Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19609/15.1T8LSB-A.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: DISPENSA DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA
NULIDADE PROCESSUAL
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I– Pretendendo o juiz conhecer do mérito da causa no despacho saneador, seja quanto a algum pedido, seja quanto a alguma excepção peremptória, e independentemente do possível sentido da decisão, deverá convocar audiência prévia para os efeitos do art. 591º, nº 1, alínea b) do CPC.

II– Porém, mesmo nestas situações, a audiência prévia poderá ser dispensada, desde que, no exercício dos poderes de gestão processual e atendendo ao princípio da adequação formal (artigo 547º do CPC), o juiz ouça previamente as partes com indicação das razões por que se entende dever dispensar a realização de tal acto processual.

III– Se o despacho que informa às partes a intenção de o tribunal dispensar a audiência prévia e proferir decisão que ponha termo à causa no despacho saneador, não contiver qualquer fundamentação de facto e de direito, comete-se uma nulidade traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve (art. 195º, n º 1 do CPC), e que acaba por se comunicar, inquinando-o, ao saneador-sentença.

IV– Tal nulidade acarreta a nulidade do saneador-sentença proferido, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do CPC.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa



1. BANCO A…, S.A., com sede na Rua …, …, Cabo Verde, veio, por apenso ao processo de insolvência nº 19609/15.1T8LSB,  propor a presente acção de verificação ulterior de créditos nos termos do disposto no artigo 146º, nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), contra MASSA INSOLVENTE do BANCO B…, S.A., o insolvente, BANCO B…, S.A. e credores da insolvência, pedindo que fosse verificado e graduado um crédito, no valor de 6.885.517,00 (seis milhões, oitocentos e oitenta e cinco mil e quinhentos e dezassete euros), acrescido dos juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento da quantia em dívida, devendo tal crédito ser qualificado como crédito de natureza comum, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 47.º, n.º 4, alínea c), do CIRE.

Alegou, em síntese, ter celebrado com a Key Financial Investment Group LLC um contrato de mútuo, a 21.11.2012, no montante de USD 4.000.000,00 (quatro milhões de Dólares), financiamento que a devedora garantiu, motivo porque, a 18.02.2014, a informou que a referida sociedade não havia procedido ao pagamento da quantia mutuada e dos juros. Face ao não pagamento executou a garantia bancária e solicitou à ré que procedesse, no prazo de dois dias, à transferência do montante total de USD 4.427.833,33 (quatro milhões, quatrocentos e vinte e sete mil, oitocentos e trinta e três dólares norte americanos e trinta e três cêntimos). Para pagamento da quantia em dívida intentou acção executiva – Proc. n.º 3577/14.0YYLSB Inst. Central – 1.ª Secção de Execução, da Comarca de Lisboa, da sentença de indeferimento liminar interpôs recurso. Alegou ainda que, a 04 de Abril de 2011, havia concedido à sociedade Geofinance Limited, um financiamento, no montante de USD 3.500.000,00 (três milhões e quinhentos mil dólares), garantido pela devedora, pelo que a 18.02.2014, informou a devedora que a referida sociedade não havia procedido ao pagamento da quantia mutuada e dos juros. Executou a garantia bancária e solicitou à insolvente que procedesse, no prazo de dois dias, à transferência do montante total de USD 4.291.145,83 (quatro milhões, duzentos e noventa e um mil, cento e quarenta e cinco dólares norte-americanos e oitenta e três cêntimos). Para pagamento da quantia em dívida intentou acção executiva – Proc. n.º 3576/14.0YYLSB Inst. Central – 1.ª Secção de Execução, da Comarca de Lisboa. A devedora deduziu embargos de executado que foram julgados improcedentes, por decisão de 06.01.2016.

Regularmente citados todos os RR., apenas a INSOLVENTE  e a MASSA INSOLVENTE deduziram contestação, articulado onde, para além de excepcionarem a intempestividade da acção, impugnaram a matéria de facto constante da petição inicial, sustentando que as garantias não foram contabilizadas no Banco B…, S.A. e não passaram pelo Conselho de Administração da insolvente. Acrescentaram ainda que, segundo o Banco de Portugal, o BANCO B..., S.A. tinha garantias prestadas à Autora no montante de 9.768 516,47, mas que se tratam de garantias gratuitas e, como tal nulas, podendo, quando muito, ser consideradas cartas de conforto não vinculativas para o Banco B.
Findos os articulados, foi proferido o seguinte despacho (refª 420472478):
“Aos presentes autos são aplicáveis os termos do processo comum, de acordo com o disposto no artigo 148.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
A realização de uma tentativa de conciliação não se afigura pertinente nos autos, atentas as posições assumidas.
Segue o saneamento do processo, nos termos dos artigos 595.º e 596.º, do Código de Processo Civil, por aplicação do artigo 148.º, do CIRE.
A audiência prévia teria por finalidade
b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
com vista à prolação de despacho saneador que se destina a
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Conforme o previsto no artigo 591.º, n.º 1, alíneas d) e e), do aludido diploma legal.
Assim e ao abrigo do princípio da adequação formal, dispenso a realização de audiência prévia, nos termos dos artigos 547.º, 591.º, n.º 1, alínea b), 592.º, n.º 1, alínea b) e 595.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
E, convido as partes a querendo, se pronunciarem.
Prazo: 10 dias.”

Notificadas deste despacho, tanto as RR., MASSA INSOLVENTE e INSOLVENTE, como a Autora, vieram esclarecer que nada tinham a opor à dispensa de realização da audiência prévia, declarando ainda a Autora que não prescindia de todos os prazos legais para eventuais reclamações.
De seguida, após o tribunal ter consignado que se encontravam reunidas as condições para a prolação da decisão final, foi proferida sentença que culminou com a seguinte decisão:
“Pelo exposto, julgando a presente ação integralmente procedente, reconheço o crédito reclamado pelo O BANCO A…, S.A., no montante de € 6.885.517,00 (Seis milhões, oitocentos e oitenta e oitenta e cinco euros, quinhentos e dezassete cêntimos), que deverá ser graduado como crédito comum, em conjunto com os demais créditos comuns na sentença proferida no apenso de verificação e graduação de créditos.
Custas pelo BANCO B…, S.A. e pela massa insolvente, em partes iguais – artigo 148.º Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Registe e notifique.”

Inconformadas com esta sentença, dela interpuseram recurso ambas as RR., MASSA INSOLVENTE e INSOLVENTE, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo. Terminam as respectivas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1.– O presente recurso de apelação vem interposto da decisão do Tribunal a quo, proferida em 08.07.2023 (“Decisão Recorrida”), na qual aquele tribunal conheceu de imediato do mérito da causa, quando ainda não estava em condições de o fazer, e julgou a presente ação procedente, reconhecendo, indevidamente, o crédito reclamado pela Recorrida no montante de € 6.885.517,00 (seis milhões, oitocentos e oitenta e cinco mil quinhentos e dezassete euros) – o que não se concede nem se pode aceitar!
2.– A Decisão Recorrida padece de várias nulidades, pelo que deverá ser revogada.
3.– Desde logo, a Decisão Recorrida constitui numa verdadeira decisão-surpresa.
4.– Com efeito, o Tribunal recorrido, em momento prévio à prolação da Decisão Recorrida, apenas convidou as partes para se pronunciarem sobre a dispensa da realização da audiência prévia, não tendo informado as partes, expressamente, de forma fundamentada e com a enunciação das questões a resolver, que considerava estar em condições de conhecer antecipadamente do mérito da causa – como a isso estava obrigado a fazer, ao abrigo do princípio da proibição de decisões surpresa.
5.– Por outro lado, o Tribunal recorrido não poderia conhecer de imediato das questões e factos relevantes alegados em sede de Contestação pelas Recorrentes (além da exceção dilatória invocada quanto à extemporaneidade da ação), sem antes ordenar a produção adicional de prova sobre os mesmos (no caso, a prova testemunhal, tal qual foi atempada e oportunamente requerida pelas Recorrentes).
6.– O Tribunal a quo (como o próprio reconhece) não se encontrava ainda em condições de se pronunciar quanto a determinados factos relevantes alegados pelas Recorrentes, suportados pelos documentos juntos aos autos, e que também seriam objeto de prova testemunhal – mormente quanto à existência de má-fé ou abuso de direito, essenciais para efeitos de apreciação da nulidade das garantias (que, alegadamente, sustentam o crédito peticionado pela Recorrida) arguida pelas Recorrentes!
7.– Assim, é por demais evidente que o Tribunal recorrido incorreu numa manifesta violação dos princípios do inquisitório e da igualdade de armas, consagrados, respetivamente, nos artigos 411.º e 4.º do CPC, uma vez que:
i.- Não informou previamente as partes que pretendia, desde já, conhecer do mérito da causa – tendo apenas informado da sua decisão de dispensa de realização de audiência prévia que, por si só, não tem como consequência que o processo não prossiga os demais trâmites, designadamente para prolação de despacho de fixação do objeto do litígio e de temas de prova e designação de data para realização de audiência final;
ii.- Ao não ter dado esse prévio conhecimento às partes, não lhes permitiu pronunciarem-se sobre a existência de condições para que fosse proferida uma decisão sobre o mérito da causa sem realização de audiência de julgamento;
iii.- Existe, incontestavelmente, a necessidade de ser produzida prova adicional (i.e., testemunhal) quanto a alguns dos factos alegados pelas Recorrentes – (i) não só porque alguns dos documentos juntos foram impugnados pela Recorrida (sem prejuízo de tal impugnação não ter a virtualidade de colocar em causa a sua força probatória), (ii) mas também porque, ao entender não dispor de elementos suficientes para considerar certos factos como provados, deveria ter dado a oportunidade às partes de produzir prova complementar.
8.– Nestes termos, e salvo o devido respeito, a Decisão Recorrida enferma de uma nulidade processual, nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, a qual se argui para os devidos efeitos legais, pois que tais irregularidades influem, sem margem para dúvidas, no exame e na decisão da causa,
9.– Termos em que deve a mesma ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, designadamente, mediante a prolação de Despacho de fixação dos temas de prova e a designar data para a realização de audiência de julgamento.
Sem prescindir,
10.– A Decisão Recorrida padece de uma manifesta nulidade por omissão de pronúncia, quer sobre factos relevantes (alegados pelas Recorrentes e com impacto direto na apreciação e julgamento da causa), quer sobre a apreciação dos fundamentos invocados por aquelas acerca da nulidade das garantias que, alegadamente, sustentam o crédito peticionado pela Recorrida.
11.– Sendo que, para efeitos de verificação da nulidade por omissão de pronúncia invocada, importa ainda enfatizar a existência de alegação de factos relevantes para a decisão da causa, que deveriam ter sido considerados como provados e, erradamente, não o foram.
12.– Com efeito, são vários os factos relevantes alegados pelas Recorrentes em sede de Contestação e que se encontram já provados por documentos, que deveriam ter sido integrados pelo Tribunal a quo na fundamentação de facto e que não o foram, a saber:
i.- LR. foi administrador do BANCO B…, S.A. e do BANCO A…, S.A., durante o triénio de 2011/2013 e até 22.02.2013, data em que renunciou ao cargo de Vogal do BANCO B…, S.A., tendo a sua renúncia estado fortemente relacionada com o processo judicial do caso “Mensalão”. – factos provados, pelo menos, pelas certidões juntas como Documentos n.º 1 e 2 com o requerimento datado de 06.05.2021, certidão apostilada junta em 05.08.2021, e Documento n.º 5 com o requerimento apresentado pelas Recorrentes em 06.05.2021 (Relatório de Inspeção ao Banco Rural Europa, S.A. Proc. GEN/2013/0037, elaborado pelo Banco de Portugal em 30.10.2013);
ii.- À data da instauração da presente ação (11.02.2016), LR. era o Presidente do Conselho de Administração do BANCO A…, S.A.. – facto provado, pelo menos, pela certidão apostilada junta em 05.08.2021;
iii.- À data da concessão das garantias bancárias ao BANCO A…, S.A. (21.11.2012) existia uma estreita relação entre o BANCO B…, S.A. e o BANCO A…, S.A.. – factos provados pelos já supra referidos documentos;
iv.- As garantias sub judice não foram registadas contabilisticamente pelo BANCO B…, S.A. e não foram objeto de reportes prudenciais ao Banco de Portugal. – factos provados pelo Documento n.º 2 junto com a Contestação e que o Documento n.º 6 junto com o requerimento datado de 06.05.2021 (Projeto de decisão do Banco de Portugal);
v.- As garantias prestadas pelo BANCO B…, S.A. ao BANCO A…, S.A. durante os anos de 2011 e 2012 foram concentradas num número reduzido de empresas. – factos provados pelo Documento n.º 2 junto com a Contestação e que o Documento n.º 6 junto com o requerimento datado de 06.05.2021 (Projeto de decisão do Banco de Portugal);
vi.- Em 21.11.2012, LR. celebrou o Contrato de Mútuo com a KEY FINANCIAL INVESTMENT GROUP LLC., na qualidade de representante do BFI – Banco Fiduciário Internacional (I.F.I.), S.A.. – facto provado pelo Documento n.º 2 junto com a Petição Inicial;
vii.- Em 22.02.2013, LR., celebrou a Adenda de prorrogação do prazo do contrato de mútuo celebrado com a Geofinance Limited. na qualidade de representante do BFI – Banco Fiduciário Internacional (I.F.I.), S.A.. – facto provado pelo Documento n.º 10 junto com a Petição Inicial.
13.– Sendo tais factos efetivamente relevantes para a decisão acerca da nulidade das garantias, a Decisão Recorrida enferma de uma nulidade também quanto à matéria dada como provada, por violação do disposto na segunda parte do n.º 5 do artigo 607.º do CPC, bem como numa manifesta violação dos princípios estruturantes do processo civil, essenciais para a realização da justiça do caso concreto, como são os princípios da igualdade das partes (artigo 4.º do CPC), do dispositivo (artigo 5.º do CPC), do inquisitório (artigo 411.º do CPC) e da imparcialidade do juiz (artigo 115.º do CPC), traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
14.– Ora, é sobre a questão da nulidade das garantias prestadas, suscitada pela Recorrentes, que se verifica uma efetiva e total omissão de pronúncia – o Tribunal a quo simplesmente não se pronunciou sobre as seguintes questões:
i.- A nulidade das garantias, porque advêm de negócios que são também eles nulos, porque simulados, sendo evidente o conluio entre as administrações de ambas as instituições e, em especial, do Administrador comum, LR., pelo facto de as garantias não terem sido contabilizadas, não terem sido objeto de reporte prudencial ao Banco de Portugal – e, como tal, é abusivo o pedido deduzido pela Recorrida (porque sustentado nas supostas garantias);
ii.- A nulidade das garantias, porque foram concedidas de forma gratuita e sem a cobrança de comissões, em manifesta violação do disposto no Regime Geral das instituições de Créditos e Sociedades Financeiras quanto ao escopo das instituições financeiras.
15.– Como referido supra, o próprio Tribunal a quo reconhece que não poderia, sem mais prova, formular um juízo suficiente sobre a violação das regras da boa-fé nos negócios jurídicos em causa, ou o facto de estes importarem um comportamento fraudulento – tendo, no entanto, optado por ‘abdicar’ da produção de prova adicional com vista à descoberta da verdade material.
16.– E, mais uma vez, o Tribunal recorrido não atendeu às alegações suscitadas pelas Recorrentes, não as considerou sequer na sua fundamentação decisória, e nem ordenou, como deveria (caso assim o entendesse ser necessário), a produção de prova adicional.
17.– Resulta patente que o conhecimento e a decisão sobre tais nulidades são imprescindíveis para a análise e boa decisão do objeto do litígio – i.e., sobre a existência ou não do pretenso crédito da Recorrida.
18.– Não se tendo o Tribunal recorrido pronunciado sobre a nulidade das garantias, e sempre salvo o devido respeito, a Decisão Recorrida padece também de uma nulidade por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a qual também aqui se argui para os devidos efeitos legais,
19.– Pelo que deve a mesma ser revogada e substituída por outra em que o Tribunal tome posição sobre a nulidade das garantias arguida pelas Recorrentes.
Ademais, e sem prescindir,
20.– A Sentença proferida no âmbito do apenso de Embargos de Executado, proferida no processo n.º 3576/14.1YYLSB-A (“Decisão de Embargos”), junta como Documento n.º 14 com a Petição Inicial, jamais poderia ser atendida (como caso julgado) para efeitos de decisão sobre o mérito da presente ação – sendo que verificamos que a fundamentação de direito da Decisão Recorrida, quanto à verificação do crédito peticionado pela Recorrida, corresponde praticamente ipsis verbis à Decisão de Embargos.
21.– Na verdade, a Decisão de Embargos foi proferida em 06.01.2016, já após a decisão de revogação da autorização pelo Banco Portugal proferida em 06.07.2015, e após a prolação do despacho de prosseguimento da liquidação judicial do Banco B…, S.A. em 21.07.2015, e que transitou em julgado em 11.08.2015.
22.– O que significa que a Decisão de Embargos não poderia ter sido proferida, porquanto, na data em que o foi, aqueles autos de embargos deveriam estar suspensos, em virtude da própria suspensão da ação executiva a que são apenso, em consequência da decisão de revogação da autorização pelo Banco de Portugal, a qual produz os efeitos da declaração de insolvência, nos termos conjugados dos artigos artigo 8.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 199/2006, de 25 de outubro, artigo 269.º, n.º 1, alínea d) do CPC e artigo 88.º do CIRE.
23.– A prolação da Decisão de Embargos consubstancia uma nulidade nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, porquanto corresponde à prática de um ato que a lei não admite, sendo que tal irregularidade influi no exame e na decisão da causa.
24.– E, ainda que aquele processo executivo e, consequentemente, o respetivo apenso de Embargos de Executado, não ficasse suspenso, no limite teria o Exmo. Senhor Liquidatário da Massa Insolvente da ali Executada (aqui 2.ª Recorrente) ser chamado a pronunciar-se sobre a conveniência de aquele processo ser apensado ao processo de liquidação da 2.ª Recorrente – o que não ocorreu!
25.– Mas mais, o Exmo. Senhor Liquidatário também não foi notificado da Decisão de Embargos, como deveria ter sido, enquanto parte legítima, para, querendo, dela recorrer, pelo que nem sequer se iniciou a contagem do prazo de interposição de recurso de apelação e, como tal, não se deu o trânsito em julgado da mesma, não sendo, por isso, aquela aplicável nem oponível às Recorrentes!
26.– Não obstante, sempre se dirá ainda que, de qualquer forma, a Decisão de Embargos jamais poderia ser atendida para efeitos de decisão sobre o mérito da presente ação, uma vez que estamos perante um processo insolvência, de execução universal dos bens do insolvente, o que não invalida que o pretenso crédito da Recorrida possa ser posto em causa (impugnado).
27.– Mas dúvidas não podem restar de que jamais o Tribunal a quo poderia fazer-se valer de um eventual (mas inexistente!) caso julgado decorrente da Decisão de Embargos, para proferir decisão de mérito nos presentes autos de verificação ulterior de créditos, porquanto aquela apenas se pronuncia por referência à garantia supostamente prestada pela 2.ª Recorrente à Recorrida na sequência do financiamento sob a forma de empréstimo desta última à Geofinance, Limited, não tendo sido naqueles autos de Embargos de Executado apreciada a existência, exigibilidade e certeza do pretenso crédito de que a Recorrida se arroga detentora por referência a uma pretensa garantia concedida pela 2.ª Recorrente àquela, em que consta como beneficiária a Key Financial Investment Group LLC.
28.– Desta forma, e sempre salvo o devido respeito, tendo o Tribunal recorrido se bastado com a reprodução da Decisão de Embargos, a Decisão Recorrida não contém a devida fundamentação, violando assim o disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, aplicável ex vi artigo 17.º do CIRE, o que determina a sua nulidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a qual também aqui se argui para os devidos efeitos legais,
29.– Termos em que, também quanto a este ponto, deverá a Decisão Recorrida ser revogada.

A Autora, por sua vez, apresentou contra-alegações, que termina concluindo que “a Sentença recorrida não carece de qualquer censura, tendo o Tribunal a quo feito uma correta interpretação e aplicação dos princípios basilares e estruturantes de processo civil, não violando qualquer disposto normativo, devendo as nulidades alegadas serem julgadas improcedentes e o recurso interposto igualmente improcedente, devendo, assim, a decisão aqui recorrida ser mantida”.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2.– Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, atendendo ao teor das alegações apresentadas pelas Recorrentes, cumpre averiguar se:
- a decisão recorrida enferma de uma nulidade processual, nos termos do nº 1 do artigo 195º do CPC, por a irregularidade cometida (não ter informado as partes de que pretendia conhecer do mérito da causa no despacho saneador) ter influído no exame e decisão da causa;
- a decisão recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia, quer sobre os factos relevantes (alegados pelas Recorrentes e com impacto directo na apreciação e julgamento da causa), quer sobre a apreciação dos fundamentos invocados por aquelas acerca da nulidade das garantias que sustentam o crédito peticionado pela Recorrida; e
- a decisão recorrida, por não conter a devida fundamentação e, assim, violar o disposto no artigo 607º, nºs 3 e 4 do CPC (ex vi artigo 17º do CIRE), determina, mais uma vez, a respectiva nulidade, agora nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea b) do CPC.

3. Na sentença deram-se por assentes os seguintes factos:
1.– O BANCO B…, SA, pessoa colectiva nº …., tem sede na Av. … Lisboa e encontra-se matriculado na Conservatória do Registo Comercial e Cartório Notarial Privativos da Zona Franca da Madeira.
2.–Tem por objecto social a realização de todas as operações bancárias e  a prestação de todos os serviços legalmente consentidos aos bancos e tem o capital social de € 39.898.450,00.
3.– Por deliberação de 06.07.2015 do Conselho de Administração do Banco de Portugal foi revogada a autorização para o exercício da actividade do BANCO B…, S.A.
4.– O Banco de Portugal apresentou uma proposta de Liquidatário a designar bem como relativa à sua remuneração.
5.– Por sentença proferida a 21.07.2015, transitada em julgado, determinou-se o prosseguimento da liquidação judicial do BANCO B…, SA.
6.– Foi fixada a residência aos administradores da sociedade em liquidação:
a.- FM. …;
b.- CP……;
c.- RG…..
7.– E, nomeado como Liquidatário judicial, o Dr. MP., com domicílio profissional na Rua… (art. 9 nº2 do RELICSF).
8.– A sociedade BANCO B…, S.A., em liquidação, tem como forma de obrigar: existindo comissão executiva, obriga-se pela assinatura de dois membros dessa comissão ou outros dois mandatários, dentro dos limites da delegação do Conselho de Administração; não existindo comissão executiva, a sociedade obriga-se pela assinatura de dois administradores ou outros mandatários – certidão de matrícula junta a 06.05.2021 – ref.: 38789848.
9.– A Autora é uma instituição financeira de crédito com sede na República de Cabo Verde, na Rua …, Ilha de Santiago, que tem por objeto o comércio bancário em geral, operações cambiais, gestão de fundos de investimento mobiliário e imobiliário, emissão, por conta própria ou alheia, de títulos de crédito negociáveis, a gestão de patrimónios, de forma livre ou vinculada, prestação de serviços de aconselhamento na área financeira e outras atividades financeiras (v.g. leasing, factoring) compatíveis com a lei – cfr. certidão de matrícula da Conservatória do Registo Comercial de Cabo Verde junta a 05.08.2021 - ref.: 39610146.

10.– Com data de 21 de Novembro de 2012, o BANCO B…, S.A. enviou ao autor a comunicação junta como doc. 1 da petição inicial, com o teor seguinte:
Assunto: Garantia sobre empréstimo de USD 4 000 000,00
Na sequência do financiamento em forma de empréstimo concedido pelo BANCO A…, S.A., à Key Financial Investment Group LLC, com sede em … Florida, United States of America, no montante de USD 4.000.000,00 (quatro milhões de Dólares), com data de 21 de Novembro de 2012, O BANCO B…, S.A., confirmou a sua garantia à Credora sobre o pagamento integral do capital e juros do referido empréstimo, até à sua maturidade (110 dias) mais cinco dias úteis, isto é, até 18 de Maio de 2013 e pelos períodos de eventuais renovações ou prorrogações do financiamento acrescidos de cinco dias úteis.
A nossa garantia permanecerá ativa enquanto o financiamento estivesse ativo e poderia ser executada “on first demand”, assim que o BFI informar ao B que o devedor – a Key Financial Investment Group LLC falhou no pagamento do capital e/ ou dos juros e pelo montante em dívida.”

11.– O empréstimo concedido à Key Financial Investment Group LLC, cujo contrato de mútuo – cfr. doc. nº 2 junto com a petição inicial, foi posteriormente prorrogado por um período adicional de 343 dias, passando a vencer-se em 17 de Fevereiro de 2014 - cfr. doc. nº 3 junto com a petição inicial).
12.– Em 17 de Fevereiro de 2014, a Key Financial Investment Group LLC nada pagou à aqui Autora, esta, em cumprimento do acordado, remeteu à 3.ª Ré em 18 de Fevereiro de 2014, a comunicação via telefax – cfr. doc. 4 junto com a petição inicial, através da qual informou o BANCO B, S.A. que o devedor não havia procedido ao pagamento da quantia mutuada de USD 4.000.000,00 (quatro milhões de dólares norte-americanos) e dos juros entretanto vencidos na data da maturidade do financiamento, que havia ocorrido em 17 de Fevereiro de 2014.
13.– A Autora executou e solicitou ao BANCO B…, S.A. o pagamento imediato do valor da Garantia Bancária supra indicada como doc. nº 1, incluindo capital e juros entretanto vencidos, tendo solicitado à 3.ª Ré que, no prazo máximo de dois dias, procedesse à transferência do montante total de USD 4.427.833,33 (quatro milhões, quatrocentos e vinte e sete mil, oitocentos e trinta e três dólares norte americanos e trinta e três cêntimos), o qual correspondia a USD 4.000.000,00 (quatro milhões de dólares norte-americanos) ao capital em dívida e USD 427.833,33 (quatrocentos e vinte e sete mil, oitocentos e trinta e três dólares norte-americanos e trinta e três cêntimos) aos juros vencidos, tendo indicado, ainda, os detalhes bancários para a solicitada transferência.
14.– No dia 19 de Fevereiro de 2014, os mandatários da autora remeteram a mesma comunicação à 3.ª Ré, desta feita por via postal com aviso de recepção, recebida no dia 20 de Fevereiro de 2014 - cfr doc. nº 5 junto com a petição.
15.– Com data de 4 de Abril de 2011, o BANCO B…, S.A. enviou ao autor a comunicação junta como doc. 7, a fls. 70 - do requerimento junto a 15.02.2016, com o teor seguinte:
“Assunto: Garantia sobre empréstimo de USD 3 500 000,00
Na sequência do financiamento em forma de empréstimo concedido pela BANCO A…, S.A., à Geofinance Limited, com sede em … Washington DC 20015, U.S.A., no montante de USD 3.500.000,00 (três milhões e quinhentos mil dólares), com data-valor de 04 de Abril de 2011, o BANCO B…, S.A. vem pela presente confirmar a sua garantia ao BANCO A…, S.A., sobre o pagamento integral do capital e juros do referido empréstimo até à sua maturidade, de 330 dias, isto é, até 28 de Fevereiro de 2012 e pelos períodos de eventuais renovações ou prorrogações do financiamento.
A nossa garantia permanecerá ativa enquanto o empréstimo estiver ativo e poderá ser executada “on first demand”, assim que BANCO A… (I.F.I.), S.A. informar ao B que o devedor – a Geofinance falhou no pagamento do capital e/ ou dos juros e pelo montante em dívida.”
16.– O empréstimo concedido pela Autora à Geofinance Limited, cujo contrato de mútuo – cfr. doc. nº 8, foi posteriormente prorrogado por um período adicional de 360 dias, passando a vencer-se em 22 de Fevereiro de 2013 (cfr. doc. nº 9) e ainda, prorrogado por outro período adicional de 360 dias, passando a vencer-se em 17 de Fevereiro de 2014 (cfr. doc. nº 10).
17.– O BANCO A…, S.A., face ao não pagamento da Geofinance Limited, a 17 de Fevereiro de 2014, em cumprimento do acordado, remeteu ao BANCO B…, S.A., em 18 de Fevereiro de 2014, a comunicação via telefax junta como doc. nº 11, a fls. 83 do requerimento de 15.02.2016, a informar que o devedor não havia procedido ao pagamento da quantia mutuada de USD 3.500.000,00 (três milhões e quinhentos mil dólares norte-americanos) e dos juros entretanto vencidos na data da maturidade do financiamento, que havia ocorrido em 17 de Fevereiro de 2014.
18.– Daquela comunicação o BANCO A…, S.A., consta, além dos detalhes bancários para transferência, o seguinte:
“(…) vimos executar e solicitar a V. Exas o pagamento imediato do valor da Garantia Bancária acima referenciada, incluindo capital e juros entretanto vencidos.
Para tanto, solicita-se a V. Exas. que, no prazo máximo de dois dias, procedesse à transferência do montante total de USD 4.291.145,83 (quatro milhões, duzentos e noventa e um mil, cento e quarenta e cinco dólares norte-americanos e oitenta e três cêntimos), o qual correspondia a USD 3.500.000,00 (três milhões e quinhentos mil dólares norte-americanos) ao capital em dívida e USD 791.145,83 (setecentos e noventa e um mil, cento e quarenta e cinco dólares norte-americanos e oitenta e três cêntimos) aos juros vencidos.”
19.– No dia 19 de Fevereiro de 2014, foi igualmente remetida pelos mandatários da autora, a mesma comunicação ao BANCO B…, S.A. por via postal com aviso de recepção, recebida no dia 20 de Fevereiro de 2014 – cfr. doc. nº 12.
20.O BANCO A…, S.A. intentou ação executiva que decorre termos sob o número do Processo 3577/14.0YYLSB na Comarca de Lisboa – Lisboa – Inst. Central – 1.ª Secção de Execução, que teve como título executivo a garantia do empréstimo concedido à Key Financial Investment Group LLC.
21.– Naqueles autos foi proferida decisão de indeferimento liminar, a 06.05.2014, cujo teor é o seguinte:
“Como é sabido, com a entrada em vigor do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, foi suprimida, enquanto título executivo, a categoria dos documentos particulares que antes cabiam na previsão do artigo 46º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil de 1961.
Para que os documentos particulares constituíssem título executivo era necessário que obedecessem aos seguintes requisitos:
a) Estarem assinados pelo devedor;
b) Importarem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, de acordo com as cláusulas dele constantes;
c) Importarem constituição ou reconhecimento de obrigação de coisa, móvel ou imóvel, ou de prestação de facto.
Assim, constituíam títulos executivos, ao abrigo do Código de Processo de 1961, os contratos de constituição de garantia bancária autónoma à primeira solicitação (neste sentido, Rui Pinto, Manual de Execução e Despejo, pág. 184).
Tal categoria de títulos executivos, como acima já se deixou expresso, foi abolida com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013.
Com efeito, nos termos do nº 1 do art. 703º do Código de Processo Civil de 2013, apenas podem servir de base à execução:
a)- As sentenças condenatórias;
b)- Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c)- Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d)- Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
Ora, no caso em apreço, o documento que serve de base à presente execução, designadamente, uma garantia bancária autónoma à primeira solicitação (on first demand), não é um documento autêntico, nem se mostra autenticado por notário, não cabendo outrossim em quaisquer outras das alíneas do nº 1 do art. 703º do Código de Processo Civil..
Assim sendo, tal documento não constitui título executivo, para efeitos do disposto no art. 703º do Código de Processo Civil, sendo pois manifesta a falta de título executivo, o que conduz necessariamente ao indeferimento liminar da execução, atento o preceituado no art.  726º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil.
Face ao exposto, indefiro liminarmente a presente execução.
Custas pela exequente.
Registe e notifique.”

22.– O recurso do Exequente BANCO A…, S.A. foi admitido por despacho de 25.06.2014.
23.– Recurso que não foi remetido ao Tribunal da Relação de Lisboa – ref.: 45882167, de 19.06.2023.
24.– O BANCO A…, S.A. intentou ação executiva que decorre termos sob o número do Processo 3576/14.1YYLSB na Comarca de Lisboa – Lisboa – Inst. Central – juiz 9, que teve como título executivo a garantia do empréstimo concedido à Geofinance Limited, com sede em …Washington DC 20015, U.S.A., no montante de USD 3.500.000,00 (três milhões e quinhentos mil dólares).
25.– Por decisão de 27.06.2014 foi liminarmente indeferido o requerimento executivo.
26.– Interposto recurso foi, a 31.07.2015, proferida decisão singular pelo Tribunal da relação de Lisboa a julgar procedente a apelação e a revogar o despacho recorrido.
27.– No Apenso de Embargos de Executado foi a 06.01.2016 proferida sentença a julgar improcedente os embargos de executado deduzidos pelo BANCO B…, S.A. e absolver o embargado BANCO A…, S.A., decisão de que não foi interposto recurso – consulta do processo electrónico.
28.– A presente acção deu entrada em juízo a 11.02.2016.

4.– Fixada a matéria de facto com interesse, cumpre agora analisar e responder às questões colocadas pelas Recorrentes, pela ordem supra exposta.
4.1.- Nulidade da sentença em resultado da violação do artigo 195º, nº 1 do CPC.
Sustentam, em primeiro lugar, as Recorrentes que o facto de a sentença ter sido proferida com dispensa da audiência, sem que o tribunal tivesse informado previamente as partes de que iria conhecer do mérito da causa, redundou na violação dos princípios da igualdade de armas e do inquisitório, consagrados, respectivamente, nos artigos 4º, 3º, nº 1 e 415º, nº 1 todos do CPC. Por isso, conclui que “a decisão recorrida  enferma de uma nulidade processual, nos termos do nº 1 do artigo 195º do CPC, a qual se arguiu para os devidos efeitos legais, pois que tais irregularidades influem, sem margem para dúvidas, no exame e na decisão da causa.” (conclusão 8).
Na verdade, como determina o artigo 195º, nº 1 do CPC, “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva” pode resultar numa nulidade processual, “quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Tem-se entendido que a omissão de determinada formalidade obrigatória (v.g. não cumprimento do contraditório antes de apreciar ex officio uma determinada questão) pode traduzir-se numa nulidade da própria decisão, ajustando-se, então, a interposição de recurso no âmbito do qual essa nulidade seja suscitada.[1] Por outras palavras, “quando o juiz se abstenha de apreciar uma situação irregular directamente detetável ou omita uma formalidade de cumprimento obrigatório, com repercussão na decisão proferida, o interessado (parte vencida) deve reagir mediante interposição de recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d) [do CPC].”[2]
Ora, é, precisamente, pela omissão de um acto processual que as Recorrentes apodam a sentença de nula, na medida em que, segundo sustentam, foram impedidas de se pronunciar sobre a existência de condições para que fosse proferida decisão sobre o mérito da causa, sem realização de audiência de julgamento, sendo certo que, no seu entendimento, existe a necessidade de ser produzida prova adicional (testemunhal) de alguns dos factos arrolados pelas Recorrentes (cfr. conclusão 7).
Com efeito, resulta dos autos, que o Tribunal, após ter dispensado a realização de audiência prévia, (“nos termos dos artigos 547.º, 591.º, n.º 1, alínea b), 592.º, n.º 1, alínea b) e 595.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil”) e decorrido o prazo que havia concedido às partes para se pronunciarem sobre tal dispensa, decidiu proferir sentença, uma vez que se mostravam “reunidas as condições para a prolação da decisão final”(cfr. despacho que antecedeu a sentença).
Contudo, como referem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “do confronto dos arts. 591º, nº 1, 592º, nº 1, 593º, nº 1, 593º, nº 3, e 597º resulta claro que a tramitação de uma ação declarativa comum de valor superior a metade da alçada da Relação (€ 15.000,00) incluirá, em curso normal, a realização de uma audiência prévia, regra que apenas comporta duas exceções tipificadas: quando a lei assim o estabeleça, o que sucede nos casos indicados no art. 592º, nº l; quando o juiz dispense a realização da audiência, ao abrigo do art. 593º, nº1”. [3] Daí concluírem que, fora daquelas excepções, a audiência prévia será obrigatória, decorrendo da sua dispensa uma nulidade.
Ora, no que concerne à possibilidade de dispensa de realização da audiência prévia, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 593º do CPC,  poderá ocorrer “nas ações que hajam de prosseguir”, mas “quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do nº 1 do artigo 591º”. Ou seja, a dispensa de audiência prévia está prevista apenas para os casos em que, independentemente do que se vier a decidir no despacho saneador, a acção prossegue. Por isso, fica desde logo afastada a possibilidade legal de dispensa de audiência prévia quando a acção finde no despacho saneador, seja em resultado da procedência de excepções dilatórias[4] ou peremptórias, seja por improcedência total ou parcial do ou dos pedidos.[5]
Dito de outro modo, pretendendo o juiz “conhecer do mérito da causa no despacho saneador, seja quanto a algum pedido, seja quanto a alguma excepção perentória, e independentemente do possível sentido da decisão, deverá convocar audiência prévia para os efeitos do art. 591º, nº 1, alínea b).”[6]
Porém, tem sido entendimento da jurisprudência que, mesmo nestas situações, a audiência prévia poderá ser dispensada, desde que, no exercício dos poderes de gestão processual e atendendo ao princípio da adequação formal (artigo 547º do CPC), o juiz ouça previamente as partes com indicação das razões por que se entende dever dispensar a realização de tal acto processual.[7] Isto porque, no caso de o despacho que comunica essa intenção de dispensar a audiência prévia e de conhecer do mérito da causa, estiver desprovido de qualquer fundamentação de facto e de direito, não permitirá às partes antever qual o quadro factual e jurídico em que irá assentar a decisão do tribunal, não podendo, assim, garantir plenamente o contraditório e acautelar decisões-surpresa (artigo 3º, nº 3 do CPC).[8] De todo o modo, é ainda necessário que as razões de facto e de direito subjacentes a todas as questões a decidir já se mostrem debatidas nos articulados e que seja dada às partes a possibilidade de manifestarem quer o seu assentimento, quer a sua oposição à dispensa da audiência prévia, porque, caso alguma delas não concorde com a dispensa, a audiência terá, obrigatoriamente, de ser realizada.[9]
No caso dos autos, como já se referiu, o saneador-sentença recorrido, foi precedido de despacho a convidar as partes para se pronunciarem sobre a dispensa da realização da audiência prévia.[10] Mas sobre a eventual intenção de o tribunal conhecer no despacho saneador do mérito da causa, nada se diz de concreto, mencionando-se apenas as normas dos artigo 591º, nº 1, alínea b) e 595º, nº 1, alínea b) ambos do CPC. Assim, mesmo que essa intenção de o tribunal conhecer de imediato do mérito da causa se deduza, implicitamente, daquela referência normativa, o certo é que o despacho em causa não indica as razões de facto e de direito por que se entendia dever dispensar a realização da audiência prévia. Ora, se o despacho que informa as partes ser intenção do tribunal dispensar a audiência prévia e proferir decisão que ponha termo à causa não contiver qualquer fundamentação de facto e de direito, aquelas não poderão antever qual o quadro factual e jurídico em que assentaria a decisão do Tribunal.
Desta feita, sendo o valor da presente acção superior a metade da alçada da Relação e entendendo o tribunal, como entendeu, dispensar a realização da audiência prévia e conhecer imediatamente do mérito da causa, deveria ter previamente informado as partes daquela dispensa, mas também informá-las, de forma fundamentada, sobre a decisão a proferir, o que implicava as questões a resolver, de forma a facultar-lhes a discussão de facto e de direito antes de proferir o despacho saneador-sentença.[11]
Como vimos, não foi este o procedimento adoptado nos presentes autos. Apesar de nenhuma das partes se ter oposto à dispensa da realização da audiência prévia, o certo é que não lhes foi dada a oportunidade de se pronunciarem sobre os fundamentos de facto e de direito para que se impusesse o conhecimento do mérito da causa na fase do despacho saneador.
Assim, por ter “procedido à dispensa da realização da audiência prévia sem se encontrarem reunidos os respectivos requisitos processuais indispensáveis, cometeu [o tribunal] uma nulidade traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve (art. 195º, n º 1 do CPC), e que acaba por se comunicar, inquinando-o, ao saneador-sentença. Tal nulidade acarreta a nulidade do saneador-sentença proferido, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do CPC”[12]. Ou seja, o tribunal conheceu de matéria que, nas circunstâncias em que o fez (omissão do dever de consulta), não poderia conhecer.[13]
Impõe-se, assim, a anulação a sentença proferida e demais actos dela dependentes, devendo a tramitação do processo ser retomada no momento imediatamente anterior à prolação do despacho saneador-sentença.
Nestes termos, procede o recurso interposto no tocante à nulidade processual invocada pela Recorrentes, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões recursivas.

5.– Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente, e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, a qual deve ser substituída por despacho que – em respeito pelo princípio do contraditório e tendo em consideração que nos presentes autos, findos os articulados e ainda que o tribunal entenda que estes dispõem de todos os elementos para que seja conhecido imediatamente o mérito da causa, tem que haver lugar à realização da audiência prévia –, convoque tal diligência, a menos que a sua realização seja dispensada sem oposição de qualquer das partes e que os motivos da dispensa e a intenção de proferir despacho saneador-sentença, bem como os elementos que serão considerados para tal efeito, sejam previamente comunicados às partes.
Custas a cargo do Recorrido.
Registe e Notifique.



Lisboa, 28/11/2023



Nuno Teixeira - (Relator)
Manuel Ribeiro Marques - (1º Adjunto)
Rosário Gonçalves - (2ª Adjunta)



[1]Cf. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume I, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 776.
[2]Cf. ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6ª Edição, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 28. Neste sentido ver ainda STJ, no Ac. de 13/10/2020 (proc. 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1), disponível em  www.dgsi.pt, onde se consignou que “a violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, alínea d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma”.  
[3]Cfr. Código de Processo Civil Anotado, volume I, pp. 709-710.
[4]Mas, caso o juiz pretenda conhecer uma excepção dilatória no despacho saneador, julgando-a procedente e absolvendo o réu da instância, já poderá dispensar a realização da audiência prévia nos termos do artigo 592º, nº 1, alínea b) do CPC, mas desde que tal excepção tenha sido debatida nos articulados (cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Ob. Cit., pág. 716.
[5]Mas, segundo o TRP, no Ac. de 08/11/2021 (proc. 3633/19.8T8PRT.P1), disponível em www.direitoemdia.pt, “nos casos de improcedência total ou parcial de excepções dilatórias ou perentórias ou de improcedência parcial do ou dos pedidos, nada obstará à dispensa da audiência prévia, pois que, nessas eventualidades, sempre a acção deverá prosseguir”.
[6]Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Ob. Cit., pág. 716.
[7]Cfr. o já citado Ac. da TRP de 08/11/2021 (proc. 3633/19.8T8PRT.P1). No mesmo sentido ver ainda TRG, Ac. de 15/06/2022 (proc. 194/09.0TBAVV-A.G1), TRP, Ac. de 12/07/2021 (proc. 974/20.5T8AGD-A.P1), TRL, Ac. de 04/07/2019 (proc. 214/16.1T8MFR.L1-7) e TRE, Ac. de 18/10/2018 (proc. 3870/17.0T8FNC-A.E1), todos disponíveis em www.direitoemdia.pt.
[8]Cfr. o já citado Ac. do TRG de 15/06/2022 (proc. 194/09.0TBAVV-A.G1).
[9]Cfr. neste sentido TRL, Ac. de 04/06/2019 (proc. 214/16.1T8MFR.L1-7), já citado.
[10]Recorde-se que tal despacho conclui desta forma:
“Assim e ao abrigo do princípio da adequação formal, dispenso a realização de audiência prévia, nos termos dos artigos 547.º, 591.º, n.º 1, alínea b), 592.º, n.º 1, alínea b) e 595.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
E, convido as partes a querendo, se pronunciarem.
Prazo: 10 dias.”
[11]Cfr. JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, volume II, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 90.
[12]Cfr. TRL, Ac. de 20/12/2018 (proc. 11749/17.9T8LSB.L1-7), já citado.
[13]Cfr. JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Obra e local citados.