Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15617/19.1T8LSB.L1-4
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I - Nada impede, no quadro do número 2 do artigo 49.º do RPCOLSS, a aceitação formal do presente recurso contraordenacional, apesar de a decisão recorrida se reconduzir ao despacho judicial previsto nos números 1 a 3 do artigo 49.º do dito regime e não à sentença lavrada após a produção de prova em Audiência de Discussão e Julgamento, conforme o número 1 desse mesmo regime legal.
II - Não obstante nos movermos no seio dos importantes institutos da parentalidade e da conciliação entre a vida profissional e a vida pessoal e familiar, a que somos particularmente sensíveis, o objeto do presente recurso não só depende da leitura e interpretação de concretos documentos apresentados nos autos, o que particulariza, desde logo, o litígio em análise, como não nos coloca, no demais, perante questões de direito essenciais, intrinsecamente duvidosas ou equívocas, de grande relevância prática ou jurídica e de significativo impacto social, nos referidos planos das responsabilidades familiares e patronais e no que se refere ao pedido e concessão aos trabalhadores do horário flexível previsto nos artigos 35.º, número 1, alínea q), 56.º e 57.º do Código do Trabalho de 2009.                          
III - Logo, pelos fundamentos expostos, não se consideram reunidos os pressupostos legais previstos no número 2 do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro para efeitos do recebimento e julgamento excecionais do presente recurso de contraordenação interposto pelo Ministério Público.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO
AAA, (…) com sede na (…), veio impugnar judicialmente a decisão proferida pela ACT no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 171900082 que a condenou no pagamento da coima de 25 UC (2.550,00 Euros), pela prática de uma contra-ordenação p. e p. no artigo 57.º, n.ºs 5 e 10 do Código do Trabalho.
A Recorrente alegou, nas respectivas conclusões:
- Ao transmitir à Recorrente que “apenas pode exercer funções no horário das 09.00 às 12.00 de 2.ª feira a 6.ª feira, ou seja, num horário que lhe permita levar os filhos aos estabelecimentos de ensino, ou a partir das 15.00 horas, horário em que sai de outro local de trabalho em Alcântara desde que consiga ir buscar os filhos aos estabelecimentos de ensino”, a trabalhadora não formula um pedido de horário flexível nos termos do disposto nos arts. 56.º e 57.º do CT;
- A trabalhadora pretende ser ela própria a estabelecer os limites dentro do qual pretende prestar a sua actividade, bem como determinar os dias em que pretende trabalhar;
- O horário indicado não permite qualquer flexibilidade, compreendendo horas específicas para início e termo da prestação de trabalho por parte da trabalhadora, o que é incompatível com o poder de direcção da Arguida e com o facto de o horário de trabalho dever ser determinado pela mesma;
- Não é aplicável ao pedido formulado o procedimento previsto naquelas disposições, nomeadamente a obrigação de pedido de parecer à CITE;
- Entendimento contrário, como o propugnado pela decisão recorrida, implicaria que qualquer pedido desde que qualificado como de horário flexível, independentemente do seu fundamento ou formulação, estaria sujeito ao procedimento previsto das referidas disposições, o que subverte em absoluto a intenção da norma;
- A CITE não tem competência para se pronunciar sobre o pedido da trabalhadora, por as suas atribuições e competências se limitarem a pedidos de horário flexível.
Concluiu pela inexistência de contra-ordenação.
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Tal decisão da ACT fundou-se no Auto de Notícia número CO1719500067, levantado no dia 07/03/2018 por uma Inspetora do Trabalho da Autoridade das Condições do Trabalho e que se mostra junto a fls. 4 e 5 [[1]].
O Auto de Notícia certificava o procedimento imputado à arguida nos termos seguintes:
«No decorrer de processo inspetivo, iniciado em 31.01.2019, verifiquei, de forma mediata, que a infratora tinha ao seu serviço a trabalhadora (…), com a categoria de trabalhadora de limpeza, admitida em 01.04.2010, prestando a sua atividade em cliente da empresa, no horário das 06h00 às 09h00, de segunda a sábado.
A trabalhadora tem dois filhos menores de 12 anos, tendo requerido à infratora, ao abrigo do art.º 56.º e segs. do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12 de fevereiro, que lhe fosse concedido um horário de trabalho compatível com o horário escolar dos filhos, por carta recebida em 17 de dezembro de 2018 (cf. doc. 1).
Nos termos do referido artigo, a trabalhadora indicou as horas pretendidas para entrada e saída: entrada às 09h00 e saída às 12h00 de segunda a sexta ou entrada a partir das 15h00 com saída em hora que lhe permitisse ir buscar os filhos menores à escola.
Tal como prevê o n.º 2 do artigo 56.º do Código do Trabalho, a trabalhadora indicou que estaria disponível para trabalhar entre as 09h00 (hora mínima de entrada) e as 12h00 (hora máxima de saída) ou a partir das 15h00, deixando ao empregador o critério de estabelecer o seu horário de trabalho dentro destes limites, como lhe compete e a lei prevê.
A infratora entendeu que a trabalhadora não havia feito um pedido de horário flexível, mas sim um pedido de alteração de horário, pelo que o indeferiu, por carta datada de 03.01.2019, por não dispor de locais de trabalho com horário compatível com o pedido da trabalhadora.
O pedido de flexibilidade de horário sempre terá que conter alguma alteração ao horário de trabalho praticado pela trabalhadora ou trabalhador que o requer. Não sendo assim, não se justificaria a sua necessidade.
Ora a trabalhadora cumpriu o preceituado na lei, pelo que à infratora competia informá-la da intenção de recusa, indicando os seus motivos, dando-lhe oportunidade de se pronunciar e comunicar à entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, com cópia do pedido, do fundamento da intenção de o recusar e da apreciação do trabalhador até 16.01.2019, o que não fez.
Assim, com o comportamento descrito nos presentes autos, não cumpriu a infratora as disposições legais acima citadas, uma vez que não procedeu com o cuidado a que segundo as circunstâncias estava obrigada e de que é capaz.»
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Notificada a arguida e o seu legal-representante, através de cartas registadas com Aviso de Receção (fls. 15 a 20), veio a mesma apresentar oposição dentro do prazo legal, nos moldes constantes de fls. 22 e seguintes, tendo-se procedido, nessa sequência, à inquirição de testemunhas arroladas pela empresa e sido depois elaborada pelo instrutor do processo proposta de decisão (conforme consta do processo eletrónico) que, tendo sido acolhida pela Direção da ACT, culminou em decisão datada de 19/06/2019.
Tal decisão da ACT foi notificada à arguida e ao seu legal representante através de cartas registadas com Aviso de Receção. 
A arguida apresentou, no quadro do seu recurso da decisão administrativa, as alegações de fls. 65 a 77.
A ACT respondeu a tal recurso da arguida nos moldes de fls. 78 a 80 dos autos.
Recebido o recurso no Tribunal do Trabalho de Sintra, veio, a fls. 1 e 2, o Ministério Público deduzir acusação nos termos previstos no art.º 37.º do Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14/09 [[2]].
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O recurso foi, a fls. 81, judicialmente admitido e determinada a notificação do Ministério Público e da arguida para virem, no prazo de 10 dias, informar nos autos se se opunham à decisão da impugnação judicial da segunda por mero despacho, tendo o MP declarado expressamente, a fls. 85 e 86, a sua não oposição à apreciação do objeto da referida impugnação sem necessidade da realização de Audiência de Discussão e Julgamento, ao passo que a arguida nada disse dentro do referido prazo, sabendo que o seu silêncio seria interpretado no sentido igualmente da não oposição a tal apreciação judicial por mero despacho.
Por simples decisão judicial de fls. 87 a 92, proferida em 27/11/2019 foi o recurso julgado procedente, tendo, em síntese, sido decidido o seguinte:
“Pelo exposto, julgo procedente o presente recurso e consequentemente absolvo a arguida da contra-ordenação imputada, p. e p. no artigo 57º nº 5 e 10 do Código do Trabalho.
Sem custas por o M.P estar isento.
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Comunique à ACT.
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Proceda-se ao depósito da presente sentença na secretaria.
Notifique.”    
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A sentença recorrida fundou-se na seguinte argumentação jurídica:
“À arguida foi imputada, na decisão sob recurso, a prática de uma contra-ordenação p. e p. no artigo 57.º, n.ºs 5 e 10 do Código do Trabalho.
A questão que se coloca nos autos é a de saber se a arguida estava obrigada a seguir o formalismo indicado no art.º 57.º, n.º 5 do Código do Trabalho em face do pedido formulado pela trabalhadora, que se mostra junto aos autos a fls. 6.
A resposta é, no entendimento do tribunal, negativa.
Pese embora não releve para a apreciação da questão sub judice a análise relativa ao direito da trabalhadora (isto é, da verificação dos seus requisitos) mas apenas a apreciação objectiva do pedido/pretensão que alegadamente formulou à entidade patronal e das obrigações legais desta, decorrentes da pretensão que lhe foi formulada, afigura-se útil fazer uma referência aos preceitos legais que directa ou indirectamente se relacionam com a contra-ordenação imputada.
A tutela da parentalidade tem base constitucional (art.º 68.º/1 e 2 da C. R. Portuguesa), sendo que em desenvolvimento deste princípio geral, a Constituição consagra várias regras, entre as quais, revela para o caso em apreço, a seguinte: «A lei regula a atribuição às mães e aos pais de direitos de dispensa de trabalho por período adequado, de acordo com os interesses da criança e as necessidades do agregado familiar» (n.º 4 do referido art.º 68.º).
Estes princípios constitucionais são desenvolvidos ao nível da Lei Ordinária nos arts. 33.º e segs. do C. Trabalho de 2009, sendo que alguns aspectos deste regime de tutela se projectam no tempo de trabalho, como é o caso do horário flexível expressamente previsto no seu art.º 56.º da C. Trabalho que prescreve:
«1. O trabalhador com filho menor de 12 anos ou, independentemente da idade, filho com deficiência ou doença ou doença crónica que com ele viva em comunhão de mesa e habitação tem direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, podendo o direito ser exercido por qualquer dos progenitores ou por ambos.
2. Entende-se por horário flexível aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário.
3. O horário flexível, a elaborar pelo empregador, deve: a) Conter um ou dois períodos de presença obrigatória, com duração igual a metade do período normal de trabalho diário; b) Indicar os períodos para início e termo do trabalho normal diário, cada um com duração não inferior a um terço do período normal de trabalho diário, podendo esta duração ser reduzida na medida do necessário para que o horário se contenha dentro do período de funcionamento do estabelecimento; c) Estabelecer um período para intervalo de descanso não superior a duas horas…».
Como decorre da lei, o regime de horário de trabalho flexível a que tem direito o trabalhador com filho menor de 12 anos ou, independentemente da idade, filho com deficiência ou doença ou doença crónica que com ele viva em comunhão de mesa e habitação, no âmbito deste art.º 56.º, concretiza-se apenas na escolha por esse trabalhador da hora de início e da hora termo do período normal de trabalho diário (que há-se ser encontrado dentro do horário de funcionamento do estabelecimento).
No que concerne ao procedimento de fixação deste horário flexível estatui o art.º 57.º do C. Trabalho de 2009 (norma procedimental a que respeita a contraordenação imputada):
«1. O trabalhador que pretenda trabalhar a tempo parcial ou em regime de horário de trabalho flexível deve solicitá-lo ao empregador, por escrito, com a antecedência de 30 dias, com os seguintes elementos: a) Indicação do prazo previsto, dentro do limite aplicável; b) Declaração da qual conste: i) Que o menor vive com ele em comunhão de mesa e habitação; ii) No regime de trabalho a tempo parcial, que não está esgotado o período máximo de duração; iii) No regime de trabalho a tempo parcial, que o outro progenitor tem actividade profissional e não se encontra ao mesmo tempo em situação de trabalho a tempo parcial ou que está impedido ou inibido totalmente de exercer o poder paternal; c) A modalidade pretendida de organização do trabalho a tempo parcial.
2. O empregador apenas pode recusar o pedido com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável.
3. No prazo de 20 dias contados a partir da recepção do pedido, o empregador comunica ao trabalhador, por escrito, a sua decisão.
4. No caso de pretender recusar o pedido, na comunicação o empregador indica o fundamento da intenção de recusa, podendo o trabalhador apresentar, por escrito, uma apreciação no prazo de cinco dias a partir da recepção.
5 - Nos cinco dias subsequentes ao fim do prazo para apreciação pelo trabalhador, o empregador envia o processo para apreciação pela entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, com cópia do pedido, do fundamento da intenção de o recusar e da apreciação do trabalhador…
7 - Se o parecer referido no número anterior for desfavorável, o empregador só pode recusar o pedido após decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo.
8 - Considera-se que o empregador aceita o pedido do trabalhador nos seus precisos termos: a) Se não comunicar a intenção de recusa no prazo de 20 dias após a recepção do pedido; b) Se, tendo comunicado a intenção de recusar o pedido, não informar o trabalhador da decisão sobre o mesmo nos cinco dias subsequentes à notificação referida no nº 6 ou, consoante o caso, ao fim do prazo estabelecido nesse número; c) Se não submeter o processo à apreciação da entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres dentro do prazo previsto no n.º 5…
10. Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto nos nºs. 2, 3, 5 ou 7».
Decorre, pois, do regime legal da flexibilidade de horário que o legislador procurou alcançar uma solução equilibrada que compatibilize o mais possível os direitos potencialmente em conflito – por um lado, o direito do trabalhador ao exercício da parentalidade, e por outro, o direito da entidade empregadora ao livre exercício da iniciativa económica privada, bem como à liberdade de organização empresarial, com tutela constitucional (artigos 61.º e artigo 80.º, n.º 1 al. c) da CRP) e da lei ordinária, do qual é expressão o poder de estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem (art.º 97.º CT) e o determinar o horário do trabalhador dentro dos limites da lei (art.º 212.º do CT).
No caso dos autos, como decorre da factualidade provada, a trabalhadora remeteu à entidade patronal a comunicação cuja cópia se encontra a fls. 6 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, da qual consta, nomeadamente
«Assunto: Pedido de Flexibilidade de Horário de Trabalho
Exmos. Senhores,
(…), trabalhadora de limpeza ao V. serviço (…), no horário das 06h00 às 09h00 à 2ª feira a sábado (…) vem nos termos e para os efeitos do preceituado nos artigos 56.º e 57.º do Código de Trabalho, solicitar a concessão de um horário em regime de flexibilidade até os meus filhos atingirem 12 anos de idade, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
A) – Dos factos (…)
B) Conclusão
1 – a requerente apenas pode exercer funções no horário das 09h00 às 12h00 de 2º feira a 6ª sexta, ou seja, num horário que lhe permita levar os filhos aos estabelecimentos de ensino, ou a partir das 15h00 horário em que sai de outro local de trabalho em Alcântara desde que consiga ir buscar os filhos aos estabelecimentos de ensino;».
A tal missiva respondeu a entidade patronal, através da carta de fls. 11 dos autos, datada de 3 de Janeiro de 2019, cujo teor se dá por reproduzido, da qual consta, nomeadamente que:
«(…)
Tendo procedido à análise da mesma, entendemos que o seu pedido não corresponde a um pedido de horário flexível, mas sim de alteração de horário. (…)
Por outro lado, o horário pretendido não está contratualizado (09h00-12h00) com o cliente, pelo que não se compreende no período de funcionamento dos serviços de limpeza. (…).
Por último reiteramos que V. Exa não apresenta um pedido de horário flexível, mas de um horário fixo, diferente do que actualmente pratica, o que seria só por si suficiente para recusar o seu pedido.».
A trabalhadora respondeu através da comunicação de fls. 12, em 16 de Janeiro de 2019, cujo teor se dá por reproduzido.
O conteúdo da declaração de vontade da trabalhadora (por não terem sido invocados vícios da vontade nem a factualidade provada o permitir concluir – arts. 253.º e 254.º C.C.) há-de ser interpretado de acordo com os princípios que emergem do art.º 236.º, n.º 1 do Código Civil, nos termos do qual “a declaração de vontade vale com o sentido que um declaratário normal colocado na posição real do declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”, tendo igualmente presente o que resulta do n.º 1 do art.º 238.º do Código Civil, que determina que “nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento ainda que imperfeitamente expresso”.
Poder-se-á da comunicação efectuada extrair o sentido de que a mesma está a solicitar uma flexibilização (maleabilidade) de horário? Afigura-se ser a resposta negativa porquanto a comunicação efectuada tem o sentido literal de que a requerente não pode exercer funções no horário que lhe está atribuído que, como sabemos e não constitui matéria controvertida nos autos, era das 06.00 às 09.00 horas e que quer outro horário.
Tendo o regime jurídico que a trabalhadora pretende accionar, em seu favor, como pressuposto incontornável, que o pedido de flexibilização se contenha dentro do horário de funcionamento do estabelecimento, poderá atribuir-se à comunicação da Autora, que conhece os horários de funcionamento no cliente, o sentido de que quer flexibilização de horário? Mas como se o horário que aparentemente propõe está fora do horário de funcionamento do estabelecimento? Afigura-se não poder ser atribuída à comunicação efectuada o sentido de que está a formular um pedido de flexibilização mas sim de alteração completa do seu horário de trabalho para um horário que a mesma não pode ignorar que não existe. A pretensão formulada tem que ter uma correspondência mínima com o regime da flexibilização, o que não ocorre nos autos, para que a entidade empregadora passe a estar sujeita à norma procedimental prevista no art.º 57.º do CT, em concreto, o seu n.º 5. A presentão formulada pela trabalhadora, não tem o mínimo de aparência com uma flexibilização da organização dos tempos de trabalho. Em rigor, a mesma comunica que não pode trabalhar no horário que lhe está atribuído e que pretende um concreto horário (que não está contido no horário de funcionamento do estabelecimento).
O pedido formulado tem que se conter no perímetro na previsão normativa, sob pena de se permitir alcançar, via da tutela da parentalidade, alterações ao horário e trabalho que o legislador não tutelou. Podemos facilmente equacionar um conjunto de pedidos irrazoáveis que o trabalhador decide qualificar de flexibilização de horário. Isso bastará para que a situação passe a estar abrangida pela tutela das normas de protecção da parentalidade?
É obvio que não.
Se atentarmos nas limitações que a norma impôs para a admissibilidade da rejeição por parte da entidade empregadora aos pedidos de flexibilização (n.º 2 do art.º 57.º), percebemos, sem dificuldade, que o sentido interpretativo a dar não pode ser o que esteve na base da decisão administrativa em apreciação. No caso em análise, qual o fundamento legal que poderia ser invocado pela entidade empregadora para a intenção de recusa? Exigências imperiosas do funcionamento da empresa não porque a empresa não funciona no horário pretendido pela trabalhadora. Admitindo que a empregadora até pode substituir a trabalhadora por outro no horário que lhe estava afecto. Onde a coloca se não existe outro horário?
Os preceitos legais são para interpretar com o sentido normativo que subjaz à respectiva tutela e não para servir interesses que a lei não protegeu e que se pretendem alcançar por um qualquer incumprimento procedimental.
Não é despiciendo o facto de a trabalhadora não ter respondido no prazo de 5 dias de que dispunha e ter remetido a carta de fls. 12, já depois de decorrido o suposto prazo que a ACT entendeu que a arguida tinha que cumprir.
Não se afigura, pois, que à arguida fosse exigível desencadear o procedimento legal previsto no n.º 5 do art.º 57.º do CT e consequentemente não se pode concluir pela verificação do elemento objectivo do tipo. Afigura-se ser irrelevante para a interpretação da comunicação, a referência às normas legais indicadas na comunicação mas sim o conteúdo da pretensão exposto.
Perante a comunicação efectuada, não podemos concluir estar na presença de um pedido de flexibilização de horário de trabalho, que determine para a entidade empregadora o desencadeamento dos procedimentos previstos no art.º 57.º do CT.
Não se mostra, pois, preenchida a tipicidade objectiva da contra-ordenação imputada.
Todavia, ainda que se entendesse estar a mesma verificada, teríamos necessariamente que concluir pelo não preenchimento do elemento subjectivo.
Ao contrário do sustentado na decisão administrativa, a factualidade provada em sede de decisão administrativa obsta à conclusão do preenchimento da tipicidade subjectiva.
A entidade empregadora deixou expresso na sua comunicação qual o seu entendimento quanto ao sentido a dar à comunicação da trabalhadora. Não existe qualquer facto que permita afirmar a existência de culpa: a entidade empregadora não procedeu a acto ou omissão unilateral que permita afirmar a existência de violação de deveres de cuidado a que, segundo as circunstâncias concretas, estava obrigada e de que era capaz.
Se a trabalhadora entendia ser outro o sentido da sua declaração, perante a resposta da ora arguida, tinha a obrigação, imposta pelo princípio da boa fé contratual, de esclarecer a mesma que não era esse o seu entendimento e que pretendia que fosse dado cumprimento ao procedimento previsto no n.º 5 do art.º 57.º do CT.
Não tendo ficado demonstrado probatoriamente que foi por falta de cuidado ou incúria que a arguida/recorrente actuou como actuou, impor-se-á concluir sempre pelo não preenchimento da tipicidade subjectiva.
Face a todo o exposto, procede o recurso interposto.”
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O Ministério Público, notificado de tal sentença e não se conformando com ela, veio interpor recurso do mesmo para este Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos de fls. 100 e seguintes, que foi admitido nos termos do despacho de fls. 112, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.     
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O Ministério Público, no final do seu recurso, formulou as seguintes conclusões (fls. 78 verso a 82):      
“1. Tendo a trabalhadora solicitado à arguida que lhe fosse concedido horário de trabalho em regime flexível, nos termos do arts. 56.º e 57.º do CT, com disponibilidade daquela para trabalhar, de segunda a sexta feira, entre as 09h00 (Hora mínima de entrada) e as 12h00 (Hora máxima de saída) ou a partir das 15h00, tal corresponde a um verdadeiro pedido de horário flexível, nos termos dos artigos 56.º e 57.º do CT.
2. O conteúdo da pretensão constante da carta registada em que trabalhadora solicitou à arguida que lhe fosse concedido horário de trabalho em regime flexível, respeita os termos conjugados do disposto no art.º 56.º e no art.º 57º do CT, além de estar instruído de provas documentais que demostravam o nela alegado.
3. Perante os termos do solicitado e a disponibilidade indicada pela trabalhadora para prestar o seu serviço, de segunda a sexta-feira, entre as 09h00 (hora mínima de entrada) e as 12h00 (hora máxima de saída) ou a partir das 15h00, podemos concluir estarmos na presença de um pedido de flexibilização do horário de trabalho no cumprimento dos termos legais, o qual determinava para a empregadora, com um elevado número de trabalhadores e multiplicidade de locais de trabalho, ponderar o desencadeamento dos procedimentos previstos no n.º 5 do art.º 57.º do CT.
4. Nestes termos, o regime legal vigente não confere ao empregador a possibilidade de formular um juízo prévio de censura ao pedido flexibilidade do horário de trabalho do trabalhador, quanto à sua perfeição ou adequabilidade, cabendo-lhe apenas, caso pretenda recusar esse pedido, observar os trâmites processais definidos no art.º 57º do CT, designadamente, enviar o pedido em causa para apreciação da CITE, instruído dos devidos documentos, solicitando a emissão do parecer prévio à sua recusa daquele pedido.
5. Independentemente do teor do pedido de horário de trabalho flexível do trabalhador, ao abrigo dos arts. 56.º e 57.º do CT, que for dirigido ao empregador, e ainda que tal pedido não configure um horário flexível, impende sobre este a obrigação de remeter o processo à CITE, caso pretenda recusar aquele pedido, competindo a esta, como uma entidade independente das partes da relação de trabalho, ponderar a aplicação da lei numa garantia da igualdade e da imparcialidade na aplicação do regime jurídico.
6. A questão essencial assenta na inobservância pela arguida da tramitação processual definida no n.º 5 do art.º 57º do CT, quando está em causa um regular pedido de flexibilidade do horário de trabalho formulado por trabalhador que aquela pretender recusar, cabendo às autoridades administrativas (CITE) e judiciais apreciar todas as questões relativas à perfeição ou adequabilidade deste pedido apresentadas por aquela para que estas, através de um parecer favorável ou uma decisão judicial, reconheçam a existência de motivo justificativo para a recusa do horário flexível solicitado pelo trabalhador.
7. A arguida conhecia a obrigação legal, sabia das consequências e quis assumir de forma bem consciente tais consequências, agindo, assim, com manifesta falta de cuidado ao não precaver-se com a audição de tal entidade.
8. Assim, e contrariamente ao doutamente decidido, encontram-se preenchidos os elementos da tipicidade objetiva e subjetiva da infração/contra ordenação.
9. A Mma. Juíza a quo, ao decidir como decidiu, interpretou erroneamente a lei.
Nestes termos e nos mais de direito deve o presente Recurso ser devidamente provido, substituindo-se a douta decisão por outra que condene a arguida, assim se fazendo Justiça!”
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A arguida, não obstante ter sido notificada de tais alegações do Ministério Público, não veio responder-lhes dentro do prazo legal.
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O ilustre magistrado do Ministério Público colocado neste Tribunal da Relação de Lisboa subscreveu inteiramente a posição expressa nas referidas alegações de recurso (fls. 120).
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A arguida veio a fls. 122 a 124 pronunciar-se acerca de tal parecer nos seguintes moldes:
AAA., Arguida nos autos acima identificados, notificada do parecer do Ministério Público, entende que não estão preenchidos os requisitos previstos no art.º 49.º, n.º 2 da Lei n.º 107/2009, recordando-se que o recurso só será admissível “quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência”.
Ora, no caso dos autos a impugnação judicial foi considerada procedente por o Tribunal entender que não estava em causa horário flexível, mas também – e isso teria sido suficiente para a impugnação ser procedente – por não estar preenchido o elemento subjetivo da alegada infração.
Como referido na sentença, “ao contrário do sustentado na decisão administrativa, a factualidade provada em sede de decisão administrativa obsta à conclusão do preenchimento da tipicidade subjectiva. A entidade empregadora deixou expresso na sua comunicação qual o seu entendimento quanto ao sentido a dar à comunicação da trabalhadora. Não existe qualquer facto que permita afirmar a existência de culpa: a entidade empregadora não procedeu a acto ou omissão unilateral que permita afirmar a existência de violação de deveres de cuidado a que, segundo as circunstâncias concretas, estava obrigada e de que era capaz. Se a trabalhadora entendia ser outro o sentido da sua declaração, perante a resposta da ora arguida, tinha a obrigação, imposta pelo princípio da boa-fé contratual, de esclarecer a mesma que não era esse o seu entendimento e que pretendia que fosse dado cumprimento ao procedimento previsto no n.º 5 do art.º 57.º do CT. Não tendo ficado demonstrado probatoriamente que foi por falta de cuidado ou incúria que a arguida/recorrente actuou como actuou, impor-se-á concluir sempre pelo não preenchimento da tipicidade subjectiva”.
Uma vez que a impugnação seria julgada procedente, mesmo que o Tribunal a quo entendesse que a Arguida não cumpriu o disposto no art.º 57.º do Código do Trabalho, por causa do elemento subjetivo do tipo, e porque quanto a esta questão não se encontra minimamente justificado o recurso nos termos do art.º 49.º, n.º 2 da Lei n.º 107/2009, deve o recurso ser julgado inadmissível.»
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Tendo os autos ido a vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença impugnada, em sede de fundamentação de facto, refere o seguinte:
«Uma vez que a recorrente não impugnou a matéria de facto descrita na proposta de decisão e decisão de fls. 32 a 38, consideram-se provados os factos aí descritos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.»
A AUTORIDADE PARA AS CONDIÇÕES DO TRABALHO na sua decisão de condenação da arguida acolheu o teor do relatório final do instrutor do processo contraordenacional na sua fase administrativa e que para esse efeito em termos de fundamentação de facto afirma o seguinte:
«Ponderados numa análise crítica e conjugada a factualidade descrita no auto de notícia e no documento nele anexo (fls. 1 a 9), e a constante na resposta escrita da arguida (Fls. 19 a 23), conjugado com os depoimentos das suas testemunhas (fls. 27 a 28), consideramos provados os seguintes factos com relevância para a decisão:
1. A arguida é uma sociedade anónima, titular do NIPC (…), com sede na (…) Lisboa, tendo por objeto social, a atividade de limpeza gerais em edifícios (CAE: 81210);
2. A arguida é representada legalmente pelo Presidente do seu Conselho de Administração 503 011 487 titular do NIF 503 011 487, residente na (…) Lisboa, que responde solidariamente pelo pagamento da coima;
3. Em 2017, a arguida tinha ao seu serviço 2798 trabalhadores, com um n.º médio de 2855 trabalhadores durante o ano e um volume de negócios de 19.244.010,00 €, conforme Anexo Zero — Dados da Entidade do seu Relatório Único daquele ano (Cfr. Doc. 1 em anexo);
4. Da documentação do Processo Inspetivo, iniciado em 31/01/2019, a inspetora autuante verificou, de forma pessoal, direta e mediata, que a arguida tinha ao seu serviço a trabalhadora (…) residente na R. (…), com a categoria profissional de "trabalhadora de limpeza", admitida em 01/04/2010, prestando a sua atividade nas instalações do cliente daquela, (…), no (…), em Lisboa, cumprindo um período de trabalho a tempo parcial de 18h semanais, no horário das 06h00 às 09h00, de segunda a sábado (Cfr. Doc. 1, anexo ao Auto de Noticia (AN) fls. 3 a 6 dos autos);
5. Em 13/12/2018, por carta registada, a trabalhadora solicitou à arguida que lhe fosse concedido horário de trabalho em regime flexível, nos termos e para os efeitos dos art.ºs 56.º e 57.º do CT, compatível com o horário escolar dos seus dois filhos menores de 12 anos que com ela vivam em comunhão de mesa e habitação (Cfr. Doc. 1, anexo ao AN, fls. 3 a 7 dos autos);
6. Em 17/12/2018, a carta registada da trabalhadora referida no Ponto 5, foi recebida pela arguida (Cfr. Doc. 1, anexo ao AN fls. 7 a 8 dos autos);
7. Da carta referida nos Pontos 5 e 6, a inspetora autuante verificou, de forma pessoal, direta e mediata, que a trabalhadora, nos termos do n.ºs 1 e 2 do art.º 56 e no n.º 1 do 57.º do CT, indicou as horas pretendidas para entrada e saída: Entrada às 09h00 e Saída às 12h00, de segunda a sexta ou Entrada a partir das 15h00 com saída em hora que lhe permitisse ir buscar os filhos menores à escola (Cfr. Doc. 1, anexo ao AN, fls. 3 a 6 dos autos).
8. A inspetora autuante verificou ainda que a trabalhadora indicou que estaria disponível para trabalhar, de segunda a sexta feira, entre as 09h00 (Hora mínima de entrada) e as 12h00 (Hora máxima de saída) ou a partir das 15h00, deixando à arguida, como empregadora, o critério de estabelecer o seu horário de trabalho dentro destes limites, como lhe compete e prevê o n.º 2 do art.º 56.º do CT (Cfr. Doc. 1, anexo ao AN, fls. 3 a 6 dos autos)
9. Igualmente a inspetora autuante apurou que estavam anexos quatro documentos à mesma carta: o Atestado da Junta de Freguesia com a confirmação do agregado familiar da trabalhadora a Certidão de Matricula Escolar da filha e seu horário escolar a Declaração da Associação Solidariedade e Desenvolvimento do Laranjeiro, como os filhos daquela frequentavam, um, o Espaço Lúdico "Espaço (…)", no ano letivo 2018/2019, entre as 15h.30 e as 19h.30, e outro, a creche, desde 2018, entre as 07h.30 e as 19h.00 (Cfr. Doc. 1, anexo ao AN, fls. 3 a 6 dos autos)
10. Em 03/01/2019, por Carta Registada com Aviso de Receção, a arguida respondeu à trabalhadora, informando entender "que o seu pedido não corresponde a um pedido de horário flexível, mas sim de alteração de horário de trabalho", pelo que indeferiu o seu pedido para trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, por não dispor de locais de trabalho com horário compatível com o solicitado pela mesma (Cfr. Doc. 1, anexo ao AR fls. 8 verso dos autos)
11. A inspetora autuante constatou que o pedido para trabalhar em regime de horário de trabalho flexível terá sempre que conter alguma alteração ao horário de trabalho praticado pelo(a) trabalhador(a) que o requer. Não sendo assim, não se justificaria a sua necessidade;
12. Da carta referida no Ponto 10, a inspetora autuante apurou, de forma pessoal, direta e mediata, que a arguida declarou ainda que a trabalhadora "não apresenta um pedido de horário flexível, mas de um horário fixo, diferente daquele que pratica, o que seria só por si suficiente para recusar o seu pedido" (Cfr. Doc. 1, anexo ao AN, fls. 8 verso dos autos).
13. Em 16/0112019, via postal, a trabalhadora solicitou à arguida informação "sobre o local e o horário de trabalho onde se devia apresentar para exercer funções tendo em conta o horário por si requerido", reiterando o seu pedido para trabalhar em regime de horário de trabalho flexível (Cfr. Doc. 1, anexo ao AN, fls. 9 dos autos).
14. Em 17/01/2019, por Carta Registada com Aviso de Receção, a arguida comunicou à trabalhadora que, em relação à carta referida no Ponto 13, ela "foi respondida" por aquela "e rececionada" por esta (Cfr. Doc. 1, anexo ao AN, fls. 9 verso dos autos).
15. Da documentação dos autos, a inspetora autuante verificou, de forma pessoal, direta e mediata, que a trabalhadora solicitou à arguida, sua empregadora, a concessão de um horário de trabalho em regime flexível, nos termos e para os efeitos dos arts. 56.º e 57.º do CT, apresentando disponibilidade para, de segunda a sexta feira, entrar às 09h00 e sair às 12h00, ou entrar a partir das 15h.00, com saída em hora que lhe permitisse ir buscar os filhos menores à escola, cujo requerimento estava instruído com os quatro documentos indicados no Ponto 9 (Cfr. Doc. 1, anexo ao AN, fls. 3 a 6 dos autos);
16. Igualmente apurou a inspetora autuante que a arguida não informou a trabalhadora da sua intenção de recusar o referido pedido de flexibilidade de horário de trabalho, indicando os seus motivos, para permitir a esta a oportunidade de se pronunciar sobre os fundamentos da recusa e de se iniciar o processo para comunicação à CITE;
17. A inspetora autuante verificou ainda que a arguida, apesar da sua intenção de recusar o pedido da trabalhadora para trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, nos termos e para os efeitos dos art.ºs 56.º e 57.º do CT, não enviou o processo para apreciação pelo CITE, anexando cópia do pedido, do fundamento da intenção de o recusar e da apreciação do trabalhador, até à data do Auto de Notícia, não solicitando a emissão do parecer prévio à sua recusa daquele pedido, revelando com este comportamento que não procedeu com o cuidado a que segundo as circunstâncias estava obrigada e de que era capaz.
- Factos considerados como não provados:
1. A trabalhadora indicou, para efeitos da flexibilidade de horário pretendida, que "podendo aos sábados a partir das 15h (até às 18h)", entre as horas pretendidas para a sua entrada e saída.» [[3]]
*
III – OS FACTOS E O DIREITO
É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 33.º, número 1 e 50.º do Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social (Lei n.º 107/2009, de 14/09) e, subsidiariamente, dos artigos 412.º e 420.º, número 1, alínea c) do Código de Processo Penal.
*
A – REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS
Os presentes autos de recurso de contraordenação conheceram a sua génese no Auto de Contraordenação de fls. 3, datado de 06/10/2016, ou seja, quando já vigorava, nesta matéria, o Código do Trabalho de 2009, que iniciou a sua vigência a 17/02/2009 [[4]], bem como o atual Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14/09, que começou a produzir efeitos no dia 1/10/2009, como finalmente as alterações introduzidas no Código de Processo de Trabalho, pelo Decreto-Lei n.º 259/2009, de 13/10, que tiveram começo de vigência em 1/1/2010.
Manteve-se, naturalmente e em termos subsidiários, o Regime Geral das Contraordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10) e o Código de Processo Penal.
Ora, será, portanto de acordo com o Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social (Lei n.º 107/2009, de 14/09) e com os demais diplomas legais de carácter supletivo, já acima identificados, que iremos apreciar as questões de índole adjetiva que eventualmente se suscitem neste recurso de contraordenação.
Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02, retificado pela Declaração de Retificação n.º 22/2008, de 24 de Abril e alterado pelas Lei n.º 43/2008, de 27-08, Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28-08, Lei n.º 64-A/2008, de 31-12, Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril com início de vigência a 13 de Maio de 2011, Lei n.º 7/2012, de 13 Fevereiro, retificada pela Declaração de Retificação n.º 16/2012, de 26 de Março, Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 126/2013, de 30 de Agosto, Lei n.º 72/2014, de 2 de Setembro, Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2017 e Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2018 –, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplica a processos instaurados após essa data.
Importa, finalmente e em termos substantivos, atentar na circunstância de os factos que se discutem no quadro destes autos terem ocorrido na vigência do Código do Trabalho de 2009 e da legislação complementar, sendo, portanto, em função do regime derivado desse diploma e desses outros textos legais que iremos abordar juridicamente as questões suscitadas neste recurso de contraordenação.                  
B – OBJECTO DO RECURSO
As questões que se suscitam no âmbito deste recurso visam, do ponto de vista formal e substantivo, contestar a absolvição de que a arguida beneficiou por referência à condenação no pagamento da coima de 25 UC (2.550,00 Euros) de que foi objeto por parte da Autoridade para as Condições do Trabalho, pela prática de uma contraordenação p. e p. no artigo 57.º, n.ºs 5 e 10 do Código do Trabalho.
O recurso contraordenacional da sentença que revogou tal condenação da arguida é interposto pelo Ministério Público com fundamento na seguinte argumentação jurídica, que se mostra sintetizada nas respetivas conclusões (fls. 110 e 111):
“1. Tendo a trabalhadora solicitado à arguida que lhe fosse concedido horário de trabalho em regime flexível, nos termos do arts. 56.º e 57.º do CT, com disponibilidade daquela para trabalhar, de segunda a sexta feira, entre as 09h00 (Hora mínima de entrada) e as 12h00 (Hora máxima de saída) ou a partir das 15h00, tal corresponde a um verdadeiro pedido de horário flexível, nos termos dos artigos 56.º e 57.º do CT.
2. O conteúdo da pretensão constante da carta registada em que trabalhadora solicitou à arguida que lhe fosse concedido horário de trabalho em regime flexível, respeita os termos conjugados do disposto no art.º 56.º e no art.º 57º do CT, além de estar instruído de provas documentais que demostravam o nela alegado.
3. Perante os termos do solicitado e a disponibilidade indicada pela trabalhadora para prestar o seu serviço, de segunda a sexta-feira, entre as 09h00 (hora mínima de entrada) e as 12h00 (hora máxima de saída) ou a partir das 15h00, podemos concluir estarmos na presença de um pedido de flexibilização do horário de trabalho no cumprimento dos termos legais, o qual determinava para a empregadora, com um elevado número de trabalhadores e multiplicidade de locais de trabalho, ponderar o desencadeamento dos procedimentos previstos no n.º 5 do art.º 57.º do CT.
4. Nestes termos, o regime legal vigente não confere ao empregador a possibilidade de formular um juízo prévio de censura ao pedido flexibilidade do horário de trabalho do trabalhador, quanto à sua perfeição ou adequabilidade, cabendo-lhe apenas, caso pretenda recusar esse pedido, observar os trâmites processais definidos no art.º 57º do CT, designadamente, enviar o pedido em causa para apreciação da CITE, instruído dos devidos documentos, solicitando a emissão do parecer prévio à sua recusa daquele pedido.
5. Independentemente do teor do pedido de horário de trabalho flexível do trabalhador, ao abrigo dos arts. 56.º e 57.º do CT, que for dirigido ao empregador, e ainda que tal pedido não configure um horário flexível, impende sobre este a obrigação de remeter o processo à CITE, caso pretenda recusar aquele pedido, competindo a esta, como uma entidade independente das partes da relação de trabalho, ponderar a aplicação da lei numa garantia da igualdade e da imparcialidade na aplicação do regime jurídico.
6. A questão essencial assenta na inobservância pela arguida da tramitação processual definida no n.º 5 do art.º 57.º do CT, quando está em causa um regular pedido de flexibilidade do horário de trabalho formulado por trabalhador que aquela pretender recusar, cabendo às autoridades administrativas (CITE) e judiciais apreciar todas as questões relativas à perfeição ou adequabilidade deste pedido apresentadas por aquela para que estas, através de um parecer favorável ou uma decisão judicial, reconheçam a existência de motivo justificativo para a recusa do horário flexível solicitado pelo trabalhador.
7. A arguida conhecia a obrigação legal, sabia das consequências e quis assumir de forma bem consciente tais consequências, agindo, assim, com manifesta falta de cuidado ao não precaver-se com a audição de tal entidade.
8. Assim, e contrariamente ao doutamente decidido, encontram-se preenchidos os elementos da tipicidade objetiva e subjetiva da infração/contra ordenação.
9. A Mma. Juíza a quo, ao decidir como decidiu, interpretou erroneamente a lei.
Nestes termos e nos mais de direito deve o presente Recurso ser devidamente provido, substituindo-se a douta decisão por outra que condene a arguida, assim se fazendo Justiça!”
C – QUESTÃO PRÉVIA – ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
Uma questão prévia é suscitada pelo recorrente, com base na circunstância de a arguida ter sido absolvida da condenação de uma coima no valor de 25,00 Euros e de o artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro estabelecer o seguinte, quanto às decisões judiciais que admitem recurso para os tribunais da relação (sublinhados a negrito da nossa responsabilidade):
Artigo 49.º
Decisões judiciais que admitem recurso
1 - Admite -se recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 39.º, quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa competente tenha aplicado uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente, ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 39.º
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 — Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites. [[5]]
A conclusão a retirar do cenário adjetivo, depois de devidamente cruzado com a alínea c) do número 1 do artigo 49.º do RPCOLSS, é de que a arguida foi absolvida de uma condenação em coima no valor de 25 UC, quando a lei, para que o presente recurso do Ministério Público seja suscetível de ser recebido e julgado pelos tribunais da 2.ª instância, exige que a referida coima tenha de ultrapassar o referido limite de 25 Euros, o que não é o caso dos autos.
Logo e nos termos legais e normais antes expostos, tem este recurso de contraordenação de ser rejeitado por nós, juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.
Impõe-se, contudo, olhar ainda para a justificação que o Ministério Público, em termos prévios e antes das alegações recursórias propriamente ditas, apresenta para a interposição do seu recurso:
«1.º - A questão sub judice reveste-se de primordial importância no contexto da tutela da parentalidade em geral.
2.º - Na verdade, discute-se se a questão em apreço, ou seja, se a pretensão da trabalhadora, se inscreve no âmbito da definição de horário flexível ou se, pelo contrário, mais não é do que um pedido de fixação de novo horário e se, consequentemente, a arguida teria de dar pleno cumprimento ao disposto no artigo 57.º, n.º 5, do Código do Trabalho.
3.º - O MP, ouvida que foi a ACT, nos termos estipulados no artigo 45.º, n.º 2, da Lei 107/2009, de 17 de setembro, faz suas as preocupações desta entidade administrativa quanto à necessidade e utilidade de uma Decisão por esse Alto Tribunal para melhoria da aplicação do direito, atento o entendimento que venha a ser dado a esta vexata quaestio.
4.º - Termos em que se entende requerer a esse Alto Tribunal seja admitido o presente recurso, pelo motivo supra exposto, pese embora o valor da coima aplicada inicialmente pela ACT não ultrapasse o valor de 25 UC’s e atento o disposto no artigo 49.º, n.º 1, alínea c), da Lei 107/2009, pelo que se seguem as pertinentes Alegações:»
Ora, conforme refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/1/2003, recurso n.º 737/02, publicado em www.gde.mj.pt/jtrc (Sumário), há que ter em consideração que «Para ser admitido o recurso para melhoria do direito, em processo de contraordenação, teria o recorrente de fazer preceder tal recurso de requerimento prévio sobre o qual recairia decisão sobre a manifesta melhoria da aplicação do direito.»
Verificando-se que se acha formulado o pedido prévio em questão, terá o recurso interposto de ser admitido?
D – RECURSO DECIDIDO POR SIMPLES DESPACHO JUDICIAL
Impõe-se, antes de mais, recordar o que se deixou dito no Relatório do presente Aresto:
«A arguida apresentou, no quadro do seu recurso da decisão administrativa, as alegações de fls. 65 a 77.
A ACT respondeu a tal recurso da arguida nos moldes de fls. 78 a 80 dos autos.
Recebido o recurso no Tribunal do Trabalho de Sintra, veio, a fls. 1 e 2, o Ministério Público deduzir acusação nos termos previstos no art.º 37.º do Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14/09.
O recurso foi, a fls. 81, judicialmente admitido e determinada a notificação do Ministério Público e da arguida para virem, no prazo de 10 dias, informar nos autos se se opunham à decisão da impugnação judicial da segunda por mero despacho, tendo o MP declarado expressamente, a fls. 85 e 86, a sua não oposição à apreciação do objeto da referida impugnação sem necessidade da realização de Audiência de Discussão e Julgamento, ao passo que a arguida nada disse dentro do referido prazo, sabendo que o seu silêncio seria interpretado no sentido igualmente da não oposição a tal apreciação judicial por mero despacho.
Por simples decisão judicial de fls. 87 a 92, proferida em 27/11/2019 foi o recurso julgado procedente, tendo, em síntese, sido decidido o seguinte:
“Pelo exposto, julgo procedente o presente recurso e consequentemente absolvo a arguida da contraordenação imputada, p. e p. no artigo 57.º, n.º 5 e 10 do Código do Trabalho.
Sem custas por o M.P estar isento.
Comunique à ACT.
Proceda-se ao depósito da presente sentença na secretaria.
Notifique.” (sublinhados a negrito da nossa parte)
O artigo 39.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro reza o seguinte:
Artigo 39.º
Decisão judicial
1 - O juiz decide do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.
2 - O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.
3 - O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação.
4 - O juiz fundamenta a sua decisão, tanto no que respeita aos factos como no que respeita ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, podendo basear -se em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa.
5 - Em caso de absolvição, o juiz indica porque não considera provados os factos ou porque não constituem uma contraordenação. [[6]]
ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, em «Regime Geral das Contraordenações e Coimas – Decreto-Lei 433/82 (atualizado pelos Decreto-Lei 356/89 de 17 de outubro e Decreto-Lei 244/95 de 14 de setembro – Anotado», 11.ª Edição, 2016, Almedina, Coimbra, página 226, Nota 8, em, anotação ao artigo 73.º do RGCO:
«7. No caso previsto no n.º 2, para além do recurso propriamente dito, há um requerimento prévio, no qual se terão que alegar factos demonstrativos da manifesta necessidade de melhorar a apreciação do direito ou de promover a uniformidade da jurisprudência. Esse requerimento será apreciado nos termos do n.º 2 do artigo 74.º. Só depois de se julgar procedente essa questão prévia é que se poderá conhecer do recurso propriamente dito.
O regime previsto neste n.º 2 parece não se aplicar ao despacho proferido nos termos do artigo 64.º, uma vez que só faz referência ao recurso da sentença, quando, tanto no n.º 1, como no n.º 3, se menciona a sentença e aquele despacho. Logo, o legislador, ao não referir o despacho proferido nos termos do artigo 64.º, quis excluí-lo da previsão desta norma». (sublinhado a negrito da nossa parte)              
Este mesmo autor indica nesse mesmo sentido a seguinte jurisprudência dos nossos tribunais superiores:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/12/99, Proc.º 4796/99, www.pgdlisboa.pt (Sumário):
«O recurso para melhoria de aplicação do direito ou uniformização de jurisprudência, a que alude o art.º 73.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 433/82, só pode interpor-se da sentença».
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8/4/2008, Proc.º n.º 730/08-5, publicado em www.colectaneadejurisprudencia.com (Sumário):
«I - O recurso extraordinário previsto no art.º 73.º, n.º 2, do R.G.C.O. só é admissível da sentença e exige que a jurisprudência se mostre visivelmente dividida acerca da interpretação e aplicação de determinada regra de direito ou então que o conhecimento da questão se configure manifestamente necessário para a melhoria da aplicação do Direito.
II - Não preenche tais pressupostos o recurso que apenas pretende a correção de decisão errada, desinserida de qualquer corrente jurisprudencial na 1.ª instância.»
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27/5/2008, Proc.º n.º 883/08-1, www.gde.mj.pt/jtre (Sumário):
«Só é de aceitar o recurso extraordinário a que alude o n.º 2 do art.º 73.º do RGCO quando se trate de recurso de sentença e quando na decisão recorrida o erro avultar de forma categórica e, pela dignidade da questão, pelos importantes reflexos materiais que a solução desta comporte para os por ela visados e generalidade que importe na aplicação do direito, seja inexoravelmente preciso corrigir aquele.»
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 659/2006, de 28/11/2006, www.tribunalconstitucional.pt. (Sumário):
 - «Em processo contraordenacional não é constitucionalmente imposta a consagração da possibilidade de recurso de todas as decisões judiciais proferidas no decurso da impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória.»
Chegados aqui e confrontados com tal doutrina e jurisprudência, temos de concordar que o artigo 73.º do RGCO faz uma voluntária e propositada distinção entre sentença e despacho judicial nos seus números 1 e 3, destrinça essa contudo que já não se encontra no seu número 2, pois aí só se refere a sentença.
Será que tal restrição formal também se verifica no RPCOLSS?     
A resposta tem de ser negativa pois confrontamo-nos, desde logo, com uma diferença de redação no número 2 do artigo 49.º de tal regime legal especial, quando aí se alude a decisão e já não a sentença, o que tem de ser interpretado juridicamente de forma diversa da do regime geral, tendo de se considerar englobado em tal decisão, quer o despacho judicial como a sentença. 
Tal significa que no RPCOLSS não se verifica aquele obstáculo de cariz formal, nada impedindo, portanto, a aceitação do presente recurso contraordenacional, não obstante a decisão recorrida se reconduzir ao despacho judicial previsto nos números 1 a 3 do artigo 49.º do dito regime e não à sentença lavrada após a produção de prova em Audiência de Discussão e Julgamento, conforme o número 1 desse mesmo regime legal.
Sendo assim, podia o Ministério Público vir recorrer de tal despacho judicial, nos termos em que o fez e ao abrigo do número 2 do artigo 49.º do RPCOLSS, por o mesmo ser formalmente recorrível, nos termos excecionais que se mostram previstos em tal norma jurídica.       
E – MANIFESTA NECESSIDADE DE MELHORIA DA APLICAÇÃO DO DIREITO OU DA PROMOÇÃO DA UNIFORMIDADE DA JURISPRUDÊNCIA  
ABÍLIO NETO, em «Código de Processo do Trabalho Anotado», 5.ª Edição Atualizada e Ampliada, janeiro de 2011, EDIFORUM, Lisboa, a páginas 481, Nota 3, afirma o seguinte, a respeito de tais requisitos substantivos ou materiais:
«O recurso da decisão pode assumir-se como «manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito», quando, por exemplo, verse uma questão que seja objeto de soluções desencontradas por pare da doutrina, ou de relevante incidência prática, ou quando seja objeto de tratamento diversificado pela jurisprudência. De todo o modo, trata-se de um conceito aberto, cuja aplicação em concreto dependerá, em larga escala, do discurso argumentativo utilizado»  
Esse mesmo autor, na Nota 6.1, refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 8/11/2004, Processo n.º 1073/04-1, relator: Ricardo Silva, publicado em www.dgsi.pt, com o seguinte Sumário:  
«I – Sendo certo que o próprio conceito de recurso para o tribunal superior tem implícito o fim de uma melhor aplicação do direito, que deverá concretizar-se, em cada caso, como um dos efeitos do recurso, temos para nós que não é ao melhor direito resultante – ou, em princípio, resultante – de cada decisão do Tribunal superior que o legislador se refere no disposto no n.º 1 do art.º 73.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, pois que se assim fosse, justificar-se-ia sempre aceitar o recurso e a exceção transformar-se-ia em regra, inutilizando o regime que estabelecido nesta disposição legal.
II – Não é, portanto, à normal superação da ilegalidade resultante de uma errada aplicação do direito, nem a correção desta através da decisão do tribunal superior que legislador se refere em tal disposição legal, pois que se tal quisesse, bastava-lhe conferir o direito ao recurso em termos mais amplos.
III – Nem mesmo, se referirá aos casos de existência daqueles vícios que, por demais patentes, consignou no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P., como fundamentadores de recurso em matéria de facto, mesmo nos casos em que o Tribunal superior conhece apenas de direito, isto, pelo mesmo argumento de que, tendo o legislador identificado e tipificado tais vícios, nada mais seguro do que transpor os termos da previsão, para a norma aqui em causa.
IV – Fazendo apelo ao argumento literal vemos que o legislador aplicou a expressão “melhoria da aplicação”, em vez de, por exemplo “uma melhor aplicação”, o que introduz um significado de estabilidade da melhora, uma “mudança para melhor”, não se tratando, pois, apenas de melhorar, mas de conseguir que a melhora passe a ser a norma.
V – Por outro lado, em articulação, foi usada a expressão “manifestamente necessário”, o que inculca a ideia de que não se trata penas de conseguir uma “melhoria” na aplicação do direito, mas de limitá-lo aos casos de isso ser manifestamente necessário, acrescentando-se assim, a um critério de necessidade, uma circunstância de premência, de avultamento do desacerto.
VI – Se assim é, podemos concluir que é de aceitar o recurso quando na decisão recorrida o erro avultar de forma categórica e, pela dignidade da questão, pelos importantes reflexos materiais que a solução desta comporte para os por ela visados e generalidade que importe na aplicação do direito, seja inexoravelmente preciso corrigir aquele.
VII – O critério proposto por Simas Santos e Jorge de Sousa em “Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, 2001, 386,” no sentido de que tal regime excecional deverá permitir «o controlo jurisdicional dos casos em que haja erros claros na decisão judicial ou seja comprovadamente duvidosa a solução jurídica», não será de aceitar pois que pensamos que se exige mais do que isso, porquanto esta fórmula não distingue suficientemente o regime excecional em causa do regime normal de recurso, além de que o critério que enuncia imporia, como questão prévia da admissão do recurso, uma apreciação meticulosa sobre o mérito, o que, na prática, obrigaria a aceitar todos ou quase todos os recursos.
VIII – Na verdade, os erros ainda que claros, podem só se demonstrar após discussão; e uma decisão comprovadamente duvidosa, pode impor, para se despir de dúvidas, a mais prudente indagação.
IX – Assim, não há fundamento para aceitação do recurso nos termos do art.º 73.º, n.º 2, do DL 433/82 de 27-10:
- Sendo a questão posta no recurso sobre a aplicação de uma coima pelos valores mínimos que a lei estabelece para sancionar a contraordenação correspondente, que o próprio recorrente admite ter-se verificado formalmente;
- Sendo invocadas causas de exclusão da ilicitude que, manifestamente não o são;
- E sendo também colocada no recurso a questão da pena, em função da culpa, a qual seria certamente uma questão a ponderar e decidir no quadro de um recurso que fosse normalmente admitido, mas que não se mostra, no entanto, como fundamento para uma admissão extraordinária do recurso, até porque as diferentes perspetivas sobre a graduação da pena, que estariam em causa, se situam já num plano de subtileza que exclui a eventualidade de verificação de um erro claro ou grosseiro na aplicação do direito.»
ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, por seu turno, identifica, na obra e local citados, os seguintes Arestos:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/9/97, Coletânea de Jurisprudência, 1997, Tomo IV, página 142 (Sumário da autoria do conselho redatorial da revista):
«O recurso previsto no n.º 2 do artigo 73.º por visar, predominantemente, interesses de ordem pública, apenas é admissível quando tem por finalidade alcançar uma maior estabilidade na aplicação do direito, um maior prestígio das instituições encarregadas da administração da Justiça e, acima de tudo, uma maior eficácia do princípio da igualdade dos cidadãos quanto à lei.»
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/12/2004, Proc.º n.º 8902/04, publicado em www.pgdlisboa.pt (Sumário parcial):
«III - Para que se considere a possibilidade de recurso nos termos do n.º 2, do art.º 73.º, do RGCO, será necessária a alegacão de factos demonstrativos da manifesta necessidade de melhorar a apreciação do direito ou de promover a fixação da jurisprudência». [[7]]
O relator deste Acórdão já admitiu, no quadro do processo contraordenacional número 403/11.5TTCLD.L1-4, um recurso extraordinário ao abrigo do número 2 do artigo 49.º do RPCOLSS, tendo-o feito com base nas múltiplas sentenças da 1.ª instância proferidas e juntas aos respetivos autos que refletiam divergências profunda quanto ao registo dos tempos de trabalho de uma dada categoria de trabalhadores [[8]]. 
Inexiste nos autos, desde logo, uma qualquer vincada e flagrante desarmonia ou desconformidade jurisprudencial ao nível dos tribunais da 1.ª instância que cumpra ultrapassar, através da intervenção deste Tribunal da Relação de Lisboa no sentido da promoção da sua harmonização ou uniformização.
Resta-nos saber se o cenário de facto e de direito que, em termos contraordenacionais, levou a Autoridade das Condições do Trabalho e o Tribunal do Trabalho de Lisboa a ficarem de costas voltadas, em termos decisórios, reclama, em si e por si, uma terceira apreciação por este tribunal da 2.ª instância, por tal julgamento se revelar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito aqui em questão, nos termos e para os efeitos da segunda parte do número 2 do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
A leitura de tais decisões (administrativa e judicial), assim como das alegações de recurso, remete-nos, por um lado, para a interpretação do pedido formulado pela trabalhadora para a atribuição de um horário situado dentro das janelas temporais pela mesma indicadas (horário flexível ou alteração de horário) e, por outro, para a interpretação e aplicação do regime constante dos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho de 2009 e para a obrigação legal do empregador de aceitação do referido pedido, nos termos e com as exceções do número 2 da segunda disposição legal citada, da correspondente resposta segundo os seus números 3 e 4 e da submissão do respetivo processo ao parecer da CITE, de acordo com o seu número 5.
Este cenário factual e jurídico enquadra-se ou configura aquela necessidade manifesta de melhoria da aplicação de tais regras jurídicas ou do regime legal que as mesmas integram, que é reclamado pelo número 2 do artigo 49.º do RPCOLSS?
A nossa resposta, não obstante nos movermos no seio dos importantes institutos da parentalidade e da conciliação entre a vida profissional e a vida pessoal e familiar, a que somos particularmente sensíveis, tem de ser negativa, pois o objeto do presente recurso não só depende da leitura e interpretação de concretos documentos apresentados nos autos, o que particulariza, desde logo, o litígio em análise, como não nos coloca, no demais, perante questões de direito essenciais, intrinsecamente duvidosas ou equívocas, de grande relevância prática ou jurídica e de significativo impacto social, nos referidos planos das responsabilidades familiares e patronais e no que se refere ao pedido e concessão aos trabalhadores do horário flexível previsto nos artigos 35.º, número 1, alínea q), 56.º e 57.º do Código do Trabalho de 2009.                          
Logo, pelos fundamentos expostos, não se consideram reunidos os pressupostos legais previstos no número 2 do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro para efeitos do recebimento e julgamento excecionais do presente recurso de contraordenação interposto pelo Ministério Público.             
IV – DECISÃO
Por todo o exposto, nos termos dos artigos 49.º e 50.º do Regime Processual das Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social (Lei n.º 107/2009, de 14/09), acorda-se, neste Tribunal da Relação de Lisboa, em não admitir o recurso contraordenacional interposto pelo Ministério Público.       
Custas a cargo do recorrente.
Registe e notifique.
Após trânsito em julgado deste Aresto, comunique à ACT, com cópia certificada do mesmo.

Lisboa, 11 de março de 2020     
José Eduardo Sapateiro
Alves Duarte
_______________________________________________________
[1] E que imputava uma contraordenação grave à arguida nos termos previstos e punidos pelo artigo 57.º, n.ºs 5 e 10 do Código do Trabalho.     
[2] Aprovado pelo D.L. 433/82, de 27/10, e alterado pelos DL 256/89, de 17/10, 244/95, de 14/09; e 323/2001, de 17/12, e pela Lei 109/2001, de 24/12, e adiante designado pela sigla “RGCC”.
[3] «Convicção do tribunal:
Como resulta do recurso de impugnação a Arguida não põe em causa a factualidade relativa ao auto de notícia. Considera, porém, que a responsabilidade pela prática da contra ordenação deveria recair sobre o seu trabalhador uma vez que lhe foi ministrada a formação devida, estando o mesmo sujeito ao controlo dos tempos de condução, sendo-lhe dado instruções e diretivas no sentido do cabal respeito das respetivas regras, tendo-lhe para tal disponibilizando toda a documentação legalmente exigível.
Contudo, ainda que tenha ficado demonstrado que a Arguida ministrou formação ao motorista, a mesma não fez prova cabal do rigoroso controlo dos tempos de condução daquele, nem demostrou que organiza o seu serviço de molde a que os tempos de condução sejam efetiva e diariamente respeitados. É que a documentação que se mostra junta aos autos quanto a esta matéria é insuficiente porque demasiado genérica e não foi complementada com mais nenhum elemento probatório.
Pelos depoimentos das testemunhas da arguida apurou-se que no dia da ocorrência o motorista apresentou o disco, preenchido manualmente, com o tempo de condução do veículo ligeiro.
[4] Cfr. artigos 548.º a 566.º do Código do Trabalho de 2009, tendo o seu artigo 560.º sido alterado pela Lei n.º 23/2012, de 25 de Junho, com entrada em vigor em 1 de Agosto de 2012, convindo realçar que, de acordo com o artigo 12.º, número 3, alínea e) da Lei n.º 7/2009, de 12/02, que aprovou o atual Código do Trabalho, os artigos 630.º a 640.º do Código do Trabalho de 2003 (procedimento de contraordenações laborais) mantiveram-se em vigor até ao dia 30/09/2009, ou seja, até à entrada em vigor da mencionada Lei n.º 107/2009, de 14/09.»   
[5] O artigo 49.º conhece a sua correspondência, em sede do RGCO, no artigo 73.º:
Artigo 73.º
Decisões judiciais que admitem recurso
1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 49,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.
[6] O artigo 64.º do RGCO possui a seguinte redação, que é, aliás, semelhante à do artigo 39.º do RPCOLSS, no que toca aos números 1, 2, 3 e 5 desta última disposição:
Artigo 64.º
Decisão por despacho judicial
1 - O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.
2 - O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.
3 - O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação.
4 - Em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção.
5 - Em caso de absolvição deverá o juiz indicar porque não considera provados os factos ou porque não constituem uma contraordenação.
[7] Cf., também, em termos doutrinários, a posição muito crítica de MANUEL FERREIRA ANTUNES, «Contraordenações e Coimas», Anotado e Comentado, Livraria PETRONY, 2005, páginas 481 e seguintes.
[8] Tal Aresto, que foi subscrito também pelo Juiz-Desembargador Sérgio Almeida, mostra-se publicado em www.dgsi.pt, com o seguinte Sumário:
I – A segunda parte do número 3 do artigo 202.º do Código do Trabalho refere-se a trabalhadores que possuem uma ligação residual, ténue ou meramente formal à sede ou outras instalações do empregador, por o seu normal e genuíno local de trabalho não se reconduzir às mesmas mas a lugar diverso destas últimas (v. g., instalações de terceiros, clientes da entidade patronal), onde nunca regressam ou fazem-no de forma pontual e/ou irregular.
II – O registo dos tempos de trabalho, nessas situações, tem de ser efetuado e mantido acessível, para consulta imediata, nos termos exigidos pelo número 1 do artigo 202.º do citado diploma legal e por um período mínimo de 30 dias, nas instalações ou estabelecimentos onde esses trabalhadores (que prestam trabalho no exterior da empresa empregadora, de acordo com o número 3 desse mesmo artigo) desempenham efetiva e habitualmente funções.
III – A inexistência de tal “registo dos tempos de trabalho” nesses locais de trabalho externos faz incorrer a entidade empregadora na contraordenação prevista no número 5 do artigo 202.º do Código do Trabalho de 2009.