Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
80/21.5PCLRS.L1-9
Relator: RENATA WHYTTON DA TERRA
Descritores: PENA DE PRISÃO
PENAS DE SUBSTITUIÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
JUÍZO DE PROGNOSE FAVORÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.As finalidades que estão na base da suspensão da execução da pena de prisão consistem, no essencial, na reintegração plena do agente na sociedade através de um comportamento responsável e sem praticar crimes. Subjacente à suspensão da execução da pena de prisão está sempre um juízo de prognose favorável, traduzido numa expectativa fundada, mas assente num compromisso responsável com o condenado, de que a mera censura do facto e a ameaça da prisão sejam bastantes para que não sejam cometidos novos crimes.

2.O juízo de prognose favorável reporta-se ao momento em que a decisão é tomada e pressupõe a valoração conjunta de todos os elementos que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido.

3.A aplicação de uma pena de substituição não é uma faculdade discricionária do tribunal, mas, pelo contrário, constitui um verdadeiro poder/dever, sendo concedida ou denegada no exercício de um poder vinculado.

4.Na jurisprudência, tanto no Tribunal Constitucional como no Supremo Tribunal de Justiça, foi defendida a necessidade de fundamentação, face à versão anterior, justificando-se de pleno a mesma posição face à nova lei, em que apenas foi alterado o pressuposto formal passando do limite de 3 para 5 anos de prisão.

5.A caracterização da suspensão da execução da pena de prisão como um poder vinculado conduz à necessidade de fundamentação da decisão que a aplica, ou a desconsidera, incorrendo em nulidade a decisão que não contemple tal injunção, de conhecimento oficioso, nos termos do art.º 379.º, n.ºs 1, al. c) e 2, do Código de Processo Penal.

6.A conjunção de necessidades de prevenção geral face ao bem jurídico lesado e cuja validade da norma que o protege tem de ser reafirmada, com outras de prevenção especial que as qualidades da personalidade do arguido infirmam, não permitem preencher o juízo de prognose favorável quanto à sua capacidade para não voltar a delinquir.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–Relatório:


No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Colectivo n.º80/21.5PCLRS.L1 a correr termos no Juízo Central Criminal de Loures- Juiz 3, foi julgado o arguido A, filho de B e de C, natural da freguesia de São ..... ....., concelho de C____, nascido a 24-11-1968, solteiro, manobrador de máquinas de terraplanagem, residente na Rua ....., C____ e foi decidido:
-julgar a acusação parcialmente improcedente, por parcialmente não provada, e, em consequência, absolver o arguido A da prática dos crimes de falsificação de documento e de omissão de auxílio de que vinha acusado.
-julgar a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, condenar o arguido A pela prática, em autoria material e em concurso efectivo de infracções, de:
-1 (um) crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 03-01, com referência ao disposto no art. 121.º do CE, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
-1 (um) crime de condução perigosa de veículo p. e p. pelo art. 291.º, n.º 1, al. a), do CP, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
-1 (um) crime de homicídio por negligência grosseira p. e p. pelo art. 137.º, n.ºs 1 e 2, do CP, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses;
-1 (um) crime de dano qualificado p. e p. pelo art. 213.º, n.º 1, al. c), do CP, na pena de 6 (seis) meses;

*
Este tribunal colectivo decide ainda em condenar o arguido A na pena única conjunta de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, uma vez realizado o cúmulo jurídico das penas parcelares acima impostas.”

***
Desta decisão veio o arguido interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls.591 a 595 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
1.–O douto Tribunal a quo condenou o arguido em 3 anos e 4 meses de prisão efetiva.
2.–Sem atender às condições pessoais e sociais do arguido que sustentem tal decisão tão gravosa, de privação da liberdade, nem ao relatório social, nem ao registo criminal do mesmo.
3.–Proferindo a sentença com fundamento exclusivo nos factos ilícitos cometidos pelo arguido e as consequências gravosas, (diga-se a vitima mortal) ocorridas, sem dolo do arguido.
4.–Afastando a aplicação da suspensão da pena em virtude das finalidades da punição, violando, assim, o disposto no artigo 71º e 50º do CP.
5.–A verdade é que o arguido encontra-se a trabalhar, com cargo de responsabilidade, o que manifesta vontade de alterar alguns comportamentos menos positivos que teve em tempos.
6.–A aplicação de medida não privativa da liberdade ou a suspensão da pena aplicada, podem ter como imposição o cumprimento de deveres e o tribunal pode sujeitar o arguido ao cumprimento dos deveres que entender pertinentes para que o mesmo interiorize em definitivo, uma conduta conforme ao direito, demonstrando-o ao tribunal.
7.–O tribunal não valorou corretamente as circunstâncias pessoais do arguido para efeitos do disposto nos arts. 40.º 50.º e 71.º do Código Penal, podendo e devendo suspender o cumprimento da pena que se revela demasiado excessiva para os factos em causa.
8.–Só essa decisão trará a certeza de ser justa e imparcial, facultando ao próprio arguido a sua possibilidade de reabilitação.
9.–Tal decisão será, sim, a única que acautelará, as necessidades de prevenção.
10.–E aproveitará não só ao arguido, como a todos.
11.–Houve, assim, erro na aplicação do direito, na parte que diz respeito à determinação da concreta medida da pena e à decisão de não suspensão da execução da mesma.
Deve o douto acórdão recorrido ser substituído por outro que efetue um melhor e correto enquadramento de toda a situação do ora recorrente, aplicando ao arguido uma pena menos severa e não privativa da liberdade, ou caso opte por manter a aplicação das penas privativas da liberdade, suspender a sua execução, fazendo V. Exas. a costumada JUSTIÇA!

***
O MºPº respondeu às alegações de recurso da seguinte forma:
1.–O arguido A, e ora recorrente, foi condenado na pena única conjunta de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, pela prática, em autoria material e em concurso efetivo de infrações, de 1 (um) crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 03-01, com referência ao disposto no art. 121.º do CE, na pena de 6 (seis) meses de prisão; 1 (um) crime de condução perigosa de veículo p. e p. pelo art. 291.º, n.º 1, al. a), do CP, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; 1 (um) crime de homicídio por negligência grosseira p. e p. pelo art. 137.º, n.ºs 1 e 2, do CP, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses; e 1 (um) crime de dano qualificado p. e p. pelo art. 213.º, n.º 1, al. c), do CP, na pena de 6 (seis) meses;
2.–Não se conformando com a decisão, o arguido dela interpôs recurso, pugnando que a pena de prisão aplicada seja suspensa na sua execução.
3.–Todavia, da conjugação da factualidade provada, mormente, quanto à sua personalidade, condições de vida, conduta anterior e posterior aos crimes, e às suas circunstâncias, outra não podia ser a conclusão que não a formulação prognóstica desfavorável.
4.–Além de que, não satisfaz as necessidades de prevenção geral uma vez que a repetição da prática deste ilícito inspira para a sociedade o fracasso das normas, e um sentimento de insegurança, bem como, para os potenciais infratores, um enfraquecimento da necessidade de se absterem dos seus comportamentos criminosos.
5.–Donde, razões de prevenção especial e também de prevenção geral impedem, pois, a substituição da pena de prisão imposta pela suspensão da respetiva execução, mostrando-se esta incapaz de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
6.–Pelo que, a decisão do tribunal «a quo» não merece censura, devendo, por conseguinte, manter-se tale quale propalada no nosso ordenamento jurídico.
Termos em que, deverá o recurso improceder, mantendo-se na íntegra a douta decisão recorrida. Assim se fazendo Justiça.

***
Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu e que se encontra a fls.612 a 616 dos autos, pugna pela improcedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, o arguido pugnou pela suspensão da execução da pena de prisão e a assistente acompanhou a posição do MºPº, defendendo a improcedência do recurso.

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II–Fundamentação:

Fundamentação de facto

a)-São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª Instância:
--o arguido A apoderou-se do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..., da marca “Peugeot”, quando estava estacionado na cidade de Coimbra, em circunstâncias não concretamente apuradas.
--no dia 17-02-2021, por volta das 17 horas e 00 minutos, o arguido A conduzia o veículo automóvel com a matrícula ... pela Avenida A... ... ..., Santo ... ..., L____, área desta comarca.
--todavia, a chapa de matrícula dianteira ostentava os dígitos ..., enquanto que a chapa traseira do veículo ostentava os dígitos ..., que tinham sido alterados, mediante a colocação de fita adesiva preta, para que o 9 passasse a 8 e o 6 passasse a 8.
--nessa ocasião, encontrava-se de passagem pelo local um carro-patrulha da Polícia de Segurança Pública de 2020, com a matrícula ..., que tinha um valor patrimonial superior a € 5 100, no qual seguiam D e AM.
--apercebendo-se que o veículo automóvel com a matrícula ... apresentava uma condução irregular, aos ziguezagues e com acelerações e travagens sucessivas, o agente da Polícia de Segurança Pública D deu ordem de paragem ao arguido A, através do sistema áudio da viatura policial.
--ao mesmo tempo em que foi dada a ordem de paragem, o carro-patrulha com a matrícula ... tinha os sinais luminosos acesos e fazia o uso dos sinais sonoros.
--após ter percorrido alguns metros na Avª. A... ... ..., o arguido A simulou que ia imobilizar a viatura, mas, de seguida, acelerou novamente, manobras que repetiu, por diversas vezes, ao longo desta artéria.
--a viatura policial manteve a perseguição, com os sinais luminosos e sonoros em funcionamento, mas ele continuou sem acatar a ordem de paragem.
--de seguida, o arguido A encetou fuga pela Avª. M... ..., depois virou à direita em direcção à Avª. F... ... ... e subiu esta artéria a uma velocidade que obrigou outras viaturas, que circulavam nessa ocasião no mesmo local, a desviarem-se a fim de evitar o embate.
--o arguido A fez este circuito uma segunda vez.
--após, o arguido A voltou a entrar na Avª. A... ... ... ao volante do veículo com a matrícula ..., percorreu esta artéria e posteriormente virou à esquerda em direcção da Avª. C... ... .
--ao chegar à rotunda A... M..., onde o trânsito era intenso, o arguido A contornou-a pelo lado esquerdo aos ziguezagues, o que obrigou os condutores de outros veículos a travarem e a desviarem-se para evitar o embate.
--acto contínuo, entrou também em contramão na Avª. V... ..., onde embateu na malograda E, nascida no dia 01-04-1948, que se encontrava a atravessar a passadeira para peões existente junto à mencionada rotunda.
--como consequência directa e necessária do embate provocado pelo veículo automóvel conduzido pelo o arguido A, a infeliz vítima sofreu lesões traumáticas no crânio, no tórax, no abdómen, na pelve, na coluna lombar e nos membros superior e inferior esquerdos, o que determinou a sua morte.
--o óbito ocorreu no local do embate e foi atestado pelas 17 horas e 39 minutos.
--não obstante o embate no peão, o arguido A não abrandou a velocidade e prosseguiu pelas faixas de rodagem do lado esquerdo da Avª. V... ..., atendendo ao seu sentido de marcha, o que obrigou os condutores dos outros veículos automóveis a travarem e a desviarem-se com vista a evitar o embate.
--a viatura policial continuou no encalce do arguido A, acionando, no entanto, de imediato, meios policiais e de emergência médica para o local, com vista a dar assistência à malograda E.
--continuou a circular em contramão pelas faixas de rodagem do lado esquerdo da via na rotunda que dá acesso à Avª. B... ... e nesta própria artéria.
--uns metros depois, ainda na Avª. B... ..., o arguido A voltou ao seu sentido de trânsito.
--ao chegar à rotunda da “Loures Ford”, ao descrever uma curva existente no local, o veículo conduzido pelo arguido A embateu no lancil do passeio, o que fez rebentar o pneu traseiro do lado direito e amolgar a correspondente jante.
--não obstante, o arguido A prosseguiu a marcha.
--na rotunda que dá acesso à Rua C... ... ..., quando estava a ser ultrapassado, o arguido A dirigiu o veículo automóvel com a matrícula ... contra a viatura da Policia de Segurança Pública, matriculada em 2020, que apresentava um valor patrimonial superior a € 5 100.
--deste modo, embateu com o lado esquerdo do veículo automóvel por si conduzido na parte lateral direita dianteira da viatura policial com a matrícula ..., o que lhe provocou estragos no para-choques dianteiro e na zona do guarda-lamas desse lado, cuja reparação tem um custo não concretamente apurado, mas superior a € 102.
--após, o arguido A dirigiu o mencionado veículo automóvel pelo meio da rotunda, mas acabou por se imobilizar em cima de um passeio existente no local, de onde já não conseguiu fugir, acabando por ser retirado do interior da viatura e detido pelos mencionados agentes da Polícia de Segurança Pública.
--o arguido A não é titular de carta de condução.
--durante o percurso efectuado, o arguido A circulou a velocidade não concretamente apurada, por vezes, de 80 ou 90 quilómetros/hora.
--o arguido A conduzia esse veículo após ter consumido cocaína e apresentava concentrações no sangue de 856 +-260 ng/ml de benzoilecgonina e de 38 +-12 ng/ml de ecgonina metil éster, ambos metabólitos de cocaína.
--as quantidades destas substâncias provocaram no arguido A alterações cognitivas e psicomotoras que alteraram as capacidades necessárias para uma condução segura, na medida em que lhe conferiram um estado de euforia, de perda de sentido crítico, diminuição da sensação de fadiga e aumento da autoconfiança.
--devido ao consumo de cocaína e das decorrentes alterações cognitivas e psicomotoras, o arguido A não se encontrava em condições de conduzir um veículo automóvel com segurança na via pública.
--o arguido A quis conduzir o veículo automóvel com a matrícula ... na via pública, não obstante soubesse que não era titular de carta de condução e que estava impedido de o fazer por não estar habilitado para o efeito.
--quis conduzir o mencionado veículo automóvel na via pública, não obstante soubesse que tinha consumido uma substância estupefaciente (cocaína), que estava a conduzir sob a sua influência e que apresentava os valores no sangue acima mencionados.
--o arguido A tinha perfeito conhecimento dos princípios activos, das características químicas e psicotrópicas, da natureza e dos efeitos da substância que consumiu, que o seu consumo o impedia de conduzir com segurança, com atenção e com previdência e que, deste modo, criava perigo para a vida e para a integridade física dos demais utentes da via pública, bem como perigo para a integridade dos veículos que circulavam naquele local, mas, não obstante, quis actuar da forma acima descrita.
--sabia igualmente que estava a violar as regras da circulação rodoviária respeitantes à obrigação de parar perante as ordens dadas por elementos policiais, à obrigação de circular pela faixa de rodagem do lado direito, à obrigação de parar para ceder a passagem aos peões que se encontrem a atravessar a via numa passadeira de peões e aos limites de velocidade existentes no interior de uma localidade, bem como que, ao actuar da forma acima descrita, o que quis, criava perigo para a vida e para a integridade física dos demais utentes da via pública, bem assim perigo para a integridade dos veículos que circulavam naquele local.
--o arguido A admitiu a possibilidade de vir a embater com o veículo automóvel por si conduzido noutros veículos ou em peões que circulavam na via pública e, dessa forma, causar estragos nessas viaturas, danos físicos ou até mesmo a morte de pessoas, como sucedeu com a malograda E, mas não aceitou, nem se conformou com esses resultados.
--o arguido A agiu com o propósito concretizado de causar estragos na viatura com a matrícula ..., que sabia não lhe pertencer, bem como que actuava a actuar sem autorização e contra a vontade do seu dono, o Estado Português, que a tinha afectado ao serviço da Polícia de Segurança Pública.
--o arguido A actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
--o arguido A nasceu e cresceu em ..., Coimbra, é o elemento mais novo de dois filhos de um casal, cujos membros já faleceram, frequentou o 7.º ano, que não chegou a concluir, devido a abandono e absentismo.
--entre os 16 e os 21 anos, aproximadamente, trabalhou como operário fabril.
--com 17 anos de idade iniciou-se no consumo de substâncias estupefacientes, que rapidamente galopou do haxixe para a heroína e para a cocaína.
--após ter deixado de exercer a actividade profissional de operário fabril, o arguido A teve ocupações laborais por curtos períodos de tempo e intermitentes, acabando sempre por subsistir do apoio económico prestado pelos pais.
--frequentou em Montemor-o-Velho um curso de formação profissional de jardinagem e de espaços verdes em situação de desemprego e esteve emigrado em França, país onde desempenhou actividade profissional na área das demolições de edifícios.
--de regresso a Portugal, após um período de inactividade, o arguido A começou a trabalhar como manobrador de máquinas de terraplanagem, por conta de uma empresa de construção civil, onde exercia funções à data dos factos.
--recebia € 80 por cada dia de trabalho prestado para esta firma de construção civil.
--o arguido A manteve uma relação afectiva durante 12 anos, que terminou devido ao consumo de estupefacientes que apresentava.
--apesar de ter tido outros relacionamentos, o arguido A nunca chegou a constituir família e não tem filhos.
--recebe presentemente o rendimento social de inserção no montante de € 198 mensais, reside sozinho numa casa que pertencia aos seus falecidos pais e conta com o apoio do seu irmão, que reside numa casa localizada nas proximidades da sua.
--à data dos factos, era consumidor de heroína e de cocaína (na forma fumada).
--encontra-se a realizar um tratamento de desabituação por substituição com metadona e o consumo de estupefacientes encontra-se, de momento, mais moderado.
--no âmbito do Processo Abreviado n.º 63/20.2GDCNT do Juízo Local Criminal de Coimbra, por sentença proferida no dia 23-03-2021, transitada em julgado no dia 30-04-2021, o arguido A foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 90 dias de multa, à razão diária de € 6.
Para além dos que ficaram descritos não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a discussão da causa, designadamente, não se provou que:
--o arguido A se tenha apoderado do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ... entre as 22 horas e 00 minutos do dia 02-02-2021 e as 15 horas e 30 minutos do dia 03-02-2021.
--o arguido A tenha alterado com fita adesiva ou isoladora os dígitos da matrícula do veículo, por forma a que a chapa dianteira passasse a ostentar os dígitos ... e a chapa traseira passasse a ostentar os dígitos ....
--o arguido A tenha circulado no veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ... a velocidade superior a 100 quilómetros por hora.
--o arguido A tenha querido colocar fita adesiva ou isoladora nas chapas de matrícula por forma a dificultar a identificação do veículo.
--tenha actuado com o intuito de alterar a matrícula do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ... ou que tenha actuado com o propósito concretizado de colocar em causa a credibilidade e a fé pública merecidas por este documento.
--o arguido A tenha deixado a malograda E entregue à sua sorte, que lhe fossem indiferentes as lesões que ela sofreu ou que soubesse que o seu estado de saúde exigia cuidados médicos urgentes.”

***
Fundamentos do recurso:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso.

Questões que cumpre apreciar:
- se houve violação dos critérios impostos no art. 71º do Cpenal em relação à medida da pena;
- se apenas o cumprimento efetivo da pena de prisão cumpre as exigências de prevenção geral e especial da situação em concreto;
Vejamos.
Está, pois, em causa no recurso em análise se o tribunal a quo teve em consideração os critérios legais para a fixação da medida da pena e se a pena fixada deve ser suspensa, como defende o recorrente.
Vimos já que o arguido foi condenado a uma pena única efectiva de 3 anos e 4 meses de prisão.

Para definir a medida concreta da pena o tribunal a quo teve em consideração:
-“as circunstâncias apuradas, muito em particular, a personalidade resultante dos autos e a imagem global dos factos cometidos (de inequívoca e manifesta gravidade), não nos permitem formular um juízo favorável ao arguido A, no tocante à prevenção de futuras delinquências. Ou seja, uma apreciação liminar e global de todos os factos apurados aponta para que apenas a aplicação ao arguido de penas de prisão dê realização aos fins das penas. Daí que optemos por penas privativas da liberdade relativamente aos crimes de condução perigosa, de condução sem habilitação legal e de dano qualificado”.
-“Assim, considerando os mencionados critérios dosimétricos constantes do art. 71.º do CP, ponderado o grau de culpa do arguido A (que se nos afigura de estabelecer próximo do limite médio das molduras penais abstractos), ponderadas as exigências de prevenção (afigurando-se existirem necessidades de prevenção especial, e, no que concerne à prevenção geral, ficando a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade do ordenamento jurídico, assegurada com a imposição ao arguido A de penas a estabelecer próximas dos limites médios das molduras penais) e as circunstâncias que depõem a favor e contra o arguido (grau de ilicitude; modo de execução dos crimes; intensidade do dolo - dolo directo; actuais condenações averbadas no seu certificado de registo criminal; condição sócio- económica; toxicodependência; conduta processual/confissão parcial dos factos, com pouca relevância para a descoberta da verdade;), afigura-se adequado ao facto e à personalidade do agente, a aplicação ao arguido das seguintes penas de prisão:
--na pena de 6 (seis) meses de prisão, pela prática do crime de condução sem habilitação legal em referência;
--na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática do crime de homicídio por negligência grosseira;
--na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário;
--na pena de 6 (seis) meses de prisão, pela prática do crime de dano qualificado em causa;”
--“No caso vertente, tendo em consideração a gravidade global dos factos praticados, ao modo de actuação, as condenações penais, entretanto, sofridas, pela prática de crime de condução sem habilitação legal, afigura-se adequado ao facto e à personalidade do agente, a condenação do arguido na pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão.”

No artigo 71.º do Cód. Penal encontra-se consagrado o critério geral para a determinação da medida da pena que deve fazer-se “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, concretizando-se, no seu número 2, que na determinação concreta da pena o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Circunstâncias que se reconduzem a três grupos ou núcleos fundamentais:
- fatores relativos à execução do facto - alíneas a), b) e c) – grau de ilicitude do facto, modo de execução, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpa sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta;
- fatores relativos à personalidade do agente- alíneas d) e f) – condições pessoais do agente e sua condição económica, falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto]; e
- fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto (alínea e).
Estamos de acordo com o Tribunal a quo quando afirma que o arguido atuou com dolo direto e com um grau de ilicitude mediano. Sem dúvida que, ao nível da culpa, não poderemos deixar de atender, como fez o Tribunal a quo, ao facto de o arguido ser toxicodependente à data da prática dos factos. Todavia, tal circunstância agrava as exigências de prevenção especial, pois a condução de veículo automóvel sob o efeito de substâncias estupefacientes torna a condução rodoviária extremamente perigosa. No caso em apreço, também as exigências de prevenção geral positiva ou de integração, nomeadamente a necessidade de manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência da norma violada, são elevadas, atenta a frequência da prática de infrações desta natureza.
Tendo em consideração tudo o que ficou explanado supra e também o facto de ser a primeira vez que o arguido é condenado pela prática dos crimes de condução perigosa de veículo, de homicídio por negligência grosseira e de dano qualificado e ter uma situação sócio familiar relativamente estável, entende-se adequado e proporcional condenar o arguido na pena de prisão de três anos e quatro meses de prisão.
Assim, considerando a apreciação efetuada no que concerne à ilicitude, à culpa, às exigências de prevenção geral e às exigências de prevenção especial não pode este Tribunal de recurso deixar de concordar com a medida da pena aplicada pelo Tribunal a quo.

Para concluir pelo cumprimento efectivo da pena de prisão o tribunal a quo atendeu “às imperiosas necessidades de prevenção especial, que se prendem com a insensibilidade e com a indiferença que o arguido A demonstrou pelas regras sociais vigentes, que o levou a conduzir um veículo automóvel sem estar habilitado para o efeito com carta de condução, a conduzir um veículo ligeiro de passageiros na via pública sob a influência de produtos estupefacientes (cocaína), a não respeitar as ordens de paragem que lhe foram transmitidas pela patrulha da Polícia de Segurança Pública, a circular em velocidade superior à permitida no interior das localidades, a circular em contramão, ou seja, pelas faixas de rodagem destinadas ao trânsito de sentido contrário ao seu e ao não imobilizar o veículo por si conduzido antes da passadeira de peões devidamente assinalada no local, o que determinou a morte de uma pessoa, que em nada contribuiu para esse infeliz evento.”
Estando verificado o requisito formal da suspensão da execução da pena (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos), há que indagar se ocorre o respetivo pressuposto material, isto é, se se pode concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, designadamente se bastarão para afastar o arguido da criminalidade, pois é esta a finalidade precípua do instituto da suspensão.
As finalidades que estão na base da suspensão da execução da pena de prisão consistem, no essencial, na reintegração plena do agente na sociedade através de um comportamento responsável e sem praticar crimes. Subjacente à suspensão da execução da pena de prisão está sempre um juízo de prognose favorável, traduzido numa expectativa fundada, mas assente num compromisso responsável com o condenado, de que a mera censura do facto e a ameaça da prisão sejam bastantes para que não sejam cometidos novos crimes.
Decorre do art.º 50.º, n.º 1, do CPenal que a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos é suspensa se o Tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A suspensão da execução da pena de prisão é uma pena de substituição em sentido próprio, uma vez que que o seu cumprimento é feito em liberdade e pressupõe a prévia determinação da pena de prisão, em lugar da qual é aplicada e executada.
Tem como pressuposto formal da sua aplicação que a medida da pena imposta ao agente não seja superior a cinco anos de prisão e como pressuposto material a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento daquele, em que o Tribunal conclua que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as respetivas circunstâncias, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal).

O juízo de prognose favorável reporta-se ao momento em que a decisão é tomada e pressupõe a valoração conjunta de todos os elementos que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, no sentido de que irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando o eventual cometimento de novos crimes prevenido com a ameaça da prisão, daí se extraindo, ou não, que a sua socialização em liberdade é viável.
A aplicação desta pena de substituição só pode e deve ter lugar quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, como decorre do mencionado art.º 50.º do Código Penal. Circunscrevendo-se estas, de acordo com o art.º 40.º do Código Penal, à proteção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, é em função de considerações de natureza exclusivamente preventivas – prevenção geral e especial – que o julgador tem de se orientar na opção ora em causa.
A aplicação de uma pena de substituição não é uma faculdade discricionária do tribunal, mas, pelo contrário, constitui um verdadeiro poder/dever, sendo concedida ou denegada no exercício de um poder vinculado.
Na jurisprudência, tanto no Tribunal Constitucional como no Supremo Tribunal de Justiça, foi defendida a necessidade de fundamentação, face à versão anterior, justificando-se de pleno a mesma posição face à nova lei, em que apenas foi alterado o pressuposto formal passando do limite de 3 para 5 anos de prisão.
Assim, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 61/2006, de 18.01.2006, in Diário da República, II Série, de 28-02-2006, julgou inconstitucionais, por violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as normas dos artigos 50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2 e 375.º, n.º 1, do CPP, interpretados no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos.
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, de forma pacífica, tratar-se a suspensão da execução de um poder-dever, de um poder vinculado do julgador, tendo o tribunal sempre de fundamentar, especificadamente, quer a concessão quer a denegação da suspensão. Por todos, veja-se a fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência - Acórdão n.º 8/2012 -, proferido no âmbito do processo n.º 139/09.7IDPRT.P1-A.S1, da 3.ª Secção, de 12 de setembro de 2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 206, de 24 de outubro.
A caracterização da suspensão da execução da pena de prisão como um poder vinculado conduz à necessidade de fundamentação da decisão que a aplica, ou a desconsidera, incorrendo em nulidade a decisão que não contemple tal injunção, de conhecimento oficioso, nos termos do art.º 379.º, n.ºs 1, al. c) e 2, do Código de Processo Penal.
Considerando o exposto, vejamos o caso concreto.
Contra o arguido há a ponderar que o mesmo, em sede de julgamento, quando prestou declarações quanto aos factos em causa nos autos admitiu apenas a veracidade de alguns factos, embora tenha sido detido em flagrante delito, depois de perseguição por agentes da PSP em automóvel devidamente identificado.
Cumpre, pois, aqui considerar que a confissão parcial do arguido de pouco releva, uma vez que foi detido em flagrante delito, após perseguição policial. Praticou os factos ilícitos sob o efeito de cocaína. Os factos praticados foram muito graves, pois apesar de lhe ter sido ordenado por várias vezes pelos agentes da PSP que parasse, o arguido pura e simplesmente ignorou tais ordens e prosseguiu na sua condução perigosa, sem habilitação legal, em velocidade excessiva e até em sentido contrário ao trânsito (“em contramão”), acabando por colher mortalmente uma vítima que se encontrava a atravessar a via pública numa passadeira para peões.
À data da prática destes factos o arguido não tinha qualquer condenação criminal, tendo vindo a ser condenado em pena de multa a 23.3.2021, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos praticados a 5.4.2020.
O arguido revela uma forte dependência de substâncias estupefacientes, nomeadamente heroína e cocaína, tendo-se submetido a várias tentativas de reabilitação, registando várias recaídas. Actualmente realiza tratamento de substituição com metadona.
Revela instabilidade profissional, mantendo ocupações laborais por curtos períodos, embora estivesse a trabalhar à data dos factos. Estará a receber RSI.
Vive sozinho, na casa que era dos pais e conta com o apoio do irmão e da cunhada que vivem próximo.
Em nosso entender, para além do que consta do relatório elaborado pela reinserção social onde se diz que o arguido deixa transparecer pesar e lamento por ter provocado uma vítima mortal, nada no processo evidencia por parte do recorrente um verdadeiro arrependimento e uma atitude pró-activa de “reparação do mal”, dentro do possível (já que nada evidentemente trará de volta a vida humana que foi ceifada).
Concluímos que o arguido evidencia dificuldades de descentração e de autoanálise.
Existe risco considerável de em liberdade voltar a cometer o mesmo delito (referimo-nos essencialmente à condução sem habilitação legal e à condução perigosa), não se destacando elementos que permitam formular um juízo favorável quanto às virtualidades que a pena suspensa na sua execução poderia ter. Tem que se ter em conta aqui também as necessidades de prevenção geral face ao bem jurídico em causa e cuja validade da norma que o protege tem de ser reafirmada.
Veja-se a este propósito entre outros, acórdão da Relação de Coimbra de 23.5.2018 (processo n.º 1162/16.0PCCBR.C1) e acórdão da Relação de Évora de 2.2.2016 (processo n.º 83/13.3GACTX.E1), em www.dgsi.pt.
A conjunção de necessidades de prevenção geral face ao bem jurídico questionado e cuja validade da norma que o protege tem de ser reafirmada, bem como de outras de prevenção especial que as qualidades da personalidade do arguido não comprovam, e, pelo contrário, antes infirmam, não permitem por forma alguma preencher o juízo de prognose favorável quanto à sua capacidade para não voltar a delinquir.
A circunstância de a pena privativa da liberdade surgir no nosso sistema punitivo sempre como a ultima ratio, não significa, porém, que não haja casos em que só essa pena é adequada a satisfazer os fins das penas.
Se deve privilegiar-se a socialização em liberdade, não é menos certo que a defesa do ordenamento jurídico não pode ser postergada, sob pena de se sacrificar a função de tutela de bens jurídicos que a pena, irrenunciavelmente, desempenha.
Não é, pois, possível formular um juízo de prognose favorável relativamente ao arguido, pelo que deverá cumprir a pena de prisão efectiva em que foi condenado.

III.–Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A, mantendo-se a decisão recorrida. 
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça - arts. 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal, e arts. 1.º, 2.º, 3.º e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este diploma legal).



Lisboa, 9 de Fevereiro de 2023



Lídia Renata Goulart Whytton da Terra- (relatora)
(assinatura digital)
         
Maria José Cortes - (adjunta)
(assinatura digital)

Paula de Sousa Novais Penha - (adjunta)
(assinatura digital)