Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
24024/23.0T8LSB-A.L1-7
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: ESCUSA
JUIZ
CONHECIMENTO DE FACTOS
PARECER
PRÉ-JUÍZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/21/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ESCUSA
Decisão: DEFERIMENTO
Sumário: Sucedendo que, no contexto que precedeu o processo em questão – uma ação onde se discute se o gozo, pelas autoras, de licenças de maternidade no decurso da execução de contratos de cooperação, constitui fundamento para a cessação destes – a esposa do Sr. Juiz emitiu um parecer jurídico sobre a temática, que é, aliás, invocado pelas autoras, como apoio da sua posição no processo e, que, no contexto de elaboração desse parecer jurídico, o requerente da escusa e a sua esposa discutiram o assunto, tendo o Sr. Juiz emitido a sua posição e formado um pré-juízo sobre o tema, com que agora se defronta, mostra-se justificado o pedido de escusa formulado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. O Sr. Juiz de Direito “A”, a exercer funções no Juízo Central Cível de Lisboa, veio requerer, ao abrigo do estabelecido no artigo 119.º, n.º 1, do CPC, seja dispensado de intervir no processo comum n.º 24024/23.0T8LSB, no qual são autoras “B” e “C” e réu “D - , I.P”.
Para tanto, invocou, em suma, que:
- A cônjuge do requerente desempenha funções de técnica superior na Divisão de Apoio Jurídico e Contencioso do réu dos autos principais;
- No processo discute-se, essencialmente, se o gozo, pelas autoras, de licenças de maternidade no decurso da execução dos respectivos contratos de cooperação, constitui fundamento para a cessação destes, tendo em consideração o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 13.º da Lei n.º 13/2004, de 14 de Abril (cfr. a cópia da petição inicial);
- No contexto do referido desempenho funcional, a cônjuge do requerente emitiu parecer sobre a temática da repercussão do exercício dos direitos de maternidade na vigência do contrato de cooperação, o que implicou a tomada de posição sobre a natureza jurídica deste e o respectivo regime, sendo que, na preparação desse parecer, o requerente discutiu com o seu cônjuge a questão que lhe esteve subjacente e emitiu uma opinião sobre a mesma, tendo, nesse contexto, formado um pré-juízo, de índole jurídico-valorativa, sobre o tema;
- Embora o dito parecer não se haja reportado à concreta situação das Autoras - tratou-se, com efeito, do caso apreciado no parecer da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego aludido nos artigos 7º e 122.º da petição inicial - as próprias advogam (com inteira propriedade, segundo se crê) que esse caso possui «contornos muito semelhantes» à factualidade invocada a título de causa de pedir, invocando, aliás, o entendimento ali professado em apoio das pretensões que deduzem;
- O requerente apenas nesta ocasião tomou contacto com os autos principais.
Conclui o requerente que os referidos factos constituem motivo sério, grave e adequado a criar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
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II. Nos termos plasmados no nº. 1 do artigo 119º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efetivamente, não se discute se o juiz mantém, ou não, a sua imparcialidade, mas visa-se, preventivamente, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a decisão do julgador recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, de uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
“O pedido de escusa constitui, a par do incidente de recusa, um meio excepcional de afastar um Juiz de um processo. Tem, assim, de ser usado com ponderação, cautela e parcimónia, tanto mais que redunda num desvio ao princípio do Juiz natural, constitucionalmente consagrado, que visa assegurar precisamente a isenção e independência de um Magistrado quando toma uma decisão. Além disso há que ter presente que, no âmbito do pedido de escusa, não se pode sindicar a actividade jurisdicional da Juíza peticionante, ou seja, não interessa apurar se as decisões deste são ou não são justas, equilibradas e conformes ao direito, actividade essa reservada, como se sabe, aos recursos. Apenas interessa averiguar se ocorre alguma situação objectiva que, por fragilizar a independência e/ou a imparcialidade do Juiz, possa justificadamente minar a confiança pública na administração da justiça. O pedido de escusa de juiz tem de respeitar unicamente a processos concretos e não a todos os processos em que intervenham os advogados com os quais a Meritíssima Juíza mantém um litígio judicial” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-12-2007, Pº 2222/07-1, rel. FERNANDO RIBEIRO CARDOSO).
Na realidade, o deferimento de uma escusa (ou recusa) “têm como consequência a modificação de regras essenciais do processo, máxime do princípio do juiz natural” (assim, Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, Almedina, 2022, p. 510), pelo que, a “abertura do leque da escusa (ou recusa) sem critério exigente, além de torpedear o princípio constitucional do juiz natural e de limitar o poder e o direito judicatório do mesmo, acabaria por fazer implodir o sistema judiciário com as sucessivas escusas (ou recusas)” (cfr., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2023, Pº 122/13.8TELSB-BQ.L1-A.S1, rel. ORLANDO GONÇALVES).
No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.
Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC).
Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
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III. No caso em apreço, o Sr. Juiz requerente vem invocar, entre o mais, que, no contexto que precedeu o processo em questão – uma ação onde se discute se o gozo, pelas autoras, de licenças de maternidade no decurso da execução de contratos de cooperação, constitui fundamento para a cessação destes – a sua mulher emitiu um parecer jurídico sobre a temática, que é, aliás, invocado pelas autoras, como apoio da sua posição no processo. Mais concretiza o Sr. Juiz que, no contexto de elaboração desse parecer jurídico, o requerente e a sua esposa discutiram o assunto, tendo o Sr. Juiz emitido a sua posição e formado um pré-juízo sobre o tema, com que agora se defronta.
Importa salientar que, um dos casos de impedimento do juiz é o de o juiz “haja que decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado, ainda que oralmente”, conforme deriva do artigo 115.º, n.º 1, al. c) do CPC.
Refere Salvador da Costa (Incidentes da Instância, Almedina, 2017, p. 309) que, “visa este normativo, que insere um impedimento objectivo, evitar o preconceito e garantir a imparcialidade e a credibilidade na administração da justiça.
A ideia que dele resulta é a de que não pode julgar o objecto da causa o juiz que antes, como mandatário ou perito, tenha agido em relação a ela ou que, de algum modo, através de parecer, oral ou escrito, haja comprometido a sua opinião em relação ao objecto do litígio.
O referido parecer é o que o juiz tenha emitido como jurisconsulto, pelo que não abrange a opinião sobre alguma questão jurídica que haja emitido, por exemplo a pedido de um amigo (…)”.
No Acórdão do STJ de 19-02-2004 (Pº 04A118, rel. SILVA SALAZAR) considerou-se que o normativo em questão “não contempla a hipótese de o Juiz, nessa qualidade, já se ter pronunciado sobre questão que haja de decidir, mas apenas a de ter intervindo na causa como particular dando parecer, consulta ou conselho a uma das partes ou pronunciando-se como mandatário ou perito”.
Concluiu-se no Acórdão do STJ de 13-09-2022 (Pº 22640/18.1T8LSB.L1.S1, rel. PEDRO DE LIMA GONÇALVES) que o aludido preceito “visa a emissão de parecer ou opinião profissional, escritos ou orais sobre o litígio, por parte do juiz, na sua atividade profissional anterior (como mandatário, jurisconsulto ou perito), pelo que o juiz que se encontre nessa situação deve declarar-se impedido ou não o fazendo as partes podem deduzir o incidente, pois se mostra em causa a imparcialidade do juiz, pois que sobre o litígio já tem opinião formada, um pré – juízo”.
Conforme deriva da interpretação deste normativo, não está em causa o impedimento mencionado, porque a formulação do “pré-juízo” do julgador não deriva da sua precedente atividade profissional, mas sim, de uma tomada de conhecimento com os factos em discussão no processo, em razão da sua relação conjugal.
Ora, não se coloca em causa o dever de objetividade e distanciamento inerentes ao ato de julgar, sendo a postura de um juiz sempre a de cumprir a lei, com rigor, imparcialidade e retidão, mas, atentas as circunstâncias referenciadas, mostra-se objetivamente evidente o não distanciamento do Sr. Juiz relativamente à situação dos autos, uma vez que já tomou conhecimento de factos relevantes para a decisão da causa, sobre os quais já formulou um juízo.
Não se coloca somente a questão do contacto profissional, funcional, ou mesmo de cortesia ou social, sendo um Juiz um cidadão como qualquer outro, podendo conviver e integrar-se na sociedade.
Aqui releva sobretudo, a relação conjugal, por via da qual o Sr. Juiz tomou conhecimento de factos relacionados com o processo – que tem a seu cargo – assumindo, do ponto de vista subjetivo, que formulou já um juízo sobre a pronúncia atinente à decisão do processo, relativamente ao qual entende que pode colocar-se em questão a quebra da sua imparcialidade.
Mas, não seria só a imparcialidade do Sr. Juiz de Direito que ficaria em causa, caso o mesmo tramitasse os autos, mas também, a desconfiança sobre si, relativamente aos restantes sujeitos processuais, ou seja, o poder, objetivamente, gerar a ideia de que poderia não ser imparcial nas suas decisões, tanto mais que, já tomou conhecimento e terá discutido – ainda que no seio familiar - factos respeitantes ao objeto da causa.
Tudo tem de se pautar pela transparência e com o maior distanciamento.
Quer do ponto de vista subjetivo, quer objetivo, a situação narrada é suscetível de causar perturbação, descrença na Justiça e dúvidas sobre a imparcialidade do Juiz.
Os pedidos de escusa, pressupõem situações excecionais, o que é o caso.
Assim e sem mais considerandos, entendo existir circunstância ponderosa que justifica que o Sr. Juiz de Direito requerente seja dispensado de intervir no processo.
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IV. Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção do Sr. Juiz de Direito “A”, no âmbito do processo comum n.º 24024/23.0T8LSB.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 21-10-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).