Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19396/21.4T8SNT.L1-6
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: USO INDEVIDO DE INJUNÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
DESISTÊNCIA PARCIAL DA INSTÂNCIA
EXEQUIBILIDADE PARCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Não é de admitir o uso do procedimento de injunção para reclamar o pagamento de quantia relativa a indemnização devida no âmbito contratual;
- Tendo sido suscitada a antecedente questão e não obstante a desistência parcial da instância quanto à fatura A743250144, no valor de € 570,95, não há lugar a um procedimento incidental de liquidação;
- Não constando do título executivo apresentado pela exequente o montante devido a título de indemnização, não é possível afirmar “a exequibilidade parcial do título dado à execução e determinada a continuação da execução para cobrança das obrigações pecuniárias diretamente emergentes do contrato celebrado entre as partes”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório.
1.1. A exequente Meo - Serviços de Comunicações e Multimédia, S.A., intentou requerimento executivo contra a executada A. Apresentou como título executivo um requerimento de injunção, a que foi dada força executiva no dia 18/10/2021, onde alegara o seguinte:
1- A Rte tem por objeto social a prestação de serviços de comunicações eletrónicas (fixas e /ou moveis), a conceção, construção, gestão e exploração de redes, infraestruturas e soluções de comunicações eletrónicas, assim como outras atividades complementares, subsidiárias ou acessórias das acima referidas;
2- No exercício da sua atividade, a Rte celebrou com o Rdo um contrato de prestação de serviços de telecomunicações, no âmbito do qual aquela se obrigou a prestar o serviço contratado, de acordo com o tarifário escolhido pelo Rdo e este se comprometeu a efetuar, pelo período de tempo acordado, o pagamento atempado do respetivo preço;
3- Ficou, ainda, estabelecido que, em caso de cessação antecipada do contrato sem justa causa, a Rte tem o direito de receber uma indemnização correspondente ao valor dos beneficios/vantagens concedidos na data da celebracao do contrato e associados, designadamente ao custo da instalação, da ativação do serviço, da subsidiação de equipamentos e ofertas promocionais ou condições comerciais;
4- Esta indemnização e calculada considerando: (período contratual acordado - n. meses em que os serviços estiveram ativos) x (benefícios e vantagens conferidos) / (período de fidelização);
5- Assim e, em execução do contrato, os serviços foram prestados e, em consequência emitidas e enviadas as respetivas faturas para a morada indicada pelo Rdo, conforme descrição infra;
6 - Não tendo sido registada evidencia de correspondência devolvida e/ou reclamada;
7- As faturas refletem mensalidades pré-acordadas, planos de preços, alugueres de equipamentos e comunicações efetuadas, nos montantes indicados;
8- A Rte prestou os serviços, como contratado;
9- Ao Rdo competia proceder ao pagamento das faturas (infra mencionadas) emitidas pela Rte, dentro do respetivo prazo - o que não veio a acontecer;
10- E, apesar de interpelada para o efeito, o Rdo não procedeu, até esta data, ao pagamento dos valores titulados pelas referidas faturas;
11- Termos em que, não tendo atempadamente efetuado o pagamento das faturas entrou em incumprimento definitivo e deu causa a resolução do contrato pela A. (art.º 798, 801., 805. e 808. C.C.);
Em consequência,
12- Foi emitida e enviada ao Rdo a fatura correspondente a indemnização pelo incumprimento do período contratual acordado, nos termos referidos supra (3. e 4.), e
13- E o Rdo também responsável pelo prejuízo que o incumprimento causa a Rte pois, atempadamente interpelada, não procedeu a respetiva liquidação;
14- Assim sendo, nos termos dos art.º 804., 805., n.ºs 1 e 2 alínea a) e 806., todos do C.C., a Rte tem direito a indemnização correspondente aos juros de mora vencidos calculados desde as datas de vencimento das referidas faturas e sobre os respetivos montantes, até integral e efetivo pagamento, a taxa legal aplicável (§ 3.º do artigo 102.º do Cód. Com., DL 62/2013, de 10 de Maio);
15- Por último, o tribunal competente para dirimir o presente litígio, indicado pela ora Rte e escolhido em conformidade com o disposto no art.º 71., n.º 1, in fine do CPC.
Proc.: ST0121001932 Conta N.: [suprimido] NIC: [suprimido] Data Contrato: 2019-11-27 N. Factura; Data Limite de Pagamento; Capital
ago-20; A725317535; 02-09-2020; 132.16
; jan-21; A735279638; 03-02-2021; 371.80
; fev-21; A737269577; 05-03-2021; 167.76
; mar-21; A739258963; 06-04-2021; 139.59
; abr-21; A741252870; 05-05-2021; 79.97
Proc.: ST0121002469 Conta N.: [suprimido] NIC: [suprimido] Data Contrato: 2019-11-27
mai-21; A743250144; 02-06-2021; 570.95; mai-21; 0000010604736301; 20-05-2021; -24.76
Indicou que o valor líquido cujo pagamento exige (€ 1.538) corresponde ao valor da injunção, incluindo o capital, juros vencidos, calculados à taxa comercial, à data de apresentação da injunção e ao valor da taxa de justiça. Ao valor líquido acresce, por simples cálculo aritmético, o valor dos juros moratórios vencidos, calculados à taxa comercial, desde a data de apresentação da injunção até à presente data, nos termos indicados. A estes valores acrescem os juros moratórios vincendos, calculados à taxa comercial, e os fundados na alínea d) do artigo 13 do DL nº 269/98, de 1 de Setembro, à taxa de 5% ao ano desde a data em que foi conferida força executiva ao requerimento de injunção, até integral pagamento.
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1.2. No dia 24/1/2023, a Sra. Agente de execução comunicou nos autos que procedeu à citação da executada por via postal (não obstante, o aviso de recepção assinado aí referido não consta do processo digital).
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1.3. Os autos foram presentes para o primeiro despacho e foi decidido a sustação imediata de todos os termos da execução e a notificação da exequente para, em 10 dias e ao abrigo do artigo 3.º do CPC, a fim de evitar decisão surpresa, se pronunciar quanto à eventual rejeição da execução por força da ineficácia do/s documento/s junto/s como título executivo, por a pretensão formulada não se ajustar à finalidade do procedimento de injunção, bem como para, no mesmo prazo, juntar aos autos as faturas a que alude no/s requerimento/s de injunção.
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1.4. A exequente veio então desistir parcialmente da instância quanto à fatura A743250144, no valor de € 570,95, ficando a quantia exequenda reduzida ao diferencial: € 967,05. Requereu o prosseguimento da presente execução para cobrança e juntou diversas facturas.
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1.5. De seguida foi proferida a decisão recorrida que entendeu que não dispõe a exequente de título executivo eficaz, por a pretensão formulada não se ajustar à finalidade do procedimento de injunção, vício que inquinou a formação do título.
Em face do exposto, por verificação da exceção dilatória inominada do uso indevido do procedimento de injunção e consequente falta de título executivo, decidiu rejeitar a presente execução – cf. artigos 734.º n.º 1 e 726.º n.º 2 al. a) do CPC.
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1.6. A exequente interpôs o presente recurso de apelação em que formulou as seguintes conclusões:
1. A Sentença recorrida deve ser revogada pois nela se fez, salvo o devido respeito, errada aplicação do Direito.
2. Considerou o Tribunal a quo existir exceção dilatória inominada do uso indevido do procedimento de injunção e consequente falta de título executivo, rejeitando deste modo a presente execução.
3. Por a ora Recorrente ter apresentado ação executiva com base em requerimento de injunção ao qual foi aposta força executiva, onde incluiu valores em dívida relativos a cláusula penal pela rescisão antecipada do contrato.
4. No caso em apreço a ora Recorrente veio dar à execução um requerimento de injunção ao qual foi aposta força executiva por secretário de justiça, do qual consta peticionado o pagamento de valores correspondentes a faturas de serviço de telecomunicações (mensalidades, consumos) e ainda montante de € 570,95 referente a “Penalização por incumprimento contratual”.
5. Por Despacho datado de 22/10/2024 a ora Recorrente foi notificada pelo Tribunal a quo para, ao abrigo do artigo 3.º do CPC, se pronunciar quanto à eventual rejeição da execução por força da ineficácia do documento junto como título executivo, por a pretensão formulada não se ajustar à finalidade do procedimento de injunção e para proceder à junção aos autos as faturas a que alude no requerimento de injunção.
6. Na sequência a ora Recorrente, procedeu à desistência parcial da instância na parte relativa à indemnização por incumprimento contratual, requerendo o prosseguimento quanto ao remanescente de € 967,05, o que não foi aceite pelo Tribunal a quo, rejeitando assim a presente execução.
7. Ora, o entendimento de que a cláusula penal ou indemnização não pode integrar o procedimento injuntivo não pode conduzir, salvo o devido respeito, à recusa do título no seu todo, mas apenas em relação à parte que integra tais valores.
8. Devendo assim ser afirmada a exequibilidade parcial do título dado à execução e determinada a continuação da execução para cobrança das obrigações pecuniárias diretamente emergentes do contrato celebrado entre as partes.
9. Estipula o nº 1 do artigo 734º do CPC que “O juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo”.
10. Nos termos do disposto do art.º 726º, nº3 CPC, “É admitido o indeferimento parcial, designadamente quanto à parte do pedido que exceda os limites constantes do título executivo (…)”.
11. O propósito da instituição do procedimento especial de injunção foi o de agilizar a vida económica (agilizar cobranças) e simultaneamente o de libertar os tribunais das ações declarativas subjacentes.
12. Ora, no caso sub judice, tendo a Recorrente procedido à desistência parcial da instância na parte respeitante à indemnização por incumprimento contratual, não se vislumbra razão para o não aproveitamento do processo.
13. Este é aliás, o entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão datado de 10/10/2024, proferido no âmbito do Processo nº 4709/23.2T8SNT.L1-6, publicado in www.dgsi.pt no qual se refere o seguinte: “Em suma, entendemos que não se encontra na lei qualquer indício de um propósito sancionatório nem discriminatório dos credores, de modo que, por efectivo e racional princípio de aproveitamento dos actos processuais, por um princípio de utilidade, e porque em sede executiva se prevê realmente esse aproveitamento, com assim resulta claramente do artigo 726º nº 3 do Código de Processo Civil, não podemos, em conclusão, concordar com a posição jurisprudencial que defende o indeferimento total.” (sublinhado nosso).
14. Em igual sentido pronunciou-se o Tribunal da Relação de Lisboa nos Acórdãos datados de 11/07/2024, proferido no âmbito do Processo nº 6121/23.4T8SNT.L1-2 e no Acórdão datado de 24/10/2024, proferido no âmbito do Processo nº 13698/23.2T8SNT.L1-2, publicado in www.dgsi.pt: “Estando-se perante exceção dilatória inominada (uso indevido do procedimento injuntivo), afetadora do processo injuntivo, bem como do consequente título executivo que se formou (tendo por base o requerimento injuntivo), o que configura consequente omissão de um pressuposto processual da ação executiva, em que se traduz o próprio título, a repercussão no processo executivo deve ser a de indeferimento liminar total da execução? Ou, impõe-se antes a aproveitabilidade e utilização do título na parte remanescente, relativa aos pedidos e valores admissíveis no âmbito injuntivo, atenta a existência, apenas, de uma parcial viciação, decorrente da inclusão de um pedido não admissível, com consequente prolação de um juízo de indeferimento liminar parcial? Ora, somos sensíveis ao imperativo dos princípios ou regras de economia processual e da proporcionalidade, bem como à adoção de um princípio de aproveitabilidade dos atos processuais, a determinar a manutenção e reconhecimento da validade do título executivo na parte relativa ao pedido ou pedidos com legal cabimento no âmbito do procedimento injuntivo.” (sublinhado nosso).
15. Pelo que o recurso aos referidos princípios da economia processual, da proporcionalidade e do aproveitamento dos atos processuais, exige que se reconheça a validade do título executivo, no que respeita ao pedido de pagamento da quantia exequenda de € 967,05, porque relativamente ao mesmo não se verifica qualquer uso indevido do procedimento de injunção onde se formou esse título executivo.
16. Assim, a decisão recorrida, ao rejeitar, liminarmente, a execução, violou o disposto nos arts. 726, nº 3 e 734º, ambos do CPC, devendo consequentemente, ser revogada e substituída por decisão que admita o requerimento executivo e mande prosseguir os autos”.
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1.7. Não foram apresentadas contra-alegações.
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1.8. As questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões da recorrente e centram-se em saber se, não constando do título executivo apresentado pela exequente o montante parcelar devido a título de indemnização, é possível afirmar “a exequibilidade parcial do título dado à execução (injunção) e determinada a continuação da execução para cobrança das obrigações pecuniárias diretamente emergentes do contrato celebrado entre as partes”.
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2. Fundamentação.
2.1. A factualidade a considerar é a referida no antecedente relatório, nomeadamente quanto ao conteúdo do título executivo.
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2.2. Preliminarmente, dir-se-á que a recorrente, não obstante recorrer do despacho que rejeitou, na totalidade, a presente execução, não põe em causa a inadmissibilidade do pedido de pagamento da cláusula penal por incumprimento contratual e/ou de indemnização por meio do procedimento de injunção.
Tal questão não foi impugnada nas conclusões apresentadas. O antecedente comportamento da recorrente revelou-se algo contraditório, nomeadamente ao afirmar que é admissível o pedido de pagamento de faturas de indemnização por incumprimento contratual através de procedimento de injunção, mas depois ao desistir parcialmente da instância quanto à fatura A743250144, no valor de € 570,95, ficando a quantia exequenda reduzida ao diferencial: € 967,05.
Por conseguinte, não tendo sido formulada no presente recurso qualquer conclusão relativa à inadmissibilidade do uso do procedimento de injunção para reclamar o pagamento de quantia relativa a indemnização devida no âmbito contratual, essa parte da decisão formou caso julgado – art.º 619.º, do Código de Processo Civil.
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3.2. A questão está, assim, delimitada ao alcance da decisão que julgou verificado o uso indevido do procedimento de injunção para reclamar o pagamento.
Nota-se a divergência na jurisprudência entre duas principais correntes, já referenciadas na decisão recorrida e nas alegações da recorrente, nomeadamente:
a) O entendimento em como o uso indevido do procedimento de injunção, consubstancia um vício que inquina todo o processo, implicando a sua inaproveitabilidade total, seja no processo declarativo, seja na execução em que o título executivo tenha resultado da aposição de fórmula executória a uma injunção utilizada em concreta situação que não permitia o recurso à mesma.
Neste sentido manifestaram-se, entre outros, os seguintes arestos (todos disponíveis na base de dados da DGSI):
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/05/2014, Processo n.º 30092/13.6 YIPRT.C1;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/11/2021, Processo n.º 88236/19.0 YIPRT.L1-7;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/10/2024, Processo n.º 5820/24.8 T8SNT.L1.
Em síntese, sustenta-se aí que a transmutação numa acção especial “não permite qualquer adequação processual ou convite a um aperfeiçoamento; caso contrário, estava encontrado o meio para, com pensado propósito de, ilegitimamente, se tentar obter título executivo, se defraudar as exigências prescritas nas disposições legais que disciplinam o procedimento de injunção”. E a requerente “poderia – logo à cabeça – ter utilizado como meio processual para obter a condenação do seu devedor, a acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, mas não o fez, preferindo utilizar uma estratégia de risco recorrendo ao mecanismo da Injunção (para, assim, com mais facilidade, obter um título executivo), ficando na expectativa da notificação e não oposição do Requerido, para assim obter um benefício ilegítimo.  
Correu o risco, mas, com a frustração na notificação e a apreciação judicial que foi feita da situação pelo Tribunal a quo, esse risco concretizou-se e tem agora de “sofrer” as consequências”; e,
b) O entendimento em como será de admitir que, indeferido parcialmente o requerimento executivo, por motivo do uso indevido do procedimento de injunção para exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15.000 nos moldes consagrados pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro (Procedimentos Cumprimento de Obrigações Emergentes de Contratos – Injunção), a execução possa prosseguir com vista ao pagamento coercivo das obrigações pecuniárias aí indicadas.
Neste sentido convocam-se, entre outras, as seguintes decisões (todos disponíveis na base de dados da DGSI):
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15/9/2022, processo n.º 2274/20.1T8ENT.E1;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/10/2024, processo n.º 21181/22.7 T8SNT.L1-2;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/11/2024, Processo n.º 5735/24.0 T8SNT.L1;
Em síntese, a opção pelo indeferimento parcial da execução “é justificado por imperativo dos princípios ou regras de economia processual e da proporcionalidade, bem como na adopção de um princípio de aproveitabilidade dos actos processuais, a determinar a manutenção e reconhecimento da validade do título executivo na parte relativa ao pedido ou pedidos com legal cabimento no âmbito do procedimento injuntivo”.
Sufraga-se este último entendimento considerando igualmente o valor cimeiro consagrado no artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa, em termos de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, em termos de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. Realmente, é de lastimar que muitos credores abusem da preocupação e do especial privilégio que o legislador concedeu às “empresas que negoceiam com milhares de consumidores”. Não obstante o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, aludir à preocupação com a situação dos tribunais que “correm o risco de se converter, sobretudo nos grandes meios urbanos, em órgãos que são meras extensões dessas empresas” e dos “cidadãos, fonte legitimadora do seu poder soberano”, nota-se que objectivamente o regime especial foi criado para promover procedimentos expeditos destinados a exigir prontamente o cumprimento de obrigações pecuniárias. Os principais beneficiários deste regime especial são, pois, as “empresas que negoceiam com milhares de consumidores”, sendo certo que o credor é o principal interessado no reconhecimento do direito. Como incentivo suplementar, o preambulo também alvitrava que “diminuem-se sensivelmente os montantes da taxa de justiça a pagar pelo requerente”.
Objectivamente, há um notório abuso e ilegal desvirtuamento dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes por parte das empresas que tentam aproveitar-se dos mesmos para apresentar desmedidas exigências, notoriamente em contravenção ao que está estipulado na Lei.
Porém, a função primordial do tribunal é a da tutela jurisdicional efectiva, que se traduz no reconhecimento quanto ao mérito ou à falta de mérito da pretensão formulada em juízo. Por vezes, impõe-se ao tribunal que sancione as partes em vista da sua conduta processual, nos moldes legalmente previstos, em termos de multas e indemnizações (vg. por litigarem de má fé; por recusa de cooperação; etc.). A absolvição da instância não é uma sanção em sentido próprio, mas antes uma consequência da verificação de certa excepção dilatória (ou da falta de determinado pressuposto processual para quem entenda que se impõe a distinção) – cfr. art.ºs 278.º e 576.º, do Código de Processo Civil. Até porque a circunstância que motiva a excepção poderá ser estranha à parte ou até poderá ser sanada.
Por outro lado, entende-se ser de valorizar – na medida do que for possível ou admissível – o aproveitamento dos actos praticados no processo. Como foi salientado no citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/11/2024, Processo n.º 5735/24.0T8SNT.L1: “A mesma unidade do sistema jurídico é contrariada - pela “tese” da inutilização in totum de todo o título - em razão, diversos Princípios Formais que o nosso sistema jurídico também claramente sufraga, todos eles direcionados para a ideia/regra da conservação quando possível, de partes de acto processuais.
É assim que, o nº 2, do art.º 195º, do CPC, dispõe que “ Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes”, e é também assim que o nº 1, do art.º 193º, do mesmo diploma legal, reza que “ O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei”.
(…)
Novamente em sede de exposição dos motivos do NCPC [aprovado pela Lei Nº 41/2013, de 26 de junto], volta o legislador a insistir e chamar a atenção para a necessidade/conveniência de “ se viabilizar e conferir conteúdo útil aos princípios da verdade material, à cooperação funcional e ao primado da substância sobre a forma”, impondo-se passar “ necessariamente por uma nova cultura judiciária, envolvendo todos os participantes no processo, para a qual deverá contribuir decisivamente um novo modelo de processo civil, simples e flexível, despojado de injustificados formalismos e floreados adjectivos, centrado decisivamente na análise e resolução das questões essenciais ligadas ao mérito da causa ”, e consagrando-se um modelo que contribuía decisivamente “ para inviabilizar e desvalorizar comportamentos processuais arcaicos, assentes na velha praxis de que as formalidades devem prevalecer sobre a substância do litígio e dificultar, condicionar ou distorcer a decisão de mérito.
*
3.3. Idem.
No presente caso, a credora (agora exequente e apelante) inicialmente requereu que fosse dada força executiva à injunção relativa ao pagamento pela devedora (agora executada e apelada) da quantia total de € 1.538. Indicou que, no exercício da sua atividade comercial, celebrou com a devedora um contrato de prestação de serviços de telecomunicações e que a quantia cujo pagamento reclama corresponde às mensalidades pré-acordadas, planos de preços, alugueres de equipamentos e comunicações efetuadas, e ainda à indemnização pelo incumprimento do período contratual acordado.
Ora, expurgada a pretensão da credora quanto ao pagamento da aludida indemnização pelo incumprimento do contrato, não se vislumbra motivo atendível para fulminar a sua pretensão e considerar que a mesma não poderia apresentar requerimento de injunção para exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergente do contrato (cujo valor total seria de € 1.538 ou inferior). Ou seja, que nenhum acto se aproveita, mesmo em face da eliminação da pretensão de pagamento da indemnização pelo incumprimento do período contratual acordado.
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3.4. Nas circunstâncias evidenciadas nos presentes autos, a desistência parcial da instância pela exequente quanto à fatura A743250144, no valor de € 570,95, ficando a quantia exequenda reduzida ao diferencial: € 967,05, prejudica a excepção do uso indevido do procedimento de injunção que determinou a absolvição da instância?
Entende-se que, à luz das normas e princípios legais aplicáveis, se impõe uma resposta negativa em face dos elementos dos autos e, sobretudo, do comportamento da própria exequente.
Convém relembrar os princípios gerais que regem a execução, desde logo o que está consagrado no artigo 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil: “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”. “O título executivo deve conter os requisitos necessários para, por si só, nos certificar da existência da obrigação e do direito correspondente – é o chamado princípio da suficiência do título executivo” - vd. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/4/2017 (disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 108/13.2TBMIR-A.C1.S1).
No presente caso, estamos perante um título executivo simples (integrado por um único documento: o requerimento de injunção a que foi aposta a fórmula atributiva de força executiva) e não perante um título executivo complexo (constituído por vários documentos que se completam entre si de molde a demonstrar a obrigação exequenda – vg. mútuo bancário com documentação anexa) – vd. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/2/2023 (disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 4136/15.5T8FNC-A.L1.S1).
Como refere Lebre de Freitas: “a acção executiva logicamente pressupõe a prévia solução da dúvida sobre a existência e a configuração do direito exequendo. A declaração ou acertamento (dum direito ou de outra declaração, dum facto), que é o ponto de chegada da acção declarativa, constitui, na acção executiva, o ponto de partida”. E, citando Bruns-Peters, acrescenta ainda que: “A pretensão material está acertada, sobre ela não devendo ter lugar mais nenhuma controvérsia no processo de execução”, mesmo no caso de “exequibilidade provisória da sentença antes de formado o caso julgado”, em que ocorre um “acertamento condicionado” – in Manual da Acção Executiva, Coimbra Editora, 1993, pág. 20 e 29.
Não obstante, para a exequente parece que o título a que foi conferida força executiva no dia 18/10/2021 não foi suficiente para acertar o direito sobre a executada. Daí que, volvidos mais de três anos, tenha vindo aos autos, no dia 4/11/2024, juntar 6 faturas e anunciar que desiste parcialmente da instância quanto à fatura A743250144, no valor de € 570,95, ficando a quantia exequenda reduzida ao diferencial: € 967,05. Não o refere expressamente, mas infere-se que considera que a quantia de € 570,95 corresponderá ao valor da indemnização a que fez referência na injunção.
É verdade que o Mmo. Juiz a havia previamente notificado para juntar aos autos as faturas a que alude no/s requerimento/s de injunção. Porém, a exequente não foi notificada para liquidar a quantia correspondente à indemnização devida à executada, nem se afigura que tal acto fosse sequer admissível. Ou seja, a exequente excedeu o que lhe foi ordenado, ao pretender fixar o quantitativo devido a título de indemnização pelo valor de € 570,95.
Sucede ainda que não consta do título executivo qual é a quantia devida pela executada a título de indemnização – ao contrário do que é sugerido pela 4.ª conclusão do recurso. Apenas foi indicado no título que a quantia total a pagar era de € 1.538, sendo € 1.437,47 de capital e € 24,03 de juros. O título refere que será devida uma indemnização, mas não descrimina o respectivo montante.
Ao anunciar que desiste parcialmente da instância quanto à fatura A743250144, no valor de € 570,95, ficando a quantia exequenda reduzida ao diferencial de € 967,05, a exequente veio implicitamente aditar uma informação que não consta do título, mas que agora reputa ser essencial. Ou conformar o título executivo à sua pretensão: o montante devido a título de indemnização é de € 570,95.
Sucede que não é de admitir que a exequente altere o conteúdo do título executivo, nem está em causa a necessidade de alguma prova complementar com vista a tornar a obrigação certa ou líquida – cfr. art.º 713.º, do Código de Processo Civil. A exequente não pode ser admitida a alterar unilateralmente o conteúdo do título, nomeadamente quanto ao montante parcelar devido pela executada a título de indemnização. A exequente dispôs do requerimento de injunção e decidiu omitir tal indicação, por razões que só à mesma dizem respeito.
Não é de admitir que a exequente, munida de um título executivo onde consta uma obrigação certa, exigível e líquida, suscite agora um incidente ad hoc de liquidação do montante devido pela executada a título de indemnização. Ou que a parte contrária (porque não?) venha contradizer a exequente e disputar o valor da indemnização a expurgar da execução.
A questão há-de ser apreciada unicamente com base no título executivo e não com base nos factos e provas que as partes só agora apresentam. Ora, não constando do título executivo apresentado pela exequente o montante devido a título de indemnização, não é possível afirmar “a exequibilidade parcial do título dado à execução e determinada a continuação da execução para cobrança das obrigações pecuniárias diretamente emergentes do contrato celebrado entre as partes” - 8.ª conclusão do recurso. Ou que “o recurso aos referidos princípios da economia processual, da proporcionalidade e do aproveitamento dos atos processuais, exige que se reconheça a validade do título executivo, no que respeita ao pedido de pagamento da quantia exequenda de € 967,05, porque relativamente ao mesmo não se verifica qualquer uso indevido do procedimento de injunção onde se formou esse título executivo” – 15.ª conclusão do recurso. Tais conclusões assentam no postulado – que não se reconhece – em como o título executivo não é suficiente e que o mesmo pode ser subsequentemente conformado pela exequente, por meio de uma imprópria liquidação parcial da quantia exequenda.
Repete-se: a quantia devida a título de indemnização não foi individualizada no título executivo, que apenas alude ao valor global do capital e juros. Daí que a exequente tenha tido a imperiosa necessidade de a indicar no seu requerimento de 4/11/2024. Não resultando, assim, que a desistência parcial da instância quanto à fatura A743250144, no valor de € 570,95, tenha afastado o motivo determinante da decisão recorrida (uso indevido do processo de injunção), é de confirmar a decisão que rejeitou a execução.
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3. Decisão:
3.1. Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.
3.2. As custas são a suportar pela apelante.
3.3. Notifique.

Lisboa, 20 de Fevereiro de 2025
Nuno Gonçalves
Gabriela de Fátima Marques
Maria Teresa Mascarenhas Garcia