Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
21174/22.4T8LSB.L1-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: EXECUÇÃO
PAGAMENTO
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
INTERESSE PROCESSUAL
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Determinar se um crédito exequendo efectivamente existe e é devido ou se foi extinto por pagamento (como invoca a autora), será questão que deve ser apreciada nos termos processualmente definidos, no âmbito executivo ou em sede registal, com vista ao cancelamento dos ónus hipotecários.
II. A existência desta contra-acção, de simples apreciação negativa, intentada autonomamente à margem daqueles autos executivos e onde não se pretende aquele cancelamento registal, mas apenas a declaração de que a autora nada deve à ré, mostra-se exdrúxula, extravagante ou parasitária, ao arrepio da tramitação processual adequada à pendência dos autos executivos, logo, inútil.
III. Sendo inútil, demonstra-se carecida de interesse processual em agir, legítimo ou relevante.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. O relatório
AA
interpôs a presente acção comum, contra
Sagasta Finance – STC, S.A.
e
HG PT, S.A.,
peticionando:
Requer-se assim a Vª Exª que:
Julgue a presente acção procedente, declarando-se que a A. nada deve às RR., seja a que título for, nomeadamente no âmbito dos créditos Hipotecários nº 10000134 e nº 20000249, ou seja, que o reclamado crédito sobre a A. indicado na missiva da 2ª R de 20.5.2022 não existe ou não lhe é exigível.
As rés, citadas, contestaram.
A 1ª ré impugnou motivadamente parte da factualidade vertida na petição inicial, propugnando pela improcedência da demanda e excepcionando a ineptidão da petição inicial.
A 2ª ré impugnou motivadamente parte da factualidade vertida na petição inicial, propugnando pela improcedência da demanda e excepcionando a própria ilegitimidade passiva. Mais peticionou a condenação da autora como litigante de má fé, em indemnização a fixar pelo Tribunal.
A autora respondeu, propugnando pela improcedência das excepções, alegando que o crédito em questão se encontra extinto por pagamento e por prescrição bem como peticionando a condenalção das rés como litigantes de má fé, em multa e indemnização a fixar pelo Tribunal.
Concedido que foi prazo às partes para «alegarem por escrito», todas exerceram essa faculdade, repetindo a argumentação dos articulados.
Em 22/11/2024, foi proferida decisão, com os seguintes dispositivos:
Pelo exposto, julgo procedente a excepção dilatória e, em consequência, ao abrigo do disposto nos artigos 576º, n.º 2 e 577º, e) do C.P.C., absolvo da instância a Ré HG, PT, S.A.
Pelo exposto, sem necessidade de outros considerandos, julga-se improcedente a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial.
Pelo exposto e ao abrigo das disposições legais supra citadas, o Tribunal julga a presente acção totalmente procedente e, em consequência, declara que a Autora nada deve à Ré, Sagasta Finance, STC, S.A., no âmbito dos contratos de crédito hipotecário nºs 10000134 e 20000240 celebrados em Janeiro de 2007 com a “GE Consumer Finance, IFIC, S.A.”.
Mais foram as partes absolvidas dos pedidos de condenação como litigantes de má fé.
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Inconformada, a 1ª ré interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
I. A SENTENÇA DA QUAL ORA SE RECORRE TEM COMO COMO THEMA DECIDENDUM A PROCEDÊNCIA DA ACÇÃO INTERPOSTA PELA AUTORA E, EM CONSEQUÊNCIA DA DECLARAÇÃO QUE A MESMA NADA DEVE À RÉ, ORA APELANTE;
II. NA DECISÃO PROPRIAMENTE DITA, A SENTENÇA RECORRIDA JULGA PROCEDENTE A ACÇÃO E EM CONSEQUÊNCIA DECLARA QUE A AUTORA NADA DEVE À RÉ, AQUI APELANTE, NO ÂMBITO DOS CONTRATOS DE CRÉDITO HIPOTECÁRIO N.ºS 10000134 E 200000249, CELEBRADOS EM JANEIRO DE 2007.
III. A EXEQUENTE, AQUI APELANTE, CREDORA HIPOTECÁRIA, ENTENDE QUE ANDOU MAL O TRIBUNAL A QUO NA FORMA COMO PROCEDEU À DECISÃO NOMEADAMENTE NO QUE CONCERNE À VALORAÇÃO DA PROVA JUNTA;
IV. A SENTENÇA DE QUE ORA SE RECORRE NÃO ATENTA QUE A PROVA JUNTA COMPROVA A EXISTÊNCIA DE VALOR EM DÍVIDA, NOMEADAMENTE A PROVA DA CELEBRAÇÃO DE DOIS CONTRATOS DE CRÉDITO HIPOTECÁRIO E A SUA SUBSEQUENTE RESOLUÇÃO CONTRATUAL E POSTERIOR EXECUÇÃO EM ACÇÃO PRÓPRIA;
V. NÃO SENDO UMA INSTITUIÇÃO BANCÁRIA A RÉ NÃO DISPÕE DE OUTRA DOCUMENTAÇÃO ALÉM DA JUNTA E QUE CONSIDERANDO-SE INTEGRALMENTE REPRODUZIDA NOS AUTOS SERÁ SUFICIENTE PARA A INDICAÇÃO DOS VALORES EM DÍVIDA.;
VI. A AUTORA NÃO APRESENTA QUALQUER INDICAÇÃO DE PAGAMENTO DAS QUANTIAS CONSTANTES DAS CARTAS DE RESOLUÇÃO NEM DE PAGAMENTO ANTECIPADO DAS QUANTIAS PELO QUE, MESMO QUE NÃO ESTIVESSEM RESOLVIDOS OS CONTRATOS SEMPRE OS MESMOS ESTARIAM AINDA EM VIGOR ATENTO O PRAZO PELO QUE FORAM CELEBRADOS;
VII. PELOS PRINCÍPIOS GERAIS DE PRODUÇÃO DE PROVA E MEDIANTE A SUBMISSÃO A RACIOCÍNIOS LÓGICOS, ÀS REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM E NORMALIDADE DOS ACONTECIMENTOS DA VIDA DECORRE QUE O EXPLANADO PELA AUTORA, MORMENTE QUE NADA DEVE À RÉ, NÃO É SEQUER VEROSIMEL.
VIII. EM CONSEQUÊNCIA, A ACÇÃO SER JULGADA IMPROCEDENTE E EM CONSEQUÊNCIA SER A RÉ ABSOLVIDA DO PEDIDO.
Termos em que, nos melhores de Direito e com o sempre Mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando- se a decisão recorrida, substituindo-a, em conformidade, por uma outra que absolva a ré do pedido.
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A autora contra-alegou, propugnando pela improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Convidadas as partes, por despacho do relator, a pronunciarem-se sobre a excepção inominada de apreciação oficiosa de inexistência de interesse em agir por parte da autora, apenas a recorrida o fez, no sentido da respectiva improcedência.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
Do alegado incumprimento do ónus de alegação do crédito pela recorrente.
Da excepção de falta de interesse em agir.
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III. Os factos
Receberam-se da 1ª instância os seguintes factos provados:
1. Em 20.05.2022, a Autora recebeu uma mensagem de correio electrónico proveniente da 25 Ré, do qual consta, além do mais, que «a SAGASTA FINANCE - STC continua detentora dos créditos hipotecários nº 10000134 e 20000249, inicialmente celebrados pela GE, e de acordo com a Cessão de Créditos celebrada em 14.06.2016.»
2. Em Janeiro de 2007, a Autora outorgou junto da “GE Consumer Finance IFIC, S.A.” os contratos de crédito hipotecário com os nºs ...0...00134 e ...0...00249, através da respectiva escritura pública, nos termos dos quais esta lhe emprestou as quantias de € 35.432,97 e de € 38.377,58: doc. 1 junto com a contestação da 1.ª Ré.
3. Nos termos desses instrumentos contratuais, nomeadamente, do documento complementar junto às escrituras de mútuo com hipoteca, a taxa de juro acordada inicial (TAN) foi de 9,9450% e estava indexada à taxa Euribor, somando-se a taxa remuneratória de 6% (“spread”) à taxa Euribor variável a 180 dias.
4. O capital mutuado deveria ser reembolsado em 320 prestações mensais e sucessivas.
5. Para garantia dos capitais mutuados e respectivos juros, foram constituídas 2 hipotecas a favor da GE Consumer Finance, IFIC, S.A., sobre a fracção autónoma designada pelas letras “AK”, correspondente a habitação no segundo andar direito, com entrada pelo n.º ..., com garagem na cave, do prédio urbano sito ..., freguesia de ..., concelho de Gondomar, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...3...34, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº ....
6. A GE Consumer Finance - IFIC, S.A. intentou contra a aqui Autora, em 30.03.2010, acção executiva que correu termos no Juízo de Execução do Porto - J5, sob o nº 1192/10.6T8GDM, no âmbito do qual foi promovida a penhora do imóvel dado em garantia - doc. 4 junto com a contestação da 1.ª Ré.
7. Em virtude da existência de penhora anterior no âmbito de outra execução, aqueles autos foram sustados, tendo sido reclamados créditos nesta, a qual correu termos sob o nº 593-A/2000, depois com o nº 15137/00 - doc. 5 junto com a contestação da 1.ª Ré.
8. O apenso A de reclamação de créditos recebeu sentença, notificada às partes em 12/06/2014, nos termos da qual os créditos da GE CONSUMER FINANCE IFIC, S.A. foram reconhecidos e graduados em segundo lugar (a seguir ao crédito reclamado pelo Estado) - doc. 6 junto com a contestação da 1.ª Ré.
9. Por contrato datado de 02.09.2013, a “GE Consumer Finance, IFIC, Instituição Financeira de Crédito, S.A.”, sociedade em liquidação, cedeu um conjunto de créditos, de que era titular, à General Electric Money Financial Services SL - cf. doc. 8.
10. Por sua vez, por contrato de compra e venda cujo certificado de conclusão foi formalizado em 14.07.2016, a General Electric Money Financial Services SL cedeu os referidos créditos à ora Ré, incluindo a transmissão de todos os direitos e garantias acessórios, designadamente as hipotecas constituídas para sua garantia, bem como a posição processual daquela nos processos judiciais, relativamente a cada um dos créditos cedidos.
11. Perante tais cessões, foi apresentada, no âmbito do proc. nº 2625/14.8T8PRT, incidente de habilitação de cessionário, que correu termos no apenso B respectivo - doc. 8 junto com a contestação da 1.ª Ré - incidente que foi objecto de sentença de procedência do incidente, datada de 10.05.2017.
12. Ainda no âmbito de tal cessão, foi remetida pela ora 1.ª Ré à devedora, a aqui Autora, uma carta remetida para a morada contratual da devedora a comunicar a cessão ocorrida - cf. doc. 10 junto com a contestação da 1.ª Ré.
13. No âmbito dos autos principais daquele processo 2625/14.8T8PRT, foram encetadas as diligências necessárias à venda do imóvel penhorado, sendo que, em 11.04.2018, foi aí proferido despacho a autorizar a adjudicação do imóvel à ali credora reclamante, ora 1.ª Ré, pelo valor de € 67.975,00 - cf. doc. 11.
14. Porém, na sequência de requerimento apresentado nesses autos pela aqui Autora, em 22.09.2020, no sentido da nulidade da sua citação, veio a ser proferido despacho, datado de 17.05.2021, com o seguinte teor, além do mais que ora se dá por reproduzido, cf. doc. 12 junto com a contestação da 1.ª Ré: «(...) nos termos dos artigos 195º, nº 1, alínea e), 198º, nº 1 e 201º, nº 2 do C.P.C., outra solução não resta do que decretar a falta/nulidade da referida notificação, bem como dos actos subsequentes incompatíveis com a sua falta, designadamente os actos referentes à venda da fracção autónoma designada pelas letras “AK” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº ...6.../1994 (freguesia de ...) e a sentença proferida no apenso de reclamação de créditos. (...)»
15. O proc. 2625/14.8T8PRT findou por despacho proferido em 02.12.2021, que homologou a desistência da instância - cf. doc. 9 junto com a réplica.
16. Por comunicação escrita dirigida à 1.ª Ré, que recebeu, a Autora solicitou o seguinte, cf. doc. 12 junto com a contestação: «(...) Na sequência do encerramento e extinção do processo de execução (...), solicitamos a V.ss Ex.ªs antes do mais a informação sobre se são ainda detentores (ou não) de algum crédito que tenham sido anteriormente detido pela “GE Consumer” e “General Electric” (...). Isto, a fim de podermos formular uma proposta de pagamento de alguma eventual dívida remanescente. (•••)»
17. Em resposta, a ora 1.ª Ré por correio electrónico datado de 20.05.2022, comunicou o seguinte, cf. doc. 13 junto com a contestação: «(...) Confirmamos que a SAGASTA (...) continua detentora dos créditos hipotecários nºs (...). Considerando que a adjudicação do imóvel foi anulada, esclarecemos que o montante total da dívida à data de hoje (...) é de 207.803,18 EUR e que caso a situação não seja regularizada até 31.05.2022, iremos accionar os meios judiciais ao nosso dispor para a respectiva recuperação. (...)»
18. A esta comunicação, a Autora respondeu por mensagem electrónica do mesmo dia, da seguinte forma: «(...) Porque o valor que comunicam está muito distante do valor que me foi comunicado (...) como sendo o valor em dívida, muito agradeço que me informe qual a origem e liquidação de tal valor.» - cf. doc. 1 com a réplica.
19. A Autora não tem responsabilidades bancárias ou de crédito pendentes no mapa de responsabilidades bancárias do Banco de Portugal desde 2016.
20. Entre 2012 e 2015, a Autora realizou a favor da GE Consumer Finance, IFIC, S.A. e, posteriormente, de GE Capital Bank, S.A., um conjunto de pagamentos que totalizam, pelo menos, a quantia de € 57.462,87 - cf. doc. 10 junto com a réplica.
21. A Ré emitiu em nome da Autora um documento datado de 31.10.2016, identificado como “AVISO/RECIBO* do Contrato: ...0...00134, com o seguinte teor, além do mais que se dá por reproduzido, cf. doc. 4 junto com a réplica: «(...) Cumpre-nos informar que em 04/11/2016 se vencerá uma prestação pelas seguintes importâncias: Contrato (...) Capital em Dívida após prestação 29.585,48; Contrato (...) Capital em Dívida após prestação 32.252,02 (...)».
22. A Ré emitiu em nome da Autora um documento datado de 28.11.2016, identificado como “AVISO/RECIBO* do Contrato: ...0...00134, com o seguinte teor, além do mais que se dá por reproduzido, cf. doc. 5 junto com a réplica: «(...) Cumpre-nos informar que em 04/12/2016 se vencerá uma prestação pelas seguintes importâncias: Contrato (...) Capital em Dívida após prestação 29.503,36; Contrato (...) Capital em Dívida após prestação 32.162,52 (...)».
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IV. O Direito
Fundou a Exma. Juíza a quo a sua decisão nas seguintes considerações jurídicas:
Assentes estes princípios, podemos regressar ao caso dos autos, onde verificamos que a Ré não alegou nem demonstrou, como lhe incumbia, os factos essenciais, constitutivos do direito que pretendia arrogar-se perante a Autora, num contexto em que, realmente, permanecia a incerteza quanto à circunstância de saber se, e quanto, a mesma seria devedora no âmbito dos contratos de créditos aqui em causa.
Com efeito, perante os pagamentos efectuados pela Autora ao longo do tempo, que a mesma demonstrou, torna-se imediata a conclusão de que existe grande disparidade entre os montantes supostamente em dívida, conforme a documentação emitida pela própria Ré já em 2016 (cf. ponto 22. dos factos provados), e o valor que a mesma comunicou à Autora em 2022 (cf. ponto 17. dos factos provados). Pelo que havia uma situação de efectiva e objectiva dúvida relativamente à responsabilidade da Autora perante a Ré, justificando a propositura de uma acção de simples apreciação negativa como a dos presentes autos.
Por outro lado, reconhecida a existência da dúvida, incumbia à Ré o fornecimento dos elementos de facto pertinentes à completa identificação e descrição dos valores alegadamente em dívida pela Autora, por referência aos contratos identificados nos autos: número e valor das prestações em dívida, datas de vencimento, existência, ou não, de interpelação para pagamento, com consequente perda do benefício do prazo, considerando que se trata de contratos de execução continuada no tempo. Nada disso a Ré fez, nos presentes autos, sendo que: os elementos provenientes do processo executivo de nada valem para o apuramento e definição da situação relativa aos contratos no âmbito da presente acção, considerando a anulação de todo o processado na sequência da declaração de nulidade da citação da Autora, ali executada e reclamada, incluindo a putativa cessão de créditos a favor da Ré; a mera remissão para o valor indicado na comunicação escrita dirigida à Autora, na sequência de interpelação desta é, também, totalmente inócua - não só porque se trata de uma informação prestada fora da presente acção, e não aceite pela Autora, como, também, dado que essa mesma informação foi, na ocasião em que foi prestada, logo questionada pela própria, conforme atestam as comunicações subsequentemente enviadas, sem resposta (que, sintomaticamente, a Ré se escusou de mencionar nas suas diversas tomadas de posição nesta acção: ponto 18. dos factos provados).
Tendo falhado, portanto, indubitavelmente, no cumprimento do ónus da prova que lhe incumbia, nos termos expressamente determinados pelo artigo 343º do Código Civil, torna-se clara a conclusão de que a situação de dúvida que justificou a propositura desta acção deve ser superada mediante o reconhecimento judicial de que a Autora nada deve, actualmente, à Ré, no âmbito dos contratos celebrados em 2007 com a GE Consumer Finance, IFIC, S.A..
*
Dois fundamentos nos afastam das considerações e conclusão da sentença recorrida: a consideração de que a recorrente incumpriu o ónus de alegação e prova quanto à existência do seu crédito sobre a recorrida e a constatação da falta de interesse em agir da recorrida. Senão, vejamos:
Do alegado incumprimento do ónus de alegação pela recorrente
Compulsados os autos, cumpre revisitar os seguintes passos da contestação apresentada pela recorrente:
42.º
A Autora não cumpriu as obrigações por si voluntariamente assumidas, não tendo liquidado as prestações que, no âmbito daqueles contratos, se venceram em 04.02.2009, nem as que se venceram posteriormente.
43.º
Face à mora da Executada, a Credora considerou imediatamente vencido todo o seu crédito, com a consequente exigibilidade da totalidade dos montantes em dívida, bem como os juros remuneratórios – conforme se infere e prova pela cópia das cartas de resolução que se juntam como documento 2 e 3 e se dão por reproduzida para todos os legais efeitos
49.º
Por contrato datado de 02 de Setembro de 2013, a “GE Consumer Finance, IFIC, Instituição Financeira de Crédito, S.A.”, sociedade em liquidação, cedeu um conjunto de créditos, de que era titular, à General Electric Money Financial Services SL. - conforme cópia do incidente de habilitação e respectivos contratos anexos, que se junta como documento n º 8 e dá por reproduzida para todos os legais efeitos
50.º
Por sua vez, por contrato de compra e venda cujo certificado de conclusão foi formalizado em 14 de Julho de 2016, a General Electric Money Financial Services SL cedeu os referidos créditos à ora Ré a SAGASTA FINANCE STC, S.A, conforme documentos que ora se juntam e dão por reproduzidos.
51.º
A referida cessão de créditos incluiu a transmissão de todos os direitos e garantias acessórios, designadamente as hipotecas constituídas para sua garantia, bem como a posição processual daquela, nos processos judiciais, relativamente a cada um dos créditos cedidos.
52º
A cessão incluiu a transmissão, à SAGASTA FINANCE STC, S.A, de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes aos créditos cedido, designadamente DAS HIPOTECAS CONSTITUÍDAS SOBRE A FRAÇÃO AUTÓNOMA DESIGNADA PELAS LETRAS “AK” CORRESPONDENTE A HABITAÇÃO NO SEGUNDO ANDAR DIREITO, COM ENTRADA PELO N.º ..., COM GARAGEM NA CAVE, DO PRÉDIO URBANO SITO ..., ..., CONCELHO DE GONDOMAR, INSCRITA NA MATRIZ PREDIAL URBANA SOB O ARTIGO ...3...34, E DESCRITO NA CONSERVATÓRIA DO REGISTO PREDIAL DE GONDOMAR SOB O Nº ..., ou seja os créditos aqui em crise. - conforme cópia do incidente de habilitação e respectivos contratos anexos, que se junta como documento n º 8 e dá por reproduzida para todos os legais efeitos.
62.º
Pelo que, com tal anulação, se mantêm em dívida os valores resultantes do referido incumprimento e que actualmente constituem, crédito da aqui Ré.
63.º
Do que vem de ser dito e devidamente documentado resulta evidente que a Autora bem sabe, como sempre soube, que os créditos resultantes do incumprimento dos contratos de crédito hipotecário nº ...0...00134 permanecem por liquidar.
67.º
Da mesma forma que foi o Mandatário da aqui Autora quem remeteu à SAGASTA FINANCE STC, S.A. carta a solicitar informação quanto aos créditos ainda existentes sobre a sua Constituinte, no seguimento da anulação da adjudicação do imóvel, no âmbito do processo 2625/14.8T8PRT, por forma a poder formular uma proposta de pagamento - conforme cópia da carta recebida pela aqui Ré e que se junta como documento nº 13 e dá por reproduzida para todos os legais efeitos
68.º
E, foi no âmbito de tal interpelação, que lhe foi remetida, via email, resposta, pelos Serviços a Clientes, a confirmação da existência de dívida – conforme cópia de email que se junta como documento nº 14 e dá por reproduzida para todos os legais efeitos
69.º
É inelutável concluir que, face à confessada celebração dos contratos de mútuo com hipoteca e à requerida e conseguida anulação da adjudicação do imóvel, a Autora bem sabe, como sempre soube que se mantêm em dívida os valores resultantes do incumprimento contratual.
70.º
Tal como tem pleno conhecimento, porque lhe foi remetida carta nesse sentido e porque, pelo menos desde Setembro de 2020, interveio no processo judicial no qual a mesma foi alegada, da cessão de créditos ocorrida a favor da aqui Ré,
71.º
E como sabe, pelo menos desde 20 Maio de 2022, o valor exacto, àquela data, da dívida, porquanto foi dele informada, na pessoa do seu mandatário, no seguimento de pedido de informação dirigido à aqui Ré.
Ainda que tal não bastasse, vejamos as alegações de facto e direito apresentadas pela recorrente, antes da prolacção da decisão recorrida:

Nos termos dos contratos juntos aos autos, a GE CONSUMER FINANCE IFIC S.A, emprestou à Autora as seguintes quantias:
 A quantia de € 35.432,97 (trinta e cinco mil, quatrocentos e trinta e dois euros e noventa e sete cêntimos), convencionando-se no mencionado contrato que o capital mutuado venceria juros à taxa anual de 14,00%, elevável em caso de mora, de uma sobretaxa atítulo de cláusula penal, no máximo legalmente possível, que actualmente se fixa em 4%, sendo o capital mutuado reembolsado em trezentas e vinte e quatro prestações mensais, sucessivas e constantes.
 A quantia de € 38.377,58 (trinta e oito mil, trezentos e setenta e sete mil e cinquenta e oito cêntimos), convencionando-se no mencionado contrato que o capital mutuado venceria juros à taxa anual de 14,00%, elevável em caso de mora, de uma sobretaxa a título de cláusula penal, no máximo legalmente possível, que actualmente se fixa em 4%, sendo o capital mutuado reembolsado em trezentas e vinte e quatro prestações mensais, sucessivas e constantes.

A Autora não cumpriu as obrigações por si voluntariamente assumidas, não tendo liquidado as prestações que, no âmbito daqueles contratos, se venceram em 04.02.2009, nem as que se venceram posteriormente.

Face à mora da Autora, a Ré considerou imediatamente vencido todo o seu crédito, com a consequente exigibilidade da totalidade dos montantes em dívida, bem como os juros remuneratórios – cfr. cópia das cartas de resolução que se juntam como doc. 3 e 4 e se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos.

Em 30/03/2010, a GE CONSUMER FINANCE IFIC, S.A. viu-se forçada a intentar acção executiva, contra aqui Autora, a qual correu termos no Juízo de Execução do Porto - Juiz 5, sob o número 1192/10.6TBGDM e no âmbito do qual foi requerida a penhora do imóvel dado em garantia.
10º
Em virtude de penhora anterior, houve lugar à sustação da execução e foram reclamados créditos na execução de terceiro intentada contra a aqui Autora – Proc. 2625/14.8T8PRT.
11º
Foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos e notificada às partes em 12/06/2014, nos termos da qual os créditos da GE CONSUMER FINANCE IFIC, S.A. foram reconhecidos e graduados em segundo lugar (a seguir ao crédito reclamado pelo Estado).
12º
Sucede que, a referida acção executiva – Proc. 2625/14.8T8PRT veio a ser extinta por pagamento parcial não prejudicando, contudo, a validade e efeitos da referida graduação.
14º
Nunca foram pagos quaisquer montantes decorrentes dos créditos hipotecários celebrados com a Autora, à ora Ré, nesta data Sagasta Finance STC, S.A.
Da leitura destes passos dos articulados da ré, ora recorrente, em sede de contestação e de alegações, não podemos acompanhar a conclusão a que a Exma. Juíza a quo chegou:
Por outro lado, reconhecida a existência da dúvida, incumbia à Ré o fornecimento dos elementos de facto pertinentes à completa identificação e descrição dos valores alegadamente em dívida pela Autora, por referência aos contratos identificados nos autos: número e valor das prestações em dívida, datas de vencimento, existência, ou não, de interpelação para pagamento, com consequente perda do benefício do prazo, considerando que se trata de contratos de execução continuada no tempo.
A ré alegou, tempestivamente, a identificação e descrição dos valores em dívida, por referência aos contratos em causa nos autos, o número e valor das prestações, as respectivas datas de vencimento, a interpelação para pagamento, a resolução e o vencimento antecipado das prestações não pagas.
Em termos exaustivos.
Pelo que se mostra integralmente cumprido o respectivo ónus de alegação, mostrando-se desadequado o conhecimento do mérito da acção na fase de saneamento, com aquele fundamento.
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Da falta de interesse em agir
Em segundo lugar, temos para nós que cumpre revisitar o pressuposto processual de interesse em agir, na presente lide.
Ensinam A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, pg. 186, que as acções de simples apreciação, que pode ser positiva ou negativa, consoante os casos, são aquelas em que, reagindo contra uma situação de incerteza, o autor pretende apenas obter a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
Simplesmente, como referem os mesmos Autores, “Destinando-se essas acções a “obter unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto”, tem-se entendido que não basta qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na acção”.
E mais adiante,“Só quando a situação de incerteza, contra a qual o autor pretende reagir através da acção de simples apreciação, reunir os dois requisitos postos em destaque – a objectividade, de um lado; a gravidade, do outro – se pode afirmar que há interesse processual”.
Como antes haviam escrito: “Será objectiva a incerteza que brota de factos exteriores, de circunstâncias externas e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor (…). A gravidade da dúvida medir-se-á pelo prejuízo (material ou moral) que a situação de incerteza possa criar ao autor”.
O interesse em agir, ou interesse processual, não está expressamente consagrado na nossa lei processual civil (ao contrário do que sucede, por exemplo, nas legislações italiana Art.º 100: (Interesse ad agire) "Per proporre una domanda o per contraddire alla stessa è necessario avervi interesse". e brasileira Art.º 3º: "Para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade.".).
Ensina, igualmente, Miguel Teixeira de Sousa, As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, pg. 114, que nas acções de simples apreciação autónomas, “existe interesse processual quando há uma incerteza objectiva sobre a situação jurídica do autor”.
Segundo Remédio Marques, Acção Declarativa à luz do Código revisto, pg. 86 a necessidade de subordinar a admissibilidade das acções de simples apreciação à existência de interesse processual de quem a elas recorre justifica-se à luz de dois postulados: “a) A exigência de protecção do réu contra acções vexatórias propostas pelo autor, no sentido de permitir o uso do processo para provocar danos ao réu ou limitar o direito fundamental de defesa; e b) A necessidade de lograr a economia processual e a efectividade da tutela jurisdicional dos direitos e das demais posições jurídicas, o que importa impedir que as acções de simples apreciação se transformem num peso injustificado para o aparelho jurisdicional estadual, mais precisamente nas situações em que a carência de tutela judiciária é meramente fictícia, nas eventualidades em que não se está na presença de uma ameaça efectiva à violação de direitos ou posições jurídicas, ou nos casos em que o autor tem ao seu dispor uma forma de tutela jurisdicional mais efectiva, vigorosa ou consistente (v.g., podendo propor uma acção de condenação, uma acção constitutiva ou, inclusivamente, uma acção executiva)”.
Na Jurisprudência dos tribunais superiores, e no mesmo sentido da exigência de uma incerteza objectiva e grave, vejam-se os Acs. do STJ de 3/5/1995, CJSTJ, II, 61, de 30/9/1997, BMJ 469, 457 e de 20/10/1999, BMJ 490, 238.
Tratando-se de uma acção de simples apreciação, era preciso que tivessem sido alegados factos reveladores de um estado de incerteza objectiva sobre a situação jurídica da Autora.
O que, a nosso ver, não se verifica.
Ao contrário, não se suscita qualquer dúvida objectiva sobre a situação jurídica da Autora: a ré, ora recorrente, reclama contra a autora a existência de um crédito, com garantia hipotecária, por determinado valor, cujo pagamento coercivo foi tentado nos autos sob o número 1192/10.6TBGDM e nos autos sob o número 593-A/2000, depois com o número 15137/00.8TJPRT e mais tarde com o número 2625/14.8T8PRT.
E, novamente, foi exigido o seu pagamento, pela comunicação de 20/5/2022.
Determinar se esse crédito exequendo efectivamente existe e é devido ou se foi extinto por pagamento (como invoca a autora), será questão que deve ser apreciada nos termos processualmente definidos, no âmbito daquelas execuções ou em sede registal, com vista ao cancelamento dos ónus hipotecários – que não cumpre aqui escalpelizar.
Mas a existência desta contra-acção, intentada autonomamente à margem daqueles autos executivos e onde não se pretende aquele cancelamento registal, mostra-se exdrúxula, extravagante ou parasitária, ao arrepio da tramitação processual adequada à pendência dos autos executivos, logo, inútil.
Se inútil, carecida de interesse processual em agir, legítimo ou relevante.
A omissão da dedução de uma pretensão concreta, eventualmente indemnizatória ou de cancelamento das inscrições hipotecárias que garantem o crédito da recorrente, conduz-nos à lição de Teixeira de Sousa, O Interesse Processual na Acção Declarativa, pg. 32: «também não existe interesse processual numa acção de apreciação quando o autor pode intentar uma acção condenatória (em qualquer das suas modalidades). Esta acção é então o meio adequado para o autor fazer valer o seu direito, dado que só nela o tribunal pode condenar o réu no cumprimento da obrigação e só dela pode resultar o título executivo que o autor pode utilizar para conseguir, através da acção executiva, a realização coactiva da prestação».
Não formulando qualquer pretensão indemnizatória, carece a autora de interesse processual na demanda da ré, ora recorrente.
Veja-se o Acórdão desta Relação de 1/6/2023 (Carlos Castelo Branco), disponível em www.dgsi.pt:
I) Na medida em que o interesse processual delimita o perímetro do correto exercício do direito de ação, ele deverá ser analisado à luz dos princípios constitucionais do acesso ao Direito e à Justiça, de modo a que não vede o acesso necessário ou útil, nem permita o acesso inútil.
II) O interesse processual define-se como o interesse da parte ativa em obter a tutela judicial de um direito subjetivo através de um determinado meio processual, desdobrando-se num interesse em demandar, que se afere pelas vantagens decorrentes dessa tutela e avalia-se pelas desvantagens impostas ao réu pela atribuição daquela tutela à contraparte.
III) A necessidade ou carência de tutela judicial, que conforma o interesse processual, deve ser aquilatada à data em que a ação é proposta, por referência ao objeto processual definido pelo autor na sua petição inicial.
IV) A questão carecida de tutela judicial terá de ser séria ou justificada e atual, devendo o interesse em agir ser aferido, objetivamente, pela posição alegada pelo autor que tem de demonstrar a necessidade do recurso a juízo como forma de defender um seu direito.
V) A incerteza do demandante deve ser objetiva (devendo resultar de comportamentos inequívocos e contemporâneos do demandado, incompatíveis com a subsistência prática da posição jurídica em causa, que se alega estar perigada, não bastando a dúvida subjetiva do demandante ou o seu interesse puramente académico em ver definido o caso pelos tribunais) e séria (no sentido de ser prejudicial para os interesses do autor, comprometendo o valor da relação jurídica, a sua negociabilidade ou a sua livre fruição, devendo tal prejuízo ser atual e não meramente potencial).
VI) Nas ações de simples apreciação, o interesse processual prende-se com um estado de objetiva incerteza acerca da existência de dada relação jurídica e do exato conteúdo dos direitos e das obrigações que dela emergem, que acarrete um prejuízo concreto e atual para o demandante, de forma a que a remoção do referido estado de incerteza constitua um resultado útil, juridicamente relevante e impossível de ser atingido sem a intervenção do juiz.
Na análise a uma situação factual que revela muitas coincidências com esta, feita pelo STJ, em Ac. de 8/3/2001, disponível na base de dados www.dgsi.pt.
Nesse caso, estava em causa o pedido de um cidadão, juiz de direito, no sentido da declaração de que não seriam verdadeiros quinze factos concretos enumerados no relatório de inspecção do seu serviço, por parte de um Sr. Inspector Judicial, à ordem do Conselho Superior de Magistratura.
Também nesse caso, entendeu o STJ pela não existência do interesse em agir, depois de fazer a pergunta essencial: A presente acção, se procedesse, revestir-se-ia de utilidade prática?.
Não tinha qualquer utilidade prática, aquela acção; nem tem qualquer utilidade prática esta lide, diremos agora.
Citando ainda essa decisão do Alto Tribunal:
Saliente-se, ainda, que o agravante alega prejuízos de vária natureza (moral, profissional, patrimonial, etc.) que lhe advêm dos efeitos da classificação de "Medíocre" atribuída pelo CSM, daí partindo para a afirmação do seu interesse em agir e para a imputação às instâncias de violação de diversos preceitos legais que discrimina, entre os quais o artigo 4º, nº 2, a) do CPC, por lhe negarem aquele interesse.
Afigura-se, porém, que o alegado não releva na solução da presente acção, já que os efeitos da classificação de "Medíocre" não foram nem podiam ser ponderados para a aferição da existência do interesse processual do autor na presente acção.
A decisão sobre o interesse processual do autor, repete-se, passa pela ponderação da possibilidade de alteração (designadamente por via da revisão) da referida notação.
E tendo nós entendido que essa possibilidade está legalmente excluída, excluída fica, naturalmente, a afirmação desse interesse processual.
Ou seja, a cessação dos efeitos que o autor menciona (efeitos que decorrem da própria classificação de "Medíocre") tinha como pressuposto a possibilidade de alteração da classificação notativa do autor, que nela pretende assentar o seu interesse em agir.
Por outras palavras: os aludidos efeitos, sendo meras consequências ou reflexos da notação, nunca poderiam fundar o interesse processual do autor na presente acção.
Também neste caso, diremos que irrelevam quaisquer prejuízos da autora – isso apenas seria possível, desde que fosse peticionada a condenação das rés no ressarcimento desses prejuízos – com o que, obtendo ganho de causa, teria a autora à sua disposição título executivo.
Ora, podendo reagir em sede própria nos autos executivos ou em sede registal, com vista ao cancelamento dos ónus hipotecários (independentemente da bondade dessas pretensões, que não cumpre aqui apreciar), a interposição de acção de simples apreciação negativa é sancionada, nos termos supra expostos, com o entendimento de que a autora carece de interesse em agir.
Duas palavras para afastar a argumentação trazida aos autos pela recorrida, no seu requerimento de pronúncia sobre esta excepção: o caso julgado emergente da própria decisão recorrida.
Argumenta a recorrida que, não incidindo o objecto do recurso sobre esta questão, transitou em julgado a sentença proferida, onde se teceram considerações sobre a situação de efectiva e objectiva dúvida relativamente à responsabilidade da autora.
Ora, em primeiro lugar, o despacho saneador-sentença não apreciou em concreto este pressuposto processual.
As considerações jurídicas adoptadas pela Exma. Juiz a quo não possuem força dispositiva, constitutiva do caso julgado.
Em segundo lugar, irreleva o objecto do recurso, pois esta excepção de falta de interesse em agir é de conhecimento oficioso – como é entendimento pacífico e unânime -, pelo que se mostra válida a sua apreciação, apesar de constituir uma questão nova aos autos.
Apenas se exigia o cumprimento do contraditório prévio, o que se permitiu.
Não se verifica, pois, caso julgado relativamente à apreciação desta excepção, sendo livre tal apreciação por este Tribunal de recurso.
A inexistência de interesse em agir por parte do autor de uma acção de simples apreciação consubstancia a falta de um pressuposto da acção, inominado, que, obstando à apreciação de mérito, conduz à absolvição do réu da instância (Antunes Varela, ..., ob. cit., p. 189).
Daí a procedência da apelação.
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V. A decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na procedência da apelação:
a) revogar a decisão recorrida, no segmento respeitante à ré Sagasta Finance – STC, S.A. e
b) absolver a mesma ré da instância, por se julgar verificada a excepção de inexistência de interesse em agir da autora AA,
c) mantendo-se o restante decidido.
Custas, em ambas as instâncias, pela autora AA.
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Lisboa e Tribunal da Relação, 10 de Abril de 2025
Nuno Lopes Ribeiro
Maria Teresa Mascarenhas Garcia
Gabriela de Fátima Marques