Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
24693/15.5T8LSB-C.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL DE ADVOGADO
PARECER NEGATIVO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
VALORES EM CONFLITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/29/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- A quebra do sigilo profissional do advogado, incidente a processar de acordo com o disposto no artigo 135.º do CPP (ex vi dos artigos 497.º, n.º 3 e 417.º n.º 4 do CPC) é necessariamente precedida da audição da Ordem dos Advogados como impõe o n.º 4 do mencionado preceito legal. Porém, esse parecer não é vinculativo para o Tribunal.
II- A decisão de dispensar o advogado do seu dever de sigilo profissional depende da ponderação dos valores em conflito, a fim de indagar se a recusa em depor sobre factos sujeitos a esse sigilo, embora legítima, deve ou não ceder perante o dever de colaboração com a realização da justiça.
III- O critério fundamental para tal decisão consiste na determinação do interesse que, em concreto, se deva considerar preponderante, considerando a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a necessidade de protecção dos bens jurídicos em presença.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO

Nos presentes autos de acção declarativa com processo comum instaurada por MC e OUTROS contra:
NOVO BANCO SA, em audiência de julgamento, datada de 21 de março de 2022, foi identificada a seguinte testemunha:
JN (Videoconferência/Porto), 49 anos, casado, Advogado, com domicílio profissional na Av. … Porto.
Consta da respectiva acta que “aos costumes disse que os Autores foram seus clientes, mas tal facto não a impede de dizer a verdade
Foi então consignado que “atento o facto da testemunha acima identificada ter sido advogado dos Autores, pelo Ilustre Mandatário dos Autores foi pedida a palavra, tendo-lhe sido concedida pela Mmª Juíza, no seu uso, disse (…)”
É o seguinte o teor do requerimento:
«considerando a decisão de indeferimento ou recusa por parte do conselho de deontologia do Porto da Ordem dos Advogados para efeitos da prestação de depoimento na qualidade de testemunha pelo Sr. Dr. JN enquanto advogado entre, pelo menos 2012 a 2015, que representou os ora Autores, entendem os Autores que, nos termos do disposto no artigo 135º do CPP por remissão aos artigos 497º, nº3 e 417º nº4 do CPC, estão reunidas as condições para deduzirem incidente processual para a quebra ou levantamento do sigilo profissional, o que faz nos seguintes fundamentos:
Entendem os Autores que os factos da P.I. nº 16, 17º, 24º, 31º a 36º, 40º, 42º, 48º e do requerimento de ampliação do pedido de 15/10/2018, artigos 18º e 22º são de uma forma objectiva quase exclusivamente demonstráveis por prova testemunhal e que, da parte dos Autores, essa demonstração tem de ser feita por recurso ao conhecimento essencial e necessário da ora testemunha Dr. JN. Para além disso, esta testemunha por ter conhecimento de todos factos discutidos, aquando da elaboração e outorga do acordo em 2012 com o BES, tendo sido o próprio a par dos clientes estar presente nas reuniões, ter analisado e revisto o clausulado, sugerir salvaguardas no seu texto, bem como após a resolução do BES acompanhou os mesmos em reuniões, preparou e-mails e reclamações para os gestores de conta, no sentido de perceber a posição das obrigações que teriam sido transmitidas ou não e que impacto e consequências teriam para o acordo e que solução haveria para as obrigações ESFG, por parte do Novo Banco, de forma a manter e repor o equilíbrio do acordo alcançado. Este conhecimento tem relevância para demonstração da factualidade atinente aos pontos 2º. 3º, 4º, 6º, 7º, 8º e 9º dos temas da prova. Por outro lado, a ponderação dos valores em conflito, a fim de se indagar se a recusa deve ou não ceder perante o dever de colaboração da realização da justiça, a ponderação de factos concretos cuja revelação se pretende e atento o critério primordial que é do principio da prevalência do interesse preponderante na vertente, neste caso de imprevisibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a necessidade de protecção de bens jurídicos, leva-nos a concluir pela sua admissibilidade. Neste tipo de levantamento do segredo profissional estando em causa, além do mais, interesse de ordem pública, a relação de confiança de advogado cliente em que existe a particularidade dos requerentes do levantamento do sigilo serem ex-clientes da testemunha e a matéria a depor por este, ter por objecto factos respeitantes a esse período de prestação de serviços, não pode deixar de se considerar que está aqui em causa a defesa de direitos e interesses legítimos dos ex-clientes do depoente, sem que seja beliscada a dignidade ou direitos legítimos inerentes ao próprio advogado ou ao exercício da função no presente caso, é salvo melhor entendimento esta a posição que tem dominado e sido amplamente sufragada pela jurisprudência.
Por fim, não pode deixar de se dar nota de que havendo indicação nos autos que não existe outra prova, para além de funcionários e ex-funcionários do BES susceptíveis de produzirem prova sobre as negociações encetadas e que tenham  uma versão isenta, independentee funcional/financeiramente livre e desinteressada da matéria em análise, não pode deixar de se concluir pela essencialidade do depoimento da testemunha.
Pelo que assumindo os funcionários do banco o papel de testemunha, não obstante o vincularem, evidencia ainda mais a necessidade do depoimento do Sr. Dr. JN como crucial no apuramento dos factos para a descoberta da verdade e boa administração da justiça Assim, ponderando os interesses inerente ao dever de sigilo e os interesses que com ele conflituam nos autos, entendemos que os primeiros devem ceder aos últimos, devendo prevalecer pois o interesse público da realização da justiça com a consequente quebra do sigilo profissional e dever de prestação do depoimento.
Nestes termos, demonstrados que estão todos os pressupostos formais deste incidente, requer-se que o mesmo seja admitido e consequentemente aprecie o Tribunal a legitimidade da escusa da prestação do depoimento do Sr. Dr. JN e após ponderação dos interesses em questão seja deferido e ordenado o levantamento do sigilo profissional, a fim de este poder prestar depoimento nos presentes autos por se afigurar essencial e imprescindível à descoberta da verdade

Pelo Ilustre Mandatário do Réu foi dito que “o Novo Banco nada tem a referir quanto ao preenchimento dos pressupostos do incidente de levantamento do sigilo profissional até por não estar em condições de o aferir.

Não pode, no entanto, deixar de reiterar o seu entendimento de que a decisão a final a proferir nestes autos depende fundamentalmente de questões de direito, nomeadamente os efeitos das diversas deliberações do Banco de Portugal do que da questão de facto”.

Foi proferido o seguinte despacho pelo Tribunal a quo:
Veio o A., requerer em audiência final o incidente de quebra de segredo profissional da testemunha JN, advogado, para o mesmo testemunhar no âmbito dos presentes autos e na sequência da Ordem dos Advogados ter indeferido a prestação de tal depoimento, por entender se verificar, nos termos do disposto no artigo 135º do CPP por remissão aos artigos 497º, nº 3 e 417º nº 4 do CPC, as condições para puder deduzir incidente processual para a quebra ou levantamento do sigilo profissional.
Alega, para tanto, que a testemunha acima identificada foi advogado dos Autores, entre, pelo menos 2012 a 2015 e os representou. Entendem os Autores que os factos da P.I. nº 16, 17º, 24º, 31º a 36º, 40º, 42º, 48º e do requerimento do requerimento de ampliação do pedido de 15/10/2018, artigos 18º e 22º, são de uma forma objectiva quase exclusivamente demonstráveis por prova testemunhal e que, da parte dos Autores, essa demonstração tem de ser feita por recurso ao conhecimento essencial e necessário da ora testemunha Dr. JN.
Para além disso, esta testemunha por ter conhecimento de todos factos discutidos, aquando da elaboração e outorga do acordo em 2012 com o BES, tendo sido o próprio a par dos clientes estar presente nas reuniões, ter analisado e revisto o clausulado, sugerir salvaguardas no seu texto, bem como após a resolução do BES acompanhou os mesmos em reuniões, preparou e-mails e reclamações para os gestores de conta, no sentido de perceber a posição das obrigações que teriam sido transmitidas ou não e que impacto e consequências teriam para o acordo e que solução haveria para as obrigações ESFG, por parte do Novo Banco, de forma a manter e repor o equilíbrio do acordo alcançado. Este conhecimento tem relevância para demonstração da factualidade atinente aos pontos 2º. 3º, 4º, 6º, 7º, 8º e 9º dos temas da prova.
Por outro lado, a ponderação dos valores em conflito, a fim de se indagar se a recusa deve ou não ceder perante o dever de colaboração da realização da justiça, a ponderação de factos concretos cuja revelação se pretende e atento o critério primordial que é do principio da prevalência do interesse preponderante na vertente, neste caso de imprevisibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a necessidade de protecção de bens jurídicos, leva-nos a concluir pela sua admissibilidade.
Neste tipo de levantamento do segredo profissional estando em causa, além do mais, interesse de ordem pública, a relação de confiança de advogado cliente em que existe a particularidade dos requerentes do levantamento do sigilo serem ex-clientes da testemunha e a matéria a depor por este, ter por objecto factos respeitantes a esse período de prestação de serviços, não pode deixar de se considerar que está aqui em causa a defesa de direitos e interesses legítimos dos ex-clientes do depoente, sem que seja beliscada a dignidade ou direitos legítimos inerentes ao próprio advogado ou ao exercício da função no presente caso, é salvo melhor entendimento esta a posição que tem dominado e sido amplamente sufragada pela jurisprudência.
Por fim, não pode deixar de se dar nota de que havendo indicação nos autos que não existe outra prova, para além de funcionários e ex-funcionários do BES susceptíveis de produzirem prova sobre  as   negociações encetadas   e  que  tenham uma versão  isenta,  independente  e funcional /financeiramente livre e desinteressada da matéria em análise, não pode deixar de se concluir pela essencialidade do depoimento da testemunha.
Pelo que assumindo os funcionários do banco o papel de testemunha, não obstante o vincularem, evidencia ainda mais a necessidade do depoimento do Sr. Dr. JN como crucial no apuramento dos factos para a descoberta da verdade e boa administração da justiça.
Assim, ponderando os interesses inerente ao dever de sigilo e os interesses que com ele conflituam nos autos, entendemos que os primeiros devem ceder aos últimos, devendo prevalecer, pois, o interesse público da realização da justiça com a consequente quebra do sigilo profissional e dever de prestação do depoimento.
Nestes termos, demonstrados que estão todos os pressupostos formais deste incidente, requer-se que o mesmo seja admitido e consequentemente aprecie o Tribunal a legitimidade da escusa da prestação do depoimento do Sr. Dr. JN e após ponderação dos interesses em questão seja deferido e ordenado o levantamento do sigilo profissional, a fim de este poder prestar depoimento nos presentes autos por se afigurar essencial e imprescindível à descoberta da verdade.
A R por seu turno não se opôs.
Cumpre apreciar:
O segredo profissional de advogado é uma excepção a um dever geral de prestar depoimento previsto no C.P.P. no artigo 131º, n. 1, in fine, e coloca-se a par de outros deveres de sigilo e impedimentos previstos nos artigos 133º a 139º do CPP, aplicável aos presentes autos por força do disposto no artigo 417º, n.º 4 do CPC.
O sistema de protecção do segredo profissional do advogado, tutelado pela ordem jurídica, assente que verificados os seus pressupostos, consagra a obrigatoriedade de prestação de depoimento como uma situação excepcional, definida casuísticamente em função dos interesses que, em cada caso devam ser acautelados por se reconhecer preponderância valorativa ao resguardo dos conhecimentos obtidos no exercício da profissão, desde que o objecto do depoimento esteja relacionado com esse conhecimento. Isto é, o não depoimento pode ser a regra geral, a obrigação de depor a excepção.
In casu, resulta que a testemunha foi advogado dos AA e foi ele mesmo que participou nas reuniões tidas com o NB, antes da entrada da presente acção, e in casu, quem requer o seu depoimento é o próprio A., ou seja pretende com o tal depoimento tutelar o interesses do cliente, aqui A. , ou seja é o próprio cliente que dispensa o advogado à vinculação a tal dever.
Dispõe o artigo 92º, al. do novo EOA aprovado pela Lei n.º 145/2015 de 09-09: 1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2-A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional
respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5. (…)
*
In casu, a testemunha já solicitou dispensa de sigilo profissional junto da OA e não lhe foi concedida como resulta dos autos.
O parecer emitido por uma Ordem profissional sobre cessação ou não do sigilo profissional relativamente a um dos seus membros, apenas vincula estes nas relações internas desses organismos, não tendo eficácia “erga omnes”, quando essa mesma questão é igualmente suscitada no decurso de um processo em tribunal – vd neste sentido Acórdão do STJ de 2005/Abr./21, CJ (S) II/186.
Entende o tribunal que a escusa a depor por parte do I. Mandatário é legítima, ao abrigo do artigo 92º do Estatuto, que rege a sua actividade. E só assim se justifica este incidente, pois que o n.º 3 do artigo 135º do C.P.P., aplicável por força do artigo 417º, n.º 4 do CPC, só actua nas hipóteses em que o tribunal de primeira instância reconheça a legitimidade da escusa a depor.
«Em causa está: - a ponderação dos valores em conflito, a fim de se indagar se a recusa deve ou não ceder perante o dever de colaboração com a realização da justiça.
- a ponderação dos factos concretos cuja revelação se pretende;
- que o critério primordial é o do princípio da prevalência do interesse preponderante na vertente, in casu, de imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a necessidade de protecção de bens jurídicos.
Conflitos desta natureza resolvem-se “pela avaliação da diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados por aqueles deveres, segundo um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como impõe o n.2 do art.º 18.º, da Constituição, e tendo em consideração do caso concreto”, como refere o assinalado Acórdão do STJ de 21.04.2005.
Neste tipo de violação do segredo profissional, estando em causa, além do mais (interesse e ordem pública), a relação de confiança advogado-cliente, temos que, no caso em apreço, existe a particularidade de que os requerentes do levantamento do sigilo serem ex-clientes do recusante e a matéria a depor por este tem por objecto factos respeitantes a esse período e prestação de serviços.
Assim, está em causa a defesa de direitos e interesses legítimos dos ex-clientes do depoente, sem que seja beliscada a dignidade ou direitos legítimos inerentes ao próprio advogado ou exercício da função no circunstancialismo concreto.»- vd Acórdão do Tribunal de Guimarães, processo 2488/10.2TJVNF-A.G1, do Exmo. Senhor Desembargador ANTÓNIO SOBRINHO, de 21-01-2016, in www.dgsi.pt.
In casu, o recusante não apresentou quaisquer razões específicas para não prestar declarações sobre a matéria em causa, de natureza civil e patrimonial, relativa a negociações, diligências e serviços prestados, enquanto advogado então dos requerentes-autores, que solicitaram o depoimento, consentindo-o.
Acresce que a justificação para que tal depoimento fosse prestado é relevante, proporcionada e atendível, na medida em que a testemunha terá conhecimento de “todos os factos discutidos aquando da elaboração e outorga dos documentos e respectivas intenções junto do R, tendo sido o próprio a participar em reuniões ainda com o BES, no acordo de 2012 e depois com o NB, já com a resolução, conhecendo todos os factos e tendo tido participação neles, como referem os autores, seus ex-clientes.
Ademais, tendo sido inquiridas como testemunhas vários funcionários do Banco Réu, evidencia-se o depoimento do Dr. JN como crucial no apuramento dos factos conducentes à descoberta da verdade material e boa administração da justiça.
Assim ponderando os interesses inerentes ao dever de sigilo – tutela da confiança do cliente no mandato outorgado ao seu advogado e da própria dimensão social que a profissão tem imanente – e os interesses que com ele conflituam nos autos, no caso concreto, os primeiros devem ceder aos últimos (até porque são os próprios ex-clientes do depoente quem suscitou a sua audição - nela consentindo, portanto - sobre factos praticados no exercício e por causa do mandato conferido ao mesmo, estando relacionados com os serviços forenses solicitados e prestados.
Prevalece, pois, o interesse público da realização da justiça, com a consequente quebra do sigilo profissional e dever de prestação do depoimento.
Nestes termos e pelo exposto solicita-se junto do Tribunal da Relação de Lisboa, que caso assim seja entendido, se autorize a quebra do sigilo profissional à testemunha, IM José António da Silva Nogueira, previsto nos artigos 92.º do EOA e artigos 417º, n.º 4 do CPC ex vi artigo 135 do CPP, a fim da mesma puder prestar depoimento no âmbito dos presentes autos, tomando posição sobre factos invocados pelo A. nos factos da P.I. nº 16, 17º, 24º, 31º a 33º, 35º, 40º, 42º, 48º, não se deferindo quanto aos demais indicados na PI, por serem conclusivos e bem assim vão indeferidos os indicados no requerimento de ampliação do pedido de 15/10/2018, por também serem conclusivos.
Instrua a secção o presente incidente de quebra de sigilo profissional, com certidão da petição inicial e do requerimento de ampliação do pedido, da acta de audiência final de 21-03-2022 e da decisão tomada pela Ordem dos Advogados sobre a dispensa de segredo profissional da testemunha Dr JN junta aos autos a fl.s 492 e 493.
Notifique.”

II- OS FACTOS

Os elementos relevantes para a decisão são os que constam do relatório supra destacando-se ainda o seguinte que resulta dos autos:
1- O Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados a propósito da consulta feita pelo Exmo. Sr. Dr. JNa, sobre a dispensa de segredo profissional n.º 61/SP/2022-P proferiu o seguinte despacho:
Em conformidade com o acima vertido, que aqui se dá por reproduzido, porque já teve intervenção no processo na qualidade de mandatário, não poderá nesse mesmo processo ser indicado como testemunha, decide-se indeferir o pedido do Requerente.
Ademais o levantamento do segredo profissional pressupõe a absoluta necessidade da sua revelação, consignada na observância dos pressupostos cumulativos da exclusividade, da essencialidade, da imprescindibilidade e da actualidade. No caso em análise, em face da forma como o requerimento foi apresentado pelo requerente, não estão demonstrados os requisitos da necessidade, essencialidade e exclusividade do meio de prova sujeito a sigilo e, por isso, o levantamento sempre seria indeferido.”
2-O Sr. Dr. JN tem conhecimento dos factos sobre os quais foi requerida a sua inquirição porque participou nas negociações entre Autores e Réus, na qualidade de advogado dos primeiros.

III- O DIREITO

Importa decidir no presente incidente se deve ser determinado o levantamento do sigilo profissional invocado pelo Ilustre Advogado que foi arrolado como testemunha pelos Autores, como fundamento da respetiva escusa a prestar depoimento na audiência final.
Sob a epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”, dispõe o n.º 1 do artigo 417.º do Código de Processo Civil o seguinte: “Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.
Prevê o n.º 2 do indicado preceito, além do mais, a condenação em multa daqueles que recusem a colaboração devida. Acrescenta o n.º 3, por seu turno, que “a recusa é, porém, legítima se a obediência importar, entre outras situações, a prevista na alínea c): “a violação do sigilo profissional”.
Esclarece o n.º 4 que, deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Assim, deduzida a escusa com fundamento na violação do sigilo profissional, cumpre atender, por força do estatuído no n.º 4 do citado artigo 417.º, ao disposto no artigo 135.º do Código de Processo Penal, designadamente às normas constantes dos seus n.ºs 2 e 3, com a redação seguinte: “2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
Acrescenta o n.º 4 deste preceito o seguinte: “4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
No caso em apreço, esse parecer foi emitido, a pedido da própria testemunha, sujeita ao dever de sigilo, sendo certo que a Ordem dos Advogados emitiu parecer negativo.
Porém, é certo que esse parecer, embora legalmente imprescindível, não é vinculativo para o Tribunal [1]
O Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2008, datado de 13-02-2008 – publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 63 (31-03-2008) –, fixou a seguinte jurisprudência:
« 1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário; 2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal; 3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo
Decorre, pois deste AUJ que compete ao tribunal perante o qual a escusa, com fundamento na violação do sigilo profissional, for invocada, apreciar a legitimidade da recusa, averiguando da existência de sigilo. De seguida, caso conclua pela inexistência de sigilo e, assim, pela ilegitimidade da escusa, compete-lhe ordenar a prestação do depoimento. Se, pelo contrário, considerar legítima a escusa, por se encontrar matéria em causa abrangida pelo dever de sigilo, haverá lugar ao incidente de quebra de segredo profissional. É o caso dos presentes autos em que, efectivamente, o Tribunal de 1.ª Instância bem decidiu pela legitimidade da escusa, sendo certo que tendo a testemunha requerido à Ordem dos Advogados a dispensa do segredo profissional, o mesmo lhe foi indeferido por aquela entidade.
Estando em causa o sigilo profissional de advogado, há que atender ao estatuído no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09-09), com a epígrafe “Segredo profissional”, o qual dispõe, no n.º 1, que “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
Porém, considerando as normas legais, já supra mencionadas, a este Tribunal da Relação caberá ponderar os valores em conflito, a fim de indagar se a recusa, embora legítima, deve ou não ceder perante o dever de colaboração com a realização da justiça sendo que o critério fundamental para tal decisão consiste na determinação do interesse que em concreto se deva considerar preponderante, considerando a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a necessidade de protecção dos bens jurídicos em presença.
O dever de sigilo profissional dos advogados, contido no art.º 92.º do EOA, embora seja um interesse de ordem pública, é estabelecido, fundamentalmente, no interesse dos respectivos clientes, releva dizer que, no caso em apreço , são os próprios clientes, ora Autores, que pretendem que a testemunha preste depoimento sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional.
Por outro lado, importa sublinhar, igualmente, que relativamente aos factos sobre os quais foi requerido o depoimento da testemunha, não existe outra prova para além da prova testemunhal.
Não há outra testemunha que tenha participado nas negociações entre os Autores e o Banco e que, por conseguinte, possa depor sobre tais factos, assegurando assim uma posição de igualdade entre as partes, dado que o Banco já teve oportunidade de apresentar como testemunhas os seus funcionários.
Caso não seja dispensada a testemunha do segredo profissional, pode ficar seriamente comprometido o direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, por parte do Autor, direito constitucionalmente garantido no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, conflitos desta natureza resolvem-se “pela avaliação da diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados por aqueles deveres, segundo um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como impõe o n.2 do art.º 18.º, da Constituição”.[2]
Tal como bem referiu a 1.ª instância “tendo sido inquiridas como testemunhas vários funcionários do Banco Réu, evidencia-se o depoimento do Dr. JN como crucial no apuramento dos factos conducentes à descoberta da verdade material e boa administração da justiça”.
Assim, não podemos deixar de concluir, tal como concluiu aquele Tribunal ao suscitar o presente incidente que “ponderando os interesses inerentes ao dever de sigilo – tutela da confiança do cliente no mandato outorgado ao seu advogado e da própria dimensão social que a profissão tem imanente – e os interesses que com ele conflituam nos autos, no caso concreto, os primeiros devem ceder aos últimos (…). Prevalece, pois, o interesse público da realização da justiça, com a consequente quebra do sigilo profissional e dever de prestação do depoimento.
Procede, pois, o presente incidente.


IV- DECISÃO

Em face do que fica exposto, acordamos nesta 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o presente incidente e, consequentemente, autorizar a dispensa do sigilo profissional à testemunha, Dr. JN, previsto nos artigos 92.º do EOA e artigos 417º, n.º 4 do CPC ex vi do artigo 135.º do CPP, a fim de o mesmo prestar depoimento no âmbito dos presentes autos, sobre factos invocados pelo A. nos artigos n.º16, 17º, 24º, 31º a 33º, 35º, 40º, 42.º e  48.º da p.i.
Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 29 de Junho de 2023
Maria de Deus Correia
Vera Antunes
Teresa Soares
_______________________________________________________
[1] Vide acórdão do STJ de 15-02-2017, Processo n.º 1130/14 e Acórdão do TRP de 06-05-2019, Processo 42896/18, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina, p. 363