Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA | ||
Descritores: | PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM VEROSIMILITUDE DA FACTUALIDADE ALEGADA ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/08/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | (da responsabilidade do relator): I. No âmbito de um procedimento cautelar comum, o tribunal não pode quedar-se por uma análise sobre a verosimilitude da factualidade alegada pelo requerente, prescindindo da produção de prova sobre a mesma. A aquisição da verdade processual não se esgota numa pré-análise da verosimilitude das alegações, exigindo a produção de prova para tanto indicada pelas partes. II. O que é verosímil pode não provar-se e o que, numa primeira leitura, possa ser pouco verosímil pode, afinal, demonstrar-se. Só após a produção da prova é que o tribunal estará na posse de todos os elementos necessários ou possíveis para a prolação da decisão. III. Embora o diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação (Artigo 864º do CPC) esteja previsto e regulado em sede de execução para entrega de coisa certa, nada obsta a que o mesmo seja aplicado por analogia em sede de procedimento cautelar comum, desde que as razões substantivas e de fundo que subjazem ao mesmo ocorram, comprovadamente, em sede de procedimento cautelar. Tanto mais que o regime substantivo da ação/execução principal constitui a referência-limite do que pode ser obtido por via instrumental do procedimento cautelar. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO AB instaurou - por apenso à ação declarativa de condenação e de reivindicação por si instaurada contra o aqui requerido - procedimento cautelar comum contra CD, pedindo (sem prévia audição do requerido) a imediata entrega ao requerente - devoluta de pessoas e bens - da fração autónoma designada pela letra “E” do prédio urbano sito na Rua (...), nº 1, freguesia de (...), em (...). O requerente alega para o efeito que: a. É proprietário da fração autónoma em causa nos autos, ocupada pelo requerido sem título para tal - por o contrato de arrendamento sobre a mesma vigente e cuja arrendatária era a mãe do requerido (por lhe ter sido transmitido face ao divórcio com o arrendatário primitivo) ter falecido em 2017 sem que tal lhe tenha sido comunicado - e ter, por isso, instaurado contra o requerido a mencionada ação de reivindicação, sem decisão final até ao momento; b. Tomou agora conhecimento de que, desde 2017, não existe fornecimento de água nem eletricidade à fração e que, por da mesma emanarem odores nauseabundos, foi chamada a autoridade policial e os bombeiros ao local, em finais de Agosto de 2024; c. Tendo os bombeiros acedido à fração por uma janela e constatado que os odores provinham de acumulação de lixo na fração e sujidade, tendo sido pedida a intervenção da Delegada de Saúde que, contudo, não conseguiu aceder ao espaço por o requerido, ao visualizar os intervenientes para a realização de vistoria sanitária, ter fugido tendo, porém, sido constado o mau odor proveniente da fração; d. A existência de tal lixo e sujidade é suscetível de determinar o aparecimento de pragas de rastejantes e que existe risco de incêndio da fração e do prédio, bem como de falência do sistema de saneamento do prédio e que, assim, a situação coloca em risco todos os habitantes do imóvel e é suscetível de provocar danos de elevada dimensão à fração, de difícil reparação e mais onerosa. Foi proferido despacho liminar indeferindo a dispensa da audição do requerido e ordenada a sua citação para, querendo e no prazo legal, deduzir oposição. Em oposição veio o requerido: i. Impugnar parte dos factos pelo requerente alegados, arguir a inadmissibilidade do procedimento cautelar por apenso à ação principal por, alegadamente, a causa de pedir ser diversa da de tal ação; ii. Afirmar que se encontra desempregado, auferindo rendimento social de inserção no valor de 237,25 Euros mensal pelo que, a ser decretado o procedimento cautelar, terá de ir viver para a rua por não ter quem o ajude; iii. Sendo assim o prejuízo para o mesmo maior do decretamento do procedimento cautelar do que aquele que para o requerente pode advir do seu não decretamento, pugnando pela improcedência do procedimento cautelar; iv. Em sede de ação principal, arguiu o reconhecimento da sua qualidade de locatário e manutenção do contrato de arrendamento, tendo sempre vivido na fração em causa nos autos e requereu, subsidiariamente, o pedido de deferimento da desocupação do imóvel/locado pelo prazo máximo de 5 meses previsto por lei. Notificado o requerente para se pronunciar sobre a matéria de exceção pelo requerido arguida e sobre o requerido deferimento da desocupação da fração autónoma em causa nos autos veio o requerente pugnar pela sua improcedência, conforme requerimento entrado em juízo em 23.12.2024. Foi proferido despacho saneador-sentença que julgou o procedimento improcedente por não provado, absolvendo o requerido do pedido. * Não se conformando com a decisão, dela apelou o requerente formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES: 1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que decidiu julgar improcedente o procedimento cautelar por considerar que não se verificam os requisitos da sua procedência, nomeadamente, a probabilidade séria do direito invocado, o fundado receio de que esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação e que a diligência requerida seja adequada a evitar a lesão; 2. O Apelante não se conforma com a douta sentença proferida, na medida em que, no seu entender, o Tribunal recorrido fez uma errada apreciação da prova junta aos autos, 3. Não levando ao acervo da factualidade provada factos que resultaram provados e que eram essenciais para apreciação do pedido formulado pelo Apelante; 4. E, por outro lado, por considerar que a douta sentença violou o disposto no artigo 368º do Cód. Proc. Civil; 5. O Apelante instaurou a presente providência cautelar contra o Apelando alegando que é dono e legitimo proprietário da fração autónoma designada pela letra “E”, correspondente ao primeiro andar esquerdo, do prédio urbano sito na Rua (...), n.º 1, freguesia de (...), concelho de (...), descrito na 5ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º (...), da dita freguesia e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (...), a qual está a ser ocupada pelo Apelado desde 25 de Junho de 2017; 6. O Apelado não paga qualquer contrapartida pela ocupação do imóvel em apreço e que desde 2018 que se encontra pendente ação declarativa de condenação, que corre termos sob o n.º 2(...)/18.2T8LSB do Juízo Central Cível; 7. Não existem contratos de fornecimento de serviços essenciais para o imóvel desde 2017 e, no dia 28 de Agosto de 2024, as autoridades policiais e os bombeiros sapadores foram chamados à Rua (...), n.º 1, 1º esquerdo, devido a odores nauseabundos provenientes do interior da fração em apreço, tendo constatado “o cheiro a podre e de decomposição vindo do seu interior”; 8. Os bombeiros sapadores que acederam ao interior do imóvel através de uma janela da marquise da facha principal constataram muito lixo acumulado no interior e, no dia 17 de Setembro de 2024, a Delegada de Saúde deslocou-se ao local, acompanha pelas técnicas de saúde ambiental, saúde pública e serviço social a fim de efetuarem uma vistoria higieno-sanitária para averiguar a situação habitacional na fração ocupada pelo Recorrido, tendo aquele fugido do local assim que se apercebeu da presença dos técnicos; 9. Existe risco de incêndio, da fração e do prédio, face ao lixo que se encontra acumulado no seu interior e a falta de água poderá conduzir a falência do sistema de saneamento da fração autónoma em apreço e de todo o prédio; 10. O lixo existente no interior do imóvel é prejudicial a saúde e bem-estar de todos os moradores do prédio; 11. O uso que o Apelado está a fazer do imóvel põe em perigo a saúde e segurança de todos os moradores do prédio, bem como, a própria integridade do bem, nomeadamente, canalização, instalação elétrica e do gás, paredes, soalhos loiças sanitárias, e móveis de cozinha, tornando a sua reparação mais complexa e dispendiosa para o Apelante. 12. O Apelado impugnou parte da factualidade alegada pelo Apelante e subsidiariamente pede o deferimento da desocupação do imóvel pelo prazo de cinco meses; 13. A douta sentença recorrida considerou que relativamente à factualidade não provada tal “... decorre do seguinte circunstancialismo: a) da circunstância de, de per si, da acumulação de lixo no interior da fração e ou do não fornecimento de água ou eletricidade à mesma não decorrer, de forma clara e necessária, qualquer dano irreversível – previsível ou provável – para o imóvel por depender, de forma clara, da sua eventual manutenção ou não – que se ignora – e se não vislumbra como a falta de água ou de eletricidade no seu interior possa advir risco de incêndio do andar e ou de falência do sistema deste e/ou do prédio e da respetiva instalação elétrica, paredes, soalhos, loiças sanitárias e móveis de cozinha. Na verdade, não se consegue compreender a alegação de que a falta de fornecimento de água ou eletricidade ao andar pode, sem mais, ser geradora da mencionada falência do sistema de saneamento e ou provocar risco de incêndio, pois é normal, em casas não habitadas, que não se efetue tal fornecimento de bens essenciais e não há notícia de ocorrência de tais riscos nas mesmas, por si só e por tal facto.” 14. E “Por outro lado, o mesmo se diga da probabilidade de ocorrência de pragas de rastejantes no andar ou no prédio, pois penderá da manutenção ou não da aludida acumulação de lixo e ou sujidade sendo que, porém, a verificar-se, tal pode, efetivamente ocorrer e, no mais, por se não ver como as loiças sanitárias, soalhos e ou paredes poderão, sem mais, danificar-se ou ficarem destruídas por tal acumulação de lixo ou falta de limpeza do andar.”. 15. Após a prolação da sentença, o Apelante teve conhecimento que, no dia 24 de Janeiro de 2025, os Serviços Municipalizados da Proteção Civil da Câmara Municipal de (...), deslocaram-se ao imóvel e elaboraram relatório com fotografias, do qual o Apelante teve conhecimento no dia 27 de Janeiro de 2025. 16. Tal documento por si só conduz à alteração da factualidade dada como não provada considerando o estado de insalubridade do imóvel. 17. O Apelante indicará de seguida os factos cujo aditamento aos factos provados requer, bem como os meios probatórios. 18. Factos a aditar: 1º facto a aditar Não pagando qualquer contrapartida pela ocupação do imóvel ao aqui Requerente. Fundamento: O facto a aditar resulta da não foi impugnado pelo Apelado, devendo ser considerado confessado. 2º facto a aditar Pelas regras de experiência, a manter-se a ocupação do imóvel pelo Requerido, o estado de degradação poderá agravar-se, sendo a sua recuperação irreversível. Fundamento: Tal facto resulta das regras das regras da ciência, lógica e da experiência comum que o uso de um imóvel, sem fornecimento dos serviços essenciais (eletricidade e água) e com acumulação de lixo no seu interior, ficará mais degradado com o decurso do tempo. Na medida em que, as instalações sanitárias, a cozinha e restantes cómodos do imóvel continuam a ser utilizados para acumulação de lixo e sem condições mínimas de higiene e segurança. Para além de configurar um uso impróprio e inadequado do imóvel. 3º facto a aditar Existe risco de incêndio, da fração e do prédio, face ao lixo que se encontra acumulado no seu interior. Fundamento: Tal facto resulta das regras das regras da ciência, lógica e da experiência comum que o uso de um imóvel, sem fornecimento dos serviços essenciais (eletricidade e água) e com acumulação de lixo, implica o recurso a outras fontes de energia, que não a elétrica, para satisfação de necessidades de alimentação (confeção de refeições, por ex), aquecimento e higiene. 4º facto a aditar A falta de água poderá conduzir à falência do sistema de saneamento da fração autónoma em apreço e de todo o prédio. Fundamento: Tal facto resulta das regras das regras da ciência, lógica e da experiência comum que o uso de um imóvel, sem fornecimento dos serviços essenciais (eletricidade e água), implica a acumulação de dejetos, papeis e outros objetos, bem como sujidade nas instalações sanitárias e cozinha. Não existindo fornecimento de água, os dejetos ficam acumulados e impregnados as canalizações e loiças sanitárias. E fazendo a fração autónoma parte integrante de um prédio constituído em propriedade horizontal, o seu sistema de saneamento está ligado ao sistema de saneamento do prédio que também é afetado. 5º facto a aditar A acumulação de lixo no interior do imóvel é propícia ao aparecimento de animais rastejantes, insetos, bactérias e odores, sendo prejudicial para a saúde e bem-estar de todos os moradores do prédio. Fundamento: Tal facto resulta das regras das regras da ciência, lógica e da experiência comum que o uso de um imóvel, sem fornecimento dos serviços essenciais (eletricidade e água) e com acumulação de lixo e sujidade é propicio ao aparecimento de animais rastejantes, insetos, bactérias e odores e prejudicial à saúde e bem estar de todos os moradores do prédio. 6º facto a aditar O uso que o Requerido está a fazer do imóvel põe em perigo a saúde e segurança de todos os moradores do prédio, bem como a própria integridade do bem. Fundamento: Tal facto resulta das regras das regras da ciência, lógica e da experiência comum que o uso de um imóvel, sem fornecimento dos serviços essenciais (eletricidade e água) e com acumulação de lixo e sujidade é propicio ao aparecimento de animais rastejantes, insetos, bactérias e odores e prejudicial à saúde e bem estar de todos os moradores do prédio e implica o recurso a outras fontes de energia, que não a elétrica, para satisfação de necessidades de alimentação (confeção de refeições), aquecimento, higiene. 7º facto a aditar O uso que o Requerido está a fazer do imóvel torna a sua reparação mais complexa e dispendiosa para o Requerente. Fundamento: Tal facto resulta das regras das regras da ciência, lógica e da experiência comum que um imóvel ocupado, sem fornecimento dos serviços essenciais (eletricidade e água) e com acumulação de lixo, implica o recurso a outras fontes de energia, que não a elétrica, para satisfação de necessidades de alimentação (confeção de refeições), aquecimento, higiene. 8º facto a aditar A manter o Requerido o uso do imóvel tal acarretará danos graves ou até irreparáveis no imóvel e quiçá no próprio prédio do qual faz parte integrante. Fundamento: Tal facto resulta das regras das regras da ciência, lógica e da experiência comum que um imóvel ocupado, sem fornecimento dos serviços essenciais (eletricidade e água) e com acumulação de lixo, implica o recurso a outras fontes de energia, que não a elétrica, para satisfação de necessidades de alimentação (confeção de refeições), aquecimento, higiene, ficando mais degradado com o decurso do tempo; 19. Atendendo ao teor do documento que ora se junta o Apelante logra fazer prova do estado de insalubridade em que o imóvel se encontra quer do uso indevido que o Apelado está a fazer do imóvel; 20. De acordo com o disposto no artigo 651º do Cód. Proc. Civil “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º, no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.”; 21. São requisitos do procedimento cautelar comum a titularidade de um direito, esse direito estar em risco de sofrer lesão grave e irreparável e não exista outro meio de proteger o direto. 22. O fumus boni juris traduz-se na probabilidade de a pretensão formulada pelo Apelante na ação principal vir a ser julgada procedente. 23. O procedimento cautelar pode ser instaurado com a finalidade de antecipar um direito que venha a ser declarado na ação principal, nomeadamente, acautelar a prática de atividades que deteriorem o imóvel. 24. Nesse sentido vide Ac. Rel. do Porto de 02/08/2024 disponível para consulta em www.dgsi.pt, no qual se deixou plasmado que “Assim, estas providências procuram dar resposta a dois tipos de exigências distintas: por um lado, afastar o perigo de que o direito fique prejudicado pelo facto de permanecer em situação de insatisfação durante o período de tempo necessário ao seu reconhecimento judicial; por outro lado, evitar o abuso do direito de defesa e conseguir uma maior economia processual.». António Geraldes, in Temas da Reforma de Processo Civil, III, página 92, também refere que «através das medidas especialmente previstas na lei, atenta a urgência da situação carecida de tutela, o tribunal pode antecipar a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal» e, na página 93, «não está afastada a possibilidade de através de providências cautelares não especificadas se poder alcançar, também, uma medida com efeitos antecipatórios da decisão definitiva, uma vez que o art.º 381.[2] prevê expressamente tal possibilidade.». 25. E no Ac. Rel de (...) de 18/01/2007, CJ Tomo I, pág. 80, “estão dentro da proteção concedida pelo procedimento cautelar comum as lesões continuadas ou repetidas, nada obstando a que seja proferida decisão que previna a continuação ou a repetição de atos lesivos”; 26. No que concerne ao periculum in mora, considerando o estado de degradação do imóvel, falta de energia elétrica e água, bem como o uso que o Apelado está a fazer do imóvel existe perigo para o imóvel e para as pessoas que habitam o prédio, o que faz com que a sua reparação seja mais complexa; 27. O direito à habitação, enquanto direito fundamental, deve ser assegurado pelo Estado, sobre quem recaí o dever de assegurar que todas as pessoas têm direito a uma habitação condigna, adotando políticas tendentes a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar; 28. Qualquer indemnização que possa ser julgada procedente no âmbito da ação principal não terá qualquer efeito útil, face a situação de desemprego e de beneficiário do rendimento social de inserção do Apelado. Nestes termos e nos melhores de direito que Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência ser revogada a douta sentença, e substituída por outra que ordene a entrega imediata da fração autónoma em apreço ao Apelante, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!» * Contra-alegou o apelado, propugnando pela improcedência da apelação, rematando com as seguintes conclusões: Da impossibilidade legal de a providência correr por apenso 1- A ação principal é uma ação comum declarativa de condenação, com processo ordinário, em que o ali A. reivindica a propriedade de uma fração autónoma, peticionando, a final, a declaração do A. como dono e legítimo proprietário do imóvel em apreço, a declaração da caducidade do contrato de arrendamento, a condenação do R. na entrega imediata da fração em análise livre e devoluta de pessoas e bens e em bom estado de conservação e perfeitas condições e ainda a condenação do R. no pagamento de uma indemnização à razão de € 500,00 por mês, desde Janeiro de 2018, até à efetiva entrega do imóvel e de uma outra indemnização ainda a quantificar, por eventuais danos na fração ou pela sua eventual deterioração; 2- Ora, na presente providência cautelar comum e não especificada, a causa de pedir é, alegadamente, o facto de o requerido utilizar o imóvel em causa nos autos, aí vivendo, sem título para tal, que não existe fornecimento de água ou eletricidade ao andar em causa e que do mesmo emana mau cheiro e que o mesmo provém de falta de higiene e acumulação de lixo no seu interior pelo requerido, alegando-se ainda que de tal falta de higiene podem decorrer inúmeros danos para o andar em causa, cuja reparação o Requerente não consiga, em termos económicos, pagar e/ou mesmo risco de incêndio e riscos para a saúde dos demais utentes do prédio, por eventual risco, também, de pragas; 3- Ou seja, como bem se vê, a causa de pedir na ação principal é distinta da causa de pedir no presente procedimento cautelar; 4- Pelo que, considerando que a causa de pedir na ação principal é distinta da causa de pedir nesta providência, é, só por esta razão e sem necessidade de outro fundamento, de indeferir liminarmente e sem sequer necessidade de produção de prova o decretamento da mesma, o que, subsidiariamente e ad cavendum, se requer a V. Excia. se digne determinar, caso proceda o recurso principal, o que não se admite e apenas se refere por mera questão de raciocínio; Da necessidade prévia de aferir a vigência ou não de contrato de arrendamento e do erro na forma de processo invocado na contestação 5- Na contestação à ação principal o ali R. defende a existência de um contrato de arrendamento em vigor, invocando que, em consequência, a forma processual adequada na ação principal sub judice é a ação de despejo e não a “Ação de Processo Comum” utilizada pelo ali A.; 6- Sendo que a ação de despejo confere ao R. maiores garantias, designadamente e por exemplo, em sede de eventual necessidade de recurso pelo que não podem ser aproveitados quaisquer atos por aplicação do n.º 2, do artigo 193º, do CPC; 7- Concluindo na ação principal que deve ser reconhecida a arguida nulidade principal (erro na forma do processo), com as legais consequências; 8- Há, pois, que determinar antes do mais se o contrato de arrendamento caducou ou não, o que só se conseguirá em sede de produção de prova em sede de julgamento na ação principal, pois se o R. provar que o contrato de arrendamento está em vigor, uma vez que o A. o reconheceu como arrendatário como já se alegou e se provará, a ação a intentar será uma ação de despejo; 9- Assim e enquanto tal não suceder, não pode ser restituída a posse ao A./Requerente, porque o R./Requerido, nesse caso, será legítimo arrendatário com título para esse efeito, não tendo que devolver o locado. Subsidiariamente – Diferimento de Ocupação do locado (ad cavendum) 10- Nos termos dos artigos 864º e 865º, do CPC (ex vi artigo 15º-M, da Lei n.º 6/2006, de 27/02, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 56/2023, de 06/10), caso o recurso seja procedente, o Requerido requer o diferimento de desocupação do imóvel locado pelo período máximo permitido por Lei. Termos em que deve ser mantida a decisão recorrida, assim se fazendo a costumada Justiça! Subsidiariamente e caso assim não se entenda, deve, em qualquer caso, ser indeferida a providência cautelar, por proceder o recurso subordinado, por qualquer dos fundamentos supra invocados per si. Finalmente e caso assim não se entenda, o Requerido requer o diferimento de desocupação do imóvel locado pelo período máximo permitido por Lei, nos termos dos artigos 864º e 865º, do CPC, ex vi artigo 15º-M, da Lei n.º 6/2006, de 27/02, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 56/2023, de 06/10. QUESTÕES A DECIDIR Nos termos dos Artigos 635º, nº4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2] Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes: i. Admissibilidade da junção do documento na apelação; ii. Impugnação da decisão da matéria de facto; iii. Recurso subordinado; iv. Diferimento da desocupação do imóvel. Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir. A jurisprudência citada neste acórdão sem menção da origem encontra-se publicada em www.dgsi.pt. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade: 1 - Por acordo reduzido a escrito e datado de 25 de Maio de 1968, AG - na então qualidade de senhorio e primitivo proprietário - acordou com CD - na qualidade de inquilino -, casado, o arrendamento do 1º Esq. do prédio sito na (...), Lote 1, em (...), para habitação do segundo, pelo prazo de seis meses, com início no dia 1.6.1968, supondo-se sucessivamente renovado por iguais períodos e nas mesmas condições, contra o pagamento da quantia mensal de 1.110$00. 2 - A propriedade da fração autónoma designada pela letra “E”, correspondente ao primeiro andar esquerdo do prédio sito na Rua (...), nº 1, em (...), em (...) - descrito sob o nº (...)/19850218 da freguesia de (...), concelho de (...), inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artº (...) - encontra-se registada a favor do Autor, por doação de JS, através da Ap. 19, de 21.1.2003. 3 – I… faleceu, no estado de divorciada de CD, no dia 25.6.2017, tendo sido feito constar da respetiva certidão de óbito ser a sua última residência habitual na Rua (...), nº 1, 1º Esqdº, em (...). 4 - Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de (...) sito na Rua (...), nº 8-C, em (...), MF, BL e MB declararam, além do mais, o seguinte a) “... terem perfeito conhecimento de que, posteriormente, no dia 25 de Junho de 2017, na freguesia de Alvalade, concelho de (...), faleceu I…, no estado de divorciada de CD, natural que foi da freguesia do Socorro, concelho de (...), a qual teve a sua última residência habitual na Rua (...), nº 1, 1º andar esquerdo, (...), (...). “ b) “que a falecida não fez testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, e sucedeu-lhe como única herdeira legitimária, sua filha VP, casada com PP, sob o regime da comunhão de adquiridos, natural da freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de (...), domiciliada na Rua …, em (...) “; c) que “o restante filho da falecida, CD, solteiro, maior, natural da freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de (...), reside habitualmente na Rua (...), nº 1, primeiro andar esquerdo, (...), (...), não tendo descendentes, repudiou a herança de sua mãe ), conforme escritura de repúdio lavrada neste Cartório no dia vinte de Dezembro de dois mil e dezassete, a fls. cento e trinta e oito do livro de notas para escrituras diversas número cinquenta e seis-A. “ d) “que não existem outras pessoas que, segundo a lei, possam concorrer com a indicada herdeira na sucessão por morte da falecida I….” 5 - O aqui requerente instaurou contra o aqui requerido, em 23.10.2018, ação declarativa de condenação, sob a forma comum, pedindo: a) a sua declaração como dono e legítimo proprietário da fração autónoma identificada em 2; b) a declaração da caducidade do contrato de arrendamento celebrado em 1 de Junho de 1968, por morte da locatária, nos termos e ao abrigo do disposto na al. d) do artº 1051 do NRAU; c) a condenação do Réu a restituir-lhe a aludida fração autónoma, devoluta de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições; d) a condenação do Réu no pagamento, ao demandante, de uma indemnização no montante de 5.000,00 Euros correspondente ao valor devido pela ocupação do imóvel desde Janeiro de 2018 até à data da entrada em juízo da p. inicial; e) a condenação do Réu no pagamento das quantias vincendas até à efetiva restituição da fração, livre e devoluta de pessoas e bens, as quais se contabilizam no valor mensal de 500,00 Euros e, f) a condenação do Réu no pagamento de uma indemnização a título de eventuais danos causados pela utilização indevida e deterioração da referida fração autónoma, em quantia a determinar em execução de sentença. 6 - Na ação aludida em 5 , o aqui requerido apresentou contestação, arguindo, além do mais, a subsistência do contrato de arrendamento por sempre ter vivido com os pais no andar em causa nos autos e, após, só com sua mãe e, depois da morte desta, sozinho e por o Autor ter reconhecido o mesmo como locatário, ao receber as rendas, que refere ter sempre liquidado, pugnando pela improcedência da lide. 7 - Na ação aludida em 5 e 6, a realização da audiência final encontra-se designada para o próximo dia 16.5.2025. 8 - Com data de 28.8.2024, a 3ª Divisão Policial de (...) lavrou participação da qual fez constar ter sido chamada ao prédio sito na Rua (...), nº 1 e ao 1º Esquerdo do mesmo, por haver notícia de possível cadáver e que, contactada a pessoa que se encontrava a fazer a limpeza do condomínio, pela mesma foi dito ter sentido um cheiro nauseabundo proveniente da habitação do 1º andar esquerdo do prédio. 9 - Da mesma participação foi ainda feito constar ter sido dito ao agente policial, por uma vizinha do prédio, que no 1º Esq. vive um senhor chamado CD, que não via há cerca de um mês e que se verificava um cheiro a podre e a decomposição vindo do seu interior e que, por isso, foram chamados e acionados os Bombeiros Sapadores de (...), que compareceram e que se introduziram no interior da residência correspondente pelo meio de escalamento através de uma janela que se encontrava aberta, fazendo-o sem qualquer tipo de danos e que os mesmos verificaram não se encontrar ninguém no interior do andar. 10 - Da referida participação policial foi ainda feito constar que a porta do 1º andar do prédio em causa se encontrava fechada no trinco e, por isso, não foi possível localizar as chaves correspondentes e que os bombeiros informaram o agente policial que o motivo do forte odor era devido a acumulação de lixo, falta de limpeza e cuidado higiénico por parte de quem lá habita. 11 - Ao auto de participação aludido em 8 e segs. foi elaborado aditamento, do qual foi feito constar que no dia 7.9.2024 compareceu na 3ª Divisão Policial de (...) o aqui requerente, informando ser proprietário do aludido 1º andar esquerdo do prédio sito na Rua (...), nº 1, em (...) e que o mesmo elaborou requerimento a pedir certidão da ocorrência referida em 8 a 10, para entrega em tribunal. 12 - Na sequência de reclamação do aqui requerente, a Delegada de Saúde da Unidade de Saúde Pública, acompanhada de duas técnicas de saúde ambiental, deslocaram-se, no dia 17 de Setembro de 2024, ao prédio em causa nos autos a fim de efetuar uma vistoria higieno-sanitária para averiguar se a situação habitacional, no 1º Esqdº do prédio aludido, constituía algum risco ou perigo para a saúde pública. 13 - No dia aludido em 12, por o requerido se encontrar em parte incerta, foi chamada a Policia de Segurança Pública de (...), para apurar o seu paradeiro e tentar que abrisse a porta, de modo a permitir o acesso à habitação e que já o haviam previamente contactado para que, em tal data, abrisse a porta e que, por o mesmo ali não estar, não foi possível o acesso ao 1º Esqdº do prédio em questão nos autos e que o requerido entrou no prédio e que o mesmo, ao verificar os elementos que iriam levar a cabo a vistoria à porta da fração por si ocupada, fugiu. 14 - Do parecer técnico elaborado pela Delegada de Saúde e pela mesma assinada, bem como pelas técnicas de saúde intervenientes na tentativa de vistoria ao andar em causa nos autos Pública foi feito constar que existia mau cheiro proveniente da grela de ventilação e frestas da porta e de que deveriam ser feitas as diligências necessárias para facultar o acesso ao interior da mesma fração autónoma, permitindo a sua necessária avaliação. 15 - O fornecimento de água e eletricidade ao 1º andar Esqdº do prédio sito na Rua (...), nº 1, em (...) está ou já esteve cortado, desde data não apurada e ou por tempo não apurado. 16 - O requerido encontra-se inscrito como candidato a emprego no Serviço de Emprego de (...) do Instituto do Emprego e Formação Profissional desde 15.11.2024, na situação de desempregado à procura de novo emprego. 17 - O requerido aufere Rendimento Social de Inserção no valor mensal de 237,25 Euros, desde data não concretamente apurada de 2019. * B) Não se mostram provados os seguintes factos: - os factos constantes dos artºs 25º a 30º, 32º e 33º da p. inicial. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Admissibilidade da junção do documento com a apelação. O apelante junta com as alegações um documento emitido pelo Serviço Municipal de Proteção Civil, correspondendo ao relato de uma ocorrência em 24.1.2025, atinente a uma deslocação ao apartamento dos autos. Nas alegações, o apelante justifica a junção nestes termos: «Acresce que após a prolação da sentença, o Apelante teve conhecimento que, no dia 24 de Janeiro de 2025, os Serviços Municipalizados da Proteção Civil da Câmara Municipal de (...), deslocaram-se à fração autónoma em apreço, na sequência da abertura de porta sem socorro, tento constatado às condições de insalubridade existentes no local conforme se alcança do doc. n.º 1 que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos. Tal documento não pode ser junto aos autos anteriormente, uma vez que, o mesmo apenas foi emitido no dia 27 de Janeiro de 2025. Ora, tal documento conjugado com as regras da ciência, da lógica e da experiência comum, conduz à alteração da factualidade não provada, pois dele resulta a falta de condições de higiene e o estado de degradação em que o imóvel se encontra.» Nos termos do Artigo 651º, nº1, do Código de Processo Civil, «As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.» Por sua vez, o Artigo 425º do Código de Processo Civil dispõe que «Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.» No que tange à impossibilidade de apresentação anterior, afirmam Lebre de Freitas et al, Código de Processo Civil Anotado, 2º Vol., Coimbra Editora, 2001, p. 426, que «Constituem exemplos de impossibilidade de apresentação o de o documento se encontrar em poder de terceiro, que só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida [superveniência objetiva] ou de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento [superveniência subjetiva]. Nos dois primeiros casos, será necessário que se tenham esgotado anteriormente os meios dos arts. 531 a 537 [atuais Artigos 432º a 437º do Código de Processo Civil].» Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, p. 265, afirma que: «Os documentos apresentados referem-se a factos já trazidos ao processo, nos articulados normais ou nos articulados supervenientes (cf. artigos 588º e ss.). Portanto, a regra é a de que os documentos supervenientes não trazem ao processo factos supervenientes.» Quanto à necessidade da junção em virtude do julgamento da primeira instância (Artigo 651º, nº1), «a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida» - Antunes Varela et al, Manual de Processo Civil, 2ª Ed., pp. 533-534. Ainda na doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 2022, 7ª ed., pp. 286-287, afirma que: «Podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo. / A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.» rcia objetiva]alves Rocha, 174/08, que «(..»is ou nos articulados supervenientes ( cf. Refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.9.2012, Gonçalves Rocha, 174/08, que «(…) a junção de documentos às alegações da apelação só poderá ter lugar se a decisão da 1ª instância criar pela 1ª vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam.»[3] Visa-se abranger as situações que - pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação - tornaram necessário provar determinados factos, cuja relevância a parte não podia, razoavelmente, ter em consideração antes da decisão ter sido proferida.[4] No caso em apreço, ocorre uma situação de superveniência objetiva do documento porquanto o mesmo foi emitido após a prolação da sentença em primeira instância, admitindo-se que o mesmo possa relevar na apreciação de mérito. Termos em que se admite a respetiva junção. Impugnação da decisão da matéria de facto O apelante pretende que sejam aditados oito factos à matéria de facto, a saber: 1. Não pagando qualquer contrapartida pela ocupação do imóvel ao aqui Requerente; 2. Pelas regras de experiência, a manter-se a ocupação do imóvel pelo Requerido, o estado de degradação poderá agravar-se, sendo a sua recuperação irreversível; 3. Existe risco de incêndio, da fração e do prédio, face ao lixo que se encontra acumulado no seu interior; 4. A falta de água poderá conduzir à falência do sistema de saneamento da fração autónoma em apreço e de todo o prédio; 5. A acumulação de lixo no interior do imóvel é propícia ao aparecimento de animais rastejantes, insetos, bactérias e odores, sendo prejudicial para a saúde e bem-estar de todos os moradores do prédio; 6. O uso que o Requerido está a fazer do imóvel põe em perigo a saúde e segurança de todos os moradores do prédio, bem como a própria integridade do bem; 7. O uso que o Requerido está a fazer do imóvel torna a sua reparação mais complexa e dispendiosa para o Requerente; 8. A manter o Requerido o uso do imóvel tal acarretará danos graves ou até irreparáveis no imóvel e quiçá no próprio prédio do qual faz parte integrante. Esses oito factos foram expressamente alegados nos artigos 14º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 32º e 33º da petição inicial. O tribunal a quo considerou não provados os factos alegados nos artigos 25º a 30º, 32º e 33º da petição inicial, fundamentando nestes termos: «Por seu turno, a não prova dos factos elencados em B) supra decorre do seguinte circunstancialismo: a) da circunstância de, de per si, da acumulação de lixo no interior da fracção e ou do não fornecimento de água ou electricidade à mesma não decorrer, de forma clara e necessária, qualquer dano irreversível - previsível ou provável - para o imóvel por depender, de forma clara, da sua eventual manutenção ou não - que se ignora - e se não vislumbrar como da falta de água ou de electricidade no seu interior possa advir o risco de incêndio do andar e ou de falência do sistema de saneamento deste e/ou do prédio e da respectiva instalação eléctrica, paredes, soalhos, loiças sanitárias e móveis de cozinha. Na verdade, não se consegue compreender a alegação de que a falta de fornecimento de água ou electricidade ao andar pode, sem mais, ser geradora da mencionada falência do sistema de saneamento e ou provocar risco de incêndio pois é normal, em casas não habitadas, que não se efectue tal fornecimento de bens essenciais e não há noticia da ocorrência de tais riscos nas mesmas, por si só e por tal facto. Por outro lado, o mesmo se diga da probabilidade de ocorrência de pragas de rastejantes no andar e ou no prédio, pois dependerá da manutenção ou não da aludida acumulação de lixo e ou sujidade sendo que, porém, a verificar-se, tal pode, efectivamente ocorrer e, no mais, por se não ver como as loiças sanitárias, soalhos e ou paredes poderão, sem mais, danificar-se ou ficarem destruídas por tal acumulação de lixo ou falta de limpeza do andar.» Note-se que o Tribunal a quo proferiu saneador-sentença, após contraditório, sem produção de prova, argumentando que «pese embora a existência de factos controvertidos, a decisão da excepção pelo requerido arguida e o mérito do presente procedimento cautelar depende, no essencial, de meras questões de direito, pelo que se passa a proferir decisão final, dispensando a produção da prova testemunhal, em conformidade com o disposto no art.º 367, nº 1 do C. P. Civil». Não acompanhamos, de todo, o raciocínio do tribunal a quo conducente à dispensa da produção de prova. Comecemos por recordar os requisitos do procedimento cautelar comum. Nos termos do Art.º 362º do Código de Processo Civil, a providência cautelar não especificada tem os seguintes requisitos cumulativos: a) Possibilidade séria da existência de um direito segundo um juízo de probabilidade ou verosimilhança - Art.º 362º, nº 1, do Código de Processo Civil; b) Justo e fundado receio de que outrem lhe cause lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora) segundo um juízo de realidade ou de certeza; c) Não estar a providência a obter abrangida por qualquer das outras providências cautelares do Código de Processo Civil (Art. 362º, nº3, do Código de Processo Civil); d) Adequação da providência solicitada para evitar a lesão; e) Não exceder o prejuízo resultantes da providência o dano que com ela se quer evitar. O procedimento cautelar tem como pressupostos gerais: a) A probabilidade séria da existência do direito ou interesse juridicamente tutelado (fumus boni juris), cuja prova basta ser sumária, constituir uma simples justificação ou um juízo de verosimilhança [5], expressões que pretendem significar que, para a prova do direito do requerente, basta uma constatação objetiva da grande probabilidade de que exista. Para o decretamento «da providência, basta a verosimilhança da existência do direito acautelado (art. 368º, nº 1); a lei fala equivocadamente de probabilidade séria da existência do direito acautelado, dado que a probabilidade é apenas um dos meios para atingir aquela verosimilhança» (João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, p. 591). Na conceção deste autor, a verosimilhança «relaciona a aparência de um facto com a verdade do facto: pretende determinar-se se a aparência é semelhante à verdade» (Teixeira de Sousa, A Prova em Processo Civil, Ensaio Sobre o Raciocínio Probatório, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2020, p. 82). b) O receio, suficientemente justificado, de lesão grave e dificilmente reparável desse direito ou interesse (periculum in mora). O «periculum in mora refere-se ao perigo no retardamento da tutela jurisdicional, procurando-se evitar que, por causa do tempo necessário para o julgamento definitivo de mérito da causa, o direito que se pretende fazer valer em juízo acabe por ficar irremediavelmente comprometido. Caberá, assim ao requerente “provar que não pode aguardar a decisão do processo principal sem sofrer um prejuízo de consequências graves e irreparáveis» (Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2015, pp. 200-201). Na síntese de Rita Lynce de Faria, A Tutela Cautelar Antecipatória no Processo Civil Português, UCE, 2016, p. 132, «a providência cautelar previne um dano com uma fonte muito específica: aquele dano que pode resultar da demora da ação judicial, e não o dano de que qualquer direito é suscetível de padecer e que encontra tutela adequada no direito de ação principal.» O periculum in mora «não é aferido em função de uma prognose sobre a ressarcibilidade futura da lesão de um direito, mas antes em função do prejuízo decorrente da falta de uma tutela imediata, ainda que provisória, para esse direito» (Teixeira de Sousa, CPC Online, art. 362º a 409º, Versão de 2024/11, p. 9). Para a prova deste requisito exige-se um juízo de certeza sobre a sua realidade, ou seja, o requisito do justo receio do prejuízo tem de apresentar-se como evidente e real [6]. O receio tem de provir de factos que atestem perigos reais e certos, relevando tudo de uma apreciação ponderada regida por critérios de objetividade e de normalidade. No que tange ao primeiro requisito, a prova do mesmo basta-se com um juízo de verosimilhança, o qual não pode ser preterido sem mais face à invocação do autor da caducidade do contrato de arrendamento que vigorou com a falecida mãe do requerido, tratando-se de factualidade objetiva. Quanto ao segundo requisito, a factualidade alegada pelo autor nos artigos 25º a 29º, 32º e 33º da petição (e que o apelante pretendem que sejam aditados) a provar-se, total ou parcialmente, poderá constituir arrimo suficiente para a verficação de tal requisito. O que está em causa é a verificação de lesão grave e dificilmente reparável na esfera jurídica do autor, no interim que vai até à prolação da decisão final, ou seja, o prejuízo que o autor pode sofrer pela falta de uma tutela imediata do seu direito (cf. supra). Neste circunspecto, o tribunal a quo considerou desde logo tal factualidade como não provada, arrimando-se na antecipação de um juízo de verosimilitude sobre tal factualidade, prescindindo da produção da prova. Este procedimento é incorreto. Conforme se refere em Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 4ª ed., pp. 165-166: «É verosímil o que corresponde à normalidade de um certo tipo de condutas ou de acontecimentos. É verosímil o que corresponde ao id quod plerumque accidit. «Um facto alegado é verosímil na medida em que o mesmo é previsível como situação recorrente segundo um critério de normalidade.»[7] Por exemplo, se o porteiro recolhe habitualmente o lixo às terças, quintas e sábados às 20.30 horas, é verosímil que o mesmo evento se repita no futuro. Desta noção decorrem várias consequências, designadamente: (i) Para que possa considerar-se verosímil um enunciado relativo a um evento, é necessário dispor de um conhecimento de fundo relativo à normalidade com que decorre tal evento; (ii) Não existe coincidência entre verosimilitude e verdade. Um facto verosímil pode não ter ocorrido por qualquer razão. No sábado y, o porteiro não foi recolher o lixo porque estava doente, no nosso exemplo. E, em sentido contrário, pode ter ocorrido, ser verdadeiro um enunciado que parece inverosímil porque não corresponde a nenhum critério de normalidade. Continuando com o mesmo exemplo, o lixo foi recolhido no domingo z pelo vizinho da frente que presenciou um crime, aquando da recolha. Como sintetiza michele taruffo, «(…) a verosimilitude ou a inverosimilitude de um enunciado são irrelevantes do ponto de vista da verdade ou falsidade do mesmo. Isto implica que em qualquer circunstância em que seja necessário determinar se um enunciado de facto é verdadeiro ou é falso, há necessidade de nos basearmos em prova e não num juízo de verosimilitude: só as provas podem demonstrar que o que parece verosímil é também verdadeiro, ou então falso, e o que parece inverosímil é também falso , ou então é verdadeiro.»[8] Também Antonio carrata assinala que o juiz considera verosímil uma determinada alegação factual sem passar pelo concreto controlo probatório, mas simplesmente valorando se uma determinada alegação entra, ou não, na área de operatividade de uma determinada máxima de experiência.[9] É comum pensar-se que o que é verosímil também é provável, o que sem mais constitui um equívoco. A noção de probabilidade respeita à existência de razões válidas para julgar um enunciado como verdadeiro ou como falso. A probabilidade reporta-se a um particular grau de confirmação probatória de uma asserção de facto.[10] Enquanto a probabilidade fornece informações sobre a verdade ou falsidade de um enunciado, a verosimilitude reporta-se apenas à eventual normalidade do que o enunciado descreve.» O tribunal a quo quedou-se por uma análise sobre a verosimilitude da aludida factualidade, prescindindo da produção de prova sobre a mesma. A aquisição da verdade processual não se esgota numa pré-análise da verosimilitude das alegações, exigindo a produção de prova para tanto indicada pelas partes. O que é verosímil pode não provar-se e o que, numa primeira leitura, possa ser pouco verosímil pode, afinal, demonstrar-se. Só após a produção da prova é que o tribunal estará na posse de todos os elementos necessários ou possíveis para a prolação da decisão. Ao prescindir da produção da prova, o tribunal a quo incorreu numa nulidade, e estando esta diretamente consubstanciada na prolação da decisão, há que anular a sentença para que seja produzida a prova arrolada pelas partes (cf. Artigos 195º, nº1, 662º, nº2, al. c), in fine). O tribunal a quo entendeu, ainda, que não se verifica o último dos requisitos do procedimento cautelar comum nestes termos: « (…) sempre se dirá que, ainda que se não entendesse como supra se referiu, sempre a presente situação económica do requerente - inscrito como desempregado à procura de emprego e beneficiário de rendimento social de inserção, inferior a 240,00 Euros mensal – levaria à conclusão da verificação de causa determinante para o não decretamento do procedimento cautelar por do mesmo decorrer, necessariamente, um maior prejuízo para o requerido do que aquele que para o requerente decorrerá da sua improcedência por este, a proceder a ação principal, ter direito, até à entrega do imóvel, a uma indemnização do requerido em consequência da sua alegada ocupação ilegítima.» Também aqui não acompanhamos o raciocínio expendido. O direito à habitação consagrado constitucionalmente não constitui um direito absoluto, que permita ao particular exercitá-lo em autotutela contra terceiros, incluindo contra o autor. A este propósito, releva a seguinte jurisprudência do Tribunal Constitucional. Acórdão nº 269/2019: «Integrado no catálogo dos direitos económicos, sociais e culturais, o artigo 65.º da Constituição dispõe, no respetivo n.º 1, o seguinte: «Artigo 65.º (Habitação e urbanismo) Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar. Tendo por conteúdo «o direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família» (Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Volume I, (...), Universidade Católica Portuguesa, 2017, p. 958 e ss.), o direito à habitação encontra-se consagrado como um direito social, que a Constituição acolhe numa dupla dimensão, isto é, enquanto direito que gera para o Estado tanto o dever de omitir as ações suscetíveis de o comprometer ou afetar, como ainda a obrigação de promovê-lo e protegê-lo, através da criação e manutenção dos pressupostos de facto e de direito necessários à respetiva defesa e satisfação (neste sentido, sobre a dupla função vinculativa dos direitos fundamentais, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 1991, p. 139). Nesta última aceção — de resto, pacífica na jurisprudência deste Tribunal (cf. Acórdãos n.º 130/92, 131/92, 806/93, 32/97 e 590/04) —, o direito fundamental à habitação apresenta-se como um direito a ações positivas do Estado, nas quais vão incluídas quer as prestações fácticas quer as prestações normativas necessárias a assegurar a todos, por via da propriedade ou do arrendamento, a obtenção e conservação de uma «morada decente, para si e para a sua família» (Acórdão n.º 151/92). Encontrando-se o legislador ordinário constitucionalmente vinculado à edição de normas de promoção e proteção do direito à habitação, o regime jurídico do arrendamento urbano, atualmente constante do NRAU, inscreve-se justamente no âmbito instrumentos de direito ordinário mobilizados para aquele fim. Ora, no âmbito da concretização, através dos institutos de direito ordinário, dos chamados imperativos jurídico-constitucionais de tutela, o legislador dispõe, em regra, de um amplo espaço de livre apreciação, valoração e modelação dos instrumentos escolhidos em ordem à realização daquele desiderato. No domínio da tutela infraconstitucional do direito à habitação, este amplo espaço de conformação que assiste ao legislador ordinário foi já por diversas vezes sublinhado na jurisprudência deste Tribunal. Como se escreveu logo no Acórdão n.º 130/92: «O “direito à habitação”, ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II (direitos e deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos, sociais e culturais) da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas ações ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos nºs 2 a 4 do artigo 65º da Constituição (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 680 - 682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efetividade está dependente da chamada "reserva do possível" (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais [cfr. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365, e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - "Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia" - 1984, Coimbra, 1989, p. 26; J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 19(...) (Reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, p. 199 ss., 343 ss.]». A mesma ideia foi subsequentemente desenvolvida no Acórdão n.º 806/93, aresto no qual pode ler-se o seguinte: «A conceção constitucional quanto à efetivação do direito à habitação é, assim, uma conceção «plural» ou «aberta» quanto aos meios, que tanto pode ser canalizada na promoção e regulação da oferta habitacional, como da sua procura. […] [E]stá em causa uma pura opção de política social, adotada ao abrigo da liberdade que assiste ao legislador, dentro dos limites constitucionalmente estabelecidos. Não pode, pois, um juízo de constitucionalidade incidir sobre as finalidades dessa política, mas tão somente sobre o confronto dos normativos que a corporizam com os pertinentes preceitos constitucionais». Para além da ampla liberdade de conformação no âmbito estabelecimento do regime jurídico mais adequado à concretização do direito à habitação, o legislador goza ainda da faculdade de modificar tal regime ao longo do tempo, revendo as opções legislativas tomadas em cada momento histórico. Uma vez que «em nenhum dos diversos números do artigo 65.º da Constituição, designadamente nas três alíneas do n.º 2, é cometida ao Estado uma tarefa da qual resulte, de alguma forma, a obrigação geral de manter soluções jurídicas anteriormente estabelecidas […]» (Acórdão n.º 465/01), o legislador não se encontra constitucionalmente impedido, em matéria de arrendamento para habitação, de ajustar os instrumentos de tutela à conjuntura, económica e social, presente em cada momento, mesmo que em aparente retrocesso da situação dos inquilinos existentes. Até porque, como nota Rui Medeiros, «mesmo existindo um aparente retrocesso na perspetiva da situação dos inquilinos existentes, uma conclusão definitiva no sentido da verificação de um retrocesso só pode ser alcançada depois da ponderação, para além da situação dos próprios senhorios, dos efeitos das medidas em causa sobre o mercado do arrendamento em geral» (ob. cit., p. 960).» Acórdão nº 612/2019: «Tal como outros direitos sociais, o conteúdo deste direito desdobra-se numa dupla vertente: por um lado, uma vertente de natureza negativa, que se traduz no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de atos que prejudiquem tal direito; por outro lado, uma vertente de natureza positiva, correspondente ao direito a medidas e prestações estaduais visando a sua promoção e proteção. Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (cf. Constituição…, cit., pág. 834), tal direito: «Consiste, por um lado, no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste a forma de “direito negativo”, ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos “direitos, liberdades e garantias” (cfr. art. 17º). Por outro lado, o direito à habitação consiste no direito a obtê-la por via de propriedade ou arrendamento, traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objetivo. Neste sentido, o direito à habitação apresenta-se como verdadeiro e próprio “direito social”.» É esta vertente de direito social que implica um conjunto de obrigações positivas por parte do Estado, legitimando pretensões a determinadas prestações, que vem acentuada no artigo 65.º da CRP, particularmente nos seus n.ºs 2 a 4. Significa isto que, sendo o direito à habitação configurado como um direito à proteção do Estado, as pretensões nele fundadas não têm como destinatários diretos os particulares, nas relações entre si, mas antes o Estado, as regiões autónomas e as autarquias, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito. A garantia de tal direito envolve, deste modo, a adoção de medidas no sentido de possibilitar aos cidadãos o acesso a habitação própria (cf. o n.º 3 do artigo 65.º da CRP). Contudo, o mesmo direito não se esgota nem se identifica com o direito a ser proprietário de um imóvel onde se tenha a habitação, sendo realizável também por outras vias, designadamente através do arrendamento. Neste mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 649/99, salientando, por um lado, que «o direito à habitação não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que de modo primordial ou a título principal, para o “direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão”» e, por outro, «que o “mínimo de garantia” desse direito (ou seja, o de obter habitação própria ou de obter habitação por arrendamento “em condições compatíveis com os rendimentos das famílias”) é algo que se impõe como obrigação, não aos particulares, mas sim ao Estado». Daí que, conforme referem ainda Gomes Canotilho e Vital Moreira (cf. Constituição…, cit., pág. 836), incumba ao Estado «garantir os meios que facilitem o acesso à habitação própria (fornecimento de terrenos urbanizados, crédito acessível à generalidade das pessoas, direito de preferência na aquisição da casa arrendada, etc.) e que fomentem a oferta de casas para arrendar, acompanhada de meios de controlo e limitação das rendas (subsídios públicos às famílias mais carenciadas, criação de um parque imobiliário público com rendas limitadas, etc.).». Assim, embora o direito à habitação possa justificar limitações à propriedade, tais limitações terão de obedecer sempre a um princípio de equidade e de proporcionalidade, sem que se perca de vista, no entanto, que o direito à habitação constitucionalmente garantido, na sua vertente positiva, tem como titulares passivos, em primeira linha, o Estado e os demais entes públicos territoriais, e não os particulares. Nessa medida, a consagração do direito fundamental à habitação «pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respetivo conteúdo, a efetivar-se segundo a “reserva do possível”, não conferindo, por si mesmo, habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e de conforto, com preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar, na medida em que isso sempre dependerá da concretização da tarefa constitucionalmente atribuída ao Estado» (cf. Acórdão n.º 829/96 e, neste mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 508/99 e 29/2000). Por outro lado, e tendo em conta a aludida vertente defensiva, está vedado ao legislador ordinário adotar soluções que impliquem a privação arbitrária, sem fundamento razoável, do direito a ter uma habitação condigna (cf., a este respeito, os Acórdãos n.ºs 4/96 e 402/2001). Mas o Tribunal Constitucional tem igualmente reconhecido que, nesta matéria, o legislador goza de um amplo espaço de conformação (cf., a este respeito, entre outros, o Acórdão n.º 806/93), conformação essa que a propósito da tutela da habitação própria permanente do executado, tem a vindo a ser exercida em diversas ocasiões.» Decorre desta jurisprudência que o direito à habitação constitui um direito a prestações positivas do Estado e de outros entes públicos territoriais, os quais são os seus sujeitos passivos, não sendo exercitável em via direta contra tais entidades e, muito menos, contra particulares. Sob a reserva do possível, cabe ao Estado desenvolver políticas que fomentem a habitação, designadamente para os mais carenciados. Trata-se de um direito à proteção do Estado e não de um direito a ocupar habitações sem título para tal. A consideração do prejuízo que, do eventual decretamento da providência, resulte para o requerido não passa necessariamente pelo bloqueio do direito do autor à tutela cautelar (caso este prove os requisitos suficientes para tal), mas sim pela aplicação do ordenamento jurídico no seu todo, o que pode implicar a aplicação analógica do regime do artigo 864º do Código de Processo Civil. Embora o diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação esteja previsto e regulado em sede de execução para entrega de coisa certa, nada obsta a que o mesmo seja aplicado por analogia em sede de procedimento cautelar comum, desde que as razões substantivas e de fundo que subjazem ao mesmo ocorram, comprovadamente, em sede de procedimento cautelar (cf. Artigo 10º, nº 2, do Código Civil). Tanto mais que o regime substantivo da ação/execução principal constitui a referência-limite do que pode ser obtido por via instrumental do procedimento cautelar. Recurso subordinado. Em sede de contra-alegações, o requerido veio expressamente interpor recurso subordinado, (i) reiterando argumentos no sentido da impossibilidade legal da providência correr por apenso, (ii) reiterando argumentos no sentido de que, na ação principal, ocorre um erro na forma do processo, havendo que aferir da vigência do contrato de arrendamento, (iii) subsidiariamente, formulando pedido de diferimento da “ocupação” (leia-se desocupação) do locado. Em primeiro lugar, o que o apelado deduz é uma ampliação do objeto do recurso (Artigo 636º, nº1) e não um recurso subordinado (Artigo 633º) porquanto, em primeira instância, o apelado não decaiu, muito pelo contrário. Assim, convola-se o denominado “recurso subordinado” em ampliação do âmbito do recurso (Artigo 193º, nº3, do Código de Processo Civil). Em segundo lugar, quanto à argumentação de que a causa de pedir na ação principal é distinta da causa de pedir neste procedimento cautelar, improcede a mesma, desde logo pela argumentação expendida corretamente pelo tribunal a quo. Não tem de existir uma coincidência absoluta entre a causa de pedir da ação principal e a do procedimento cautelar, tanto mais que o procedimento cautelar visa acautelar um dano específico, não sobreponível aos danos a acautelar na ação principal (cf. supra o que se disse a propósito do periculum in mora). Em terceiro lugar, a existência ou não de erro na forma de processo é questão a decidir na ação principal e que não é prejudicial do procedimento cautelar cujos requisitos são os acima enunciados, sendo que para a prova do fumus boni iuris basta a verosimilhança da existência do direito acautelado (cf. supra). Quanto ao pedido de diferimento de desocupação, já nos pronunciámos supra, tratando-se de questão que só poderá ser dirimida após a produção de prova. Custas No caso em apreço, a decisão a proferir é a da anulação da sentença, sendo que a essa anulação com o fundamento adotado não foi requerida por qualquer das partes em alegações ou contra-alegações. Assim, não opera o critério do vencimento previsto no Artigo 527º, nos. 1 e 2, do Código de Processo Civil. Também é imprestável o critério do proveito (Artigo 527º, nº1, parte final) porquanto não é conjeturável que progenitor será beneficiado pela decisão de anulação, ou seja, não pode divisar-se uma parte vencida em função da potencialidade desfavorável da decisão de anulação. Não operando os critérios do vencimento e do proveito, também não é admissível fixar as custas, na vertente de custas de parte, pela parte vencida a final.[11] Cremos que a solução adequada para a situação consistirá na aplicação analógica (Artigo 10º, nº1, do Código Civil) do Artigo 532º, nº3, do Código de Processo Civil, segundo o qual: «Quando todas as partes tenham o mesmo interesse na diligência ou não se consiga determinar quem é a parte interessada, são os encargos repartidos de modo igual entre as partes.» Recorde-se que «(…) se a razão subjacente ao regime do caso previsto for igualmente adequada para o caso omisso, então os casos são (juridicamente) análogos. É, aliás, o que é imposto pelo princípio da igualdade (cf. art. 13º CRP)» (Teixeira de Sousa, Introdução do Direito, Almedina, 2013, p. 402). E, mais adiante: «Dito de outra forma: o caso omisso só é análogo ao caso previsto quando os princípios que orientam a regulação do caso previsto puderem ser transpostos para a solução do caso omisso» (Op. Cit., p. 405). Cremos que é o caso. Com efeito, atento o teor da decisão de anulação (não peticionada nos termos decididos) e sendo, neste momento, impossível formular um juízo sobre quem beneficiará da mesma, as razões de equidade que justificam a repartição igualitária dos encargos (Artigo 532º, nº 3) são transponíveis para a solução da situação dos autos. DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em julgar em anular a sentença proferida, devendo os autos prosseguir com a produção de prova indicada pelas partes. Custas pelo apelante e pelo apelado, na vertente de custas de parte, em partes iguais (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil). Lisboa, 8.4.2025 Luís Filipe Pires de Sousa Luís Lameiras João Novais _______________________________________________________ [1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186. [2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140. Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge Leal, 331/21, de 11.6.2024, Leonel Serôdio, 7778/21, de 29.10.2024, Pinto Oliveira, 5295/22, de 13.2.2025, Luís Mendonça, 2620/23. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12). [3] No mesmo sentido, cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 24.4.2014, Manuel Bargado, 523/11, www.colectaneadejurisprudencia.com. [4] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.3.2013, Ana Resende, 371/09. [5] Cf., por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 3ª ed., p. 40. [6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.9.99, Garcia Marques, CJ AcSTJ 1999 – III, p. 47. [7] Michele de Maria, Delle Presunzioni Artt. 2727-2729, Giuffrè Editore, 2014, p. 121. [8] Simplemente la Verdad, El Juez y la Construcción de los Hechos, Marcial Pons, Madrid, 2010, p. 106. [9] “Prova e convincimento del giudice nel processo civile”, in Rivista di Diritto Processuale, Ano 2003, p. 45. [10] Michele de Maria, Delle Presunzioni Artt. 2727-2729, Giuffrè Editore, 2014, p. 122. [11] Cf., sobre esta abordagem, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6.2.2020, Carlos Castelo Branco, 2775/19, com citação de diversa jurisprudência nesse sentido. |