Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17211/21.8T8LSB-H.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: CRÉDITO SOBRE A MASSA INSOLVENTE
CONTRATO DE LOCAÇÃO
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
DENÚNCIA DE CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário da responsabilidade do relator (art.º 663º nº 7 do Código de Processo Civil):
- Os créditos por incumprimento de contrato de locação vencidos entre a data da declaração da insolvência e a data em que o contrato haja cessado a produção dos seus efeitos, por denúncia do administrador da insolvência, consubstanciam créditos sobre a massa insolvente (e não créditos sobre a insolvência).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório
1- “J - Sociedade de Gestão e Investimentos, S.A.” intentou a presente acção de despejo, por apenso aos autos de insolvência, contra a Massa Insolvente da “X - Laboratório de Prótese Dentária, Ldª”, pedindo que:
- A R. seja condenada a pagar à A. a quantia de 1.022,40 € a título de rendas vencidas, acrescida dos juros já vencidos à taxa legal, que até à data da propositura da acção ascendiam a 80,55 €, o que perfaz a quantia global de 1.102,95 €, bem como os juros vincendos, contados à taxa legal em vigor desde a citação até integral pagamento.
- A R. seja condenada a desocupar o locado e entregá-lo à A. livre e devoluto de pessoas e bens próprios, com as reparações que lhe incumbam.
-A R. seja condenada, a título de indemnização pela mora na restituição do locado, nos termos do art.º 1045º nº 2 do Código Civil, do montante correspondente ao valor do dobro das rendas que se venceriam de Abril de 2022 até efectiva desocupação e entrega do locado, que se cifrava, à data da apresentação em juízo da petição inicial (28/12/2022), em 3.074,40 €, bem como os juros vincendos, contados à taxa legal em vigor desde a citação até integral pagamento.
2- Tendo a R. sido regularmente citada, veio a mesma contestar, defendendo a procedência da excepção dilatória de ineptidão da petição inicial e a consequente absolvição da R. da instância.
Caso assim não se entenda, pede que sejam os autos extintos por impossibilidade/inutilidade da lide nos termos do art.º 277º al. e), do Código de Processo Civil.
Por último, pede que a acção seja julgada improcedente por não provada e, consequentemente, a R. absolvida do pedido.
3- A A. apresentou articulado de resposta.
4- Posteriormente foi proferido Saneador-Sentença que julgou a acção procedente, constando da sua parcela decisória:
“Pelo exposto, julgo:
A) Extinta a instância quanto ao pedido de entrega do locado, absolvendo do mesmo a Ré por inutilidade superveniente da lide nesta parte;
B) Totalmente procedente a ação e, consequentemente, condeno a Ré Massa Insolvente de X, Lda. a pagar à Autora, J, S.A.:
i. A quantia de € 1.022,40 (mil e vinte e dois euros e quarenta cêntimos), a título de rendas vencidas, acrescidas dos juros já vencidos à data da interposição da acção no montante de € 80,55 (oitenta euros e cinquenta e cinco cêntimos), o que perfaz a quantia global de € 1.102,95 (mil cento e dois euros e noventa e cinco cêntimos), bem como os juros vincendos, contados à taxa legal em vigor desde a citação até integral pagamento;
ii. a quantia de € 3.757,60 (três mil setecentos e cinquenta e sete euros e sessenta cêntimos) – a título de indemnização pela mora na restituição do locado, nos termos do artigo 1045º, nº 2, do Código Civil, bem como dos juros vincendos, contados à taxa legal em vigor desde a citação até integral pagamento.
C) Improcedente o pedido de condenação da Ré como litigante de má-fé, absolvendo-a do mesmo.
Custas a cargo da Ré – artigo 527º e artigo 536º, nº 3, parte final, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Registe e notifique”.
5- Inconformada com tal decisão, dela recorreu a R., para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões:
“1. De acordo com os factos ocorridos os pedidos formulados pela recorrida, originarão ao abrigo do nº 3 do artigo 108.º do CIRE um crédito sobre a Insolvência e nunca um crédito sobre a Massa Insolvente.
2. Tendo sido peticionado pela recorrida a condenação como os valores sendo uma dívida da Massa Insolvente, tal pedido é impossível/inútil uma vez que em caso de hipotética condenação os valores peticionados seriam sempre um crédito sobre a insolvência e nunca uma dívida da Massa Insolvente.
3. Pelo que deveriam os autos ter sido extintos por impossibilidade/inutilidade da lide nos termos do artigo 277º alínea e) do CPC.
4. No dia 28-01-2022, o Administrador Judicial da Recorrente, informou a recorrida que desconhecia a existência de qualquer contrato de arrendamento e que não lhe fora entregue qualquer contrato de arrendamento pela Insolvente.
5. Tendo ainda sido comunicado no email enviado, a denúncia do contrato de arrendamento nos termos do artigo 108º nº 1 e ss. do CIRE e que a denúncia efectuada por email também iria ser remetida por carta registada.
6. O que aconteceu através de carta enviada, registada com aviso de recepção datada de 28-01-2022 e rececionada pela Recorrida no dia 31-01-2022.
7. Através de email enviado pela Recorrida no dia 01-02-2022 foi solicitado que fosse transmitido como pretendiam fazer quanto à entrega do imóvel.
8. Tendo sido informado pelo Administrador Judicial da Recorrente que se encontrava a fazer diligências junto do mandatário da Insolvente para que lhe fosse facultada as chaves e de forma a retirar os bens do local o mais breve possível.
9. Nesse seguimento a mandatária da recorrida informou que o Insolvente se disponibilizou a entregar as chaves tendo aqueles informado que poderiam agilizar a entrega diretamente junto da Insolvente.
10. Nesse seguimento a Recorrida foi contactada telefonicamente por colaboradores do Administrador Judicial da Recorrente e foi lhe transmitido que poderiam tomar posse livremente do imóvel, uma vez que o contrato se encontrava resolvido, tendo ficado acordado que oportunamente a Recorrida iria ser contactada por alguém da parte do Administrador judicial da Recorrente para levantamento dos bens, ao que a Recorrida anuiu.
11. Assim dos factos invocados e da prova junta pela recorrente ficou demonstrado que o imóvel foi entregue em data anterior à do termo de entrega dos bens móveis, tendo a entrega das chaves do imóvel ocorrido no início do mês de Fevereiro de 2022 e foi efectuado diretamente pela Insolvente à recorrida, mediante autorização dada pelo Administrador Judicial da Recorrente.
12. No dia 07 de Março de 2023, a sociedade S., Lda., na pessoa da senhora AA, deslocou-se ao locado para levantamento dos bens ali existentes e a pessoa que tinha as chaves e procedeu à abertura do imóvel foi uma representante da recorrida, de seu nome BB.
13. O que demonstra que a Recorrida já tinha as chaves e a posse efectiva do imóvel pelo menos desde Fevereiro de 2022, altura em que foi contactada telefonicamente pela recorrente e autorizou aquela a proceder à recolha das chaves directamente junto da Insolvente.
14. A entrega, pelo arrendatário, da chave do locado ao senhorio, que a aceita, materializando a entrega do próprio locado, traduz a revogação real do contrato de arrendamento e a contrário a tradição do locado ao arrendatário urbano, verifica-se com a entrega da chave. Essa entrega é, em si mesma (e não como resultado de presunção judicial) o facto tradição do imóvel arrendado.
15. O Administrador Judicial da Recorrente, denunciou o contrato de arrendamento e procedeu à entrega das chaves do imóvel à recorrida, antes do decurso do prazo de 60 dias do pré-aviso, dando cumprimento ao disposto no artigo 108º do CIRE.
16. Ainda que o imóvel tivesse bens no seu interior, não se pode considerar que a recorrente constitui-se em mora no cumprimento da obrigação de restituição do imóvel, nos termos e para os efeitos do artigo 805º, nº 2, alínea a), do Código Civil, desde o dia 1 de Abril de 2022 até à data da recolha dos bens, quando a recorrida já tinha o locado na sua posse, pelo menos desde o mês de Fevereiro de 2022.
17. A loja nunca esteve encerrada ao público e sujeita a degradação por causa imputável ao Administrador Judicial da Recorrente, mas sim porque a Recorrida não a conseguiu alugar.
18. Uma vez que tinha já há muito tempo um anúncio na Remax para arrendar mesma.
19. Pelo que em momento algum o Administrador de Insolvência optou pela manutenção do contrato de arrendamento, uma vez que o mesmo logo que teve conhecimento da sua existência, procedeu à denúncia imediata do mesmo.
20. Desta forma, a Massa Insolvente não pagou, nem tinha de pagar qualquer renda à Recorrida, uma vez que o contrato de arrendamento foi denunciado e o imóvel foi entregue à Recorrida em data anterior à considerada na sentença recorrida.
21. Não existindo qualquer obrigação ou responsabilidade do Administrador Judicial da Recorrente de efectuar pagamentos das rendas e da indeminização peticionada pela Recorrida.
22. Pelo que sendo válida a denúncia do contrato de arrendamento pelo Sr. Administrador de Insolvência e tendo restituído o imóvel à Autora dentro do prazo de 60 dias do pré-aviso, a Recorrente não se constituiu em mora no cumprimento da obrigação de restituição do imóvel, nos termos e para os efeitos do artigo 805º, nº 2, alínea a), do Código Civil, pelo que inexiste lugar ao pagamento da indemnização previstas no nº 1 e 2 do artigo 1045º do Código Civil bem como não são devidas rendas.
Pelo que, revogando a douta sentença em mérito farão Vossas Excelências a habitual Justiça”.
6- Não foram apresentadas contra-alegações.

* * *

II – Fundamentação
a) A matéria de facto dada como provada na Sentença recorrida é a seguinte:
1- A A. é dona e legítima proprietária do prédio sito na Rua xxx, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa com o nº xxx da freguesia de xxx e inscrito na matriz sob o artigo 1982º da freguesia de xxx.
2- Por contrato celebrado em 1/1/1980, a A. arrendou à R. o prédio descrito em 1.
3- No ano de 2015, a A., na qualidade de senhoria, comunicou à R. a transição para o NRAU e a actualização da renda, em carta subscrita por advogado, datada de 21/5/2015, do seguinte teor:
“Assunto: Transição para o novo regime de arrendamento. Comunicação nos termos e para efeitos da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro com a redação dada pela Lei 79/2014, de 19 de Dezembro.
Ex.mo(s) Sr.(s),
Nos termos e para os efeitos da legislação acima citada, nomeadamente do disposto nos artigos 32º e seguintes, na qualidade de mandatário de J, S.A., senhoria do prédio urbano sito na Rua xxx, em Lisboa, inscrito na matriz respetiva sob o artigo xxx, vimos tomar a iniciativa de transição para o novo regime de arrendamento.
Assim, considerando que o valor tributário do imóvel é de 29.500 euros, propomos:
-164 euros de renda mensal;
-3 anos de prazo certo para o arrendamento.
Adverte-se V.Exa. que:
1) O prazo de resposta é de 30 dias. A falta de resposta vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato, ficando este submetido ao NRAU a partir do 1º dia do segundo mês seguinte ao termo do prazo de 30 dias, ou seja, a partir de 1 de Agosto de 2015.
2) Na resposta, V. Exa.ª pode:
a) Aceitar o valor da renda proposto pelo senhorio;
b) Opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio contrapondo novo valor, tipo e duração do contrato;
c) Pronunciar-se quanto ao tipo e ou à duração do contrato proposto pelo senhorio;
d) Denunciar o contrato.
Pode ainda, sendo caso disso, invocar, isolada ou cumulativamente, as seguintes circunstâncias:
a) Que existe no locado um estabelecimento comercial aberto ao público e que é uma microempresa;
b) Que no locado funciona uma pessoa colectiva de direito privado sem fins lucrativos, regularmente constituída, que se dedica à actividade cultural, recreativa, de solidariedade social ou desportiva não profissional, e declarada de interesse público ou de interesse nacional ou municipal, ou uma pessoa colectiva de direito privado que prossiga uma atividade declarada de interesse nacional;
c) Que o locado funciona como casa fruída por república de estudantes, nos termos previstos na Lei nº 2/82, de 15 de janeiro, alterada pela Lei nº 12/85, de 20 de Junho.
3) Caso responda sem invocar qualquer das circunstâncias atrás referidas e/ou sem fazer prova da verificação das mesmas, não poderá beneficiar de qualquer dos benefícios dados pela lei para esses casos, ainda que efetivamente correspondam à realidade (…)”.
4- A carta aludida em 3. foi remetida por via registada com aviso de recepção para a morada de locado, mostrando-se o respectivo aviso de receção assinado a 26/5/2015.
5- Por carta datada de 2/7/2015, subscrita por advogado, foi remetida à sociedade agora insolvente a seguinte comunicação:
“Assunto: Transição para o novo regime de arrendamento. Comunicação nos termos e para efeitos da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro com a redação dada pela Lei 79/2014, de 19 de Dezembro
Ex.mo(s) Sr.(s)
Atenta a falta de resposta no prazo legal que, nos termos da lei, tem os efeitos da aceitação, vimos confirmar que a partir do próximo dia 1 de Agosto se considera que o contrato transitou para o novo regime de arrendamento, com o prazo certo de 3 anos e 164 euros de renda mensal (…)”.
6- A carta aludida em 5. foi remetida por via registada com aviso de recepção para a morada do locado, mostrando-se o respectivo aviso de recepção assinado a 6/7/2015.
7- Até à sua insolvência a sociedade “X, Ldª” desenvolveu no imóvel identificado em 1., a sua actividade comercial, liquidando, à data da entrada da petição inicial em juízo (28/12/2022), a título de renda, o montante de 170 €.
8- A sociedade “X, Ldª” foi declarada insolvente por Sentença de 20/7/2021, transitada em julgado em 12/8/2021.
9- Após a declaração de insolvência, a insolvente continuou na posse do imóvel e a liquidar a respectiva renda, o que se verificou até Outubro de 2021, altura em que deixou de pagar.
10- A A., por carta datada de 25/11/2021, comunicou à sociedade insolvente:
“Exmos. Senhores,
Na qualidade de proprietários da fracção da qual Vª Exª é arrendatário, vimos por este meio comunicar, nos termos da legislação em vigor, nomeadamente o artigo 1077º do Código Civil e do Aviso nº 17989/2021, de 23/09/2021 publicado no Diário da República, pretendemos proceder à atualização do valor da renda, em cumprimento do disposto no nº 2 do artigo 24º da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro e nº 5 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 294/2009, de 13 de Outubro, que o coeficiente de actualização dos diversos tipos de arrendamento urbano e rural, para vigorar no ano civil de 2022 é de 1,0043.
Nestes termos, tal actualização, entrará em vigor no próximo mês de Janeiro de 2022.
Assim, a renda que se vencerá a 1 de Janeiro de 2022, bem como as que se vencerão posteriormente, deverão ser pagas no montante de 170,80 €.
(…)”.
11- A 18/1/2022, a A., através de mandatária, enviou ao Administrador de Insolvência “e-mail” do seguinte teor:
“Represento a “J, S.A.”, senhoria do imóvel ocupado pela insolvente identificada em epígrafe sito na Rua xxx, Lisboa.
Até ao momento não foi denunciado o respectivo contrato de arrendamento, sendo certo que se encontra em dívida a título de rendas a quantia de 680,80 € (seiscentos e oitenta euros e oitenta cêntimos).
Atendendo ao exposto, venho pelo presente averiguar se a Insolvente pretende entregar o imóvel de forma voluntária, sob pena de continuar a acumular dívida, ou quais as diligências tomadas por V.Excia. neste âmbito”.
12- O Administrador de Insolvência respondeu a este “e-mail”, pela mesma via, a 28/1/2022, mediante comunicação do seguinte teor:
“Serve o presente para informar que não tinha conhecimento do contrato de arrendamento por V.Exa. comunicado no e-mail infra, já que não me foi entregue qualquer contrato pela insolvente.
Contudo, e tendo na presente data conhecimento de tal e através de V.Exa. venho pelo presente, sendo que será remetida carta registada com esta mesma informação, nos termos do artigo 108º, nº 1, do CIRE, embora o contrato de locação não se suspenda, “o administrador pode sempre denunciá-lo”, razão pela qual comunico a v.exa. que pretendo denunciar o contrato de arrendamento existente entre a constituinte de V.Exa. “J, S.A.” e a Insolvente”.
13- Por carta datada de 28/1/2022, o Administrador de Insolvência dirigiu à A. a seguinte comunicação:
“Assunto: Denúncia do Contrato de Arrendamento para Fins Não Habitacionais
António…, Administrador Judicial nomeado no processo de insolvência da pessoa colectiva X, La., que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 7, pelo nº XXXT8LSB,
Vem junto de Vª Exª:
1 – Teve o AJ conhecimento no presente dia 28 de Janeiro de 2022 que entre V.Exas. e a Insolvente existe um contrato de arrendamento. Na verdade, foi por intermédio da mandatária de V.Exas. Dr. Catarina… que tive conhecimento do contrato já que pela Insolvente não me foi entregue qualquer contrato de arrendamento.
2 – E no dia 20/07/2021 esta pessoa coletiva foi declarada insolvente, sendo que nesta mesma data fui nomeado Administrador da Insolvência.
3 – Nos termos do artigo 108º, nº 1, do CIRE, embora o contrato de locação não se suspenda, “o administrador da insolvência pode sempre denunciá-lo, razão pela qual venho pela presente comunicar que pretendo denunciar o contrato de arrendamento existente entre V.Exas. e a Insolvente.
(…)”.
14- A carta aludida em 13. foi remetida por via registada com aviso de recepção para a morada do locado, mostrando-se o respectivo aviso de recepção assinado em 31/1/2022.
15- A sociedade “X, Ldª”, com sede na Rua xxx, Lisboa, apresentou-se à insolvência em 13/7/2021, tendo junto à petição inicial “Relação de bens em regime de arrendamento, locação financeira ou com reserva de propriedade” em que identificou o estabelecimento/sede na Rua xxx, Lisboa.
16- No dia 7/3/2023, pelas 14 horas, um colaborador da “S, Ldª”, mandatada para o efeito por credencial passada pelo Administrador de Insolvência, António…, deslocou-se à sede da insolvente, e ali procedeu à tomada de posse dos bens móveis pertença da Massa Insolvente, mais tendo procedido à entrega do supramencionado imóvel, livre e devoluto de pessoas, ao senhorio.
17- A última renda paga à A. foi a referente ao mês de Setembro de 2021.
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b) Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação da recorrente, as questões em recurso consistem em determinar:
-Se a dívida em causa é da insolvente ou da recorrente (Massa Insolvente).
-Qual a data da entrega do imóvel.
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c) Vejamos, então, se a dívida em causa é da insolvente ou da Massa Insolvente (recorrente).
Defende a apelante que a dívida não é sua, mas sim da insolvente.
Dispõe o art.º 46º nº 1 do C.I.R.E. que “a massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas”, identificando por sua vez o art.º 51º do C.I.R.E., quais as dívidas que devem ser consideradas da massa insolvente, por contraposição às dívidas da insolvência.
Dos referidos normativos, e também do art.º 47º do C.I.R.E., verifica-se que este Código consagrou e tratou de forma diferenciada duas categorias de dívidas, a saber: As dívidas da insolvência (a que correspondem os denominados créditos sobre a insolvência) e as dívidas da massa insolvente (a que correspondem os créditos sobre a massa insolvente).
As primeiras (às quais se refere o art.º 47º do C.I.R.E.), reportam-se a créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data da declaração de insolvência (cf. Luís Menezes Leitão, in “Direito da Insolvência”, 5ª Ed., pg. 89).
Já as segundas, são as enunciadas pelo art.º 51º do C.I.R.E., além de outras que, como tal, sejam qualificadas pelo Código (cf., por exemplo, as dos artºs. 84º, 140º nº 3 e 142º nº 2 do C.I.R.E.).
A classificação e distinção entre dívidas da insolvência e dívidas da massa insolvente assume a maior importância, dado o regime diferenciado a que se encontram sujeitas, sendo de destacar, de entre as referidas diferenças, as que se prendem com o “timing” da respectiva satisfação, pois que, as segundas, são satisfeitas primeiramente , tal como o determina o art.º 172º nº1 do C.I.R.E., ao estipular que “antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, o administrador da insolvência deduz da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta, incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo”.
Em suma, a propósito da destrinça entre créditos sobre a massa insolvente e créditos sobre a insolvência, esclarece Catarina Serra (in “O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução”, 3ª Ed., pág. 30.2) que “distingue-se agora entre os “créditos sobre a massa insolvente” (ou “dívidas da massa insolvente”) e “créditos sobre a insolvência” (ou “dívidas da insolvência”) e, em conformidade com isso, entre “credores da massa” e “credores da insolvência”. Os “créditos sobre a massa” são os créditos constituídos no decurso do processo (cfr. art.º 51º, nºs. 1 e 2) e os “créditos sobre a insolvência” são os créditos cujo fundamento já existe à data da declaração de insolvência (cfr. art.º 47º, nºs. 1 e 2)”.
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d) “In casu”, veio a recorrida reclamar o pagamento de rendas não pagas, vencidas até ao final do contrato de arrendamento descrito no Facto Provado 2., entre Outubro de 2021 e Março de 2022, inclusive.
Mais reclama o pagamento da indemnização prevista no art.º 1045º nºs. 1 e 2 do Código Civil, ou seja, o pagamento do dobro do montante que seria devido a título de rendas após o final do contrato e até à efectiva entrega do locado, desde Abril de 2022, inclusive, até Fevereiro de 2023, inclusive.
Defende a apelante que resulta do disposto no art.º 108º nº 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.) que, atentos os factos provados, foi originado “um crédito sobre a insolvência e nunca um crédito sobre a Massa Insolvente”.
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e) Estando em causa uma dívida resultante de um contrato de arrendamento, há que atentar ao disposto no art.º 1022º do Código Civil que define o contrato de locação como sendo aquele “pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição”. E diz-se arrendamento quando versa sobre coia imóvel, e aluguer quando incide sobre coisa móvel (art.º 1023º do Código Civil).
Constituem, assim, obrigações principais das partes: Do locador, de entregar “ao locatário a coisa locada” e de lhe assegurar “o gozo desta para os fins a que a coisa se destina” (art.º 1031º do Código Civil); e do locatário, de pagar “a renda ou aluguer” e de restituir “a coisa locada findo o contrato” (art.º 1038º do Código Civil).
Caso o locatário não cumpra esta última obrigação, “é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado», «elevada ao dobro” logo “que o locatário se constitua em mora” (art.º 1045º nºs. 1 e do Código Civil).
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f) E que efeitos tem a insolvência no contrato de arrendamento?
Estipula o art.º 108º nº 1 do C.I.R.E., que a “declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador da insolvência pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior”.
Logo, a declaração da insolvência não afecta, em si mesma, o contrato de locação em que o insolvente é locatário, que continua a produzir de forma inalterada os seus efeitos normais (cf. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª ed., 2015, pg. 478). No entanto, confere-se ao Administrador da Insolvência a faculdade de pôr termo ao contrato, por denúncia.
Como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 29/5/2024, Procº 5313/22.8T8VNF-G.G1, Relatora Maria João Matos, consultado na “internet” em www.dgsi.pt):
“Precisando, e quanto à não suspensão do contrato de locação com a declaração da insolvência, presumiu a lei que, em regra, essa será a solução mais favorável aos interesses da massa. Por isso, caberá precisamente ao administrador da insolvência decidir denunciá-lo, pondo-lhe fim, se os interesses dos credores, no caso concreto, impuserem uma solução diferente da presumida pela lei”.
“Precisando novamente, dir-se-á que a denúncia constitui um modo de cessação de vínculos obrigacionais, existente nos contratos com prestações cuja execução se protela no tempo, sendo um modo da parte se desvincular, unilateral e potestativamente (não exige o acordo da sua contraparte, podendo mesmo ser realizada contra a vontade dela) do contrato”.
“Opera, assim, mediante mera declaração de um contraente (o que pretende fazer cessar a relação contratual ou obrigacional em sentido amplo a que está vinculado, emergente de um contrato bilateral ou plurilateral, renovável, ou fixado por tempo indeterminado); e, como declaração receptícia que é, uma vez chegada ao conhecimento do respectivo destinatário, extingue a relação obrigacional complexa derivada do contrato cuja renovação ou continuação impede”.
“ Estando-se face a contratos de execução duradoura, é elemento natural da denúncia que a mesma seja realizada com uma antecedência razoável sobre o termo do período negocial em curso (pré-aviso ou aviso prévio): a boa-fé, e o correlativo princípio da confiança, impede a realização de denúncias intempestivas (com a eficácia imediata, ou de tal modo próxima que se converta em causa de dificuldades ou de danos inaceitáveis); e, pela sua própria natureza, não tem eficácia retroactiva”.
“Não tem, ainda, de se fundar em qualquer justa causa ou motivo particular (denúncia ad nutum ou ad libitum), mas apenas em razões de oportunidade ou de interesse do contraente que a opera, simplesmente por o Direito não ser favorável a vinculações contratuais eternas”.
Ora, não sendo o contrato de locação denunciado, ou enquanto não o for, as rendas ou alugueres que se forem vencendo consubstanciam um dívida da massa insolvente, nos termos do art.º 51º nº 1, al. f), do C.I.R.E., o qual dispõe que “são dívidas da massa insolvente” qualquer “dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contra prestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração” (cf. Alexandre de Soveral Martins, in “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2ª ed. revista e actualizada, pg. 202; Acórdão da Relação de Coimbra de 7/9/2021, Procº 4278/15.7T8CBR-F.1.C2, Relatora Maria João Areias; Acórdão do S.T.J., de 17/11/2021, Procº 1920/18.1T8LRA-H.C1.S1, Relator Luís Espírito Santo; Acórdão da Relação de Lisboa de 6/7/2023, Procº 431/23.8T8LSB.L1-8, Relatora Ana Paula Nunes Duarte Olivença; Acórdão da Relação de Lisboa de 25/1/2024, Procº 122/22.7T8BRR-D.L1, Relator Nuno Teixeira; todos os Acórdãos consultados na “internet” em www.dgsi.pt).
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g) Regressando ao caso concreto, verifica-se que, por contrato celebrado em 1/1/1980, a recorrida arrendou à “X, Ldª” o prédio descrito no Facto Provado 1..
A referida sociedade foi declarada insolvente por Sentença de 20/7/2021.
Após a declaração de insolvência, a insolvente continuou na posse do imóvel e a liquidar a respectiva renda, o que se verificou até Outubro de 2021, altura em que deixou de pagar.
A insolvente pagou a última renda à recorrida em Setembro de 2021.
Em 28/1/2022, o Administrador da Insolvência dirigiu à recorrida uma carta, onde declarou que pretendia denunciar o contrato de arrendamento em causa, nos termos do art.º 108º nº 1 do C.I.R.E..
No dia 7/3/2023, o Administrador da Insolvência, através de pessoa por si mandatada, procedeu à entrega do supramencionado imóvel, livre e devoluto de pessoas, ao senhorio (a apelada).
Ora, de acordo com o nosso entendimento acima expendido, as rendas não pagas entre Outubro de 2021 (data em que a insolvente deixou de pagar a contrapartida), inclusive, até Março de 2022, inclusive (considerando a denúncia pelo Administrador da Insolvência efectuada em Janeiro de 2022 com dois meses de antecedência sobre a data da sua produção de efeitos), são devidas, consubstanciando essa dívida um crédito sobre a Massa Insolvente, isto é sobre a recorrente.
Além disso, verifica-se que, após a denúncia do contrato de arrendamento, no final de Janeiro de 2022, a recorrente incumpriu também o dever de entrega do locado (cf. artºs. 1038º al. i), 1045º, 1081º nº 1 e 1087º do Código Civil). O acima citado art.º 1045º do Código Civil prevê a indemnização devida pela não entrega do locado aquando da cessação do contrato de arrendamento, tratando-se de uma indemnização cujo valor se encontra legalmente fixado, correspondendo ao valor das rendas, em singelo, no caso de não ocorrer mora, e no dobro, no caso de mora do arrendatário.
No caso “sub judice”, verifica-se que o imóvel não foi restituído à recorrida após o decurso do prazo de 60 dias do pré-aviso, constituindo-se a recorrente em mora no cumprimento da obrigação de restituição do imóvel desde o dia 1/4/2022 até à data da entrega do locado, em Março de 2023, pelo que deve ser paga à senhoria a respectiva indemnização de acordo com o art.º 1045º nº 2 do Código Civil.
O valor dessa indemnização também constitui um crédito sobre a Massa Insolvente.
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h) Não assiste, pois, razão à recorrente quando alega que estes valores em dívida não são da sua responsabilidade, sendo dívida da insolvente.
O que significa que o recurso improcede nesta parte.
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i) Vejamos agora a questão da data da entrega do imóvel.
Refere a recorrente que o imóvel foi entregue em data anterior à do termo de entrega dos bens móveis, tendo a entrega das chaves do imóvel ocorrido no início do mês de Fevereiro de 2022 e foi efectuado directamente pela insolvente à recorrida.
Ora, a recorrente não apresentou recurso sobre a decisão da matéria de facto e o certo é que se provou (facto não impugnado nos termos do art.º 640º do Código de Processo Civil) que, no dia 7/3/2023, um colaborador da “S, Ldª”, mandatada para o efeito por credencial passada pelo Administrador de Insolvência, deslocou-se à sede da insolvente, e ali procedeu à tomada de posse dos bens móveis pertença da Massa Insolvente, mais tendo procedido à entrega do supramencionado imóvel, livre e devoluto de pessoas, ao senhorio.
Ou seja, provou-se que a entrega apenas ocorreu em 7/3/2023 e não em Fevereiro de 2022.
E nem releva o facto de, segundo a versão da recorrente, esta ter entregue as chaves do imóvel no início do mês de Fevereiro de 2022.
Com efeito, findo o contrato, constitui obrigação dos locatários entregar o prédio (artºs 1038º al. i) e 1045º do Código Civil).
Essa entrega, “in casu”, nunca poderia ocorrer com a mera entrega das chaves, pois, no dia 7/3/2023, no arrendado, sede da insolvente, ainda existiam bens móveis pertença da Massa Insolvente, pelo que a senhoria (a apelada) não podia simplesmente “invadir” o locado, ou seja, o imóvel, antes daquela data, permanecia na “esfera de disponibilidade” da locatária.
Deste modo, teremos de concluir que a data da entrega do imóvel foi, efectivamente, 7/3/2023, motivo pelo qual o recurso, também nesta parte improcede.
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j) Improcedem, assim, na totalidade as conclusões da apelação, motivo pelo qual o recurso terá de improceder, havendo que confirmar a decisão recorrida.

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III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.
Custas: Pela recorrente (art.º 527º do Código do Processo Civil).

Lisboa, 14 de Janeiro de 2025
Pedro Brighton
Manuela Espadaneira Lopes
Isabel Fonseca