Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1289/23.2T8PDL-A.L1-2
Relator: RUTE SOBRAL
Descritores: PERSI
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):
I – A seleção dos factos provados deve, em regra, ponderar apenas os factos materiais e não as conclusões valorativas ou jurídicas que dos mesmos emergem, só excecionalmente podendo integrar conceitos jurídicos, quando os mesmos tenham passado a integrar a linguagem comum e não configurem o próprio objeto do processo
II –Mostrando-se controvertido o cumprimento pela instituição de crédito embargada/exequente das obrigações de integração em PERSI e da sua extinção, consagradas no Dl 227/2012, de 25-10, a decisão relativamente à observância de tal procedimento deverá extrair-se da factualidade material apurada.
III – Recai sobre a instituição de crédito embargada/exequente o ónus da prova do cumprimento das obrigações que para si decorrem do DL 227/2012, de 25-10, demonstrando, designadamente, as comunicações de integração e de extinção de PERSI, que constituem condições objetiva de procedibilidade da execução, consubstanciando, a sua ausência, exceção dilatória inominada geradora da extinção da instância executiva.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:

I - RELATÓRIO
1.1– A exequente “Banco Santander Totta, SA”, identificada nos autos, instaurou, em 23-05-2023, execução sumária contra a executada A…, também identificada nos autos, alegando ter sucedido ao “Banif – Banco Internacional do Funchal, SA”, por força de medida de resolução aplicada a tal instituição bancária pelo Banco de Portugal em 20-12-2015.
Mais alegou a exequente ser a atual titular de crédito que decorreu da celebração, em 09-06-2006, de contrato de mútuo com hipoteca entre o “Banif – Banco Internacional do Funchal, SA” e a executada, no valor de € 85.000,00, garantido por hipoteca sobre prédio da freguesia de Candelária, descrito sob o nº …2 na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo …03º.
Sucede que a executada cessou o pagamento das prestações devidas em 09-07-2022, não obstante a exequente ter encetado várias diligências para regularização dos pagamentos, cifrando-se a dívida exequenda, na data de 17-05-2023, na quantia de € 61.240,93, acrescida de juros vencidos até efetivo e integral pagamento.
1.2 – Por apenso a tais autos executivos, em 10-10-2023, a executada deduziu os presentes embargos, arguindo a sua falta de integração em Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), em violação da obrigação decorrente do artigo 14º do Dl 227/2012, de 25 de outubro, peticionando, em consequência, a sua absolvição da instância.
1.3 – Liminarmente admitida a oposição à execução mediante a dedução de embargos de executado, foi ordenada a notificação da exequente para apresentar contestação (despacho de 12-10-2023 – referência 55967973).
1.4 – A exequente contestou os embargos, alegando que a embargante/executada não contesta o incumprimento das obrigações que para ela decorriam da celebração do contrato de mútuo em causa, e que não lhe assiste razão ao invocar a falta de integração em PERSI, dado que tal integração ocorreu, conforme documentação junta aos autos, que comprova a extinção de PERSI, tendo ainda protestado juntar documentação comprovativa da integração da executada em PERSI, a qual, até à data de apresentação da contestação, não lhe fora possível localizar.
Concluiu a exequente/embargada pugnando pela improcedência dos embargos e pela prossecução da execução.
1.5 – Proferido despacho saneador, no qual se afirmou a regularidade da causa, foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova (despacho de 27-11-2023/referência 56252653).
1.6 - A exequente, por requerimento apresentado em 05-12-2023 (referência 47327643), requereu a junção aos autos de cópia de carta de integração da executada/embargante em PERSI, pronunciando-se esta impugnando o referido documento e negando o seu recebimento (referência 47340778).
1.7 – Admitida a junção de tal documento (despacho com a referência 56321002), foi realizada a audiência de julgamento, com produção de prova, após o que foi proferida decisão, em 08-01-2024, que julgou improcedentes os embargos e condenou a executada/embargante, como litigante de má fé, em multa de 6 UC (referência 56445333).
2 - Não se conformando com a decisão proferida, a executada/embargante da mesma interpôs recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que considere estar demonstrado o incumprimento pela exequente da obrigação da sua integração em PERSI, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
A) A sentença a quo julgou improcedente a exceção dilatória inominada, insuprível e de conhecimento oficioso, por falta de integração da embargante no PERSI e, consequentemente, improcedentes os embargos de executado deduzidos e ainda condenou a embargante como litigante de má-fé.
B) Acontece que, o Tribunal a quo carece de razão na sentença recorrida. E isto porque não foi apreciada de forma correta a prova produzida (ou falta dela), o que implicou uma incorreta aplicação do direito às situações de facto em concreto.
C) Uma vez que o que consta do ponto 10 da matéria de facto provada apenas contém afirmações genéricas, conclusivas ou matéria de direito, deve o que ali vem escrito ser, no seu todo, eliminado da matéria de facto provada.
D) Caso assim não entenda, dado que a embargada não fez prova da comunicação de integração no PERSI da embargante, bem como a de extinção do mesmo, em suporte duradouro (documento ou por qualquer outro meio de prova) em data posterior ao incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito que constitui título executivo nestes autos (o qual se verificou em 09/07/2022), deveriam ter sido considerados como não provados todos os factos indicados nos pontos 10° e parte inicial do ponto 11 onde se diz que: "Depois de a embargante ter recebido a carta de integração em PERSI (...) ", dos factos considerados como não provados na sentença.
E) Com a alteração à matéria de facto acima referida, constata-se que a embargante não foi, como era imperativo, integrada em PERSI.
F) Essa omissão impede a embargada de intentar ações judiciais, como é o presente caso (artigo 18.°, n.° 1, alínea b) do referido diploma legal).
G) A falta de integração no PERSI constitui uma exceção dilatória inominada, insuprível e de conhecimento oficioso.
H) Sendo a sua consequência legal a absolvição da instância, nos termos do artigo 576° do Código de Processo Civil.
1) Por conseguinte, deverá absolver-se a ora embargante por inexigibilidade da obrigação exequenda, porquanto não foi cumprido o PERSI - condição obrigatória para exigir o pagamento coercivo do crédito.
J) devendo a decisão proferida ser substituída por outra que julgue procedente a exceção dilatória inominada invocada pela recorrente julgando-a procedente e, em consequência, absolvendo a recorrente da instância e da condenação como litigante de má-fé, extinguindo a execução no seu todo.
L) O Tribunal recorrido ao decidir como decidiu violou os artigos 342°, 362° do Código Civil, artigos 2°, 12° a 18° do Decreto-Lei n.°227/2012, de 25 de outubro e artigos 576°, n.° 2, 577°, 578° e 726°, n.° 2 alínea b) todos do Código de Processo Civil.
Termos em que deverão ser declaradas procedentes, por provadas, as presentes alegações de recurso e, em consequência, ser revogada a douta Sentença aqui recorrida, substituindo-a por outra que julgue procedente a exceção dilatória inominada invocada pela recorrente julgando-a procedente e, em consequência, absolvendo a recorrente da instância e da condenação como litigante de má-fé, extinguindo a execução no seu todo, por assim ser de Justiça”
3. O exequente “Banco Santander Totta, SA” não apresentou contra-alegações.
4.  Foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
5.  Remetidos os autos a este tribunal em 02-04-2024, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Consequentemente, nos presentes autos, são as seguintes as questões a decidir:
- Impugnação da matéria de facto (considerando a recorrente que a prova produzida não demonstra a sua integração em PERSI em momento posterior ao do incumprimento das obrigações para si decorrentes do contrato de mútuo em discussão nos autos, contrariamente ao que, de forma conclusiva, ficou exarado no artigo 10º dos factos provados);
- Procedência da exceção dilatória inominada de falta de integração em PERSI, com a consequente absolvição da instância da embargante/executada e extinção da execução.
III - FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Foram os seguintes os factos que a decisão de primeira instância considerou provados:
1. A 23/05/2023, o Banco Santander Totta, S.A., intentou requerimento executivo contra A…, para pagamento do valor de 61 240,93€.
2. No exercício da sua atividade bancária, o Banco BANIF e Comercial dos Açores, S.A., celebrou com A…, a 09/06/2006, um contrato de mútuo com hipoteca no valor de 85.00,00 € (oitenta e cinco mil euros cêntimos), aditado em 08.12.2007, pelo prazo inicial de 540 (quinhentos e quarenta) meses.
3. Foi entregue à executada, no momento da celebração do mesmo, a quantia acima referida.
4. A executada não cumpriu com as obrigações a que se comprometeu e assumiu desde 09.07.2022, não tendo pago as prestações vencidas, nem as subsequentes.
5. A executada foi interpelada, por carta datada de 30.03.2023, para proceder ao pagamento e não regularizou a dívida, no prazo concedido, pelo que foi considerado o contrato resolvido.
6. Para garantia do capital mutuado, respetivos juros e demais despesas, a mutuária Executada constituiu, a favor da Exequente, hipoteca sob a prédio da freguesia de Candelária, descrito sob o n.º …62, na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada, com a matriz predial n.º …03.
7. A Executada é devedora, em 17.05.2023, quanto ao Mútuo com Hipoteca, da quantia global de € 61.240,93 (sessenta e um mil duzentos e quarenta euros e noventa e três cêntimos), acrescida dos juros vincendos contados desde 18.05.2023 até efetivo e integral pagamento.
8. Por força da deliberação extraordinária do Conselho de Administração do Banco de Portugal, no dia 20.12.2015 às 23h30, ao BANIF – Banco Internacional do Funchal, S.A., foi aplicada uma medida de resolução, mediante a qual foi determinado: d) Alienar ao Banco Santander Totta, S.A., os direitos e obrigações, que constituam ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão, do BANIF – Banco Internacional do Funchal, S.A., constantes do Anexo 3 À presente deliberação, nos termos do disposto no n.º1 do artigo 145º-M do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.”
9. Tal alienação teve execução imediata, sendo o atual titular do crédito sobre a aqui requerida o Banco Santander Torra, S.A.
10. Em momento anterior à resolução do contrato, a embargada/exequente integrou a embargante/executada em PERSI, na tentativa de que o incumprimento definitivo do contrato não se verificasse.
11. Depois de a embargante ter recebido a carta de integração em PERSI, foram mantidas diversas reuniões entre aquela e os funcionários da Embargada do Balcão de Calheta – Ponta Delgada onde, perante uma situação de incumprimento persistente, se tentou encontrar uma solução que permitisse à embargante regularizar a dívida que vinha mantendo (e mantém).
Considerou ainda o tribunal recorrido não terem ficado por demonstrar quaisquer factos com relevo para a decisão da causa.
Motivação do tribunal recorrido
O tribunal a quo, motivou a decisão de facto, nos seguintes termos:
“O Tribunal formou a sua convicção nas declarações prestadas pelas testemunhas B e C (bancários que transitaram do BANIF - Banco Internacional do Funchal, S.A., para o Banco Santander Totta, S.A.), conjugados com a prova documental, a saber: teor do requerimento executivo e respetivo título (escritura pública), ata do Banco de Portugal e cartas remetidas pela embargada/exequente à embargante/executada.
Tendo presentes estes meios de prova cumpre concretizar em que precisos termos se formou a convicção do Tribunal relativamente a cada um dos factos supra elencados.
Assim, desde logo, e no que respeita aos factos 1º a 9º, encontram-se comprovados documentalmente e por acordo.
Quanto aos factos 10º e 11º, a embargada/exequente juntou aos autos cartas de comunicação de integração no PERSI, bem como do seu encerramento. É certo que a mera junção aos autos de simples cartas de comunicação não faz prova suficiente de que as mesmas foram remetidas e rececionadas, contudo, e atento os depoimentos de B e C, tais documentos servem como principio de prova do cumprimento, pela exequente, das obrigações que sobre ela impediam relativamente à implementação do PERSI, conforme se passará a explicar.
Quer B quer C conhecem pessoalmente a embargante/executada há diversos anos, uma vez que trabalharam no balcão onde aquela era cliente e, após o encerramento do mesmo, transitaram para o balcão para onde a conta daquela também transitou, sendo que, por ser uma cliente que sempre registou um histórico de incumprimentos, foram diversas as vezes que mantiveram contactos com a mesma.
É certo que aqueles não podem assegurar o efetivo envio das comunicações referentes ao PERSI, e que foram juntos aos autos, mas, conforme nos disseram, tais comunicações saem automaticamente do sistema e são remetidas aos clientes, não havendo qualquer registo da sua devolução, sendo tal do seu conhecimento por fazer parte das funções diárias que desempenham há anos, sendo que, conforme também garantiram, nunca aquela comunicou qualquer alteração de morada (aliás, da própria morada que a mesma indica nos autos resulta que mantém a mesma) e até os contactou via telefónica quando recebeu a carta de resolução do contrato (também enviada pelo sistema e para a mesma morada).
Mais nos disseram tais testemunhas, de forma consentânea e clara, que, após a integração em PERSI, tentaram por diversas vezes marcar reuniões com a executada, o que só conseguiram após se deslocarem pessoalmente à loja que aquela explora, tendo tal reunião ocorrido em maio de 2022 e onde abordaram, efetivamente, o assunto do PERSI, da restruturação da divida e da possibilidade de pagamentos em prestações do montante em dívida. É certo que tal data é posterior à comunicação de encerramento do PERSI, mas, como nos explicou C, de uma forma objetiva, alicerçada numa longa experiência profissional, já há vários meses que andavam a tentar a reunião (B até se deslocou ao local de trabalho da executada!) e, mesmo após a extinção do PERSI, tinham o objetivo de que a cliente regularizasse a sua situação, não querendo avançar, para já, para a resolução do contrato. Também é certo que as comunicações relativas ao PERSI são anteriores à data de incumprimento indicada no requerimento executivo, mas, tal como nos referiram ambas testemunhas, tal justifica-se pela circunstância de, durante o PERSI, não considerarem o contrato incumprido, sendo que, até ao último momento, tentaram que a executada regularizasse os pagamentos, mas, tendo sido solicitados diversos documentos para a integração no PERSI, aquela nada entregou.
Pelo exposto, e atentas as comunicações juntas aos autos, o facto da morada da executada se ter mantido ao longo dos anos, o facto de ter recebido carta remetida posteriormente e contactado telefonicamente o Banco e atento aquilo que nos foi dito, de forma absolutamente clara pelas duas testemunhas que de forma próxima acompanharam a executada ao longo dos anos, apenas poderíamos considerar tais factos como provados.”
Impugnação da matéria de facto deduzida pela embargante/executada
Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto” estabelece o nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Já do nº 2 daquela norma resulta que:
“2- A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Por outro lado, a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso implica que o recorrente, nas alegações em que impugna a decisão relativa à matéria de facto, cumpra os ónus que o legislador estabeleceu a seu cargo, enunciados no artigo 640º CPC, com a seguinte redação:
“1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2-No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Por forma a cumprir os ónus legalmente estabelecidos a seu cargo para a impugnação da matéria de facto incumbe ao recorrente, no essencial, identificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (artigo 640º, nº 1, alínea a), CPC), os concretos meios probatórios que impunham, na sua perspetiva, decisão diversa (artigo 640º, nº 1, alínea b), CPC), indicando a decisão que deve ser proferida quanto aos factos impugnados (artigo 640º, nº 1, alínea c), CPC).
Expostas que estão as coordenadas relativas à impugnação da matéria de facto, procede-se, de seguida, à apreciação da que foi deduzida pela executada/embargante, dado que cumpriu os ónus legalmente estabelecidos a seu cargo para o efeito.
Considerou a recorrente que os meios de prova produzidos não permitem o apuramento da sua integração em PERSI, nem da sua extinção, pelo menos em data posterior à do incumprimento das obrigações para si resultantes do incumprimento do contrato de mútuo em discussão nos autos, que situou em 09-07-2022, dado ser esta a data mencionada no requerimento executivo. Consequentemente, a embargante/executada pugnou pela consideração como não provados dos factos enunciados sob os números 10 e 11 da decisão recorrida.
Foi a seguinte a redação atribuída aos referidos pontos da matéria de facto:
“10. Em momento anterior à resolução do contrato, a embargada/exequente integrou a embargante/executada em PERSI, na tentativa de que o incumprimento definitivo do contrato não se verificasse.
11.Depois de a embargante ter recebido a carta de integração em PERSI, foram mantidas diversas reuniões entre aquela e os funcionários da Embargada do Balcão de Calheta – Ponta Delgada onde, perante uma situação de incumprimento persistente, se tentou encontrar uma solução que permitisse à embargante regularizar a dívida que vinha mantendo (e mantém).”
Analisando a questão suscitada, não poderá deixar de salientar-se que a integração da embargante/executada em Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (doravante PERSI) relativamente ao contrato em discussão nos autos, constitui matéria controvertida. Aliás, foi essa a única questão suscitada pela embargante na oposição que deduziu à execução por meio de embargos.
O certo é que tal integração em PERSI (ou o facto negativo contrário), reconduzindo-se à questão em que reside a controvérsia, constitui matéria conclusiva a extrair das comunicações apuradas, sendo estas que, consequentemente, integram o acervo factual a incluir nos factos provados.
A este propósito refere Anselmo de Castro[1]são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos (…) só (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objeto da especificação e questionário (…), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”. Tem sido este o entendimento jurisprudencial seguido, transcrevendo-se o que a tal propósito se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2014[2]: “Só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, sendo, embora, de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes”.
Consequentemente, dado encontrar-se controvertida a questão da integração da executada/embargante em PERSI, bem como a sua extinção, afigura-se, em rigor, estar vedada ao tribunal a sua inclusão nos factos provados. Ali deverão, ao invés, ser enunciados os factos materiais suscetíveis de evidenciar o cumprimento ou o incumprimento das obrigações de integração e de extinção em PERSI.
Certo é que a decisão da impugnação da matéria de facto deduzida pela recorrente exige que se proceda a uma apreciação conjugada da prova documental e testemunhal produzida.
Assim, o documento cuja junção foi requerida pela exequente/embargada em 05-12-2023 reporta-se a comunicação relativa à integração da embargante/executada em PERSI. Trata-se de uma carta, datada de 25-01-2022, referindo na menção relativa a “Assunto”: “Regularização Extrajudicial de Situações de Incumprimento. Comunicação de Início de Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento”. Como REFERÊNCIA é indicada em tal documento a seguinte 0008.00580272096, resultando da análise integral da carta em análise que a referência corresponde ao número do contrato cujo incumprimento deu origem à integração em PERSI. Efetivamente, ali se refere: “No cumprimento do disposto no art.º 14º do D.L. 227/2012, de 25 de outubro, comunicamos a V. Exª que o contrato de crédito acima identificado se encontra em incumprimento desde 2021-12-01, estando em dívida o montante total de: EUR 239,27 (…)”. Mais adiante, naquela mesma carta refere-se: “Verificado este incumprimento, determina o diploma legal acima referido que informemos V. Exª, por esta via, que o (s) seu (s) crédito (s) passou (ram) a estar integrado(s) no regime nele previsto e denominado Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), com efeitos a partir desta data.” Por fim, ali se consignou que “(…) para além da dívida supra referida permanecem por liquidar as seguintes responsabilidades (…)” referindo-se encontrarem-se nessa situação as relativas ao contrato “0008.00580256096”, o qual, nos termos do ali exarado estará em incumprimento desde 09-01-2022.
Assim, a carta agora analisada, desde que o seu envio e receção resulte corroborado dos restantes meios de prova, é suscetível de comprovar a integração em PERSI relativamente ao contrato mencionado na sua referência (0008.00580272096).
 Acresce que a carta em questão, contendo inúmera informação sobre os trâmites do PERSI, refere, além do mais ali exarado: “Em consequência desta situação, o Banco tem que proceder a uma avaliação da sua capacidade financeira tendo em vista a procura de uma eventual solução para resolução da situação de incumprimento. Para este efeito, deve dirigir-se ao Balcão acima identificado e facultar-nos, no prazo de 10 dias, informação detalhada sobre a sua atual situação financeira (…)”.
Já a carta datada de 26-04-2022 (junta aos autos com a contestação como documento nº 2) identifica, na menção relativa a referência, o contrato de mútuo nº 008.00580256096, transmitindo o seguinte à embargante/executada:
Comunicamos que, por virtude de ter decorrido o 91º dia desde a data de integração no Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) sem que tenha sido regularizado o incumprimento que determinou aquela integração do seu crédito, se extingue, com esta comunicação, o referido Procedimento, podendo o Banco a qualquer momento proceder à resolução do contrato de crédito e à consequente execução judicial.
Ainda em cumprimento do mesmo diploma legal, enviamos em anexo, informações que fazem parte integrante desta comunicação, e para quais chamamos a sua melhor atenção, designadamente no que respeita às regras da resolução e retoma, intervenção do Mediador do Crédito e acesso a medidas substitutivas.
Esta comunicação é feita por imposição do disposto na al. c) do nº 1 do artº 17º do D.L. 227/2012 de 25 de outubro.
No caso de necessitar de algum esclarecimento ou informação complementar ou eventualmente, pretender negociar soluções para a regularização da situação de incumprimento, poderá dirigir-se ao seu Balcão ou contactar-nos através do endereço eletrónico prevencaoegestaodeincumprimento@santander.pt. (…)”
Exposto, no essencial, o teor de ambas as comunicações que assumem relevância para a decisão do recurso, forçosa é a conclusão de que a integração em PERSI refere-se ao contrato 0008.00580272096 e a extinção de tal procedimento refere-se a contrato diverso (008.00580256096). Tal decorrerá, eventualmente, do facto de a embargante/executada ser titular de outros mútuos bancários celebrados com a embargada/exequente que também terão entrado em incumprimento, como resultou dos depoimentos testemunhais produzidos por B e C, a cuja audição integral se procedeu.
Porém, compulsada toda a prova produzida, desde logo não é possível definir, com segurança, a qual dos contratos se reconduz o mútuo identificado no requerimento executivo (celebrado em 09-06-2006), designadamente se constitui o contrato número 0008.00580272096 ou o contrato número 008.00580256096. Esta questão também não obteve esclarecimento nos depoimentos das testemunhas já referidas, uma vez que relativamente às comunicações de integração em PERSI e da sua extinção supra mencionadas, referiram reportarem-se as mesmas apenas ao contrato que deu origem à execução apensa, não atentando que as cartas juntas se reportam a diversos contratos.
Esta discrepância detetada nas cartas de integração e de extinção de PERSI quanto aos números dos contratos, das datas de incumprimento e dos montantes em dívida, impõe a conclusão de que a exequente não cumpriu cabalmente o ónus que sobre si impedia de comprovar as comunicações de integração e de extinção de PERSI relativamente ao contrato de mútuo objeto da execução de que os presentes embargos constituem apenso, como imposto pelos artigos 14º, nº 4 e 17º, nº 3 do DL 227/2012, de 25-10.
Dir-se-á ainda que a junção de cópia de tais “suportes duradouros”,  mesmo que pudesse considerar-se inequivocamente reportada ao único contrato que está em discussão nos autos (o que não sucede), não implicaria o automático apuramento do cumprimento dos deveres de comunicação supra mencionados, assumindo apenas a virtualidade de constituir princípio de prova das obrigações consagradas nos preceitos supra citados, exigindo ainda a complementação noutros elementos probatórios – neste sentido Acórdão da Relação de Lisboa de 21-11-2023[3]. E assim é porquanto está em causa um meio de prova elaborado pela própria parte (interessada na prova do envio das cartas) mas que, em si, não comprova a sua efetiva expedição.
Certo é que na ausência de prova documental que, de forma segura, constitua, pelo menos, princípio de prova da integração da embargante/executada (tendo por referência o específico crédito exequendo) em PERSI e da sua extinção, não poderá tal realidade ser considerada demonstrada.
E assim é, não obstante resultar dos depoimentos testemunhais produzidos, designadamente pela testemunha C, funcionária da exequente que exerce funções como gestora de incumprimento, a confirmação do envio das cartas de integração e de extinção em PERSI, para a morada da executada (minuto 4.25), efetuado a partir da “direção de cumprimentos irregulares” e que para o efeito é “aplicado automatismo”  (minuto 5.30), no sentido de que se tratam de comunicações que se despoletam e efetivam automaticamente, depois de decorridos determinados dias de incumprimento (minuto 6.00). Certo é que embora a depoente tenha confirmado o envio das cartas em questão, bem como a subsequente realização de reuniões com vista à reestruturação dos vários créditos da executada, a ausência de suporte documental que, de forma inequívoca, comprove o seu envio relativamente ao crédito em discussão nestes autos inviabiliza que se possa considerar apurada tal realidade, tanto mais que foi impugnada pela executada/embargada.
Deve ainda salientar-se que a carta de 25-01-2022, como resulta da interpretação dos seus próprios termos, com base no sentido que lhe atribuiria um declaratário normal (conforme critério consagrado no artigo 236º, CC), reporta-se ao contrato a que a embargada/exequente atribuiu o nº 0008.00580272096 que entrou em incumprimento 01-12-2021. Ali se refere existir um outro crédito (emergente do contrato 0008.00580256096) também na situação de incumprimento, mas desde 09-01-2022. Ora, sendo este último o contrato mencionado na carta de extinção do PERSI de 26-04-2022, a qual, nos termos ali exarados, ocorre “por ter decorrido o 91º dia desde a data de integração (…)”, forçoso é também concluir que não foi observado o prazo previsto no artigo 14º nº 1, do Dl 227/2012, de 25-10. Efetivamente, resultando desta norma: “Mantendo-se o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, o cliente bancário é obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31º dia e o 60º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação (…)”, reportando-se o incumprimento a 09-01-2022, no que a este contrato se reporta, sempre seria prematura a integração em PERSI em 25-01-2022.
Por fim, salienta-se que a alegação da exequente (ponto 6 do requerimento executivo), nos termos do qual: “(…) a Executada não cumpriu com as obrigações a que se comprometeu e assumiu desde 09.07.2022”, avoluma as dúvidas suscitadas relativamente ao cumprimento da obrigação de integração em PERSI, tanto mais que é manifesto que as comunicações juntas aos autos se reportam a datas anteriores a tal momento de incumprimento. Ou seja, para além das incongruências já apontadas, não resulta claro se após as datas mencionadas nas cartas de integração em PERSI e da sua extinção (respetivamente 25-01-2022 e 26-04-2022), a executada regularizou, total ou parcialmente os montantes em dívida, tendo incorrido em novo (e sucessivo) incumprimento em 09-07-2022, ou se subsistia o incumprimento inicial. Certo é que a definição precisa do momento do incumprimento acarreta consequências ao nível da exigência do regime do PERSI, regulamentado pelo Dl 227/2012, de 25-10, podendo ser exigível a sua repetição.
De todo o modo, procedendo parcialmente, em face do exposto, a impugnação da matéria de facto relativamente aos artigos 10º e 11º dos factos provados, afigura-se que dos mesmos deve ser suprimida a matéria conclusiva que contêm quanto à “integração” e “extinção” de PERSI, ali se enunciando apenas os factos materiais suscetíveis de evidenciar o cumprimento ou o incumprimento de tais obrigações.
Opta-se por reformular o referido artigo 10º, que passará a ter a seguinte redação:
A embargada/exequente remeteu à embargante/executada as cartas datadas de  25-01-2022 e 26-04-2022, cujo teor se dá por reproduzido, juntas aos autos, respetivamente, com o requerimento de 05-12-2023 e com a contestação, comunicando, pela primeira a sua integração em PERSI, relativamente ao contrato nº 0008.00580272096, e pela segunda, a extinção de PERSI  relativamente ao contrato 0008.00580256096”.
Já ao artigo 11º dos factos provados, atribui-se a seguinte redação:
11. Após o envio da carta de 25-01-2022, foram mantidas diversas reuniões entre os funcionários da exequente/embargada do Balcão da Calheta-Ponta Delegada e a embargante/executada, onde, perante uma situação de incumprimento persistente se tentou encontrar uma solução que permitisse à embargante regularizar a dívida que vinha mantendo (e mantém)”.
Da integração da embargante/executada em PERSI e da sua extinção em momento prévio à instauração da execução de que os presentes embargos constituem apenso
Como referido, a questão em discussão nos autos enquadra-se no regime estabelecido pelo DL 227/2012 de 25 de outubro, que estabeleceu princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e regularização de situações de incumprimento de contratos de créditos pelos clientes bancários, procurando, como se refere no preâmbulo do diploma “(…) reforçar a importância de uma atuação prudente, correta e transparente (…) em todas as fases das relações de crédito estabelecidas com os seus clientes, enquanto consumidores”.
Num contexto de generalizada crise económica e financeira, pautada por um aumento exponencial de incumprimento dos contratos de crédito, pretendeu-se estabelecer, “ (…) um conjunto de medidas que, refletindo as melhores práticas a nível internacional, promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito (…) Em concreto, prevê-se que cada instituição de crédito crie um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI) (…) Adicionalmente, define-se um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI)…O presente diploma visa, assim, promover a adequada tutela dos direitos dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários” – cfr. preâmbulo do Dl 227/2012, de 25-10. Com a criação de tal regime visou-se, assim, a proteção do cliente bancário que, assumindo as vestes de consumidor, celebra contratos de mútuo com entidades bancárias – cfr. artigo 3º, alínea a), Dl 227/2012, de 25/10.
Nos presentes autos não se mostra controvertido que o crédito exequendo emergente de mútuo bancário garantido por hipoteca se reconduz ao âmbito de aplicação do referido regime, definido no artigo 2º do referido diploma.
Por outro lado, também é inequívoco que a embargante/executada, que interveio como mutuária no contrato de crédito em causa, é uma consumidora na aceção dada pelo nº 1 do artigo 2º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei nº 24/96, de 31 de julho e, consequentemente, “cliente bancária” nos termos definidos no artigo 3º, alínea a) do Dl 227/2012, de 25 de outubro.
O DL 227/2012, de 25/10, consagra fundamentalmente dois procedimentos, um dos quais, relativo à “Gestão do risco de incumprimento” que se desenvolve em momento prévio ao do incumprimento do mutuário (artigos 9º a 11º), e outro relativo ao Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), previsto nos artigos 12º a 21º, aplicável a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de crédito bancário.
O PERSI comporta a fase inicial, seguida da fase de avaliação/proposta/negociação e, por fim, a da extinção – cfr. artigos 14º, 15º, 16 e 17º do DL 227/2012, de 25 de outubro. Certo é que obriga as instituições bancárias a promoverem as diligências necessárias à implementação do PERSI relativamente a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito. – cfr. artigo 12º.
Por outro lado, e como decorre do artigo 18º, nº 1, alínea b) do citado diploma:
No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de:
 (…) b) intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito”.
Ou seja, a falta de integração do cliente bancário no PERSI constitui impedimento legal a que a instituição de crédito, credora mutuante, intente ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 31-01-2019[4].
O PERSI constitui, assim, uma fase pré judicial destinada à composição do litígio, impondo ao credor (instituição bancária/financeira), em razão da maior vulnerabilidade do consumidor, especiais deveres de informação, esclarecimento e proteção. Como se refere no acórdão STJ de 19-05-2020[5]: “A instituição de crédito que move ação executiva contra o mutuário consumidor, que se encontra em mora, tem o ónus de demonstrar que cumpriu as obrigações impostas pelos artigos 12º e seguintes do DL n.227/2012, que prevê o regime jurídico do PERSI. Enquanto o mutuante não proporcionar ao devedor consumidor a oportunidade para encontrar uma solução extrajudicial, tendo em vista a renegociação ou a modificação do modo de cumprimento da dívida, não lhe é permitido o recurso à via judicial para fazer valer o seu crédito (como se extrai do art.º 18º daquele diploma). O cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da ação executiva movida por uma entidade financeira contra um devedor consumidor, cuja ausência se traduz numa exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso que conduz à absolvição da instância”.
Assim, a comunicação da integração do cliente no PERSI, e a sua extinção, constituem condição da admissibilidade da ação declarativa ou executiva, gerando a sua falta uma exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância – cfr. artigo 576º, nº 2, CPC.
Tais comunicações constituem declarações recetícias, incumbindo ao exequente a prova da sua existência, do seu envio e ainda da sua receção pelo devedor – Acórdão da Relação do Porto de 24/10/2023[6]. Na realidade, como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 8/10/2020[7], o regime consagrado no D.L. 227/2012, de 25/10 deve ser interpretado no sentido da “exigência de um procedimento de renegociação suficiente e materialmente efetivo e não de exigência de cumprimento de um iter sacramental de atos formais”.
Sendo inequívoco que a integração e a extinção de PERSI têm de ser comunicados pela instituição de crédito ao cliente, nos termos dos artigos 14º, nº 4 e 17º, nº 3, do Dl 227/2012 de 25-10, em face da factualidade apurada, forçosa é a conclusão de que a exequente não fez prova de tais comunicações em “suporte duradouro” que, nos termos do disposto na alínea h) do artigo 3º, do Dl 227/2012, de 25/10, corresponde a “qualquer instrumento que lhe permita armazenar informações durante um certo período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilitem a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas”.
Reiterando o já referido a propósito da impugnação da matéria de facto, constata-se, desde logo, a inexistência de qualquer comunicação relativa a PERSI trocada entre as partes posterior a 09-07-2022, sendo esta a data de incumprimento indicada pela exequente no seu requerimento executivo. Ora, mesmo que anteriormente tivesse havido integração em PERSI, caso a executada se encontrasse novamente em situação de incumprimento, deveria ter sido desencadeado novo procedimento de PERSI. Efetivamente, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-02-2023[8]: “(…) quer a letra da lei, quer o espírito que preside ao DL nº 272/2012, não dão sustento à interpretação que limita a um único PERSI o incumprimento pelo mutuário num contrato de mútuo em que se convencionou o reembolso do capital e juros em prestações mensais, em contratos em que o mutuário fica vinculado a reembolsar o empréstimo por períodos largos de tempo, que podem atingir as dezenas de anos, como sucede nos casos de empréstimos para a habitação.
É que, as circunstâncias subjacentes a cada umas daquelas faltas de pagamento podem ser diferentes, como diferentes podem ser as medidas que no âmbito do PERSI possam contribuir para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos embargantes. A diversidade de situações justifica o desencadear de diferentes procedimentos. No mesmo sentido se tinha pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 9-12-2021[9].
Em rigor, desconhece-se se o incumprimento mencionado na carta de 25-01-2022 persistiu até à data de incumprimento apontada pela exequente (9-07-2023), ou se a embargante/exequente regularizou parcialmente o(s) crédito(s) na sequência daquela comunicação e voltou a incorrer em incumprimento em 09-07-2022. Nesta última hipótese, por forma a dar cumprimento substancial à tutela que o legislador pretendeu atribuir ao mutuário por via do DL 227/2012, de 25-10, impunha-se um novo PERSI, dado que, decorrido tal lapso de tempo, diversas poderiam ser as causas para o (novo) incumprimento, como diversas poderiam ser as soluções para o mesmo encontradas.
Por outro lado, ainda que o incumprimento alegado quanto à data de 9-07-2022 correspondesse ao prolongamento do que já existia no momento da integração em PERSI, não exigindo, por isso, um novo procedimento, os autos evidenciam uma total falência probatória relativamente ao cumprimento pela exequente/embargada dos ónus para si decorrentes dos artigos 14º e 18º do DL 227/2012, de 25/10. Forçosa é, pois, a conclusão de que a exequente/embargada não demonstrou a condição de procedibilidade relativa à integração da executada em PERSI e à sua extinção, em momento prévio ao da instauração da execução, impondo-se a revogação da decisão que julgou improcedentes os embargos e a sua substituição por outra que, na procedência de tal oposição, determine a extinção da execução.
Por fim, não podendo concluir-se que a embargada/executada litigou com perfeito conhecimento de que havia sido integrada em PERSI, não subsiste a sua condenação como litigante de má fé, nos termos do disposto no artigo 542º CPC.
Revelando-se procedente o recurso, as custas serão integralmente suportadas pela exequente/embargada, por ter ficado vencida – cfr. artigo 527º, nº 1, CPC
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em revogar integralmente a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julga procedente a exceção dilatória de falta de integração em PERSI, e ordena a absolvição da executada da instância executiva.
Custas do processo, incluindo a fase do recurso, pela embargada/exequente.
D.N.

Lisboa, 9 de maio de 2024
Rute Sobral
Laurinda Gemas
José Manuel Correia
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[1] Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, p. 268/269
[2] Proc.º n.º 590/12.5TTLRA.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[3] Proferido no processo nº 2457/22.0T8LRS-A.L1-7, disponível em www.dgsi.pt
[4] Proferido no processo  832/17.0T8MMN-A.E1, disponível em www.dgsi.pt
[5] Proferido no processo nº 6023/15.8T8OER-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[6] Proferido no processo 24105/19.5T8PRT-B.P1, disponível em www.dgsi.pt
[7] Proferido no processo nº 14235/15.8T8LRS-A.L1-6, disponível em www.dgsi.pt
[8] Proferido no processo nº 1141/21.6T8LLE-B.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[9] Proferido no processo nº 4734/18.5T8MAI-A.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt