Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
325/18.9T8MFR.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO MARÍTIMO
MARGEM
PROPRIEDADE PRIVADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I –Não é de atender aos documentos juntos pela A. com a sua alegação de recurso, uma vez que as certidões cuja junção é pretendida correspondem a certidões de documentos datados de há muito, não se vislumbrando suspeita de a parte os não poder obter anteriormente se houvesse diligenciado nesse sentido; por outro lado, a junção não se tornou necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância, tendo em conta os termos em que essa necessidade se define.
II - O domínio público marítimo que pertence ao Estado, compreende as margens das águas costeiras, embora a lei preveja o reconhecimento de direitos adquiridos por particulares sobre parcelas dessas margens - existe, a favor do Estado, uma presunção juris tantum de dominialidade dos terrenos, a ilidir pelos particulares.
III – Embora no caso dos autos se haja provado que o imóvel está integrado numa zona urbana consolidada e que a construção é anterior a 1951, nada se sabe sobre estar fora da zona de risco de erosão, localizando-se, como demonstrado, numa arriba alcantilada - daí, a previsão do nº 5-c) do art. 15 da lei 54/2005, de 15-11, não ser aplicável.
IV –No processo não existem elementos que nos permitam concluir, que a A., nos termos do nº 2 do art. 15 da lei 54/2005, de 15-11, provou documentalmente que o terreno em questão era, por título legítimo, objecto de propriedade particular antes de 22 de Março de 1868.
V – Do mesmo modo, a posse em nome próprio de particulares antes da data de 22 de Março de 1868, nos termos do nº 3 do art. 15 da lei 54/2005, não foi realizada pela A. – aliás, a mesma não alegara factualidade que permitisse considerar verificada a situação possessória em referência.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:

IMC intentou a presente acção declarativa com processo comum contra o Estado Português.
Alegou a A., em resumo:
A A. é dona e legítima possuidora do prédio urbano sito na Rua Dr. … nº …, Ericeira, concelho de Mafra, inscrito na matriz predial urbana da freguesia da Ericeira, sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o nº. …/….
O referido prédio está implantado numa arriba alcantilada integrada no Domínio Público Marítimo e encontra-se inserido numa zona urbana consolidada, sendo a respectiva construção anterior a 1951.
O percurso histórico do dito prédio, organizado desde 1850 até 1913, é o que seguidamente a A. transcreve, sendo que entre 1913 e 1939 foi vendido pelos herdeiros de CC a EG e Mulher e por óbito deste último sua filha, MG herdou o prédio, ocorrendo a partir daí um movimento de registos normal - a primeira menção, em termos de registo predial, é a constante do Livro G …, fls…. V – inscrição nº. …, terminando com a inscrição nº. … (25.01.1995), do Lv. F …, fls. ….
Conclui a A. que as sucessivas transmissões e vicissitudes de que foi objecto o imóvel dos autos, desde 3 de Janeiro de 1850 até à actualidade, deram origem ao prédio cujo reconhecimento da propriedade privada pede que seja reconhecida.
Pediu, assim, que se reconheça que o prédio da A. é propriedade privada.
O R., Estado Português, contestou. Invocou a excepção dilatória da ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário activo, visto a A. ser, tão só, comproprietária do imóvel. Alegou que a A. não logrou afastar a presunção resultante do art. 15.º da Lei 54/2005, de 15-11, porque os documentos que juntou não demonstram que o prédio estava na posse em nome próprio de particulares desde 22-03-1868, não demonstrando a A. as sucessivas transmissões do direito de propriedade do mesmo desde então até ao presente, sendo que não está estabelecida uma inequívoca relação de proveniência entre os prédios constantes da documentação junta.
Concluiu o R. pela improcedência da acção.
O processo prosseguiu vindo, a final, a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o R. do pedido.
Da sentença apelou a A., concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
a) O presente recurso tem por objecto a sentença do Tribunal “ a quo” ao julgar improcedente o pedido da ora Apelante e não julgar provado a cadeia ininterrupta de detentores do imóvel dos autos, de justo título, desde 1868 até ao presente.
b) Não obstante a prova documental já carreada para os autos, a complexidade da mesma justifica o recurso ao Art. 651 nº1 do CPC com um reforço de prova que facilitará, certamente, à descoberta da verdade.
c) Devido a alterações toponímicas:
- o prédio  nº … (B …), fls. 117), que actualmente, se localiza na Rua … nº … -A , Ericeira, é o mesmo que antes se situava na Rua … nº …, com o artigo matricial nº ….
- e o prédio nº … (B - …, fls. 39), que actualmente, se localiza na Rua … nº … Ericeira, é o mesmo prédio que antes se situava na R. … nº …, com nº … com o artigo matricial nº …
d) O primeiro mapa prova as confrontações dos prédios nº … e o nº …. Enquanto aquele prédio ( …) fica a norte deste segundo (…) prédio corresponde ao sul daquele primeiro prédio.
e) A inscrição mais antiga do prédio nº … (prédio dos autos), tem o nº …, de 16.04.1951 (vide doc. nº …), onde se regista a transmissão do prédio para MG, casada com MRC.
f) O segundo mapa apresenta trato sucessivo, de forma continuada e clara, com base na confrontação a norte do prédio que lhe fica a sul (nº …, sito na Rua … nº …)
g) A lei nº 34/2014, de 19/7, no seu Artº 15º nº2 estipula que para reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar, deve provar- se documentalmente que tais terrenos eram por titulo legitimo objecto de propriedade particular ou comum, antes de 22.03.1868 (para o presente caso). Ou seja,
h) São os títulos legítimos que constituem a base da prova documental para o conhecimento da propriedade privada, pelo que o apresentado para o reconhecimento da propriedade privada, pelo que o apresentado no segundo mapa, para o prédio desta acção judicial ( nº …, B …, Fls. 117, sito na Rua … nº … A) é feito através da confrontação norte com o prédio nº … (B- …, fls. 39) sito na Rua … nº ….
i) Se os títulos elencados para os prédio nº … ( que fica a sul do prédio, do prédio dos autos) possuem valor probatório para o trato sucessivo desse prédio, de igual modo a confrontação a norte tem o valor de prova para demonstrar a posse privada do prédio dos autos (através dos confrontantes, que são proprietários do prédio).
E porquê?
j) Porque no séc. XIX as escrituras de compra e venda de terrenos não eram alvo de mediação ou georreferenciação (como sucede actualmente).
l) Os elementos de identificação e localização dos terrenos cingiam-se à indicação do concelho e freguesia, toponímia, descrição da sua composição, nome dos intervenientes no acto e confrontantes (com os pontos cardeais).
m) Nos mapas supra, estes requisitos são cumpridos através da confrontação norte do prédio que fica a sul do prédio da presente acção judicial, ficando-se a conhecer os proprietários que, sucessivamente, tiveram a posse do prédio nº … sito na Rua …nº …-A Ericeira.
n) O desconhecimento da data precisa da aquisição do prédio em apreço por EG não pode ser causa de inviabilização do reconhecimento da propriedade privada, pelo que em 5 de Maio de 1913 encontrava-se na posse dos herdeiros de CC e aquando do falecimento de EG (em 16.11.1939) era sua propriedade.
Juntou a apelante com as suas alegações de recurso dois documentos.
O R. contra alegou nos termos de fls. 189-193.
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II – São as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que determinam o âmbito da apelação, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Assim, atento o teor das conclusões apresentadas, as questões que essencialmente se colocam são as seguintes: se, no presente recurso, devem ser considerados os documentos que a A. juntou aos autos com a sua alegação de recurso; se a factualidade apurada permite concluir, face ao disposto no art. 15 da lei 54/2005, de 15-11, pelo afastamento da presunção de dominialidade por parte do Estado no que concerne ao prédio em discussão e pelo reconhecimento de que o mesmo é propriedade de particulares.
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III – O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. O referido imóvel está implantado numa arriba alcantilada integrada no Domínio Público Marítimo.
2. O referido imóvel está integrado numa zona urbana consolidada e a construção é anterior a 1951.
3. No livro dos bens próprios do Município da Ericeira encontra-se o registo do foro com o n.º…, relativo a um prazo, descrito como um quintal, sito na Rua …, que parte do norte com AB, sul com JD, nascente com rua, e poente com ribas do mar, de que JFV paga um foro.
4. Em 18.05.1857 foi outorgada uma escritura pública de venda do domínio útil de uma propriedade de casas, sitas na Rua …, que confrontam do norte com propriedade de MS, do sul com propriedade de FM, do nascente com Rua de São Sebastião, e do poente com rocha do mar, nos termos da qual JD, na qualidade de foreiro à Camara, e mulher, vendem o domínio útil desse prazo a AR.
5. Em 09.10.1861 teve lugar um ato de arrematação em hasta pública do domínio directo do prazo foreiro pertencente à Camara Municipal de Ericeira, com o numero …, sito na Rua …, descrito como uma casa, que parte do norte com FS, sul com FM, a nascente com rua, e poente com ribas do mar, de que foi enfiteuta AR, nos termos do qual, a Câmara vendeu o domínio directo desse prazo a RC, casada com AR.
6. Em 09.09.1866 foi outorgada uma escritura de venda de uma morada de casas térreas, sita na Rua de São Sebastião, que partem do norte com casa de AF, sul com casa de CC, nascente com rua pública, e poente com ribas do mar, nos termos da qual FB e mulher vendem essas casas a JHC.
7. Em 09.01.1891 foi outorgada uma escritura de venda de uma morada de casas térreas, com três vãos e pequeno quintal, sita na Rua …, que confronta de norte com casa de CC, sul casa de SM, nascente Rua …, e poente ribas do mar, nos termos da qual RC, viúva de AR, vende essa morada de casas térreas, que herdou deste, a A-G.
8. Em 05.05.1913 foi outorgada uma escritura de venda de uma morada de casas térreas, com três divisões e pequeno quintal, sita na Rua …, que confina do norte com casas dos herdeiros de CC, do sul com casa de AD, do nascente com a dita rua, e do poente com ribas do mar, nos termos da qual AG vende essa morada de casas térreas a FR, sendo que o outorgante vendedor AG adquiriu essas casas por compra a RC, viúva de AR.
9. Na relação de bens apresentada no processo de imposto sucessório, por óbito de EG, em 16-11-1939, de que foi herdeira sua filha, MG, o prédio n.º … é descrito como casa de habitação, com quatro divisões e quintal, com um poço de água nativa, sito na rua Dr. … , n.º10.
10. O prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.º … está registado a favor de EG, na proporção de 1/3 e a favor da autora, na proporção de 2/3, mediante as AP n.º… e n.º… de 27-10-1982, respectivamente, por doação de MG, correspondendo à anterior descrição em livro do prédio n.º …, descrito como casa de habitação e quintal, sita na Rua …, n. …, e …- A, Ericeira, com o artigo matricial ….
11. Mediante a inscrição 12916 de 6 de Junho de 1951 foi registada a hipoteca do prédio … a favor de JS, entretanto cancelada por averbamento n. 2 de 25 de Junho de 1955; mediante a inscrição n. … de 16 de Abril de 1951 foi registada a aquisição deste prédio a favor de MG, por sucessão hereditária por óbito de EG e MJ, respectivamente ocorrido em 16-11-1939 e 9-4-1943; mediante a inscrição … de 30 de Novembro de 1960 foi registada a hipoteca do prédio a favor de DCP, entretanto cancelada por averbamento n. … de 14 de Abril de 1961; mediante as inscrições … e … de 27 de Outubro de 1982 foi registada a aquisição a favor de EG de 1/3 do prédio e da autora de 2/3 do prédio, por doação de MG (tais inscrições correspondem às AP … e … da descrição informatizada do actual prédio …).
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IV – 1 - Formula a A./apelante a pretensão de junção com as alegações de recurso de alguns documentos, para um “reforço de prova”, perante a decisão proferida em 1ª instância, “surpreendente face ao expectável”.
Os documentos em causa correspondem a uma certidão emitida pela Câmara Municipal de Mafra, com transcrição e respectivo certificado, e a uma certidão emitida pela Conservatória de Registo Predial, extraída da descrição nº … da freguesia da Ericeira e da descrição nº … do B-87 e de todas as inscrições em vigor, também com transcrição e respectivo certificado.
No processo civil em regra os documentos têm de ser juntos pelas partes até ao encerramento da discussão; depois, no caso de recurso, apenas os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até então, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância – arts. 425 e 651 do CPC.
A 1ª hipótese - quando não tenha sido possível a apresentação dos documentos até ao encerramento da discussão em 1ª instância – reconduz-se às sub-hipóteses de a parte não ter conhecimento da sua existência, ou, conhecendo-a, lhe não ter sido possível fazer uso deles, ou, mesmo, a de os documentos se terem formado ulteriormente. Aí, utilizando a expressão de Alberto dos Reis ([1]) «a parte tem de convencer o tribunal da superveniência do documento respectivo, ou porque o documento se formou depois do encerramento da discussão, ou porque só depois deste momento ela teve conhecimento da existência do documento, ou porque não pôde obtê-lo até àquela altura».
Na 2ª hipótese - a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1º instância - «a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida» ([2]).
Resume Abrantes Geraldes ([3]) a propósito da junção de documentos na fase do recurso: «Em sede de recurso, é legítimo às partes juntar documentos com as alegações quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento (superveniência objectiva ou subjectiva).
Podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.
A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa ao resultado».
O caso dos autos não se reconduzirá à hipótese aduzida em 1º lugar (com as duas sub-hipóteses indicadas) uma vez que as certidões cuja junção é pretendida correspondem a certidões de documentos datados de há muito, não se vislumbrando suspeita de a parte os não poder obter anteriormente se houvesse diligenciado nesse sentido.
Também não se crê que a junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância, tendo em conta os termos em que essa necessidade se define, consoante acima apontado, pelo que do mesmo modo não se verifica a hipótese mencionada em 2º lugar.
Pelo que não se atenderá aos documentos em referência, juntos com a alegação de recurso, não se admitindo a sua junção.
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IV – 2 - Não oferece discussão nestes autos que o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.º 2796, registado a favor de Emídio Gomes dos Reis Casal, na proporção de 1/3 e a favor da A. na proporção de 2/3, está implantado numa arriba alcantilada integrada no Domínio Público Marítimo.
Designa-se por “arriba” a margem elevada e por “alcantil” a margem a pique ([4]), entendendo-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas, tendo a margem das águas do mar uma largura de 50 metros (art. 11 da lei 54/2005, de 15-11, na sua versão mais recente que inclui as alterações advenientes da lei 31/2016, de 23/08). Consoante os arts. 3 e 4 da lei 54/2005, o domínio público marítimo que pertence ao Estado, compreende as margens das águas costeiras.
Sucede que o art. 15 do mencionado diploma prevê o reconhecimento de direitos adquiridos por particulares sobre parcelas de margens (públicas).
Como afirmado no acórdão do STJ de 14-7-2021 ([5]) «o sistema da Lei n.º 54/2005 assenta sobre uma presunção de propriedade do Estado, ainda que a presunção seja ilidível». Existe, a favor do Estado, uma presunção juris tantum de dominialidade dos terrenos, impondo-se aos interessados o ónus da prova de que assim não é.
Deste modo, atento o nº 2 do mencionado artigo, quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de margens das águas do mar «deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868».
Determinando o nº 3 que na «falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa».
Por outro lado, prescreve o nº 5:
«O reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis pode ser obtido sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos números anteriores nos casos de terrenos que:
a) Hajam sido objeto de um ato de desafetação do domínio público hídrico, nos termos da lei;
b) Ocupem as margens dos cursos de água previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º, não sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias;
c) Estejam integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e se encontrem ocupados por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado».
No caso dos autos provou-se, consoante alegado pela A., que o imóvel está integrado numa zona urbana consolidada e que a construção é anterior a 1951 (ponto 2 dos factos provados) mas nada se sabe sobre estar fora da zona de risco de erosão, localizando-se, como demonstrado, numa arriba alcantilada ([6]).
Daí, a previsão do nº 5-c) do art. 15 não ser aplicável.
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IV – 2 - Situemo-nos, então, no âmbito do actual nº 2 do art. 15, disposição legal a que aludem a sentença recorrida e as alegações de recurso - «Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868».
Sendo na realização da dita prova documental que se arrimou a A. na p.i. apresentada – ver os artigos 17 e 18 daquela peça processual.
Consoante nos diz Manuel António do Carmo Bragado ([7]) constituem “justo título ou título legítimo de aquisição”, entre outros, os expressamente indicados no artigo 1316.º do Código Civil: contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação e
acessão; tratando-se de uma enumeração exemplificativa, como resulta da utilização, na parte final do artigo, da fórmula “e demais modos previstos na lei”.
Esta disposição legal encontra paralelo no antecedente nº 1 do art. 8 do dl 468/71, de 5-11, o qual preceituava: «As pessoas que pretendam obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis devem provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868».
Comentando, a propósito, Diogo Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes ([8]) que a prova documental deverá comprovar a existência de título legítimo para fundamentar o ingresso no domínio privado, com respeito pelas datas referidas e a expressão “título legítimo” é sinónima de “justo título”, significando qualquer modo legítimo de adquirir – logo, entre outros, os expressamente indicados no art. 1316 do CC.
Referem José Miguel Júdice e José Manuel Figueiredo ([9]) que o autor vai ter de demonstrar que o terreno cuja propriedade privada reclama já era propriedade privada antes de 22 de Março de 1868 [tratando-se de arriba alcantilada, como é o caso dos autos], demonstração que se fará mediante prova de que a propriedade privada em causa foi adquirida por título legítimo, antes daquele marco temporal. Bem como que a apreciação relativa ao dito título legítimo terá de ser feita mediante o exame da documentação disponível sobre a parcela de terreno em causa e a «consequente análise de que o título que permitiu a sua aquisição (e eventual posterior transmissão) era válido à luz do direito aplicável à data». Acrescentando que o autor tem de provar não apenas que o imóvel estava na propriedade particular quando se estabeleceram as presunções de dominialidade, como também que nessa condição se manteve até à data actual - «a presunção de dominialidade terá de ser afastada relativamente a toda a “história” do bem» ([10]). Depois, o autor demonstrará que é legítimo proprietário actual, só assim lhe podendo ser reconhecida a respectiva propriedade privada – para o que bastará que seja o titular inscrito no registo. Sendo que o registo predial e a presunção que ele normalmente encerra poderá não ser determinante para afastar a presunção de dominialidade – mas deverá ser facto bastante para provar a propriedade actual sobre o imóvel.
Saliente-se que a ora A. não impugnou a matéria de facto provada nos termos previstos no nº 1 do art. 640 do CPC.
Encontram-se juntos aos autos os documentos mencionados nos factos provados sob os nºs 3 a 8 daqueles factos.
Documentos aqueles demonstrativos, designadamente:
- da existência de um foro registado com o nº …, relativo a um prazo, na Rua …, na Ericeira (ponto 3 dos factos provados);
-  da venda, em 1857, do domínio útil de uma propriedade de casas igualmente sitas na R…, na Ericeira, a Alípio Ribeiro (ponto 4 dos factos provados);
- do acto de arrematação em hasta pública, em 9-10-1861, do domínio directo do prazo foreiro pertencente à Camara Municipal de Ericeira, «com o numero …, sito na Rua …, descrito como uma casa, que parte do norte com FS, sul com FM, a nascente com rua, e poente com ribas do mar, de que foi enfiteuta AR, nos termos do qual, a Câmara vendeu o domínio directo desse prazo a RC, casada com AR» (ponto 5 dos factos provados).
Bem como demonstrativos:
- da escritura de venda, em 9-9-1866, de uma morada de casas térreas sita na Rua …, confrontando a sul com casa de CC, sendo a venda efectuada por FB a JHC (ponto 6 dos factos provados);
- das escrituras de venda de uma morada de casas térreas, com três divisões e pequeno quintal, sita na Rua …, confinando a norte, respectivamente com casa de CC e com casas dos herdeiros de CC, por RC a AG e por este a FR, sucessivamente em 9-1-1891 e em 5-5-1913 (pontos 7 e 8 dos factos provados).
O prédio urbano que está registado a favor da A. na proporção de 2/3 é o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.º …, correspondendo à anterior descrição em livro do prédio n.º …, descrito como casa de habitação e quintal, sita na Rua …, n. …, e …- A, Ericeira, com o artigo matricial ….
Dos documentos que a A. juntou não nos parece resultar, com a exigível segurança, nomeadamente pela via utilizada pela apelante - da confrontação do prédio a que se reportam os autos (descrito no registo predial primeiramente sobre o n.º … e depois sob o n.º …) com o prédio que foi descrito no registo predial sob o nº …,  encontrando-se o nº … a sul do n.º … e este a norte daquele - a demonstração de que aquele prédio era objecto de propriedade privada, por título legítimo, antes de 22 de Março de 1868.
Efectivamente, não temos elementos que nos permitam concluir, que a A., nos termos do nº 2 do art. 15 da lei 54/2005, de 15-11, provou documentalmente que o terreno em questão era, por título legítimo, objecto de propriedade particular antes de 22 de Março de 1868.
Aquilo de que documentalmente dispomos sobre o prédio em questão (prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.º …, correspondendo à anterior descrição em livro do prédio n.º …) é que o mesmo integrou a herança por óbito de EG, óbito sucedido em 16-11-1939, dele sendo herdeira sua filha MG (ponto 9 dos factos provados) vindo a ser inscrita no registo a aquisição a favor desta por sucessão hereditária e posteriormente inscrita a aquisição por doação daquela MG a favor da A. e de EC, na proporção de 2/3 para 1/3.
O que não chega para os efeitos pretendidos pela A., já que não se encontra estabelecida a conexão/identidade entre o prédio que integrou a herança de EG falecido em 16-11-1939 e aquele sobre o qual, segundo a apelante, existia um foro registado sob o nº 172 a 3 de Janeiro de 1980. Não tendo, igualmente, a apelante sustentáculo documental suficiente para concluir que o prédio em causa era, por título legítimo, propriedade de MA em Maio de 1857 e de FS em Outubro de 1861 – sendo, após, propriedade de CC em Janeiro de 1891, transitando para os herdeiros deste e sendo adquirido a estes por EG.
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IV – 3 - Consoante acima mencionámos, determina o nº 3 do art. 15 da lei 54/2005 que, na «falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa» ([11]).
Aqui, a lei não exige a prova documental - em princípio, são aceites todos os meios de prova admitidos em direito (prova documental, testemunhal, pericial, por inspecção judicial ou através de presunções), salvo a prova por confissão, visto a lei prescrever expressamente a sua inadmissibilidade «se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis» (art. 354 - b) do CC) e o domínio público é, por definição, indisponível. A prova, nesta situação, «visa apenas a demonstração da posse o que amplia consideravelmente as possibilidades do interessado» ([12]). Embora, como referem José Miguel Júdice e José Manuel Figueiredo ([13]) em termos práticos, dificilmente aqui se conseguirá fazer prova, sem recorrer à prova documental «dada a impossibilidade prática de ainda existir quem possa prestar depoimento directo sobe os factos» - sem prejuízo da utilização da prova por presunção.
Sucede que, nos mesmos termos, tal prova, da posse em nome próprio de particulares antes da data de 22 de Março de 1868, não foi realizada pela A. – aliás, a mesma não alegara factualidade que permitisse considerar verificada a situação possessória em referência.
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V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela A./apelante.
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Lisboa, 17 de Outubro de 2021
Maria José Mouro
Sousa Pinto                                                                                            Vaz Gomes
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[1] «Código de Processo Civil Anotado», vol. IV, pag. 15.
[2] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, «Manual de Processo Civil», 2ª edição, pags. 533-534.
[3] Em «Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pags. 184-185.
[4] Ver Diogo Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, «Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico», Coimbra Editora, 1978, pag. 90.
[5] Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc. 569/10.1TBVRS.E2.S1.
[6]  Verificamos, aliás, que o relatório da peritagem para efeitos de fixação do valor da acção menciona que o imóvel se situa em cima das arribas da Praia do Norte “que não se encontram devidamente consolidadas, havendo pontualmente derrocadas para a praia” (fls. 82v).
[7] Em «O reconhecimento da propriedade privada sobre terrenos do domínio público», Julgar on line – 2013.
[8] Obra citada, pag. 127.
[9] Em «Acção de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos», Almedina, 2013, pags. 80-82.
[10] Do mesmo modo, o acórdão do STJ de 23-3-2021, ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc. 618/17.2T8ETR.P1.S1 e no qual se escreve que «para afastar a presunção de dominialidade que vigora, terá o autor de provar não só que o imóvel estava na propriedade particular quando, em 1864 e 1868, se estabeleceram as referidas presunções, como também que o imóvel se manteve nessa condição (propriedade privada) até à data actual. Em suma, competirá ao autor demonstrar que o bem foi e continua a ser propriedade privada, posto que a presunção de dominialidade terá de ser afastada relativamente a toda a “história” do bem».
[11] Ao falar de terrenos na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa o diploma quis aludir aos baldios municipais ou paroquiais – ver Diogo Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, obra citada, pag. 129.
[12] Assim, Diogo Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, obra citada, pags. 129-130; ver, também, e Manuel António do Carmo Bragado, obra citada.
[13] Obra citada, pag. 97.