução do Banco de Portugal fiquei sem acesso aos fundos que sempre serviram para saldar estas contas e como infelizmente não tenho outras contas, não vos poderei, até me ser devolvido o dinheiro cativo pelo C../BdP, saldar as mesmas.” (…) - cfr doc fl.s 86, cujo teor se dá por reproduzido.
19º- No extrato integrado n.º 8/2014 da conta à ordem n.º …03 titulada pelo R. consta como depósitos à ordem €178.763,29; depósitos poupança €10,11; Fundos de Investimento no valor de €7058,69; Valores Mobiliários, no valor de € 389.825,20 – cfr doc fls. 91, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
20º - O R. sempre quis pagar a dívida ao A.
21º- O R., após o bloqueio das suas contas bancárias no C – sucursal Portugal -, abriu uma nova conta bancária n. …90, no C, Sucursal Espanha, entre agosto de 2014 e março de 2015 - para poder domiciliar o seu ordenado auferido como colaborador do C – Sucursal em Espanha – e para poder receber e movimentar os seus vencimentos.
22º- A 3 de agosto de 2014, por deliberação do Banco de Portugal, foi aplicada a medida de resolução ao Banco B….
23º - Conforme anexo 2 à deliberação de 3 de agosto de 2014 foram objeto de transferência para o C SA ativos passivos e elementos extrapatrimoniais que se encontravam sob a gestão do B… SA.
24º - A mulher do R. também deixou de ter acesso às contas bancárias aberta no Banco B….
25º - O Réu apresentou junto do C uma declaração em que atesta que é o verdadeiro titular dos saldos das contas bancárias existentes em seu nome no C, e bem assim outra informação na qual consta a justificação de alguns movimentos efetuados nas referidas contas e todas as informações que foram solicitadas pelo C.
26º - No processo de averiguação da origem dos fundos, o C tinha que analisar a movimentação das contas.
27º - As contas à ordem identificadas no facto 4. com o saldo também aí referido apresentava, até um ano antes da data da resolução do Banco B…, movimentos decorrentes da atividade diária das pessoas e bem assim movimentos que atestavam a transferência de dinheiro proveniente de transferências internacionais, designadamente com uma, no valor de 300.000,00€, identificada como transferência proveniente dos pais do Réu.
28º- Por informação do Banco de Portugal de 2014/11/04 com o assunto 03- 30272014/DIU – proposta de aplicação dos critérios complementares a situações concretas consta: “(…) b. A…, em conjunto com H… (contrato n.º…39) segundo informação transmitida pelo C SA a conta em referência apresentava um saldo à data de 3 de agosto, de €282.597, bloqueado por efeito da medida cautelar adotada pelo Banco de Portugal, em virtude de um dos titulares em causa corresponder a uma das categorias enunciadas na alínea c) do n.º 2 do artigo 145º-H do RGICSF. (…) O C propõe o desbloqueio dos fundos detidos na conta à data de três de agosto com fundamento na existência de indícios de que os fundos detidos na conta pertencem ao primeiro titular, não oferecendo dúvidas de que atua por conta própria.(…) Considera-se a fundamentação apresentada pelo C SA insuficiente e deficiente devendo ser reformulada. Não obstante em nossa opinião a aplicação dos critérios propostos elo DJU aos indícios recolhidos com base na informação sobre a conta conduzem à conclusão de que o titular efetivo dos fundos creditado é o primeiro titular da conta, que atua por conta própria na respetiva utilização. A proposta de DJU é a de pois permitir a transferência de fundos na conta à data de 3 de agosto para o C SA. c) A, como titular único (contrato n.º …03) Segundo informação do C SA a conta em referencia apresentava um saldo à data de 3 de agosto de €177.946,57 bloqueado por efeito da medida cautelar adotada pelo Banco de Portugal, em virtude de o titular em causa corresponder a uma a uma das categorias enunciadas na alínea c) do n.º 2 do artigo 145º- H do RGICSF. O C propõe o desbloqueio dos fundos detidos na conta à data de três de agosto com fundamento na existência de indícios de que os fundos detidos na conta pertencem ao primeiro titular, não oferecendo dúvidas de que atua por conta própria(…). Considera-se a fundamentação apresentada pelo C SA insuficiente e deficiente devendo ser reformulada. Não obstante em nossa opinião a aplicação dos critérios propostos elo DJU aos indícios recolhidos com base na informação sobre a conta não conduzem a conclusões inequívocas sobre a titularidade efetiva dos fundos creditados nem permitem afastar dúvidas de que o filho possa estar a atuar por conta do pai na respetiva utilização. A proposta do DJU é pois, a de não permitir a transferência dos fundos detidos na conta à data de 3 de agosto para o C SA. – cfr doc fls. 80 v a 82, cujo teor se dá por reproduzido.
28º-1 – Por parecer do BdP datado de 2015/07/31 relativo ao assunto 02- 19972015/ADM – Parecer do DJU – credito de familiares de ex administradores do Banco B…, A… propôs que o Conselho de Administração delibere aprovar a transferência para o C do saldo da conta identificada como conta n.º 100272143390, no montante de €10,11 e não aprovar a transferência do saldo da conta identificada como conta n.º 888727380003439, com saldo de €190.000,00 – cfr doc. fls. 82 v a 85v. cujo teor se dá por reproduzido.
29º - O banco C… propôs ao Banco de Portugal o desbloqueio das contas bancárias identificadas nos factos 28º e 28º1.
30º- Por comunicação enviada ao R. datado de 28-11-2014 pelo A., consta “no âmbito do processo de recuperação das responsabilidades vencida e não pagas e decorrente das negociações entre V Exa e a EX Recuperação de credito, ACE, enquanto entidade do Grupo Bresponsável pela área de recuperação de crédito, foi possível chegarmos a uma situação de compromisso, consubstanciado na celebração do presente acordo de pagamentos (…) “ cfr doc fl.s 18 cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
31º- Por comunicação enviada ao R datado de 28-11-2014 pelo A, consta “assunto extinção do procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), contrato n.º …34, processo …77 consta “(…) vem por este meio informá-lo que procedeu nesta data à extinção do procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento “PERSI”, no qual foi integrado em 2014/11/12 (…)” – cfr doc fls. 20, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
32º- O R. endereçou carta, datada de 20 de agosto de 2014, ao A. – cfr doc fls. 75, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
33º- O R. endereçou carta ao A. datada de 2 de setembro de 2014 – cfr doc fls. 79, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
34º- O R. enviou carta ao A datada de 2/06/2015 – cfr doc fl.s 78 cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
35º- O A respondeu às cartas do R., descritas em 32º e 33º, por intermédio de carta endereçadas ao R. datadas de 29-09-2014 e 13-10-2014 – cfr doc fl.s 102, 102 v e 103 cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
36º- A A. endereçou ao R. uma carta, datada de 7 de janeiro de 2015, com o assunto: regularização do contrato n.º …34, processo …77, dando conta “que a situação de incumprimento não foi ainda regularizada”. (…) A menos que seja efetuado o pagamento do valor em incumprimento de €11031,14, calculado à data de 17-01-2015, o contrato em epígrafe considera-se de imediato denunciado ou declarado o seu vencimento antecipado” – cfr doc fl.s 21 cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
37º- O A. endereçou uma carta ao R., datada de 6 de fevereiro de 2015, com o assunto: regularização do contrato n.º ….34, processo …77, dando conta que “(…) o contrato de cartões de que é titular já se encontra em contencioso. (…) o contrato em epígrafe considera-se de imediato denunciado ou declarado o seu vencimento antecipado. (…)” – cfr doc fl.s 12 v cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
38º - A A. endereçou uma carta ao R., datada de 17 de novembro de 2016, com o assunto: cartão de crédito conta n.º 460342017302815, saldo devedor conta à ordem n.º 02349574003, N/ REF 018267677 – 020013694- AR, (…)agradecemos que proceda ao pagamento das responsabilidades referentes aos contratos em assuntos até ao dia 30-11-2016, as quais ascendem aos seguintes montantes: cartão de crédito n.º conta 460342017302815: €16486,06 (…) e saldo devedor conta à ordem 023495740003: €22,85 (…) - cfr doc fls. 13 cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
39º - O R. trabalhou para o grupo C, pelo menos, até março de 2015 e auferiu salário enquanto colaborador do grupo – cfr doc fl.s 120 a 124 cujo teor se dá por reproduzido.
B - Na decisão recorrida foram considerados não provados os seguintes factos:
“- não se provou que o Banco C não diligenciou pelo desbloqueio das contas bancárias tituladas pelo R.
- não se provou que face à impossibilidade de aceder às suas contas bancárias tituladas no R, o R ficou absolutamente impedido de amortizar o valor em dívida ao A., ainda que em prestações.
- não se provou que o A. teve acesso à informação do Banco de Portugal junto aos autos de fls. 80v a 85, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.”
C - Impugnação da matéria de facto
Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto” estabelece o nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Já do nº 2 daquela norma resulta que:
“2- A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Por outro lado, a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso implica que o recorrente, nas alegações em que impugna a decisão relativa à matéria de facto, cumpra os ónus que o legislador estabeleceu a seu cargo, enunciados no artigo 640º CPC, com a seguinte redação:
“1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2-No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Por forma a cumprir os ónus legalmente estabelecidos a seu cargo para a impugnação da matéria de facto incumbe ao recorrente, no essencial, identificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados  (640º, nº 1, alínea a), CPC), os concretos meios probatórios que impunham, na sua perspetiva, decisão diversa (640º, nº 1, alínea b), CPC) indicando a decisão que deve ser proferida quanto aos factos impugnados (640º, nº 1, alínea c), CPC).
Expostas que estão as coordenadas relativas à impugnação da matéria de facto, procede-se, de seguida, à que foi deduzida pelo réu.
- Considerou o réu que não ficou demonstrada nos autos a sua integração em procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (doravante PERSI)
A questão em discussão nos autos enquadra-se no regime estabelecido pelo DL 227/2012, de 25 de outubro, que estabeleceu princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e regularização de situações de incumprimento de contratos de créditos pelos clientes bancários, procurando, como se refere no preâmbulo do diploma “(…) reforçar a importância de uma atuação prudente, correta e transparente (…) em todas as fases das relações de crédito estabelecidas com os seus clientes, enquanto consumidores”.
Num contexto de generalizada crise económica e financeira, pautada por um aumento exponencial de incumprimento dos contratos de crédito, pretendeu-se estabelecer, “ (…) um conjunto de medidas que, refletindo as melhores práticas a nível internacional, promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito (…) Em concreto, prevê-se que cada instituição de crédito crie um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI) (…) Adicionalmente, define-se um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI)…O presente diploma visa, assim, promover a adequada tutela dos direitos dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários” – cfr. preâmbulo do DL 227/2012, de 25-10. Com a criação de tal regime visou-se, assim, a proteção do cliente bancário que, assumindo as vestes de consumidor, celebra contratos de mútuo com entidades bancárias – cfr. artigo 3º, alínea a), Dl 227/2012, de 25/10.
Nos presentes autos não se mostra controvertido que o crédito em discussão, emergente da utilização de cartão de crédito se reconduz ao âmbito de aplicação do referido regime, definido no artigo 2º do referido diploma.
Por outro lado, também é inequívoco que o réu é um consumidor na aceção dada pelo nº 1 do artigo 2º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei nº 24/96, de 31 de julho e, consequentemente, “cliente bancário” nos termos definidos no artigo 3º, alínea a) do Dl 227/2012, de 25 de outubro.
O DL 227/2012, de 25/10, consagra fundamentalmente dois procedimentos, um dos quais, relativo à “Gestão do risco de incumprimento”, se desenvolve em momento prévio ao do incumprimento do mutuário (artigos 9º a 11º), e outro relativo ao Procedimento Extra Judicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), previsto nos artigos 12º a 21º, aplicável a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de crédito bancário.
O PERSI comporta a fase inicial, seguida da fase de avaliação/proposta/negociação e, por fim, a da extinção – cfr. artigos 14º, 15º, 16 e 17º do DL 227/2012 de 25 de outubro. Certo é que obriga as instituições bancárias a promoverem as diligências necessárias à implementação do PERSI relativamente a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito. – cfr. artigo 12º.
Por outro lado, e como decorre do artigo 18º, nº 1, alínea b) do citado diploma:
No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de:
 (…) b) intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito”.
Ou seja, a falta de integração do cliente bancário no PERSI, constitui impedimento legal a que a instituição de crédito, credora mutuante, intente ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 31-01-2019[1].
O PERSI constitui, assim, uma fase pré-judicial destinada à composição do litígio, impondo ao credor (instituição bancária/financeira), em razão da maior vulnerabilidade do consumidor, especiais deveres de informação, esclarecimento e proteção. Como se refere no acórdão STJ de 19-05-2020[2]: “A instituição de crédito que move ação executiva contra o mutuário consumidor, que se encontra em mora, tem o ónus de demonstrar que cumpriu as obrigações impostas pelos artigos 12º e seguintes do DL n.227/2012, que prevê o regime jurídico do PERSI. Enquanto o mutuante não proporcionar ao devedor consumidor a oportunidade para encontrar uma solução extrajudicial, tendo em vista a renegociação ou a modificação do modo de cumprimento da dívida, não lhe é permitido o recurso à via judicial para fazer valer o seu crédito (como se extrai do art.º 18º daquele diploma). O cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da ação executiva movida por uma entidade financeira contra um devedor consumidor, cuja ausência se traduz numa exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso que conduz à absolvição da instância”.
Assim, a comunicação da integração do cliente no PERSI e a sua extinção constituem condição da admissibilidade da ação declarativa ou executiva, gerando a sua falta uma exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância – cfr. artigo 576º, nº 2, CPC.
Tais comunicações constituem declarações recetícias, incumbindo ao credor a prova da sua existência, do seu envio e ainda da sua receção pelo devedor – Acórdão da Relação do Porto de 24/10/2023[3]. Na realidade, como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 8/10/2020[4], o regime consagrado no D.L. nº 227/2012, de 25/10, deve ser interpretado no sentido da “exigência de um procedimento de renegociação suficiente e materialmente efetivo e não de exigência de cumprimento de um iter sacramental de atos formais”.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-02-2023[5], salienta que o PERSI assume uma notória vertente negocial que torna imprescindível o estabelecimento de comunicações entre a entidade bancária e os clientes bancários nele integrados.
In casu, interessa salientar que a questão colocada pelo recorrente, a tal propósito, prende-se com a análise dos meios de prova produzidos e carreados para o processo, designadamente com a sua suficiência para demonstração da integração do recorrente em PERSI.
Ora, relativamente à extinção do referido procedimento, não restam dúvidas de que deve a mesma ser afirmada de forma inequívoca. Efetivamente, sob o facto provado nº 31 ficou demonstrado que:
31º- Por comunicação enviada ao R datado de 28-11-2014 pelo A, consta “assunto extinção do procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), contrato n.º …34, processo …77 consta “(…) vem por este meio informá-lo que procedeu nesta data à extinção do procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento “PERSI”, no qual foi integrado em 2014/11/12 (…)”.
A junção aos autos da carta pela qual foi comunicada a extinção de tal procedimento, a qual não foi objeto de impugnação pelo réu, culminando um processo negocial claramente evidenciado nos factos provados, torna inequívoca a afirmação da pertinente factualidade.
Porém, na perspetiva do recorrente, a falta de junção aos autos da carta pela qual foi comunicada a sua integração em tal procedimento inviabiliza a sua demonstração.
Julgamos, contudo, não lhe assistir razão.
Desde logo, no referido documento (junto com a petição inicial sob o nº 10, que não foi impugnado pelo réu) é expressamente mencionada a integração em PERSI, aí se referindo que a mesma ocorreu em 12-11-2014. Ora, o PERSI apenas poderia ser extinto caso o mesmo tivesse sido iniciado.
Por outro lado, ainda que devam constar de “suporte duradouro os processos individuais para os clientes bancários abrangidos pelos procedimentos previstos no PERSI”, como estabelecido no artigo 20º, nº 1 do DL 227/2012, de 25/10, também é certo que tais processos devem ser conservados durante “os cinco anos subsequentes ao termo da adoção dos procedimentos do PERSI” – cfr. nº 2 da norma citada.
Ora, tendo sido encerrado o PERSI em 28-11-2014 (facto provado nº 31), foi forçosamente iniciado em data anterior, e no momento em que foi suscitada a questão da falta de integração em PERSI (audiência de julgamento de 24-10-2022), há muito que havia decorrido o prazo de conservação obrigatória de documentação, a cargo do autor, e que, como já referido, era de cinco anos. Ou seja, no momento em que a ação foi instaurada, em 01-02-2019, ainda o referido prazo não tinha decorrido, vindo a completar-se já na pendência da causa, antes de ter sido suscitada pelo réu (ou oficiosamente) a exceção dilatória em causa.
Porém, há que salientar que o decurso do prazo de conservação da documentação relativa ao procedimento de integração e de extinção do PERSI, não abala o ónus da sua prova a cargo da instituição bancária. E o certo é que, neste caso, o autor cumpriu o ónus da prova do PERSI.
Efetivamente, afigura-se que tal integração deve extrair-se da própria comunicação de encerramento do PERSI, nos termos já expostos, mas também de toda a sequência de atos e comunicações trocadas entre autor e réu após verificado o  incumprimento em discussão nos autos.
Apurou-se que o autor propôs ao Banco de Portugal o desbloqueio dos fundos detidos nas contas do B(cfr. factos provados nºs 28, 28A e 29). Por outro lado, apurou-se que o autor enviou ao réu comunicação datada de 28-11-2014, com o seguinte teor: “No âmbito do processo de recuperação das responsabilidades vencida e não pagas e decorrente das negociações entre V Exa e a EX Recuperação de credito, ACE, enquanto entidade do Grupo Bresponsável pela área de recuperação de crédito, foi possível chegarmos a uma situação de compromisso, consubstanciado na celebração do presente acordo de pagamentos (…) “. (facto provado nº 30).
Tais diligências e comunicações evidenciam que o autor procedeu à análise da situação de incumprimento do réu, evidenciando conhecimento de que para a mesma contribuiu o bloqueio das contas, que o Banco de Portugal insistiu em manter (apesar das solicitações, de sentido contrário, que lhe foram dirigidas pelo autor), evidenciando que apreendeu a situação financeira e económica do autor, aceitando a proposta de regularização por ele apresentada (pagamento de € 700,00 no dia 30 de cada mês, com início em dezembro de 2014 - cfr. factos provados sob os números 17, 17.1, 17.2, 17.3 e 18).
Ora, tal atuação corresponde, em substância, ao plano de ação previsto no DL 227/2012, de 25/10, mostrando-se devidamente cumprido o dever do autor “(..) aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor” – cfr. preâmbulo do DL 227/2012, de 25/10.
Assim, mesmo que a integração em PERSI não tenha sido expressamente referida pelas testemunhas F… e I…, funcionários do autor que esclareceram não terem assumido intervenção direta na integração do autor em PERSI, dado que a mesma ocorre em departamentos diversos daqueles onde exercem funções, o certo é que a sua verificação resulta da conjugação dos vários atos praticados por ambas as partes, designadamente das negociações desenvolvidas, e que culminaram com a celebração de um acordo com vista à regularização do débito.
Ora, tendo o réu assumido uma posição ativa na regularização do seu incumprimento perante o autor, assumindo mesmo o pagamento de € 700,00 mensais até à regularização do crédito, julgamos estar demonstrado que teve efetivo conhecimento da sua integração em PERSI, condicionando, com a posição ativa que assumiu, o seu desfecho com a realização de um acordo de pagamento.
Consequentemente, concordando-se com o ali exarado, reitera-se o teor da sentença a tal propósito:
Regressando à situação dos autos, da factualidade provada extrai-se que entre A. e R. existiu uma negociação para solucionar o incumprimento do contrato de utilização de cartão de crédito por parte do R. Tal negociação deu origem ao acordo de pagamento em prestações no valor de €700,00 por mês, que o R. se propôs pagar da dívida relativa ao uso do cartão de crédito. Esta conversação, por via consensual, confessada pelo réu, só pode ser o resultado da atividade de análise da capacidade financeira do R., face ao contrato e ao incumprimento e de negociação do mesmo, favorecendo-se o seu cumprimento no futuro (tanto mais que o R. era colaborador do A. e filho do Presidente do Conselho de Administração do antigo Banco B…). Entende-se que esta atividade mais não é do que cumprir com as finalidades visadas pelo PERSI sendo a materialidade do resultado (acordo alcançado) que o legislador pretendeu com o regime de regularização estabelecido. Outrossim, in casu, resultou provado que ao R. foi comunicado a extinção do PERSI. Ora, resulta desse documento, aceite pelo R., que a integração do R. no procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento “PERSI” foi efetuada a 2014-11-12 (diga-se que o R. na contestação nem sequer suscitou o incumprimento do PERSI, quando já tinha à sua disposição todos os documentos juntos pelo A, na petição inicial, entre os quais, a carta ora referida), o que leva a concluir que, de facto, entre A. e R. foi salvaguardado o cumprimento do referido processo PERSI e suas respetivas fases previstas nos artigos 13º a 17º do referido DL. Assim, o facto do A. não ter junto a carta de integração do R. no PERSI, pelas razões invocadas, mas apenas a carta de extinção, onde consta a data de integração, documento este aceite pelo R., em nada altera o entendimento do tribunal, porquanto das negociações havidas entre A e R e refletidas nos factos provados, resultam cumpridas as finalidades inerentes ao procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento que culminaram num acordo de pagamento em prestações, que acabou por não ser cumprido pelo R.”.
Concluindo-se que se mostra demonstrada, em face da conjugação da prova produzida, a integração do réu em PERSI, improcedente se revela, nesta parte, a impugnação da matéria de facto.
- Reagiu o recorrente ao não apuramento de que estava impedido de proceder ao pagamento do valor em dívida por impossibilidade de acesso às suas contas bancárias, referindo que tal facto deveria ter sido considerado provado “Face à prova documental e à prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento” (conclusões U e V das suas alegações).
A este propósito, refere-se na decisão recorrida:
“A factualidade dada como não provada resultou da ausência de prova suficiente e credível quanto à mesma. Cumpre referir que não logrou o tribunal ficar convencido da impossibilidade do R. de efetuar o pagamento da dívida em causa nos autos, com outros meios de pagamento, uma vez que não obstante na data da resolução do BES e nos meses seguintes, as contas bancárias do A. tenham ficado bloqueadas, o certo é que o A era funcionário do C, o qual continuou a receber os seus salários, pelo menos até à data da sua saída da instituição em Março de 2015. Assim, ainda que no mês de Agosto, mês da data da resolução, possa ter ficado impossibilitado de efetuar o pagamento do cartão de crédito na sequência do bloqueio das suas contas, o certo é que nos meses seguintes, e continuando a ser colaborador do A., e auferir o salário, enquanto tal, não provou o A. a impossibilidade absoluta de pagar a dívida e ou cumprir o acordo nos termos em que se obrigou..”
O recorrente refere que a prova documental e testemunhal impunham uma decisão diversa (conclusão indicada sob a alínea V), aludindo especificamente, no que à prova documental diz respeito, apenas  ao documento emitido pelo Banco de Portugal, datado de 04-11-2014, referindo a tal propósito: “ Do documento produzido pelo Banco de Portugal, com a referência IFI/2014/00004197 e datado de 04 de Novembro de 2014, resulta que o C, propôs o desbloqueio das contas tituladas pelo Recorrente, sendo certo que até à presente data, as contas mantém-se bloqueadas” (Conclusão Y).
Ora, analisado tal documento, não é possível extrair, de forma automática, que o bloqueio das contas gerou a impossibilidade de pagamento dos montantes peticionados nos autos. Efetivamente, ainda que o réu não fosse possuidor de outras contas bancárias (facto provado nº 16), o certo é que exercia uma profissão remunerada, como colaborador do Grupo C (facto provado nº 39), não tendo ficado demonstrado que não possuísse outros meios de rendimento ou património que lhe permitissem solver a dívida. Ou seja, a documentação junta, comprovando o bloqueio das contas do réu e da esposa desde agosto de 2014, bem como a sua persistência, não constitui um meio de prova suficiente para afirmar que tal impossibilidade de acesso e movimentação das contas bancárias gerava, para o réu, a permanente impossibilidade de pagar os montantes em dívida ao autor, por não dispor de quaisquer outros rendimentos ou património. Na realidade, não ficou demonstrado que os depósitos existentes nas contas bloqueadas correspondessem à totalidade do património do réu.
Já no que se reporta à prova testemunhal, designadamente aos depoimentos  das testemunhas J… (sogro do réu) e H… (esposa do réu), a cuja audição integral se procedeu, afigura-se também não autorizar o apuramento da impossibilidade de pagamento dos montantes em causa nos autos. Dos respetivos depoimentos resultou, de forma inequívoca, que o bloqueio das contas (do réu e da esposa) na sequência da resolução aplicada ao BES constituiu uma situação anómala, com a qual não contavam que, obviamente, naquele momento colocou o casal numa situação financeira difícil e inesperada. Efetivamente, segundo referiram ambas as testemunhas, o casal vivia em Madrid, encontrando-se a passar férias no Algarve tendo verificado, após o anúncio da resolução do Banco B… que as contas estavam bloqueadas (depoimento de J…, ao minuto 4.30 e de H…, ao minuto 4.00), bloqueio que para ambos foi inesperado. Naquela ocasião, o cartão de crédito em causa foi o único que funcionou (depoimento de H…, ao minuto 5.20), pelo que foi utilizado pelo casal para prover às necessidades diárias e imediatas (depoimento de J…, ao minuto 11.00 e de H… ao minuto 7.45). Certo é que como refere a testemunha H…, ao minuto 8.00 e seguintes, na altura aquele foi o único “(…) meio de acesso ao nosso património (…) tirei aquilo que é meu para viver (…) não há qualquer sensação de uso indevido (…) continuo à espera que a instituição me devolva”. Ou seja, estando o réu deslocado do país e local onde vivia, de férias com a família, recorreu ao cartão de crédito na situação apurada de inesperado bloqueio das contas bancárias por, naquela concreta situação, tal se ter revelado como uma alternativa viável.
Porém, dos referidos depoimentos, conjugados com os demais factos apurados, não pode extrair-se que o réu não dispusesse de meios que lhe permitissem liquidar a dívida gerada com a utilização do cartão de crédito, tanto mais que no decurso do processo negocial com o autor assumiu que o faria. Por outro lado, tendo persistido no tempo o bloqueio das contas, o certo é que forçosamente o réu recorreu a outros fundos e rendimentos para acorrer às necessidades do seu agregado familiar, não tendo, contudo, assumido a necessidade de regularizar o montante em discussão nos autos, eventualmente por entender ter sido “arrastado para uma situação alheia”, como referiu a testemunha H… (minuto 6.30). Certo é que dos referidos depoimentos testemunhais não resultou minimamente demonstrado que apenas com recurso aos montantes depositados nas contas bloqueadas o pagamento pudesse ser efetuado, podendo até equacionar-se, em face dos depoimentos testemunhais já analisados, se a persistência do incumprimento não configura uma reação de protesto a tal bloqueio, que ditou que os ativos em questão permanecessem na instituição objeto de resolução (Banco B…), impedindo a sua transferência para o C (veículo de transmissão). Certo é que tal bloqueio resultante da deliberação emitida pelo Banco de Portugal em 03-08-2014, por si, não comprova a impossibilidade de pagamento dos montantes em causa.
Pelo exposto, improcede o recurso no que se reporta ao apuramento da alegada impossibilidade de pagamento decorrente do bloqueio das contas bancárias.
*
Reapreciação da decisão de mérito
Na perspetiva do recorrente, os juros devem considerar-se vencidos apenas desde a data da citação do réu, e devem ser contabilizados à taxa de juros civil, por a taxa contratada se revelar usurária.
Interpretando a decisão recorrida e o recurso que sobre a mesma incidiu, verifica-se que os juros impugnados são os decorrentes da dívida de capital emergente da utilização do cartão de crédito, porquanto só quanto a esses foi ordenada a sua contabilização a partir de 07-01-2015. Ao invés, a condenação em juros decorrente da dívida de capital emergente do descoberto em conta foi determinada a partir da citação do réu.
Tal dívida a ponderar na apreciação do recurso emergiu da utilização de cartão de crédito que, como tem vindo a ser referido pela doutrina, assenta numa relação triangular que tem como vértices um banco ou outra entidade autorizada (emitente), o cliente (aderente) e um terceiro, junto de quem o pagamento de bens ou serviços é efetuado. Por via da concessão do cartão de crédito, o aderente fica autorizado a aceder a sistema operativo especial de pagamentos diferidos, criado e gerido pela entidade emitente – Engrácia Antunes[6]. Certo é que a utilização do cartão não desencadeia qualquer movimento eletrónico na conta bancária associada, vindo a surgir  posteriormente a operação de débito correspondente ao seu uso, em consequência de um novo comportamento declarativo (por regra, autorização prévia – expressa – de débito) que permite a transferência de fundos da conta do titular do cartão, a fim de satisfazer a dívida criada com a utilização do cartão como forma de aceder a bens ou serviços já previamente adquiridos/fruídos – Maria Raquel Guimarães[7].
Ou seja, permite-se ao titular do cartão o acesso a um conjunto indeterminado de bens e serviços, a que a rede/serviço permita aceder, com a obrigação de aquele, no período de tempo convencionado, de forma integral ou fracionada, ter fundos na sua conta bancária, na data relevante, que permitam o reembolso das quantias correspondentes ao uso que deu ao cartão.
Enquadrada a relação contratual que gerou a dívida em discussão nos autos, em face da improcedência da impugnação da matéria de facto, resta averiguar se os juros exigidos pelo autor devem ser reduzidos, por usurários, bem como o momento a partir do qual é devido o seu pagamento.
A propósito do contrato de mútuo, sob a epígrafe “usura” dispõe o artigo 1146º do Código Civil:
“1 - É havido como usurário o contrato de mútuo em que sejam estipulados juros anuais que excedam os juros legais, acrescidos de 3% ou 5%, conforme exista ou não garantia real.
2 - É havida também como usurária a cláusula penal que fixar como indemnização devida pela falta de restituição do empréstimo relativamente ao tempo de mora mais do que o correspondente a 7% ou 9% acima dos juros legais, conforme exista ou não garantia real.
3. Se a taxa de juros estipulada ou o montante da indemnização exceder o máximo fixado nos números precedentes, considera-se reduzido a esses máximos, ainda que seja outra a vontade dos contraentes.
4 - O respeito dos limites máximos referidos neste artigo não obsta à aplicabilidade dos artigos 282.º a 284.º”
Sob a epígrafe “Negócios usurários” estabelece o artigo 282º, do Código Civil:
1 - É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.
2 - Fica ressalvado o regime especial estabelecido nos artigos 559.º-A e 1146.º”
Sendo o negócio usurário, pode o lesado requerer ou a anulação ou a modificação do negócio segundo juízos de equidade, nos termos do disposto no artigo 282º, do Código Civil.
Por fim, estipula o artigo 559º-A do Código Civil:
“(Juros usurários)
É aplicável o disposto no artigo 1146º a toda a estipulação de juros ou quaisquer outras vantagens em negócios ou atos de concessão, outorga, renovação, desconto ou prorrogação do prazo de pagamento de um crédito e em outros análogos”.
Exposto o enquadramento legal da questão suscitada pelo recorrente, deve adiantar-se que, no caso presente, evidenciam os factos provados que não foi paga a dívida gerada com a utilização do cartão de crédito pelo réu, devendo, consequentemente, afirmar-se o incumprimento do acordado relativamente a tal utilização.
Por outro lado, não resultou demonstrado que o réu tenha ficado definitivamente impossibilitado de amortizar os valores em dívida em face do bloqueio das contas bancárias que possuía no Banco B… Consequentemente, não pode extrapolar-se da situação do bloqueio das contas a automática conclusão de que o autor, ao cobrar juros às taxas peticionadas, se está a aproveitar de uma situação de “estado de necessidade” do réu que permita qualificar, por essa via, como usurário o negócio que vincula ambas as partes.
Porém, em face da conclusão do recurso instaurado pelo réu, cabe indagar se a taxa de juro peticionada pelo autor, por si, se revela usurária, devendo ser reduzida, como pretende o recorrente para a taxa de juros civil.
Ora, nos autos não ficou demonstrado que o réu, que é uma pessoa singular, tenha afeto o cartão de crédito a fins profissionais ou empresariais, pelo que deve afirmar-se a sua atuação na veste de “consumidor”. Porém, a primeira constatação a fazer é a de que o regime jurídico do crédito ao consumo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de setembro (RJCC), não contém qualquer norma expressa sobre a taxa máxima de juros, remuneratórios ou moratórios, a qual pode ser acordada pelas partes.
Certo é, contudo, que a lei civil, por via do regime consagrado nos já enunciados artigos 559.º-A e 1146º do Código Civil, bem como da lei comercial, “(…) através do artigo 102.º do Código Comercial, estabelecem um regime próprio para a usura quando esta se manifeste através de taxas de juro, prescindindo-se dos demais requisitos objetivos e subjetivos de que depende a intervenção do instituto da usura em geral, regulado no artigo 282.º do C. Civil. Em ambos os casos, a usura manifestada através da fixação negocial de taxas de juro, fica sujeita a uma sanção específica: a da redução da taxa de juros acordada ao máximo legalmente permitido” – como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 14-11-2017[8] .
Porém, tem vindo a ser reconhecido de forma maioritária, quer pela jurisprudência, quer pela doutrina, que estando em causa crédito concedido por instituição de crédito ou sociedade financeira, sujeitas à supervisão do Banco de Portugal, não se lhes aplicam os limites supra enunciados aos juros, por se encontrarem liberalizadas as taxas de juro nas operações ativas daquelas entidades, desde 1993, na sequência do Aviso do Banco de Portugal n.º 3/93, de 20 de maio.
Relatando a evolução legislativa que conduziu a tal liberalização das taxas de juros, refere-se no Acórdão da Relação do Porto de 14-11-2017, supra citado, que:
“(…) durante a vigência da Lei Orgânica do Banco de Portugal (LOBP 75), aprovada pelo Decreto-Lei 644/75, de 15 de Novembro, competia ao Banco de Portugal, de acordo com o artigo 28.º, n.º 1, al. b) fixar o regime das taxas de juro, comissões e quaisquer outras formas de remuneração para as operações efetuadas pelas instituições de crédito ou por quaisquer outras entidades que atuem nos mercados monetário e financeiro.
Ao abrigo desta disposição, o Banco de Portugal emitiu uma série de avisos, estabelecendo taxas máximas para as operações ativas das entidades sujeitas ao seu poder regulador, o último dos quais o Aviso 3/88, publicado a 5 de Maio, que fixou, como regra, a taxa máxima de juros nas operações ativas em 17% ao ano.
No entanto, a aplicação das taxas máximas para a generalidade das operações ativas previstas no referido Aviso foi suspensa (com exceção das taxas no crédito à habitação) poucos meses depois da sua publicação, através do Aviso n.º 5/88, de 15 de Setembro, suspensão alargada às taxas de juro do crédito à habitação pelo Aviso 65/89, de 18 de Março.

Apesar da suspensão da sua vigência, o aviso 3/88 só viria a se formalmente revogado já na vigência da nova Lei Orgânica do Banco de Portugal (LOBP 90, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 337/90, de 30 de outubro), através do referido Aviso 3/93.
Foi ao abrigo destas disposições que viria a ser emitido o referido Aviso”.
Tal aviso, na prática, liberalizou as taxas de juros das instituições de crédito e sociedades financeiras, como resulta do seu artigo 2º, onde se refere: “São livremente estabelecidas pelas instituições de crédito e sociedades financeiras as taxas de juro das suas operações, salvo nos casos em que sejam fixadas por diploma legal”.
Tal realidade tem vindo a ser jurisprudencialmente reconhecida, referindo-se a tal propósito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-05-2003[9]:
“Quanto à questão dos juros é sabido que o crédito bancário e para-bancário está submetido a legislação especial, na qual se atribuem, no que respeita à fixação de juros, elevados poderes ao Banco de Portugal que, qualquer que seja a natureza e forma de titulação do respetivo crédito, não conhece limites nessa fixação, designadamente os próprios do direito privado e do art. 1146 do C.C  (…) De resto, atualmente as taxas de juro bancárias estão praticamente liberalizadas como resulta do disposto no nº. 2 do Aviso 3/93 de 20 de maio de 1993 (…)”. Este é o entendimento que tem vindo a ser afirmado de forma constante, quer nos acórdãos já citados, quer ainda no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-03-2012[10], Acórdão da Relação de Lisboa de 19-05-2020[11], Acórdão da Relação de Guimarães de 19-06-2012[12], e Acórdão da Relação de Coimbra de 11-03-2014[13].
Não obstante, não deixamos de salientar a existência de posições doutrinárias divergentes, com base na consideração da inexistência de lei habilitante para que o Banco de Portugal fixe os limites de taxas de juro das operações ativas bancárias. Nesse sentido, Carlos Gabriel da Silva Loureiro[14], considerando que: “A liberalização das taxas de juro nas operações ativas levadas a cabo por instituições de crédito e sociedades financeiras parece assim resultar de um mero diploma regulamentar, emitido depois da revogação da norma habilitante, que constava da LOBP 75. Pode, por isso, questionar-se a legalidade da referida norma e, independentemente disso, a virtualidade de uma disposição com a referida natureza poder derrogar normas legais de natureza claramente imperativa, como são os citados artigos 102.º do CCOM e 1146.º do CCIV”. Também Pedro Pais de Vasconcelos[15] refere:
Da comparação dos três regimes legais, da LOBP 75, da LOBP 90 e da LOBP 98, resulta com clareza a perda pelo Banco de Portugal da competência para fixar os limites de taxas de juro das operações ativas bancárias. Logo na LOBP 90 deixou de haver qualquer preceito que atribuísse ao Banco Central essa competência, e assim se manteve na LOBP 98. E, no entanto, os Avisos emitidos pelo Banco de Portugal em que regeu sobre taxas de juro TAEG continuam a referir como normas habilitantes o artigo 17º da LOBP 98, além do artigo 28º do Decreto-Lei nº 133/09, de 2 de junho (que rege atualmente o crédito ao consumo).”
Porém, tendo sido esse o enquadramento subjacente à vinculação contratual de ambas as partes, entende-se ser de seguir a aludida jurisprudência dominante de que as taxas de juro bancárias, quer relativamente aos juros remuneratórios, quer quanto aos juros de mora, estão liberalizadas por força do disposto no nº. 2 do dito Aviso 3/93 de 20 de maio de 1993, podendo instituições de crédito e sociedades financeiras estabelecer livremente as taxas de juro das suas operações, salvo nos casos em que sejam fixadas por diploma legal.
Em face do exposto, impõe-se concluir não haver lugar à redução dos juros, nos termos do disposto no artigo 1146º do Código Civil, que, no caso em análise, não tem aplicação, nos termos já expostos. Na realidade, os juros reclamados pelo autor, decorrem das taxas inicialmente contratadas, ao abrigo do enquadramento enunciado, aplicável à atividade bancária e do princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405º do Código Civil.
O recorrente impugnou ainda a sua condenação em juros desde 07-01-2015, considerando que deveria ser determinada apenas desde a sua citação no âmbito dos presentes autos.
Porém, julgamos não lhe assistir razão.
Dispõe o nº 1 do artigo 806.º do C. Civil que: “Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora."
Assim, os juros moratórios à taxa de juro contratualizada pelas partes, deverão ser contabilizados a partir do momento em que exista o incumprimento da obrigação, correspondendo na prática aos montantes que o credor pode exigir por força da mora do devedor.
Ora, nos autos, mostra-se ultrapassada a questão de a obrigação em discussão assumir um prazo certo, o que sempre seria suscetível de gerar mora do devedor independentemente de interpelação e determinaria o vencimento de juros no momento em que deveriam ter sido efetivadas as operações de débito correspondentes ao uso do cartão de crédito e foi constatada a insuficiência de fundos para o efeito - cfr. artigo 805º, nº 2, alínea a), do Código Civil.
Porém, entendendo-se que os juros são devidos apenas a partir da interpelação, nos termos do disposto nos artigos 805º, nº 1 e 806º do Código Civil, não poderá deixar de ser ponderada a carta de interpelação de 07-01-2015 enviada pelo autor ao réu. Nessa carta, cujo envio e conteúdo se mostram exarados no facto provado nº 36, o autor declarou expressamente considerar denunciado o contrato celebrado com o réu com vista à utilização do cartão de crédito, interpelando-o o a efetuar o pagamento do valor em dívida. Significa o acabado de expor que, no momento da citação do réu para a presente ação já havia ocorrido uma interpelação (extrajudicial) para o cumprimento da obrigação, o que, nos termos dos preceitos citados, justifica a contabilização dos juros moratórios e remuneratórios acordados, pelo menos, desde então.
Improcede, pois, o recurso no que se reporta ao momento a partir do qual se deve proceder à contabilização dos juros.
Improcedendo o recurso improcede in totum, por ter ficado vencido, o réu/recorrente é responsável pelo pagamento das custas processuais – cfr. artigo 527º e 529º, CPC.
*
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 2ª secção cível:
- Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo réu A contra o autor C, SA, mantendo a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo réu/recorrente – cfr. artigos 527º, CPC.
D.N.

Lisboa, 9 de maio de 2024
Rute Sobral
José Manuel Correia
Pedro Martins
_______________________________________________________
[1] Proferido no processo 832/17.0T8MMN-A.E1, disponível em www.dgsi.pt
[2] Proferido no processo nº 6023/15.8T8OER-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[3] Proferido no processo 24105/19.5T8PRT-B.P1, disponível em www.dgsi.pt
[4] Proferido no processo nº 14235/15.8T8LRS-A.L1-6, disponível em www.dgsi.pt
[5] Proferido no processo nº7430/19.2T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[6] Direito dos Contratos Comerciais, páginas 552 e 553.
[7] “As Transferências Eletrónicas de Fundos e os Cartões de Débito”, Almedina, 1999, a pág.s 78 e 79.
[8] Proferido no processo nº 74/15.5ESP.P1, disponível em www.dgsi.pt
[9] Proferido no processo Proc. 03A1017, disponível em www.dgsi
[10] Proferido no processo Proc. 1557/05.5TBPTL.L1, disponível em www.dgsi.pt
[11] Proferido no processo nº 20438/18.6T8LSB-A.L1-7, disponível em www.dgsi.pt
[12] Proferido no processo nº Proc. 74/08.7TBVVD-A.G1, disponível em www.dgsi.pt
[13] Proferido no processo nº Proc. 892/09.4T2AGD-A.C1, disponível em www.dgsi.pt
[14] Revista de Estudos Politécnicos, 2007, Vol. V, nº 8, 265-280
[15] Taxas de Juro do Crédito ao Consumo – Limites Legais, ebook direito bancário- CEJ;