Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
660/13.2GDALM-A.L1-5
Relator: CARLA FRANCISCO
Descritores: PERDÃO
LEI Nº38-A/2023
DE 02 DE AGOSTO
PENA ÚNICA
ROUBO SIMPLES
PENA DE PRISÃO SUPERIOR A OITO ANOS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL EM SEPARADO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: IEm caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares que a integram.

IINo art.º 7º, nº 1, alínea g) da Lei nº 38-A/2023, abrangem-se os condenados por crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, nas quais se incluem as vítimas dos crimes de roubo previsto no art.º 210º, nº 1 do Cód. Penal, enquanto vítimas de criminalidade violenta e, como tal, vítimas especialmente vulneráveis.

IIINos casos de exclusão de perdão previstos no art.º 3º, nºs 1 e 4 da Lei nº 38-A/2023 são colocadas em plano de igualdade todas as pessoas que foram condenadas em penas superiores a 8 anos de prisão, não existindo tratamento diverso para quem se encontra em situação idêntica, nem violação do princípio da igualdade.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1–Relatório


No processo nº 660/13.2GDALM do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Almada – Juiz 4, foi proferido despacho datado de 16/11/2023, a indeferir o requerimento do arguido AA, no sentido de lhe ser perdoado 1 ano e 10 meses de prisão na pena única de doze anos de prisão em que foi condenado, por aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2/08, no que concerne ao crime de roubo simples, cuja pena parcelar foi englobada no cúmulo jurídico.
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Inconformado com esta decisão veio o arguido interpor recurso para este Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a revogação daquele despacho e a sua substituição por outro através do qual lhe seja perdoada a pena de um ano de prisão, formulando as seguintes conclusões:
1– O Recorrente requereu junto do Tribunal a quo e ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (Perdão de Penas e Amnistia de Infracções), que lhe fosse perdoado 1 ano e 10 meses de prisão, pela prática de um crime de roubo simples p. e p. pelo artº 210º, nº1 do Código Penal;
2–O Recorrente nasceu no dia ... de ... de 1980 e na data da prática do crime de roubo acima indicado, no dia 13.11.1999, o Recorrente tinha 19 anos de idade, pelo que se verifica preenchido o primeiro requisito para a aplicação da Lei n.º 38- A/2023, de 2 de Agosto (cfr. artigo 2.º, n.º 1);
3– Assim, para efeitos do preenchimento do requisito previsto no artigo 3.º, n.º 1, o Recorrente entende que deve atender-se à pena concretamente aplicável ao crime que pode beneficiar de perdão e não à pena única aplicada em cúmulo, sob pena de se criarem desigualdades entre condenados por crimes idênticos e perdoáveis e o que consubstanciaria uma manifesta violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP.
4–O crime de roubo p. p. pelo artigo 210º, nº1 do Código Penal, não se enquadra na previsão da norma de excepção da Lei 38-A/23, de 2 de Agosto, no seu artigo 7º, nº1, alínea i), que afasta a aplicação do perdão de penas aos condenados pela prática do crime de “ (…) roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal.” ;
5–O despacho recorrido violou os artigos nº1 e 4 do artigo 3º e 7º da Lei Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, por ter decido não fazer incidir o perdão de penas sobre a pena aplicada ao recorrente pela prática de um crime de roubo p.p. pelo artigo 201º, nº1 do CP.”
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Lisboa, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
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O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pelo seu indeferimento e pela manutenção da decisão recorrida e formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
A)- Considerando que o arguido nasceu no dia 12/11/1980, e que os factos pelos quais foi condenado no âmbito do processo n.º 5887/05.8TBALM foram praticados em 13/11/1999, destarte, antes de o arguido ter atingido os 31 anos de idade, mostra-se verificado, apenas quanto a estes factos, o pressuposto previsto no artigo 2.º, n.º 1, da Lei Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.
B)- Por outro lado, com o devido respeito pelo entendimento do Mm.º Tribunal a quo, não se afigura que lhe assista razão ao considerar que o crime de roubo simples (previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal) também se encontra excluído pelo perdão.
C)- Outrossim, na esteira da jurisprudência citada, entendemos que a devida interpretação do artigo 7.º, al. g), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, é a de que o crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, não integra o catálogo de excepções daquele preceito, devendo beneficiar do perdão.
D)- Acontece que, no caso dos autos, a pena única global aplicada ao arguido é de 12 anos de prisão, ou seja, manifestamente superior aos 8 anos estabelecidos no artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.
E)- Como bem se refere no despacho recorrido, “sendo a pena única de doze anos, falece, desde logo, o pressuposto previsto no artigo 3.º, n.º 1, da citada lei” (o que, por lapso pelo qual nos penitenciamos, não foi considerado na nossa promoção de 14/11/2023).
F)- Como resulta da interpretação conjugada dos n.ºs 1 e 4 do artigo 3.º do referido diploma, o legislador pretendeu excluir do perdão as penas superiores a 8 anos, quer se trate de uma pena parcelar, quer se trate de uma pena unitária resultante de cúmulo jurídico, por as considerar criminalidade muito grave.
G)- Por conseguinte e em suma, no caso dos autos, salvo melhor entendimento de V. Exas., não poderá o arguido beneficiar do perdão parcial previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, porquanto – não obstante ter praticado, em data anterior a atingir os 31 anos, crime não excluído do perdão – a pena única global em causa excede os 8 anos de prisão, não se verificando pois o pressuposto previsto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 4, do mesmo diploma.
H)- Assim e salvo melhor entendimento, não deverá ser dado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão sub judice.”
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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância e pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.
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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
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2–Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)

Assim sendo, a questão que cumpre decidir no presente recurso é a de saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro através do qual seja perdoado um ano de prisão na pena única aplicada ao recorrente, por aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2/08.
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3- Fundamentação:

3.1.– Fundamentação de Facto

3.1.– É a seguinte a decisão recorrida:

Requerimento de 06-11-2023:

Apreciando:
AA, nascido a 12/11/1980, veio requerer que lhe seja perdoado 1 ano e 10 meses de prisão à pena única em que foi condenado, por aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.
Decidindo:
Para apreciação do requerido, importa considerar ter sido o mesmo condenando, nestes autos, na pena única de doze anos de prisão, resultante de cúmulo jurídico das seguintes penas parcelares:
- por factos praticados entre 5/10/2013 e 22/4/2014, susceptíveis de integrar um 1 crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
- factos praticados em 5/10/2013, pela prática de dois crimes de injúria agravada, na pena, por cada um deles, de 2 meses de prisão.
- por factos de 22/4/2014, pela prática do crime de detenção de arma proibida, a pena de 10 meses de prisão.
- por factos praticados em 13/11/99, integrantes de um crime de roubo agravado, na pena de 4 anos de prisão, de um crime de roubo simples, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, de um crime de rapto a pena de 2 anos e 3 meses de prisão e de dois crimes de violação, na pena, por cada um deles, de 6 anos de prisão.
A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, entrada em vigo no pretérito dia 1 de Setembro estabeleceu que relativamente a crimes praticados até 19 de Junho de 2023, por pessoas com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, sendo ainda perdoadas: as penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão; a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa; a pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e as demais penas de substituição, excepto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova, excluindo-se os crimes expressamente previstos no artigo 7.º do diploma (artigos 2.º, 3.º e 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto).
Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (artigo 3.º, n.º 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto).
No caso, sendo a pena única de doze anos, falece, desde logo, o pressuposto previsto no artigo 3.º, n.º 1, da citada lei.
Mas, além disso, relativamente aos factos praticados pelo requerente quando o mesmo tinha idade inferior a 30 anos, ou seja, os praticados em 13/11/99, e integrantes de um crime de roubo agravado, de um crime de roubo simples, de um crime de rapto e de dois crimes de violação também não pode beneficiar do perdão.
Os crimes de rapto e violação encontram-se excluído do perdão pelo artigo 7.º, n.º 1, alínea a), iv) e v) e o crime de roubo agravado, como bem salientando pelo próprio, encontra-se excluído pela alínea b), i).
E, também o crime de roubo simples, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, encontra-se excluído do perdão, tal como resulta da conjugação do artigo 7.º, alínea g), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, conjugado com o artigo 67.º-A, n.º 3, e 1.º, alínea j), do Código de
Processo Penal.
Decisão:
Atento o exposto, e à luz das normas legais citadas, indefere-se, por falta de fundamento legal, o requerido.”
Este despacho incidiu sobre o seguinte o requerimento do recorrente, datado de 6/11/2023:
“ AA, arguido e condenado nos autos à margem indicados vem, ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (Perdão de Penas e Amnistia de Infracções), requerer a V.Exa. a aplicação do perdão de penas, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1–O arguido foi condenado, no âmbito dos presentes autos e em cúmulo jurídico, na pena única de 12 (doze) anos de prisão efectiva pela prática de vários crimes entre eles um crime de roubo p.p. artº210º, nº1 do CP na pena parcelar de 1 ano e 10 meses;
2–O arguido cumpre a pena a que foi condenado no Estabelecimento Prisional de ... e encontra-se ininterruptamente privado da liberdade desde 23.04.2014, tendo beneficiado de saídas jurisdicionais, e completará os cinco sextos em 11.08.2024 e termo da pena em 03.09.2026.
3–Conforme previsto no artigo 2.º, n.º1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4”.
4–Nos termos do disposto no art. 3.º, n.º1 da citada Lei “Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos”.
5–O arguido nasceu no dia ... de ... de 1980.
6–O crime de roubo acima indicado foi praticado pelo arguido no dia 13.11.1999, quando o arguido tinha 19 anos de idade.
7–Tendo em conta que o arguido tinha idade inferior a 30 anos à data da prática do crime pelos qual foi aqui condenado, constata-se que o mesmo poderá beneficiar do perdão de penas no âmbito da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.
8–Sucede que a Lei nº38-A/23, de 2 de Agosto contém uma norma de excepção para efeitos da sua não aplicação relativamente aos condenados pela prática dos crimes indicados no seu artigo 7º.
9–O arguido foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de roubo p. p. pelo artigo 210º, nº1 do Código Penal na pena de 1 ano e 10 meses de prisão.
10 –A Lei 38-A/23, de 2 de Agosto, no seu artigo 7º, nº1, alínea i) afasta a aplicação do perdão de penas aos condenados pela prática do crime de “ (…) roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal.”.
11–Tendo sido o arguido condenado nos termos e para os efeitos do nº1 do artigo 210º do Código Penal, deverá assim beneficiar da aplicação da supracitada Lei do Perdão e da Amnistia e ser perdoada a pena de 1 ano e 10 meses de prisão a que foi condenado.
Termos em que, por aplicação da Lei 38-A/23, de 2 de Agosto, deverá ser perdoada ao arguido a pena de prisão de 1 ano e 10 meses de prisão pela sua condenação na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de roubo p. p. pelo artigo 210º, nº1 do Código Penal.”
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3.2.- Mérito do recurso

Nos presentes autos vem interposto recurso do despacho datado de 16/11/2023 que indeferiu o requerimento do recorrente no sentido de lhe ser perdoado 1 ano e 10 meses de prisão na pena única de doze anos de prisão em que foi condenado, por aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2/08, relativa ao crime de roubo simples, cuja pena parcelar foi englobada no cúmulo jurídico.

A Lei nº 38-A/2023, de 2/08, segundo o previsto no seu art.º 1º, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

Segundo o disposto no art.º 2º, nº 1 do diploma, estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”.

Tendo o arguido nascido a 12/11/1980 e praticado a 13/11/99 os factos relativos ao crime de roubo simples por que foi condenado, constata-se que tinha 19 anos de idade à data da prática deste crime, razão pela qual se encontra abrangido pela previsão do art.º 2º, nº 1 do diploma legal em apreço.

Importa agora verificar se a sua conduta se encontra também abrangida pelo disposto nos arts.º 3º e 4ª do mesmo diploma.

Dispõe o art.º 3º, nºs 1 e 4 da Lei nº 38-A/2023, que é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos e que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

Ora, tendo o recorrente sido condenado na pena única de doze anos de prisão, verifica-se que não é possível perdoar-lhe um ano de prisão, ainda que algumas das penas parcelares que integram o cúmulo jurídico sejam inferiores a 8 anos de prisão.
A lei é muito clara e explícita quanto a este aspecto, não nos oferecendo a sua interpretação quaisquer dúvidas.

Conforme resulta do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 2/2023, publicado no DR, 1ª série, de 1/02, as Leis do Perdão e Amnistia têm uma natureza excecional que, como tal, não comportam aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo as normas que as enformam "ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas". Nesta medida, "insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa [...]".
Como tal, atendendo à excecionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação das mesmas deverá, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei, adotando-se uma interpretação declarativa em que "não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo".

A opção legislativa consagrada na Lei nº 38-A/2023 também não constitui uma novidade, pois, a partir da Lei nº 17/82, de 2/07, nas várias leis de amnistia e perdão sempre se estipulou que, em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares que a integram.

Verifica-se, assim, que o legislador ordinário estabeleceu como limite do perdão os 8 anos de prisão, quer para a pena unitária, quer para a pena única, resultante de uma operação de cúmulo jurídico de penas, tendo optado inquestionavelmente por afastar da aplicação do perdão os casos de criminalidade mais grave, punidos com penas superiores a 8 anos de prisão.

(cf. neste sentido, entre outros, os Acórdãos do TRL datado de 23/01/24, proferido no processo nº 2872/17.0T9PDL-A.L1-5, em que foi relatora Sandra Oliveira Pinto, do TRL datado de 23/01/24, proferido no processo nº 2913/18.4PBLSB.L2-5, em que foi relatora Ester Pacheco dos Santos, do TRL datado de 23/01/24, proferido no processo nº 1161/20.8PBSNT-D.L1-5, em que foi relator Manuel José Ramos da Fonseca, do TRG datado de 23/01/24, proferido no processo nº 438/07.2PBVCT-AE.G1, em que foi relatora Anabela Varizo Martins, do TRL datado de 22/02/24, proferido no processo nº 163/09.0PBPVC-A.L1-9, em que foi relatora Fernanda Sintra Amaral, do TRL datado de 21/03/24, proferido no processo nº 1005/21.3GEALM-C.L1-9, em que foi relator Nuno Matos, do TRL datado de 18/04/24, proferido no processo nº 73/11.0JBLSB-D.L1-9, em que foi relatora Maria Ângela Reguengo da Luz, in www.dgsi.pt)

Por outro lado, em nosso entendimento, no caso dos autos a aplicabilidade do perdão ao recorrente também se mostra excluída pelas disposições conjugadas dos art.º 7º, nº 1, al. g) da Lei nº 38-A/2023, e art.º 67º-A, nºs 1, al. b) e 3 e 1.º, al. l) do Cód. Proc. Penal.

Efetivamente, o art.º 7.º do diploma em análise excepciona da aplicação do perdão, entre outras, as seguintes hipóteses:
- na al. b) ponto i), os condenados pela prática de crime de roubo, previsto e punível pelo art.º 210º, nº 2 do Cód. Penal (roubo agravado);
- na al. g), os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do art.º 67º-A do Cód. Proc. Penal.

Da análise conjugada das citadas normas resulta que, apesar de o crime de roubo p. e p. pelo art.º 210º, nº 1 do Cód. Penal, com pena de prisão de 1 a 8 anos, não constar expressa e individualmente das situações elencadas no art.º 7º, nº 1 da Lei nº 38-A/2023, o certo é que na alínea g) deste preceito legal se abrangem os condenados por crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, nas quais se incluem as vítimas dos crimes de roubo previsto no art.º 210º, nº 1 do Cód. Penal, enquanto vítimas de criminalidade violenta e, como tal, vítimas especialmente vulneráveis, de acordo com o critério estabelecido no art.º 67º-A, nº 1, alíneas a) e b) e nº 3, conjugado com o previsto no art.º 1º, alínea j) ambos do Cód. Proc. Penal.

Como se refere no Acórdão deste Tribunal e Secção datado de 14/12/2023, proferido no processo nº 27/22.1PJLRS-B.L1, em que foi relatora Sandra Ferreira, in www.dgsi.pt, em moldes que perfilhamos: “(…) cremos que o legislador no art. 7º nº 1 da Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto, foi estabelecendo em concreto a inaplicabilidade do perdão e da amnistia para certos tipos de crime, vindo depois a estabelecer na al. g) do citado nº 1, uma cláusula mais abrangente, no sentido de excecionar a aplicação da amnistia e do perdão aos condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis nos termos do art. 67º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-lei nº 78/87 de 17 de fevereiro (isto, é centrando agora o foco especificamente na vítima do crime e não no concreto tipo de crime cometido).
Partindo do texto da lei vemos que o legislador não excluiu qualquer vítima especialmente vulnerável. E, de facto, se o legislador quisesse limitar a exceção à definição de vítima especialmente vulnerável, prevenida no art. 67º-A, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, tê-lo-ia seguramente feito.
Na verdade, da Exposição de Motivos[5] com que o Conselho de Ministros submete a Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª à apreciação do Parlamento, fez-se constar o seguinte:(…) Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.
Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação(…)” e, como vimos, o crime de roubo, previsto no nº 1 do art. 210º do Código Penal, nos termos do disposto no art. 1º al. l) do Código de Processo Penal é qualificado como criminalidade especialmente violenta.
Por seu turno, dos trabalhos parlamentares prévios à aprovação da referida Lei da Amnistia e do Perdão[6] verifica-se que, que quer a alínea b), ponto i) quer a alínea g) do art. 7º da lei 38-A/2023 de 2 de agosto, sofreram alterações face à sua proposta inicial.
Assim, no que se refere à al. b) a proposta inicial do Governo excluía do perdão e da amnistia o crime de roubo “em residências ou na via pública cometido com arma de fogo ou arma branca, previsto no art. 210º do Código Penal”.
Posteriormente, em 10 de julho de 2023, foi apresentada proposta de alteração pelo Grupo Parlamentar do PSD que excluía do perdão e da amnistia os condenados por crime de roubo previsto no art. 210º do Código Penal. E a 14 de julho de 2023, foi apresentada outra proposta pelo Grupo Parlamentar do PS apenas excluía do perdão e da amnistia os condenados pela prática do crime de roubo agravado, previsto no nº 2 do art. 210º do Código Penal, tendo sido esta proposta que acabou por ficar consagrada no texto final do art. 7º, al. b), subalínea i)., da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto.
Porém, também a alínea g) do art. 7º teve uma redação diferente da constante da inicial proposta de lei apresentada pelo Governo.
Aquela proposta inicial excluía do perdão e da amnistia “g) Os condenados por crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, incluindo as crianças e os jovens, as mulheres grávidas e as pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes”, mas a redação final que fez vencimento (e que resultou também de uma proposta de alteração apresentada pelo Grupo Parlamentar do PS) exclui do perdão e da amnistia “g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal”.
Assim, temos que dos trabalhos preparatórios resulta que ambas as propostas de alteração que vieram a ser acolhidas resultaram de alterações provindas do mesmo Grupo Parlamentar, o que nos leva a concluir que a menção expressa na alínea g) a “vítimas especialmente vulneráveis” não terá deixado de ser devidamente ponderada, designadamente no seu confronto com o constante da al. b) do mesmo art. 7º, resultante também de proposta de alteração do mesmo grupo.
Na verdade, ao contrário do que defende o recorrente, decorre do supracitado art. 9º, nº 3 do Código Civil a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. E, continuando a seguir os ensinamentos de Batista Machado[7] importa referir que quando nos afastamos da letra da lei ainda que justificadamente, introduzimos um fator de insegurança na ordem jurídica pelo que “só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo´”.
É certo que podem encontrar-se outras explicações lógicas para a interpretação restritiva, desta alínea g) mas tal não as pode levar a prevalecer sem mais.
Ora, do texto desta alínea g) do nº 1 do art. 7º da Lei 38-A/2023 de 2 de agosto retira-se que o legislador excecionou a aplicação da amnistia e perdão, aos condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e “vítimas especialmente vulneráveis” nos termos do art. 67º-A do Código de Processo Penal, não ressalvando um particular número ou alínea deste artigo 67º -A do Código de Processo Penal (e muito concretamente o estabelecido no nº 1 al. b) daquele preceito legal).
Deste modo, resultando as redações finais da alínea b) ponto i) e da al g) do referido art. 7º da lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto de uma proposta de alteração do mesmo Grupo Parlamentar, cremos não ser defensável o entendimento de que o conceito de “vitima especialmente vulnerável”, aplicado sem restrições, ultrapassa o fim para que foi ordenado, ou seja, que o legislador disse mais do que o que pretendia dizer.
Para quem defenda que por o crime de roubo, previsto e punível pelo art. 210º, nº 1 do Código Penal não estar previsto expressamente no ponto i) da alínea b) do art. 7º da Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto não está excecionada a aplicação do perdão, torna-se difícil perceber como admitirão excecionar do perdão todas aquelas situações em que, sendo cometido um crime de roubo, previsto e punível pelo art. 210º, nº 1 do Código Penal, as vítimas sejam pessoas cuja especial fragilidade decorra, por hipótese, da sua idade ou estado de saúde, pois que claramente estas vítimas estariam abrangidas pela al. g) do referido art. 7º da lei 38-A/2023 de 2 de agosto, como o legislador quis e previu, e consequentemente o perdão não teria aplicação - embora o art. 210º, nº 1 do Código Penal, continue a não constar da referida alínea b).
Assim, presumindo-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º, nº 3 do Código Civil) a conclusão a retirar é que estarão também abrangidas as vítimas cuja especial vulnerabilidade decorre da classificação legal dos crimes praticados, como integrando “criminalidade violenta” ou “criminalidade especialmente violenta”, nos termos do art. 1º al. j) e l) do Código de Processo Penal, mesmo que esse crime seja o de roubo previsto e punível pelo art. 210º, nº 1 do Código Penal.
Em face do exposto, tendo em conta que o crime de roubo previsto e punível pelo artigo 210º nº 1 do Código Penal, pelo qual o arguido foi condenado, ofendeu uma vítima legal e expressamente qualificada como “especialmente vulnerável”, verifica-se a exceção constante da al. g) do nº 1 do art. 7º da Lei nº 38º-A/2023, de 2 de agosto, pelo que não pode o arguido beneficiar de qualquer perdão relativamente à pena em que o foi condenado(…).

Como também se refere no Acórdão do TRG datado de 23/01/24, proferido no processo nº 5310/19.0JAPRT-AI.G1, em que foi relatora Isilda Pinho, in www.dgsi.pt: “(…) Perante o confronto entre uma norma/alínea em que o legislador exceciona o perdão sob o prisma da tutela do património – alínea b), do n.º 1, do artigo 7.º da Lei n.º º 38-A/2023 de 02 de agosto [note-se que o legislador refere-o expressamente nos seguintes termos “no âmbito dos crimes contra o património (…)”] e uma outra norma em que o legislador dá primazia à vertente da vítima, enquanto pessoa, contando com as fragilidades, indefesas inerentes, designadamente, à idade – alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º da Lei n.º º 38-A/2023 de 02 de agosto [note-se que o legislador refere-se a crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis (…)”], e desta não excecionando qualquer crime, é indubitável que a sociedade não compreenderia que tais valores não preponderassem sobre a tutela da propriedade.(…)”

Em face de tudo o exposto, é nosso entendimento que não pode o recorrente beneficiar de qualquer perdão relativamente à pena em que foi condenado, quer porque a pena única é superior a oito anos de prisão, quer porque o crime de roubo simples não está excluído do elenco do art.º 7º da Lei nº 38º-A/2023.

(cf. neste sentido, entre outros, os Acórdãos do TRL datado de 28/11/23, proferido no processo nº 7102/18.5P8LSB-A.L1-5, em que foi relatora Luísa Maria da Rocha Oliveira Alvoeiro, do TRL datado de 23/01/24, proferido no processo nº 2913/18.4PBLSB.L2-5, em que foi relatora Ester Pacheco dos Santos, do TRL datado de 20/02/24, proferido no processo nº 286/22.0SYLSB.L2-5, em que foi relatora Luísa Maria da Rocha Oliveira Alvoeiro, do TRL datado de 19/03/24, proferido no processo nº 846/12.7GACSC.L1-5, em que foi relator João Ferreira, in www.dgsi.pt )

No mesmo sentido se pronunciou Pedro Brito, in “Notas práticas referentes à Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, JULGAR Online, agosto de 2023, págs. 31 e 32.

Por outro lado, também entendemos que não se mostra violado relativamente ao recorrente o disposto no art.º 13º da CRP, quanto à não aplicação do perdão a penas parcelares incluídas em penas únicas de prisão superiores a 8 anos.

Na verdade, nos casos de exclusão de perdão previstos no art.º 3º, nºs 1 e 4 da Lei nº 38-A/2023 são colocadas em plano de igualdade todas as pessoas que foram condenadas em penas superiores a 8 anos de prisão, não existindo tratamento diverso para quem se encontra em situação idêntica.

A escolha do universo dos destinatários da Lei nº 38º-A/2023 radica em opções de política criminal por parte do legislador ordinário, que o mesmo exerce com cobertura legal e constitucional, ainda que a definição do universo de aplicação da lei não possa deixar de conter alguma discricionariedade, mas sem que tal constitua uma violação do art.º 13º da CRP.

Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger a medida do perdão de penas – o quantum do perdão –, as espécies de crimes ou infracções abrangidas, os limites das penas a perdoar e a sujeição ou não do perdão a condições, desde que tal se faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações enquadráveis na previsão da norma em igualdade de circunstâncias.

Face aos termos em que se mostram redigidas as disposições legais da Lei nº 38-A/2023, impõe-se concluir que a delimitação do seu âmbito de aplicação está devidamente justificada e não se mostra arbitrária, nem irrazoável, pelo que não está posto em causa o princípio constitucional da igualdade, aplicando-se as normas a todos os indivíduos que se encontrem nas situações tipificadas, sendo as mesmas de aplicação geral e abstracta.

Por tudo o exposto, impõe-se julgar improcedente o presente recurso e manter o despacho recorrido, não se mostrando violado nenhum dos preceitos legais ou constitucionais invocados pelo recorrente.
*

4.Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto por AA e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Uc´s..


Lisboa,7 de Maio de 2024


(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)


Carla Francisco
(Relatora)
Ana Cláudia Nogueira
(Adjunta com a seguinte declaração de voto:

Declaração de voto:
Entendo que para julgar o presente recurso não seria necessário tomar posição acerca da aplicabilidade da Lei do Perdão e da Amnistia ao crime de roubo, porquanto em face da pena de 12 anos de prisão em que o arguido está condenado, como de resto é decidido na primeira parte deste acórdão, é manifesta e praticamente isenta de controvérsia a inaplicabilidade desse perdão por via do disposto no art. 3º/1 dessa Lei e do limite de 8 anos aí fixado.
No entanto, uma vez que se optou por abordar também aqueloutra questão, relativamente à qual temos posição divergente, aqui a manifestamos como segue.
Discordo da solução interpretativa sufragada no acórdão acerca da questão de saber se o crime de roubo previsto pelo art. 210º/1 do Código Penal, não excecionado da aplicação da Lei do Perdão de Penas e Amnistia de Infrações aprovada pela L. 38-A/2023, de 02/08 (diploma a que pertencem todas as normas citadas doravante sem indicação de proveniência) por via do disposto no art. 7º/1, b), i), deve considerar-se excecionado dessa aplicação por via do preceituado no mesmo art. 7º/1, g), enquanto crime que é sempre praticado contra vítimas especialmente vulneráveis nos termos do art. 67º-A/1,b) e 3, do Código de Processo Penal, já que integra a categoria da criminalidade violenta ou da criminalidade especialmente violenta, segundo o art. 1º/j) e l), do Código de Processo Penal.
Pois bem.
Entendo que, por um lado, o legislador não quis excecionar da aplicação da Lei do Perdão e Amnistia os condenados por crime de roubo simples, com previsão no nº 1 do art. 210º do Código Penal, deixando-o expresso no texto da lei ao indicar no art. 7º/1,b),i) apenas o nº 2 desse normativo; por outro lado, afigura-se-me que não pode atribuir-se à previsão da alínea g) um efeito de derrogação do assim expressamente consagrado, devendo outrossim dela efetuar-se interpretação que seja compatível com aqueloutra norma.
E essa interpretação da previsão contida na alínea g), que aparece reportada ao tipo de vítima do crime, em vez de ao tipo de crime, como sucede nas alíneas anteriores, até pela sua inserção sistemática, indicativa de que é menos específica e residual em relação às anteriores previsões relativas a concretos tipos legais de crime, terá necessariamente que passar por afastar a sua aplicação aos crimes violentos e especialmente violentos (cujas vítimas são legalmente consideradas vítimas especialmente vulneráveis), que não constem excecionados nas alíneas anteriores.
Explicando.
A interpretação sufragada no acórdão e que fez vencimento corresponde, na prática, a eliminar do texto do art. 7º/1,b) i) a indicação do nº 2 do art. 210º do Código Penal, como se aí devesse constar apenas a referência ao art. 210º, por forma a terem-se por excecionados da aplicação da Lei do Perdão e Amnistia todos os roubos, seja na forma agravada, prevista no nº 2, seja na forma simples, com previsão no nº 1; e isso corresponde a derrogar a lei.
Na verdade, quisera o legislador excecionar da aplicação da Lei do Perdão e Amnistia o crime de roubo em qualquer das suas previsões, simples e agravada, e não havia qualquer razão para não o ter feito logo quando da previsão do nº 1, b), i) do citado art. 7º.
Mais.
Esta é a meu ver a única interpretação que, além de respeitar a letra da lei, respeita também o espírito da lei.
Isto porque os trabalhos preparatórios da Lei do Perdão e Amnistiai permitem reconstituir o pensamento e vontade do legislador no sentido que preconizamos.
Com efeito, aí se constata que a proposta inicial do Governo excluía do perdão e da amnistia o crime de roubo “em residências ou na via pública cometido com arma de fogo ou arma branca, previsto no art. 210º do Código Penal”.
Posteriormente, em 10 de julho de 2023, o Grupo Parlamentar do PSD apresentou proposta de alteração que excluía do perdão e da amnistia os condenados por crime de roubo previsto no art. 210º do Código Penal.
Já a Proposta de alteração apresentada pelo Grupo Parlamentar do PS, em 14 de julho de 2023, apenas excluía do perdão e da amnistia os condenados pela prática do crime de roubo agravado, previsto no nº 2 do art. 210º do Código Penal, tendo sido esta proposta que acabou por ficar consagrada no texto final do art. 7º/b), i).
Assim e face à redação definitiva que fez vencimento, há que concluir que os condenados por crime de roubo previsto no nº 1 do art. 210º do Código Penal não estão excluídos do benefício do perdão e da amnistia previsto na Lei do Perdão e da Amnistia na medida em que a mencionada subalínea i) da alínea b) do nº 2 do art. 7º apenas exclui os condenados por crime de roubo previsto no nº 2 do art. 210º do Código Penal, não podendo deixar de se considerar ter sido intencional o concreto âmbito dessa exclusão do nº 1, considerado o chumbo da proposta de alteração apresentada pelo Grupo Parlamentar do PSD.
De resto, a proposta de alteração do grupo parlamentar do PSD que viria a ser chumbada, ia ao encontro do contributo do Conselho Superior da Magistratura que sugeria a aplicação da Lei da Amnistia a “todos os condenados por crimes de roubo previsto e punido pelo artigo 210º do Código Penal e roubo qualificado, face à enorme expressão e gravidade deste tipo de crimes, consabidamente causadores de grande alarme social” (3.5.3.1.), ficando deste modo bem evidenciado que a questão foi colocada e discutida, tendo sido ultrapassada com a prevalência da proposta do grupo parlamentar do PS, vazada em lei.
Já a remissão para o conceito de vítima especialmente vulnerável consagrado no art. 67º-A do Código de Processo Penal, que decorrerá do contributo do Conselho Superior do Ministério Públicoii, não constava do projeto de lei que continha o seguinte nessa alínea: “Os condenados por crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, incluindo as crianças e os jovens, as mulheres grávidas e as pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes”; tudo indica, pois, que, ao introduzir tal alteração na formulação final da alínea g), do nº 1 do art. 7º, não contou o legislador com a possibilidade interpretativa que agora se adota no acórdão de, através de um jogo de remissões, poder anular a indicação expressa do nº 2 do art. 210º feita na prévia alínea b), i), do mesmo nº1 do art. 7º.
Certo é que o legislador não podia deixar de saber que existia o nº 3, do art. 67º-A do Código de Processo Penal, a considerar sempre como vítima especialmente vulnerável a vítima de criminalidade violenta nos termos do art. 1º/j) do Código de Processo Penal, e que o roubo previsto e punido pelo art. 210º/1 do Código Penal, por se dirigir contra a integridade física e liberdade pessoal da vítima, cai necessariamente nesta categoria de criminalidade violenta; pelo que, sabia também que ao inserir na referida alínea g) do nº 1 do art. 7º a remissão para o art. 67º-A do Código de Processo Penal poderia dar ensejo à tese propugnada no acórdão, que necessariamente terá que ter considerado afastada pela indicação expressa no catálogo das exclusões da aplicação da Lei do Perdão e Amnistia do roubo do nº 2 do art. 210º do Código Penal, deixando de fora o roubo do nº 1.
Neste quadro, uma reconstituição do pensamento legislativo que leve à exclusão do roubo do nº 1 do art. 210º do Código Penal da aplicação da Lei do Perdão e Amnistia, será, pois, contrária à presunção legal consagrada no art. 9º/3 do Código Civil de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados
Em suma: resulta clarividente do texto da lei e do pensamento do legislador reconstituído em termos lógicos e mediante análise do processo legislativo que o legislador quis deliberadamente aplicar a Lei do Perdão e Amnistia aos condenados por crimes de roubo na previsão do nº1 do art. 210º do Código Penal; simplesmente não atentou que, ao introduzir na alínea g), do nº1 do art. 7º a remissão para o disposto no art. 67º-A, desta norma haveria nova remissão para o disposto no art. 1º/j) e l), ambos do Código de Processo Penal, e desse modo, estava a abrir a porta a interpretações como aquela que o acórdão sufraga e que, na prática, representam uma derrogação da norma contida na própria norma traduzida na expressão popular de «fazer entrar pela janela o que não se quis deixar entrar pela porta.».
Assim, muito embora admita alguma equivocidade do texto legal, entendo que nem a letra nem o espírito da lei consentem a interpretação sufragada no acórdão.
Não obstante, porque, tal como também se decide no acórdão, atento o disposto no art. 3º/1 da LPA, a pena única em que o arguido está condenado de 12 anos de prisão, nunca seria perdoável mesmo englobando penas por crimes perdoáveis, como o crime de roubo na nossa interpretação, desta nossa posição não resulta qualquer alteração ao sentido da decisão do recurso, de confirmação da decisão recorrida.
[i]Inhttps://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=173095.
[ii] In https://app.parlamento.pt/webutils/docs.)

Rui Coelho
(Adjunto)