Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1440/24.5YRLSB-4
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: ESCUSA
JUIZ
DOCENTE UNIVERSITÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/14/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ESCUSA – ART. 119.º CPC
Decisão: INDEFERIDA
Sumário: 1) Não legitima o deferimento de escusa, a invocação pelo juiz a quem o processo laboral foi distribuído, de que:
- Desde 2021 é Professora Convidada da universidade ré no processo que menciona, onde leciona aos Mestrados;
- No âmbito do processo que menciona, o pedido reconduz-se ao reconhecimento de um contrato celebrado entre a autora e a ré;
- Do programa da disciplina por si lecionada consta a matéria das tipologias de ações (como a ação comum e a ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho, cujo enquadramento normativo (substantivo) importa a explicitação, até para a distinção da tipologia da ação a empregar), sendo que, não tem a ideia de num único ano as perguntas (dos discentes) não abrangerem a caracterização do contrato dos bolseiros versus docentes da casa e, nestes, os vínculos de emprego público/privado, incluindo o estatuto especial dos Magistrados Judiciais convidados, não obstante a verificação dos pressupostos da caracterização de uma relação laboral: utilização de equipamentos da Universidade; cumprimento de horários; uso das instalações, etc., sendo que, a matéria dos autos, se situa nas matérias durante anos discutidas em aula, no contexto referido.
2) A mera circunstância de a Sra. Juíza ter, presentemente, a qualidade de Professora Convidada da universidade ré, não inculca alguma postergação ou colocação em risco da imparcialidade devida ao julgador, não evidenciando alguma motivação ponderosa que justifique o afastamento da Sra. Juíza, relativamente ao processo em questão.
3) Não se mostra evidenciada qualquer factualidade – nem ela deriva da circunstância de, no objeto das preleções levadas a efeito pela Sra. Juíza, em razão da docência – que consubstancie uma concreta posição relativamente ao litígio em apreço, que não, à generalidade das causas que se quadrem com a configuração que tem o referido processo. Contudo, esse enquadramento – que se prende com posições jurídicas tomadas pela Sra. Juíza, segundo refere, no âmbito da lecionação da doutrina que desenvolve – não determina, por si só, que possa, subjetiva ou objetivamente, ser colocado em risco o dever da Sra. Juíza de julgar com imparcialidade, pois, não obstante as posições já tomadas, terá sempre de aferir, em concreto e com referência à causa em questão, a pertinência do enquadramento que menciona e, em suma, da doutrina que tem preconizado.
4) A equidistância que deve ser mantida por quem tem a função de julgar não resulta afetada da circunstância de, em tese geral, a Sra. Juíza ter enquadrado uma determinada situação num sentido jurídico no âmbito das posições que, noutro contexto e enquanto docente, tomou, não se podendo aferir que, relativamente à situação do caso em apreço, tenha previamente orientado a sua convicção num determinado sentido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. A Sra. Juíza de Direito “A”, a exercer funções no Juízo do Trabalho de Lisboa – Juiz (…), veio requerer, ao abrigo do estabelecido no artigo 119º do CPC, seja dispensada de intervir no Processo nº. 11701/24.8T8LSB, em que é autora “B” e ré a Universidade “C”, cujo pedido se reconduz ao reconhecimento de um contrato de trabalho com a ré (incluindo ciclos de estudos e gestão/avaliação de unidades curriculares da ré).
Para tanto invocou, em suma, que:
- É desde 2021 Professora Convidada da Universidade “C”, aqui ré, onde leciona, aos Mestrados, a cadeira de Direito Processual do Trabalho;
- Tal condição consta, além do mais, na página de Universidade e em estudos/publicações por si feitas no plano do judiciário (Revista Julgar, no prelo);
- Do programa da disciplina por si lecionada integram as tipologias de ações, como a ação comum e a ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho, cujo enquadramento normativo (substantivo) importa a explicitação, até para a distinção da tipologia da ação a empregar, sendo as aulas muito participadas não tem a ideia de num único ano as perguntas não abrangerem a caracterização do contrato dos bolseiros versus docentes da casa e, nestes, os vínculos de emprego público/privado, incluindo o estatuto especial dos Magistrados Judiciais convidados (a cadeira lecionada pela signatária integra-se em mais do que Mestrado, em que também são docentes outros Magistrados, sendo-lhe a questão amiúde colocada por os alunos conhecerem - e pelos mesmos -, das limitações estatutárias e das relações de emprego com a Universidade, aqui ré), não obstante a verificação dos pressupostos da caracterização de uma relação laboral: utilização de equipamentos da Universidade; cumprimento de horários; uso das instalações, etc.;
- A matéria dos autos referida situa-se nas matérias durante anos discutidas em aula, no contexto referido; e
- A situação não se situa na mera posição que assumiu em publicações (citadas em dezenas de processos que lhe estão distribuídos) mas na explicitação que durante anos fez do enquadramento dos professores e bolseiros, e em contexto de docência (partilhado agora pela autora, pela ré e pela signatária) nos exemplos/questões discutidos em aula, e que agora se enquadram nos fundamentos invocados no articulado da autora.
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II. Nos termos plasmados no nº. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efectivamente, não se discute se o juiz iria ou não manter a sua imparcialidade, mas a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que, tipificadamente, ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, o que ocorre, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.
Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento
(n.º 2 do artigo 119.º do CPC).
Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
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III. No caso em apreço, a Sra. Juíza vem invocar que, desde 2021 é Professora Convidada da universidade que é ré no processo que menciona, universidade essa, onde leciona aos Mestrados, a cadeira de Direito Processual do Trabalho (condição publicitada na página da ré e em estudos/publicações por si feitas no plano do judiciário. Mais salienta que, no âmbito do processo que menciona, o pedido reconduz-se ao reconhecimento de um contrato celebrado entre a autora e a ré (esta última, a Universidade onde a Sra. Juíza leciona) e que, do programa da disciplina por si lecionada consta a matéria das tipologias de ações (como a ação comum e a ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho, cujo enquadramento normativo (substantivo) importa a explicitação, até para a distinção da tipologia da ação a empregar), sendo que, não tem a ideia de num único ano as perguntas (dos discentes) não abrangerem a caracterização do contrato dos bolseiros versus docentes da casa e, nestes, os vínculos de emprego público/privado, incluindo o estatuto especial dos Magistrados Judiciais convidados, não obstante a verificação dos pressupostos da caracterização de uma relação laboral: utilização de equipamentos da Universidade; cumprimento de horários; uso das instalações, etc., sendo que, a matéria dos autos, se situa nas matérias durante anos discutidas em aula, no contexto referido.
Ora, a posição expressa pela Sra. Juíza “na explicitação que durante anos fez do enquadramento dos professores e bolseiros, e em contexto de docência (partilhado agora pela autora, pela ré e pela signatária) nos exemplos/questões discutidos em aula, e que agora se enquadram nos fundamentos invocados no articulado da autora”, não parece relevar para se poder pôr em causa, de modo ponderoso e fundado, a imparcialidade do julgador.
Para além de, os termos da situação relatada, não se integrarem em qualquer das situações tipificadas no n.º 1 do artigo 120.º do CPC, certo é que, também, nenhuma das circunstâncias assinaladas pela Sra. Juíza, constituem circunstâncias ponderosas que permitam denotar que, se a causa se mantiver com a mesma, a sua imparcialidade possa se colocada em crise.
Com efeito, a respeito da cláusula geral, estabelecida no n.º 1, do artigo 119.º do CPC – “quando por outras circunstâncias [além das enunciadas no artigo 120.º do CPC] ponderosas” possa suspeitar-se da imparcialidade do julgador, tal aferição da aparência “visa o processo concreto, o mesmo é dizer, é sobre o objecto do processo, sobre o mérito da decisão, da factualidade em que assenta e sobre os respectivos sujeitos processuais envolvidos, que há-de ser apreciada e aferida a suspeição do julgador. O motivo, sério e grave, gerador da desconfiança para que aponta aquele dispositivo legal, tem de ser concreto e concretizado face à matéria da causa e não ser aferido a partir de generalidades e abstracções” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-11-2019, Pº 186/17.5GCTVD.L1-A.S1, rel. FRANCISCO CAETANO).
A mera circunstância de a Sra. Juíza ter, presentemente, a qualidade de Professora Convidada da universidade ré, não inculca alguma postergação ou colocação em risco da imparcialidade devida ao julgador, não evidenciando alguma motivação ponderosa que justifique o afastamento da Sra. Juíza, relativamente ao processo em questão.
Não se mostra evidenciada qualquer factualidade – nem ela deriva da circunstância de, no objeto das preleções levadas a efeito pela Sra. Juíza, em razão da docência – que consubstancie uma concreta posição relativamente ao litígio em apreço, que não, à generalidade das causas que se quadrem com a configuração que tem o referido processo. Contudo, esse enquadramento – que se prende com posições jurídicas tomadas pela Sra. Juíza, segundo refere, no âmbito da lecionação da doutrina que desenvolve – não determina, por si só, que possa, subjetiva ou objetivamente, ser colocado em risco o dever da Sra. Juíza de julgar com imparcialidade, pois, não obstante as posições já tomadas, terá sempre de aferir, em concreto e com referência à causa em questão, a pertinência do enquadramento que menciona e, em suma, da doutrina que tem preconizado.
A equidistância que deve ser mantida por quem tem a função de julgar não resulta afetada da circunstância de, em tese geral, a Sra. Juíza ter enquadrado uma determinada situação num sentido jurídico no âmbito das posições que, noutro contexto e enquanto docente, tomou, não se podendo aferir que, relativamente à situação do caso em apreço, tenha previamente orientado a sua convicção num determinado sentido.
Em nosso entender, a factualidade aduzida pela Sra. Juíza não determina, nem objetiva, nem subjetivamente, a existência de circunstância ponderosa ou relevante, que induza a que se possa suspeitar do comportamento do julgador.
Os pedidos de escusa pressupõem situações excecionais em que pode questionar-se sobre a imparcialidade devida ao julgador, o que, em face do referido, entendemos não se patentear no caso.
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IV. Pelo exposto, desatende-se a pretensão de escusa formulada pela Sra. Juíza de Direito “A”.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 14-05-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, pub. D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).