Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1173/05.1TBCLD-Q.L1-7
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
ADVOGADO
DESTITUIÇÃO
JUSTA CAUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - O conceito de justa causa para a destituição, sendo vago, aberto e indeterminado, abrangerá, com segurança, as situações de violação grave dos deveres do administrador e ainda quaisquer circunstâncias que tornem objectivamente insustentável a sua manutenção no cargo, mormente por constituírem sinal de quebra irreversível do elo de confiança que o legitima ou por serem susceptíveis de revelar inaptidão ou incompetência para o respectivo desempenho.
II - Neste sentido, há que ponderar que ao Administrador compete, no desempenho das suas funções, uma actuação especialmente diligente, orientada por critérios de transparência, ordem e rigor, conforme se exige, em particular, a alguém está incumbido de gerir bens alheios.
III - Está vedado ao Administrador de Insolvência que exerce, simultaneamente, a profissão de advogado, por expressa incompatibilidade, o início ou a continuação do desempenho daquelas funções.
IV - Perante a manifestação de vontade de suspensão da sua inscrição na Ordem dos Advogados, por parte do Administrador da Insolvência - que sempre se identificou, ao longo do processo, como advogado sem que tal houvesse suscitado qualquer reacção ou problema por parte do Tribunal -, seria razoável o convite à definição desta situação pessoal, após o que, em conformidade com a opção tomada, poderia operar a respectiva substituição ( que não a sua destituição ).
V - Viola gravemente os seus deveres de Administrador aquele que, por sua iniciativa e sem disso dar qualquer notícia nos autos, decide sacar cheques sobre a conta da massa insolvente em favor do gerente da firma insolvente, alegadamente com o propósito de possibilitar ao mesmo satisfazer as rendas da sua habitação, que se encontravam em dívida.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa
( 7ª Secção ).

I – RELATÓRIO.
No âmbito do processo de insolvência de P, Lda. foi proferida, com data de 4 de Junho de 2009, decisão de destituição do Administrador B ( cfr. fls. 70 a 73 ).
Veio o mesmo apresentar recurso desta decisão, o qual foi recebido como de agravo ( cfr. fls. 76 ).
Juntas as competentes alegações, a fls. 29 a 54, formulou o agravante as seguintes conclusões :
1ª – Foi violado o preceituado no artº 14º, nº 4, do CIRE, o que implicou necessariamente a redução do legítimo direito da consulta do processo e consequente direito de defesa em sede de recurso.
2ª - As normas que constituiriam o fundamento jurídico da decisão ora recorrida, nomeadamente o disposto nos artsº 8º e 17º, nº 3, do Estatuto do Administrador de Insolvência, foram mal interpretadas e aplicadas.  
3ª – Não foi respeitado o silogismo judiciário quanto à síntese, isto é, a conclusão retirada pela juiz a quo deveria pugnar pela manutenção, ou quando muito, e se fosse caso disso, pela substituição do Administrador de Insolvência.
4ª - Foi violado ou não tido em conta o preceituado no artº 81º, do Estatuto da Ordem dos Advogados.
5ª - Desde há vinte e cinco anos que o ora recorrente desempenhava as funções de Administrador de Insolvência e encontrava-se normalmente inscrito na Ordem dos Advogados, o que lhe confere os direitos adquiridos referidos pelo artº 81º, do Estatuto da Ordem de Advogados.
6ª - Foi violado o preceituado no artº 56º, nº 1, do CIRE, com remissão para o artº 169º, do mesmo diploma e que exemplifica algumas das causas consideradas mais graves como fundamento da destituição, sendo que nenhuma delas se enquadra na actuação do ora recorrente.
7ª - Não existe justa causa para a destituição, pois esta quando ocorre deve-se ao facto do Administrador da Insolvência praticar actos ilegais ou inconvenientes para a massa falida, ou porque não cumpre as obrigações a que está vinculado, ou age sem a diligência própria de um gestor criterioso e ordenado.
8ª - Também poderá existir justa causa quando se prove cabalmente a inaptidão ou incompetência do Administrador de Insolvência para o exercício do cargo, ou a violação pelo mesmo, de forma culposa e injustificada, dos deveres que lhe são legalmente impostos e de que resulte um relevante prejuízo para a massa insolvente.
9ª - O ora recorrente não preencheu qualquer daqueles requisitos necessários para existir justa causa para a destituição do cargo, bem como não houve qualquer prejuízo para a massa insolvente.
10ª - Atentas as circunstâncias concretas é perfeitamente viável e possível a manutenção do administrador, ora recorrente, em funções.
11ª - O recorrente sempre pautou a sua conduta no presente processo exercendo as suas funções com isenção e objectividade, tendo sempre em vista a recuperação da insolvente no âmbito de um processo fora do comum, pois reveste-se de grande complexidade, contando os autos já com doze volumes, sendo mais de dez os vários apensos, sendo muito elevado o número de credores e de vários milhões de euros as quantias envolvidas.
12ª - Procedeu de imediato e voluntariamente à suspensão da sua inscrição na Ordem de Advogados, por despacho de 14 de Maio de 2009, com efeitos a partir de 8 de Maio de 2009, sempre com o intuito de prosseguir o extenso trabalho efectuado por si, apenas e só como Administrador de Insolvência no presente processo.
13ª - Por razões de economia e celeridade, o ora recorrente até deveria ter sido convidado pelo Tribunal a quo a fazer tal sanação de vício.  
14ª - Quanto muito o recorrente nunca deveria ter sido destituído, mas, em última análise, substituído.
15ª - Atendendo aos valores monetários que o gerente da insolvente através da respectiva conta pessoal na empresa, atendendo à circunstância desse mesmo facto ter contribuído decisivamente para o estado de debilidade económica do mesmo gerente, atendendo a que estavam menores em causa, porque a insolvência era meramente fortuita, porque, enfim, os cheques destinavam-se a pagar uns poucos meses de renda, porque após estes cheques não existiram mais qualquer tipo de pagamentos, cessando, pois, por iniciativa e decisão do ora recorrente, na sua prudente administrador, perante esta situação humana específica, e por tudo o que acima se mencionou, e não menosprezando de forma alguma a dos trabalhadores da empresa, tentou o ora recorrente acudir ao agregado familiar do gerente de forma a que não ficassem sem casa pelo facto de faltarem uns meses de renda.  
16ª - Estavam, pois, em causa apenas uns pagamentos muito pontuais e sem qualquer tipo de regularidade, que não eram subsídios, sendo o gerente também ainda credor pós-insolvência da empresa ( em virtude da aludida injecção de capital na mesma ).
17ª - Quanto à “ falta de pagamento dos anúncios “ : a única situação que merecia uma cuidada e criteriosa é a relativa aos anúncios da Assembleia designada para 9 de Janeiro de 2009 onde, por razões alheias ao recorrente, tal anúncio não foi levado a cabo e consequentemente não foi pago o respectivo anúncio à INCM, porquanto, em termos práticos, cabia ao Tribunal informar, ou seja, notificar previamente da situação do anúncio requerido à INCM para que, nessa sequência, fosse efectuado o pagamento respectivo  
18ª - Quanto à falta de apresentação do auto de apreensão de bens : a junção só não foi feita antes porquanto o recorrente se empenhou na ciclópica tarefa de fazer aprovar um Plano de Recuperação de Empresa da sua autoria, o que acarretou inúmeras diligências e deslocações junto do universo dos credores.
19ª - O referido documento da apreensão, ainda que não fosse junto aos autos no início da tomada de posse do Administrador Judicial, existia física e juridicamente, tanto assim é que foi junto aos autos, como mero formalismo que se cumpriu no acto de junção, não subsistindo quaisquer dúvidas de que todo o património e bens constantes do mesmo foram devida e legalmente acautelados e preservados, mantendo-se o património neste momento intacto, excepto na parte em que o mesmo foi objecto de furtos devidamente participados.
20ª - A celeridade do processo não poderá contender e atropelar os interesses em causa e significar a extinção da empresa insolvente no caso da mesma ter viabilidade económica e os credores desejarem a sua recuperação.
21ª - Face à viabilidade e potencialidades económicas da empresa, o ora recorrente apenas tentou recuperá-la, sendo essa recuperação expressão da vontade dos credores, mau grado se, para alguns, com tal recuperação o processo pudesse apresentar um pouco mais de complexidade e volume.
Apresentou o Ministério Público contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.  
 
II – FACTOS PROVADOS.
Foi dado como provado na decisão recorrida que :
O Administrador da Insolvência foi nomeado por sentença proferida em 7 de Outubro de 2005.
Encontra-se inscrito na Ordem dos Advogados.
Apenas em 18 de Maio de 2009, após ter sido notificado para o efeito, juntou o auto de apreensão de bens.
A Assembleia de Credores agendada para o dia 9 de Janeiro de 2009 não se realizou por falta de pagamento pelo Administrador das publicações obrigatórias.
Dos autos constam três cheques passados pelo Administrador da conta da massa insolvente para pagamento da renda da habitação do representante legal da insolvente.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar :
1 - Da intitulada “ impugnação da matéria de facto “.
2 - Da destituição do Administrador de Insolvência.
3 – Da incompatibilidade do exercício do cargo de Administrador de Insolvência com a sua qualidade profissional de advogado.
4 – Da concreta conduta do Administrador de Insolvência que esteve na base da sua destituição.
4.1. Adiamento da Assembleia de Credores agendada para o dia 9 de Janeiro de 2009.
4.2. Tardia junção do auto da apreensão de bens.
4.3. Emissão de cheques da conta da massa insolvente para pagamento da renda da habitação do legal representante da insolvente.
Passemos à sua análise :
1 - Da intitulada “ impugnação da matéria de facto “.
Veio o agravante, nas suas alegações de recurso, fazer menção de querer impugnar a matéria de facto.
Contudo,
Para além da inquirição da testemunha C, cujo depoimento se encontra consignado a fls. 293 a 294 e está circunscrito à questão do saque dos cheques da conta da massa insolvente para pagamento das rendas do sr. D, não houve neste processo, relativamente à restante matéria fáctica, qualquer audiência com produção de prova.
Assim, não faz sentido, nem é concebível, o recurso a tal expediente técnico-jurídico, genericamente previsto no artº 690º-A, do Cod. Proc. Civil.
Diferentemente,
A prolixa argumentação do recorrente que sustenta a impugnação da decisão jurídica tomada, abrangendo a análise dos respectivos pressupostos de facto, será devida e globalmente ponderada na apreciação substantiva a efectuar quanto à existência, ou não, de justa causa para a destituição do Administrador da Insolvência, por referência aos actos irrefutavelmente documentados no processo.
2 - Da destituição do Administrador de Insolvência.
Dispõe o artº 56º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1] :
“ O juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar existir justa causa. “.
Escrevem, a este propósito, Carvalho Fernandes e João Labareda, in “ Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado “, pag.263 : “ Ao administrador judicial cabem importantíssimos poderes ( … ) que lhe são atribuídos para a tutela de interesses que não são os seus. ( …) está investido de verdadeiros poderes funcionais, cujo exercício zeloso é condição imprescindível da consecução da finalidade da insolvência.
A consequência disto ( … ) só pode, verdadeiramente, ser uma. Ocorrendo justa causa, o administrador deve efectivamente ser destituído pelo juiz. De outro modo, deixar-se-ia ao seu critério a manutenção duma situação que, com boa dose de probabilidade, não conduziria à conveniente tutela dos interesses a proteger, o que, manifestamente, não é querido pela lei.
Daí que também o poder de destituição conferido ao juiz esteja revestido de carácter funcional e seja, nessa medida, um poder vinculado, que ele não pode regularmente deixar de exercer quando se verifique justa causa.”.
O conceito de justa causa sendo vago, aberto e indeterminado, abrangerá, com segurança, as situações de violação grave dos deveres do administrador e ainda quaisquer circunstâncias que tornem objectivamente insustentável a sua manutenção no cargo[2], mormente por constituírem sinal de quebra irreversível do elo de confiança que o legitima ou por serem susceptíveis de revelar inaptidão ou incompetência para o respectivo desempenho[3].
Neste sentido,
Há que ponderar que ao Administrador compete, no desempenho das suas funções, uma actuação especialmente diligente, orientada por critérios de transparência, ordem e rigor, conforme se exige, em particular, a alguém está incumbido de gerir bens alheios[4].
3 – Da incompatibilidade do exercício do cargo de Administrador de Insolvência com a sua qualidade profissional de advogado.
Dispõe o artº 77º, nº 1, da Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro ( que aprovou o Estatuto da Ordem dos Advogados ) :
“ São, designadamente, incompatíveis com o exercício da advocacia os seguintes cargos, funções ou actividades :
( …) alínea o) Gestor judicial ou liquidatário judicial ou pessoa que exerça idênticas funções. “.
Perante tal normativo, impõe-se a conclusão de que está vedado ao Administrador de Insolvência que exerce, simultaneamente, a profissão de advogado, por expressa incompatibilidade, o início ou a continuação do desempenho daquelas funções.
Por outro lado,
Na situação sub judice,
não aproveita ao recorrente a previsão do artº 81º, do Estatuto da Ordem dos Advogados, segundo o qual : “ As incompatibilidades e impedimentos criados pelo presente Estatuto não prejudica os direitos legalmente adquiridos ao abrigo de legislação anterior. “.
 Com efeito,
A partir do momento em que o Estatuto da Ordem dos Advogados impede, por incompatibilidade, o exercício das funções de Administrador de Insolvência ao advogado, tal regime proibitivo é extensivo, por uma questão de igualdade de tratamento, a todos os advogados, quer tenham ou não assumido tais funções anteriormente[5].
Se as exerciam, para o futuro deixam de poder exercê-las.
Neste preciso sentido se manifestou o Parecer do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, nº E-32/2006, de 9 de Fevereiro de 2007, pronunciando-se, não obstante, de jure condendo pela “ ponderação da compatibilidade do exercício da advocacia com as funções de administrador de insolvência, pugnando-se por um regime de rigorosos impedimentos consistentes com os deveres deontológicos do advogado “ o Parecer do Conselho Geral da Ordem dos Advogados nº 35/2008, de 10 de Setembro de 2008, publicados in www.oa.pt..
De qualquer forma,
No que à situação em análise interessa,
verifica-se que o Administrador B terá requerido a suspensão da sua inscrição na Ordem dos Advogados conforme consta do requerimento de fls. 312, datado de 18 de Maio de 2009 - anterior à decisão que determinou a sua destituição.
A confirmar-se tal suspensão revelar-se-ia, desde logo, absolutamente irrelevante - e totalmente sanada - a referida incompatibilidade enquanto fundamento da decisão judicial de destituição.
Assim,
perante tal manifestação de vontade do Administrador da Insolvência - que sempre se identificou, ao longo do processo, como advogado sem que tal houvesse suscitado qualquer reacção ou problema por parte do Tribunal - seria perfeitamente razoável o convite à definição desta situação pessoal, após o que, em conformidade com a opção tomada, poderia operar a respectiva substituição.
draconiana destituição do Administrador, perante estas circunstâncias ( a notória publicidade da dupla qualidade ; a aceitação tácita do facto que gerava a incompatibilidade ; a ausência de qualquer prova de que tal acumulação houvesse sido prejudicial para a administração da insolvente ), - sem previamente haver sido concedida a oportunidade para o esclarecimento da situação -, redunda num manifesto exagero que de forma alguma se sufraga.
4 – Da concreta conduta do Administrador de Insolvência que esteve na base da sua destituição
4.1. Adiamento da Assembleia de Credores agendada para o dia 9 de Janeiro de 2009.
O carácter pontual desta falta cometida pelo Administrador não é, por sua própria natureza, susceptível de constituir uma violação grave dos seus deveres, passível de justificar a destituição ordenada.
Errare humanum est.
No âmbito dum processo tão complexo como o presente, pleno de diligências processuais levadas a efeito com o acordo dos respectivos interessados e do próprio Tribunal, com uma tramitação que demonstra o intenso trabalho desenvolvido laboriosamente pelo Administrador B, não vemos que esta falha, considerada isoladamente, possa assumir uma importância tal que justifique, por si, a drástica decisão de destituição do Administrador.
Tal sanção não é manifestamente proporcional à reduzida expressão da falta cometida.
De resto,
em moldes muito semelhantes veio a ser transferida a data da realização da Assembleia de Credores para o dia 9 de Janeiro de 2009, com base num lapso cometido pelo sr. funcionário judicial que lavrou a informação constante de fls. 241, não tendo, nessa altura, o juiz a quo manifestado a mínima repulsa em relevar a falha cometida.
Não se justifica, nesta perspectiva, a destituição do Administrador.
4.2. Tardia junção do auto da apreensão de bens.
Foi proferido, a fls. 311, o seguinte despacho datado de 4 de Maio de 2009 :
“ Constatamos, neste momento, ao elaborar a sentença de verificação de créditos, que não se encontra junto aos autos o auto de apreensão de bens.
Ora, tal afigura-se necessário a fim de graduarmos os créditos nos termos do disposto no artº 140º, nº 2 e 3, do CIRE.
Assim sendo, notifique o sr. Administrador para informar se procedeu à apreensão dos bens da insolvente e, em caso afirmativo, para informar qual a razão do respectivo auto de apreensão não constar dos presentes autos. “.
Respondeu o Administrador da Insolvência através do requerimento de fls. 312, no qual essencialmente referiu :
“ A junção só não foi feita antes porquanto o ora Administrador de Insolvência se empenhou na ciclópica tarefa de fazer aprovar um Plano de Recuperação da Empresa da sua autoria, o que acarretou inúmeras diligências e deslocações junto do universo dos credores.
O referido Plano foi aprovado quase por unanimidade, sem sede de Assembleia de Credores, e sustada a liquidação, daí que não se haja mostrado premente aquela junção.
Certo é que o ora Administrador da Insolvência tomou posse efectiva do património, imediatamente após a declaração da insolvência e tem-no preservado ao longo de todo este tempo, apesar das frequentes tentativas de furto por parte da delinquência que assola a zona industrial de Caldas da Rainha  ( … ) “.
Ora,
Não havendo prova de que a junção tardia do auto de apreensão dos bens tenha provocado qualquer prejuízo para a massa insolvente ou para os credores, tal circunstância não pode justificar a destituição do Administrador ora recorrente.
A justificação apresentada por este é plausível, nada indiciando não ser verdadeira a referida tomada de posse efectiva dos bens da insolvente imediatamente após a declaração da insolvência.
Não há, assim, fundamento, por este motivo, para a ordenada destituição.
4.3. Emissão de cheques da conta da massa insolvente para pagamento da renda da habitação do legal representante da insolvente.
Encontra-se demonstrado nos autos :
O Administrador B sacou sobre a conta titulada pela massa insolvente de P, Lda. os seguintes cheques passados à ordem de L :
Datado de 15 de Fevereiro de 2008, titulando o montante de € 1.446,88 ( mil, quatrocentos e quarenta e seis euros e oitenta e oito cêntimos ) ;
Datado de 2 Abril de 2008, titulando o montante de € 1.446,88 ( mil, quatrocentos e quarenta e seis euros e oitenta e oito cêntimos ) ;
Datado de 27 de Maio de 2008, titulando o montante de € 1.446,88 ( mil, quatrocentos e quarenta e seis euros e oitenta e oito cêntimos ) ;
( cfr. documentos de fls. 260 a 262 ).
Declarou, a este propósito, a testemunha C, técnica oficial de contas na I, prestadora de serviços à P, Lda. ( cfr. fls. 293 a 294 ) :
“ …os cheques que estão em causa referem-se a restituições de quantias entregues ao sr. D, por este ter pago a fornecedores. Estes pagamentos do Sr. D foram já efectuados depois da declaração de insolvência.
( … ) o sr. D em virtude desses pagamentos é credor da massa insolvente, razão pela qual foram efectuados pagamentos das rendas da casa do sr. D.
Quanto a este aspecto referiu que lhe foi transmitido que o sr. D tinha uma acção de despejo e que como este era credor da massa insolvente iriam ser pagas as rendas da sua habitação através dos cheques em causa. ( … ) foi o sr. D que da sua conta pessoal efectuou pagamentos de dívidas da massa insolvente, tendo aberto em nome desta uma conta bancária em finais de 2006.
( … ) não tem conhecimento de que tenham sido efectuados pagamentos a outros credores, salvo a pagamento de despesas correntes. “.
Apreciando :
A única testemunha inquirida sobre esta matéria não tinha qualquer conhecimento pessoal e directo acerca dos factos relativos ao saque os cheques.
De qualquer forma, confirmou o seu destino : pagamento, à custa da massa insolvente, da renda da habitação do sr. D.
Ora,
A emissão destes títulos nada teve a ver com as específicas finalidades da administração da massa insolvente.
Na acta da Assembleia de Credores que teve lugar no dia 19 de Fevereiro de 2009 ( cfr. fls. 250 a 256 ), a mandatária judicial que representa a Comissão de Trabalhadores requereu : “ esclarecimentos ao sr. Administrador de Insolvência acerca dos três cheques que se encontram juntos aos autos da massa insolvente e que indiciam terem sido usados para pagamento das rendas da casa particular do sr. D. “.
A este propósito, afirmou o Ministério Público durante essa mesma audiência : “ Verifica-se ainda que constam dos autos, a fls. 3514, cópia dos cheques em que alegadamente a massa insolvente paga a renda de casa do sr. D, o que a confirmar-se se reveste de especial gravidade, podendo até consubstanciar um ilícito criminal. “.
A justificação apresentada pelo Administrador B para o saque destes cheques assenta em que :
 “ Atendendo aos valores monetários que o gerente da insolvente através da respectiva conta pessoal na empresa, atendendo à circunstância desse mesmo facto ter contribuído decisivamente para o estado de debilidade económica do mesmo gerente, atendendo a que estavam menores em causa, porque a insolvência era meramente fortuita, porque, enfim, os cheques destinavam-se a pagar uns poucos meses de renda, porque após estes cheques não existiram mais qualquer tipo de pagamentos, cessando, pois, por iniciativa e decisão do ora recorrente, na sua prudente administrador, perante esta situação humana específica, e por tudo o que acima se mencionou, e não menosprezando de forma alguma a dos trabalhadores da empresa, tentou o ora recorrente acudir ao agregado familiar do gerente de forma a que não ficassem sem casa pelo facto de faltarem uns meses de renda. 
Estavam, pois, em causa apenas uns pagamentos muito pontuais e sem qualquer tipo de regularidade, que não eram subsídios, sendo o gerente também ainda credor pós-insolvência da empresa ( em virtude da aludida injecção de capital na mesma ). “.
Vejamos :
A conduta assumida pelo Administrador da Insolvência é, neste ponto, absolutamente inaceitável e intolerável, não relevando a justificação que apresentou.
Em primeiro lugar,
na medida em que actuou motu proprio, à revelia de qualquer disposição legal que lhe fornecesse a indispensável cobertura.
Neste âmbito,
O artº 84º, do CIRE, que abrange as situações de carência absoluta de meios de subsistência por parte do insolvente que não tenha capacidade de os angariar pelo seu trabalho, exige, sempre e imprescindivelmente, o acordo da Comissão de Credores ou da Assembleia de Credores, se existir.
Não consta dos autos que as mesmas tivessem sido sequer consultadas para o efeito.
Logo,
Actuou o Administrador B de forma absolutamente abusiva e à margem da lei - que assim ostensivamente violou.
Em segundo lugar,
tal actuação não foi transparente, sendo trazida a debate por iniciativa do representante da Comissão dos Trabalhadores da insolvente, no dia 19 de Fevereiro de 2009, ou seja, mais de um ano após o saque do primeiro cheque.
Isto é,
Não foi o Administrador a dar notícia do facto ; foram terceiros interessados que o suscitaram, confrontando-o e exigindo-lhe os pertinentes esclarecimentos.
Em terceiro lugar,
os fins humanitários invocados pelo Administrador - que o terão ( alegadamente ) determinado a agir como fez - só podem legitimamente ser prosseguidos à custa do património daquele que se compadece com a situação doutrem e não através do sacrifício de bens alheios de que o benfeitor não é titular e a que apenas tem acesso porque os administra, com sujeição à estreita sindicância dos respectivos interessados.
Em quarto lugar,
Não dispõe o Administrador da Insolvência de poderes funcionais que lhe permitam escolher os credores e os créditos que devem ser pagos, em que montantes, por que ordem e em que momento.
Sejam quais forem as razões alegadas, tal actuação demonstra uma alarmante incompreensão acerca dos fins e limites que balizam a sua intervenção no processo, extravasando grosseiramente a esfera de competências que confinam legalmente o seu desempenho e dentro das quais, em termos estritos, se deve mover.
Em quinto e último lugar,
a ulterior reposição daqueles montantes em nada altera o forte juízo de censurabilidade que deverá ser dirigido a esse mesmo comportamento do Administrador da Insolvência.
O que está em causa é a irreversível perda de confiança na idoneidade da pessoa para o desempenho do cargo que estes factos, pelas suspeitas que inevitavelmente geram e pela extrema gravidade que a sua natureza denuncia, fatalmente acarretam.
Em suma,
Esta conduta do Administrador da Insolvência B, consubstanciando uma grave violação dos seus deveres, retira-lhe, objectivamente, todas e quaisquer condições para a sua manutenção no cargo, fundamentando assim, a destituição que, por esse motivo, se justifica amplamente.  
 O agravo não merece, portanto, provimento.

IV - DECISÃO :
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao agravo, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo agravante.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2010.
         
Luís Espírito Santo                                                
Pires Robalo              
Cristina Coelho
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[1] Doravante simplificadamente designado por “ CIRE “.
[2] Vide Luís Manuel Menezes Leitão, in “ Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado “, pag. 106.
[3] Sobre esta matéria, vide acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30 de Abril de 2009 ( relatora Maria Catarina Gonçalves ), publicado in www.dgsi.pt.. Referem Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação ao artº 56º, do seu “ Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado “, pag 262, quanto ao preenchimento do conceito de justa causa de destituição : “ …administração ou liquidação deficientes, inapropriadas ou ineficazes para a massa e, segundo o entendimento que temos por mais correcto, aqueles que traduzam uma situação em que, atentas as circunstâncias concretas, é inexigível a manutenção da relação com ele e infundada a possível pretensão do administrador de se manter em funções. “.
[4] Neste tocante, cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda in “ Colectânea de Estudos sobre a Insolvência “, pag. 153.
[5] As razões de ser da proibição relevam em geral, tanto para o advogado que se dispõe a ser Administrador da Insolvência, como para aquele que exerceu tais funções antes da vigência desta norma proibitiva e as queira agora prosseguir.