Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
854/11.5TAPDL.L1-5
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I-A decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima ou outra sanção prevista para uma contra-ordenação tem de ser fundamentada, seguindo, basicamente, a estrutura da sentença penal, conforme resulta dos requisitos impostos pelo artigo 58º do RGC-O em confronto com a correspondente norma do processo penal (artº 374º, do CPP).
II-A falta ou manifesta insuficiência de fundamentação constitui nulidade da decisão administrativa, nos termos do art.º 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), do CPP, ex vi do artº 41º, do RGC-O, a suprir pela autoridade administrativa.
III- Se a decisão administrativa se limita a descrever os factos objectivos que materializam o ilícito contra-ordenacional, omitindo completamente os factos que haveriam de preencher o elemento subjectivo do mesmo ilícito, esta omissão gera a nulidade da decisão administrativa, que o tribunal, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, pode declarar e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para sanação do vício.
Decisão Texto Parcial:Acordam, em conferência, do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório

Por decisão de 24.04.2011, a Direcção Regional dos Equipamentos e dos Transportes Terrestres dos Açores aplicou a J..., devidamente identificado nos autos, a sanção de inibição de conduzir (veículos a motor) pela prática de uma contra-ordenação prevista e punível pelas normas conjugadas dos artigos 81.º, n.os 1 e 5, al. a), 146.º, al. j), e 147.º, n.º 2, do Código da Estrada.

O arguido impugnou judicialmente tal decisão e, remetido o processo ao Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, que o tornou presente ao juiz para apreciação do recurso interposto, admitido este e dada a não oposição do Ministério Público e do arguido, por simples despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 64.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGC-O), foi decidido:

“…negar provimento ao presente recurso de impugnação judicial e em consequência, declarar a validade e pertinência do processado e da respectiva decisão administrativa da Direcção Regional dos Equipamentos e dos Transportes Terrestres, mantendo a sanção de inibição de conduzir aplicada ao arguido J..., pelo período de 150 (cento e cinquenta) dias”.

Ainda inconformado, veio o arguido interpor recurso dessa decisão para este Tribunal da Relação, condensando a respectiva motivação nas seguintes conclusões (em transcrição):

“I- Invocada a nulidade de decisão administrativa que condenou o recorrente na sanção acessória de inibição de conduzir por 150 dias, sem que dela constem os factos e os fundamentos de direito que determinaram a fixação de sanção diversa do mínimo de dois meses legalmente prevista, a sentença que conhece do recurso de impugnação, ao elencar novos factos que conduzem à percepção por parte do destinatário da decisão agora confirmada, evidenciam a nulidade de que enfermava a decisão administrativa;

II- A sentença judicial que vem elencar factos que não constam da decisão administrativa, mesmo que de tais factos o recorrente alcance a justeza na aplicação da medida de sanção acessória que impugnou, acrescenta e julga por factos que não constam da acusação, e, tendo o recorrente anuído na prolação de sentença por despacho, fica prejudicado nos seus direitos de contraditório, do mesmo passo que a sentença enferma de nulidade à luz do disposto nas alíneas b) e c) do n2 1 do art. 3792 do CPP.

III - Pedindo-se ao tribunal que julgue a nulidade de decisão administrativa a que falha a fundamentação em modos de o recorrente perceber porque é sancionado com uma determinada sanção acessória e não com outra expectável, ao elencar factos que desta não consta e com estes criar a convicção de que a medida acessória aplicada é justa e adequada, conhece de questão que lhe não foi submetida, tanto mais que esta se fundamenta implicitamente nestes factos, pelo que enferma de nulidade a sentença recorrida”.

                                                             *

O Ministério Público na primeira instância respondeu à motivação do recurso, pugnando pela sua improcedência.

                                                             *

Admitido o recurso, e já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.

                                                             *

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

Como se sabe, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[i], sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso.

As conclusões formuladas pelo recorrente, e que ficaram transcritas, definem, claramente, o objecto do recurso e a questão que coloca à apreciação do tribunal ad quem consiste em saber se está ferida de nulidade a decisão (despacho, e não sentença) que, confirmando a decisão da autoridade administrativa, acrescentou factos que desta não constavam para justificar a medida da sanção (de inibição de conduzir) aplicada por aquela.

A apreciação da questão assim equacionada passa, necessariamente, por determinar os requisitos a que deve obedecer a decisão da autoridade administrativa que encerra a fase administrativa do processo de contra-ordenação e da sentença ou despacho que incide sobre a impugnação judicial dessa decisão.

                                                             *

Importa começar por sublinhar que, apenas, está em causa a medida da sanção de inibição de conduzir, já que o recorrente não contesta ter cometido a infracção prevista e punível pelos artigos 81.º, n.os 1 e 5, al. a), 146.º, al. j), e 147.º, n.º 2, todos do Código da Estrada, pagou voluntariamente a coima que lhe corresponde e não questiona que tenha de ser sancionado com inibição de conduzir.

O inconformismo do recorrente resulta da circunstância de a autoridade administrativa não fundamentar minimamente por que fixou em cinco meses a sanção acessória, em vez de dois meses, correspondente ao limite mínimo da moldura legal, que, de resto, os termos da decisão sugerem, pois o único factor de determinação dessa sanção, expressamente considerado, foi o pagamento voluntário da coima, que milita a seu favor.

Está, assim, justificado que comecemos por nos deter sobre os requisitos da decisão da autoridade administrativa e, em particular, sobre a sua fundamentação.

Tais requisitos estão definidos no artigo 58.º do RGC-O e, além das indicações mencionadas nos n.os 2 e 3, que aqui podemos ignorar, são os seguintes:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.

O Código da Estrada, também, define, no artigo 181.º, os requisitos da decisão condenatória e fá-lo em termos essencialmente idênticos, acrescentando, apenas, a condenação em custas e referindo que a descrição dos factos deve ser uma “descrição sumária”.

Do confronto da norma citada com a correspondente norma do processo penal (artigo 374.º do Cód. Proc. Penal) extrai-se a conclusão de que a decisão da autoridade administrativa segue, basicamente, a estrutura da sentença penal.

No entanto, dada a natureza de tal decisão - que, sendo uma decisão punitiva (correspondendo-lhe uma sanção, a coima, de carácter pecuniário), pode vir a transmutar-se em acusação - e da fase que encerra (uma fase que partilha de algumas das características de um procedimento administrativo[ii], como a celeridade e simplicidade processual, como acontece no processo de contra-ordenação por infracções rodoviárias em que, normalmente, o procedimento é extremamente simples), aceitamos que possa haver uma “menor exigência” na fundamentação[iii], no sentido de que esta não tem que ser tão exaustiva como na sentença penal (p. ex., não é exigível a enumeração dos factos não provados, a fundamentação pode ser feita por remissão para algumas peças do processo, como o auto de notícia ou o “parecer” ou “proposta de decisão” do instrutor, desde que devidamente fundamentada, a discussão das razões de facto e de direito que fundamentam a condenação pode ser abreviada)[iv].

Mas fundamentação sumária ou menos exigente não pode confundir-se com falta ou manifesta insuficiência de fundamentação e mesmo quem defende que “a decisão administrativa que aplica uma coima não é uma sentença nem se lhe pode equiparar pelo que não há que chamar à colação o artigo 374° do Código de Processo Penal” (Ac. do TRG, de 24.09.2007) admite, e sublinha, que a fundamentação da decisão da autoridade administrativa deve conter as razões, de facto e de direito, que levaram à condenação (na sanção principal, que é a coima, e/ou na sanção acessória), de forma a permitir ao condenado um juízo de oportunidade e/ou conveniência quanto à impugnação judicial da decisão condenatória e, posteriormente, caso haja impugnação, possibilitar ao tribunal que a vai apreciar conhecer o iter lógico e racional de formação da decisão administrativa[v].

Exigindo o art.º 58.º do RGC-O que uma decisão condenatória da autoridade administrativa contenha a descrição dos factos imputados, com a indicação das provas obtidas [alínea b)], a indicação das normas pelas quais se pune e a fundamentação da decisão [alínea c)], mencionando, ainda, a coima e as eventuais sanções acessórias aplicadas [alínea d)], está bem de ver que tal decisão tem de ser fundamentada e que a fundamentação cumpre as mesmas funções que a fundamentação da sentença penal (por um lado, conferir força pública inequívoca - autoridade e convencimento - ao referido acto e, por outro lado, facultar a sua fundada impugnação, tudo no sentido de que a fundamentação há-de permitir a transparência da decisão).

Aliás, não obstante serem diferentes os princípios jurídico-constitucionais materiais a que se subordinam a legislação penal e a legislação contra-ordenacional, o generalizado agravamento sancionatório que se tem verificado nos ilícitos de mera ordenação social (quer pelo considerável aumento dos montantes das coimas - que, para determinados sectores da actividade económica, chegam aos milhões de euros - quer pelo alargamento do leque das sanções acessórias, algumas delas com uma marcada carga penalizadora) tem levado a que, como contraponto, se tenha incrementado e feito relevar a componente de garantia do regime dos ilícitos contra-ordenacionais, buscando-se um equilíbrio que permita afastar dúvidas quanto à constitucionalidade de certas soluções.

Assim acontece, sobretudo, a partir da revisão constitucional de 1989 (que, como se sabe, aditou o actual n.º 10 ao artigo 32.º da Constituição, consagrando como princípios materiais do processo de contra-ordenações, no âmbito das respectivas garantias processuais, os direitos de audiência e de defesa), concretizando-se com o Dec. Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, que procedeu a uma reforma global do regime geral das contra-ordenações, uma aproximação vincada aos institutos e soluções, quer do direito penal, quer do processo penal, com o reforço do papel subsidiário dos preceitos reguladores do processo criminal.

Por isso é inteiramente apropriado falar em paulatina aquisição pelo processo contra-ordenacional das garantias próprias do processo penal.

Uma dessas garantias é a da fundamentação da decisão administrativa que aplica uma coima ou uma sanção acessória e no acórdão[vi] do STJ, de 29.01.2007, são explicadas, de forma cristalina, as razões e o alcance dessa exigência:

«Embora de forma menos intensa, o conteúdo da decisão sancionatória da autoridade administrativa no processo de contra-ordenação aproxima-se da matriz da decisão condenatória em processo penal, nomeadamente no que respeita á enunciação dos factos provados, com indicação das provas obtidas.

A função dos elementos da decisão no procedimento por contra-ordenação consiste, tal como na sentença penal, em permitir, tanto a apreensão externa dos fundamentos, como possibilitar, intraprocessualmente, o controlo da decisão por via de recurso.

A fundamentação da decisão constitui um pressuposto essencial para verificação, simultaneamente, da pertinência e adequação do processo argumentativo e racional que esteve na base da decisão, e uma garantia fundamental dos respectivos destinatários.

Por isso, a decisão que não contenha os elementos nos termos e pelo modo que a lei determina não é prestável para a função processual a que está vinculada - a definição do direito do caso, e consequentemente, é um acto que não suporta todos os elementos necessários à sua validade.

A consequência, no âmbito do processo penal, vem cominada no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal (CPP): a nulidade da sentença que não contenha a enumeração dos factos provados e não provados, e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.

Dada a natureza (sancionatória) do processo por contra-ordenação, os fundamentos da decisão que aplica uma coima (ou outra sanção prevista na lei para uma contra-ordenação) aproximam-na de uma decisão condenatória, mais do que a uma decisão da Administração que contenha um acto administrativo.

Por isso, a fundamentação deve participar das exigências da fundamentação de uma decisão penal - na especificação dos factos, na enunciação das provas que os suportam e na indicação precisa das normas violadas.

A fundamentação da decisão deve exercer, também aqui, uma função de legitimação - interna, para permitir aos interessados conhecer, mais do que reconstituir, os motivos da decisão e o procedimento lógico que determinou a decisão em vista da formulação pelos interessados de um juízo sobre a oportunidade e a viabilidade e os motivos para uma eventual impugnação; e externa, para possibilitar o controlo, por quem nisso tiver interesse, sobre as razões da decisão.

Elementos essenciais da fundamentação de uma decisão sancionatória - a um tempo base e pressuposto de toda a fundamentação e da possibilidade de controlo da própria decisão - são os factos que forem considerados provados e que constituem a base sine qua da aplicação das normas chamadas a intervir.

A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58º, nº 1 do RGCOC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efectivo com o adequado conhecimento dos factos imputadas, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.

A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão - sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material - tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não directa quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41º do RGCOC sobre "direito subsidiário", que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.

Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contra-ordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374º, nº 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias».

Por isso, não pode haver dúvidas de que, também no que respeita à medida da coima ou da sanção acessória, a decisão da autoridade administrativa tem de especificar os fundamentos que presidiram à escolha e à determinação da sanção concretamente aplicada, pois assim o exige o artigo 375.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, aplicável ex vi do art.º 41.º, n.º 1, do RGC-O.

A autoridade administrativa “fundamentou” assim a decisão de aplicar ao recorrente a sanção de inibição de conduzir por 150 dias:

“Nestes termos, ponderados os elementos determinantes da medida da sanção constantes dos artigos 139.º, do Código da Estrada nomeadamente o pagamento voluntário da coima no prazo legal, decide-se:

Condenar o arguido no cumprimento de 150 dias de inibição de conduzir”.

O art.º 139.º, n.º 1 do Código da Estrada estabelece que a medida da sanção determina-se em função:
§ da gravidade da infracção;
§ do grau de culpa;
§ dos antecedentes do infractor no que respeita a infracções rodoviárias.

Ora, como se constata, a autoridade administrativa limita-se a referir-se aos “elementos determinantes da sanção”, sem os concretizar. E não os concretiza porque não se preocupou minimamente em apurar factos que permitissem formular um juízo sobre a concreta gravidade da infracção cometida e o grau de culpa do arguido. Mais ainda: nem sequer incluiu nos factos provados os antecedentes infraccionais do arguido, apesar de haver nos autos elementos documentais que permitiam fazê-lo.

O único facto concreto mencionado é o pagamento voluntário da coima. Mas, a considerar-se que esse facto é relevante para a determinação da sanção de inibição de conduzir, seria como circunstância atenuante. Por isso, tem inteira razão o recorrente quando afirma que a “fundamentação” da decisão apontava para uma medida da sanção que coincidisse ou ficasse próximo do mínimo legal, em vez dos cinco meses fixados.

De resto, à decisão administrativa podem ser apontadas outras deficiências, como a falta de enunciação dos factos provados.

Vejamos o teor integral dessa decisão:


1. “Conforme auto de notícia número ...., levantado pela ESQUADRA TRANSITO PONTA DELGADA, 0(a) arguido(a) J... titular do Bilhete de Identidade número ...., morador(a) em RUA .... PONTA DELGADA titular da carta/licença n.º L-...., vem acusado(a) do seguinte:

No dia 2011/03/20, pelas 03h10m, no local RUA .... conduzindo o veículo Ligeiro Passageiros Particular, de matrícula ....., verificou-se:

Por o infractor circular com citado veículo na referida via, com taxa de álcool no sangue de 1.08 g/L”.

   
2. Tal facto constitui contra-ordenação ao disposto no ARTIGO 81. n. 1 do Código da Estrada, punível com a coima de 500,00 EUR a 2.500,00 EUR nos termos do art. 81.n.5 b), art. 146.j) e art. 147.n.2 do C.E. e ainda com a sanção acessória de inibição de conduzir de 2 meses a dois anos.
3. Em 2011/03/20 , foi o arguido(a) notificado(a) nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 50.° do Decreto -Lei n.° 433/82, de 27.10 (alterado pelos D. L. n/s 356/89, de 17.10 e 244/95, de 14.9) e do artigo 175.° do Código da Estrada.

                          Analisada a matéria de facto, verifica-se que:
4. O auto de noticia faz fé em processo de contra-ordenação, até prova em contrário, quanto aos factos presenciado ou verificados pela entidade autuante (art. 170.° n.°s 3 e 4 do Código da Estrada).
5. Os factos descritos não permitem concluir pelo carácter doloso da infracção, mas subsiste a negligência, porquanto o(a) arguido(a) não procedeu com o cuidado a que estava obrigado(a).

A negligência é punível nos termos do artigo 133.° do Código da Estrada.


6. Assim, o(a) arguido(a) cometeu a contra-ordenação descrita com negligência.
7. A coima foi paga voluntariamente.
8. Nestes termos, ponderados os elementos determinantes da medida da sanção constantes dos artigos 139.°, do Código da Estrada nomeadamente o pagamento voluntário da coima no prazo legal, decide-se:

Condenar o arguido no cumprimento de 150 dias de inibição de conduzir”.

Como se constata, na decisão da autoridade administrativa diz-se de que estava “acusado” o arguido, não se descrevem os factos considerados provados.

Conclui-se, assim, que tal decisão não está fundamentada ou, no mínimo, é manifestamente insuficiente a fundamentação, pelo que não satisfaz a exigência prevista no artigo 58.º, n.º 1, do RGC-O.

É questão controvertida saber qual a consequência do não cumprimento, pela autoridade administrativa, da exigência de fundamentação da decisão condenatória.

Identificámos duas correntes de opinião: uma, que cremos ser dominante na Relação do Porto e tem apoio de António Beça Pereira (“Regime Geral das Contra-Ordenações”, Almedina, 2001, nota 4), defende que a falta de fundamentação da decisão da autoridade administrativa constitui mera irregularidade, que só pode ser arguida perante a autoridade que a proferiu; a outra, claramente dominante (no acórdão desta Relação, de 07.07.2009, diz-se mesmo que “existe algum consenso doutrinal e jurisprudencial” sobre isso), considera constituir nulidade sanável a falta de requisitos previstos no art. 58.º do RGC-O, nos termos dos artigos 374.º, n.º 2, e 379º, nº 1, al. a), do Cód. Proc. Penal, ex vi do art.º 41.º, n.º 1, do RGC-O (assim, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações”, UCE, anotação 9 ao artigo 58.º, onde cita abundante doutrina e jurisprudência no mesmo sentido).

Os argumentos a favor da tese da irregularidade estão doutamente plasmados no acórdão da Relação do Porto, de 11.04.2012, de que aqui transcrevemos as passagens mais significativas:

“De um modo geral, podemos constatar que não existe no domínio do processo contra-ordenacional a obrigatoriedade de serem observados e nos mesmíssimos termos os princípios e o regime legal do processo penal, porquanto isso seria transformar um regime subsidiário e auxiliar num regime predominante ou primordial, contrariando a filosofia daquele e os propósitos legislativos [43.º; Ac. TC 469/97; 278/99 e 522/2008]. Assim, a autonomia do processo contra-ordenacional possibilita-lhe a existência de certos desvios nos níveis de asseguramento das garantias de defesa, designadamente quanto ao não registo da prova em 1.ª instância judicial [66.º; Ac. TC 50/99; 73/2007] ou quando restringe à matéria de direito o recurso destes últimos tribunais para a Relação [75.º, n.º 1; Ac. TC 632/2009]. Mais acresce que a consagração constitucionalmente expressa dos direitos de audiência e de defesa [32.º, n.º 10 da Constituição], tem sido perspectivada mediante a concessão ao imputado de uma infracção contra-ordenacional do direito a ser previamente ouvido e na sua presença, bem como o de defender-se daquelas imputações, conhecendo-as atempadamente e apresentando ou requerendo os meios de prova tidos por convenientes [Ac. TC 659/2006].

Afastou-se assim desta injunção constitucional para as contra-ordenações a subsistência de um duplo grau de jurisdição com a mesma consistência ou tutela constitucional tal como existe para o processo penal [Ac. 189/2001; 377/2003; 2/2006; 313/2007], não se incluindo aqui o tal direito a um segundo grau [Ac. TC 659/06] e muito menos a um terceiro grau de jurisdição.

O que se deve assegurar é a recorribilidade genérica para as decisões administrativas que afectem direitos e interesses dos administrados [32.º, n.º 10 e 20.º Constituição; 55.º do RGCO; Ac. R Porto de 2012/Jan./18].

Por outro lado, mesmo no Código de Processo Penal não existe sempre um vício de nulidade para qualquer decisão quando a mesma se apresente sem motivação ou deficientemente motivada, pois o mesmo é privativo das sentenças ou dos acórdãos [379.º; 420.º, 4 C. P. P.], só sendo nestes casos susceptível de fundamentar a sua impugnação mediante recurso [379.º, n.º 2 C. P. P.].

Por força do princípio da tipicidade da legalidade dos actos em processo penal, as decisões judiciais [vg medidas de coacção ou de garantia patrimonial (194.º, n.º 4 C. P. P.); decisão instrutória (308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3; 309.º C. P. P.)] ou os actos do Ministério Público [v. g. a acusação (283.º, n.º 3 C. P. P.)], só são nulos se tal consequência estiver expressamente contemplada.

Por último e como toda a interpretação legislativa deve preservar a integridade do Direito e a unidade do sistema jurídico [9.º n.º 1 Código Civil], não se percebe como é que uma decisão administrativa a dado momento pode equivaler a uma acusação, quando a entidade administrativa envia os autos ao Ministério Público [62.º, n.º 1] e ao mesmo tempo é equiparada a uma sentença.

Nesta conformidade e reconhecendo-se a autonomia do processo de contra-ordenações e a natureza subsidiária do processo penal, o vício da falta de fundamentação da decisão da autoridade administrativa deve corresponder ao vício genérico acometido a uma qualquer decisão judicial, ou seja, equivale a uma irregularidade e não a uma nulidade [Ac. R. P. de 2011/Fev./09] – e muito menos a uma nulidade insanável, por não integrar o catálogo do artigo 119.º do C. P. P. e não estar especificadamente prevista como tal em mais nenhuma disposição legal, as quais são sempre susceptíveis de ser conhecidas oficiosamente [410.º, n.º 3 C. P. P.].

Tratando-se de uma irregularidade – o mesmo sucederia se se concebesse tal vício como uma nulidade sanável de uma decisão que não fosse sentença – a mesma teria de ser previamente suscitada perante a autoridade administrativa que a praticou, sob pena de se considerarem tais vícios sanados [120.º, 121.º e 123.º C. P. P.]”.

Reconhecemos a autonomia do processo de contra-ordenação, mas, pelas razões atrás expostas, não pode negar-se a sua vincada aproximação aos institutos e soluções do processo penal e, também aqui, a fundamentação deve exercer uma função de legitimação, interna e externa. A sua falta ou manifesta insuficiência não pode deixar de ser sancionada com a nulidade da decisão administrativa.

A fonte do vício é a decisão condenatória e por isso, salvo o devido respeito, não colhe o argumento de que se equipara a uma sentença uma decisão administrativa transformada em acusação.

É, pois, a tese da nulidade sanável que abraçamos e tendo o recorrente arguido a nulidade da decisão da autoridade administrativa logo na impugnação judicial dessa decisão, o vício não pode considerar-se sanado.

                                                             *

No despacho que decidiu a impugnação judicial da decisão administrativa julgou-se improcedente a arguição de nulidade.

Para tanto, a Sra. Juíza discorreu assim:

Ora, descendo ao caso vertente, analisado o texto da decisão administrativa, somos levados a concluir que foram observados os requisitos de conteúdo exigidos pelo citado artigo 181º, nº1 do CE.

Com efeito, colhe-se do texto da própria decisão administrativa que ali constam os elementos supra citados, mormente a descrição sumária dos factos relevantes para a determinação da sanção acessória, especificando qual a gravidade da infracção cometida e qual o grau de culpa imputado ao arguido, referindo-se ainda a circunstância de o arguido ter procedido ao pagamento voluntário, o que desde logo poderia relevar, sendo caso disso, para efeitos de aplicação do disposto nos artigos 140º e 141º do CE.
Na verdade, conforme elucidam Simas Santos e Lopes de Sousa, in Contra-Ordenações - Anotações ao Regime Geral, 4ª Ed., Vislis Editores, p. 419, por referência a igual expressão contida na alínea b) do nº 1 do artigo 58º, a imposição legal de uma “descrição sumária” não exige a “enumeração dos factos provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal” como se reclama para as sentenças proferidas em processo criminal. O que se prescreve é que a descrição factual que consta da decisão administrativa, interpretada à luz das garantias do direito de defesa, seja suficiente para permitir ao arguido aperceber-se dos factos que lhe são imputados e defender-se adequadamente.
Em suma, não se vislumbra que a decisão administrativa haja incorrido nos vícios que lhe são apontados no recurso de impugnação judicial.
Tudo visto e ponderado, de acordo com o conteúdo dos presentes autos, entendemos inexistir qualquer vício de legalidade que possa influir na decisão proferida, revelando-se ainda assim, adequado, justo e proporcional às finalidades sancionatórias de ordem contra-ordenacional, a sanção acessória de inibição de conduzir, tal como aplicada em sede administrativa, à qual aderimos, criando-se a convicção que esta é suficiente para o arguido tomar consciência da necessidade de adequar a sua conduta aos normativos legais vigentes, sendo igualmente adequada para prevenir futuros eventos deste teor”.

Como já tivemos oportunidade de fazer notar, fundamentação sumária ou de menor profundidade que aquela que o artigo 374.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal impõe para a sentença em processo penal não pode confundir-se com falta ou manifesta insuficiência da fundamentação e, com todo o respeito devido pela opinião expressa na decisão recorrida, não lobrigamos onde estão especificados os factos sobre a gravidade da infracção cometida e sobre o grau de culpa do arguido, a que se alude no transcrito trecho da decisão recorrida.
A exigência de fundamentação refere-se, não só aos factos que materializam a contra-ordenação, mas também às circunstâncias relevantes para a determinação da medida da sanção (seja a sanção principal, seja a sanção acessória) e não descortinamos onde está satisfeita essa exigência. Ora, se a decisão administrativa omite esses factos, não podia o arguido avaliar a justiça da condenação na sanção acessória de 5 meses de inibição de conduzir, apresentando-se como puramente discricionária a fixação dessa medida da sanção.
Aliás, é a própria decisão recorrida a evidenciar esse vício da decisão administrativa ao tentar colmatar a omissão de fundamentação pelo acrescentamento de factos considerados relevantes para a medida da sanção, como são os antecedentes do arguido em matéria de infracções ao Código da Estrada e seu regulamento.
O elenco dos factos que o tribunal a quo considerou provados ilustra bem o que dizemos:

A. “No dia 20 de Março de 2011, pelas 3h10, na Rua .., em Ponta Delgada, J... conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ...., com uma taxa de álcool no sangue de 1,08g/l, em virtude de previamente ter ingerido bebidas alcoólicas.
B.    O arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado.
C.  O recorrente efectuou o pagamento voluntário da coima que lhe foi aplicada.
D.  O arguido tem averbado no seu RIC a prática de uma contra-ordenação por desrespeitar a obrigação de parar imposta pela luz vermelha de regulação de trânsito, por factos praticados em 12-3-2000.
E. O arguido tem averbado no seu RIC a prática de uma contra-ordenação por conduzir automóvel ligeiro ou motociclo fora de localidade excedendo em mais de 30 km/h e até 60 km/h o limite máximo imposto, por factos praticados em 5-5-2006.
F. O arguido tem averbado no seu RIC a prática de uma contra-ordenação por conduzir automóvel ligeiro ou motociclo dentro de localidade excedendo em mais de 20 km/h e até 40 km/h o limite máximo imposto, por factos praticados em 23-7-2008.
G. O arguido tem averbado no seu RIC a prática de uma contra-ordenação por conduzir automóvel ligeiro ou motociclo dentro de localidade excedendo em mais de 20 km/h e até 40 km/h o limite máximo imposto, por factos praticados em 3-9-2009”.

Ao contrário do entendimento manifestado pelo recorrente (que, naturalmente, se respeita), entendemos que não houve excesso de pronúncia do tribunal a quo ao considerar provados factos que não constam da decisão da autoridade administrativa.

Tal como no processo penal é possível o recurso da decisão em matéria de facto, no processo contra-ordenacional, na fase judicial, a lei confere ao arguido o direito, não só a ver reapreciada a decisão administrativa que aplicou a coima, mas a um verdadeiro julgamento dos factos que lhe são imputados.

Significa isto que o tribunal que conhece do recurso[vii] de aplicação de coimas tem poderes de jurisdição plena: por um lado, não está limitado pela prévia definição do Direito efectuada na decisão recorrida, podendo anulá-la; por outro lado, pode mesmo substituir-se à Administração na aplicação da coima.

O tribunal conhece directamente dos factos em causa, da sua qualificação jurídica e avalia, com autonomia, o quantum da medida a aplicar[viii], se for esse o caso.

Mantendo ou alterando a condenação, deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne à matéria de facto como à aplicação do direito e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção (artigo 64.º, n.º 4, do RGC-O).

Mas, sendo certo que a decisão da autoridade administrativa não vincula o tribunal, entendemos que, também no processo de contra-ordenação, não pode ser completamente postergado um princípio como o da vinculação temática e por isso não poderá ser tida em conta uma alteração substancial dos factos descritos naquela decisão (entretanto convertida em acusação) sem que se sigam os trâmites previstos no art.º 359.º do Cód. Proc. Penal[ix]. Se assim não se proceder, e o arguido for condenado, a sentença será nula, nos termos do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. b), aplicável ex vi do art.º 41.º, n.º 1, do RGC-O, do Cód. Proc. Penal.

Podia, pois, o tribunal a quo incluir na descrição dos factos provados os relativos aos antecedentes do arguido, sem que o seu direito de defesa tivesse saído prejudicado, até porque já constavam dos autos os documentos em que, para tanto, se baseou.

Mas o tribunal recorrido tentou suprir uma outra omissão na decisão administrativa que afecta a sua validade.

Referimo-nos à completa falta de factos sobre o elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional.

O que se afirma na decisão administrativa é, simplesmente, isto:

“Os factos descritos não permitem concluir pelo carácter doloso da infracção, mas subsiste a negligência, porquanto o(a) arguido(a) não procedeu com o cuidado a que estava obrigado(a)”.

O que se fez no despacho recorrido foi transcrever, no elenco de factos provados, o segmento final deste parágrafo “O arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado” e acrescentar (alínea A)) que foi “em virtude de previamente ter ingerido bebidas alcoólicas” que ele apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1.08 g/l.

Ora, o que, com propriedade, se pode afirmar é que não se pode concluir, nem por uma coisa, nem por outra, nem pela existência de dolo, nem pela negligência, pois aquela não passa de uma afirmação conclusiva.

É pacífico o entendimento de que, sendo a imputação subjectiva de um ilícito penal matéria de facto, têm de se provar os pertinentes factos subjectivos, sem o que o agente não pode ser condenado pelo crime em causa.

Suponhamos que, em vez de uma TAS de 1.08 g/l, o arguido/recorrente apresentava 1.20 g/l de álcool no sangue, sendo por isso detido.

O Ministério Público teria requerido o seu julgamento em processo sumário, mas não poderia limitar-se a reproduzir o teor do auto de notícia: teria que aditar factos relativos ao dolo ou à negligência do arguido.

O mesmo se passa quando se trata de uma contra-ordenação, pois que, também neste âmbito, não há responsabilidade objectiva.

Como se pode ler no já citado acórdão da Relação do Porto de 11.04.2012, “a culpabilidade continua a ser um elemento típico das condutas contra-ordenacionais [Ac. R. C. de 2009/Mai./13], afastando-se a possibilidade de punição de uma contra-ordenação independentemente do carácter censurável do facto cometido [Ac. STJ de 2003/Jun./26]. Daí que a imputação de um facto contra-ordenacional e a sua responsabilização, exija sempre um nexo de imputação subjectiva, seja através de uma conduta dolosa, seja através de uma conduta negligente [Ac. R. C. de 2009/Mar./11 e Ac. R. E. de 2011/Dez./06]”

A mesma ideia está, claramente, expressa no acórdão da Relação de Lisboa, de 28.04.2004:

Para que se verifique a culpabilidade de um agente no cometimento de um facto é necessário que o mesmo lhe possa ser imputado a título de dolo ou negligência o que releva também no domínio das contra-ordenações.

Tendo a autoridade administrativa, na sua decisão omitido qualquer facto que estabelecesse o elemento subjectivo da infracção é nula aquela decisão”.

E no acórdão da Relação de Évora, de 25.09.2012:

A alegação de factos que integram os elementos subjectivos de uma qualquer infracção não pode deixar de constar da decisão da autoridade administrativa e, sendo esta impugnada judicialmente, não é admissível, sob pena de violação da estrutura acusatória, que se venha a inferir ainda que com recurso a presunções e a regras da experiência.

Essa omissão de factos constitui, em si mesma, falta de fundamentação da decisão, em preterição do art. 58.º, n.º 1, alínea c), do RGCO, implicando nulidade, a suprir pela autoridade administrativa”.

Se o dolo e a negligência também revelam diferentes conteúdos materiais de culpa e por isso, quando se usa a expressão “imputação subjectiva”, também, se pretende aludir à culpa (dolosa e negligente), aqui interessa-nos considerar essas categorias dogmáticas enquanto elementos subjectivos do tipo ou tipo subjectivo de ilícito (doloso ou negligente), como elementos integrantes (a par do tipo objectivo) do tipo incriminador.

Mesmo quando a imputação se faça independentemente de culpa, ainda assim se exige que o facto, para ser punido como contra-ordenação, seja praticado com dolo ou negligência, tal como dispõe o n.º 1 do art.º 8.º do RGC-O.

Em matéria de contra-ordenações, há especificidades que é necessário ter em consideração e uma delas decorre da nula ou pouco significativa relevância material-axiológica das condutas que consubstanciam ilícitos de mera ordenação social que se reflecte na configuração do elemento cognitivo ou intelectual do dolo: à afirmação do dolo do tipo não bastará o conhecimento dos elementos do tipo objectivo (ou, se se preferir, o conhecimento da factualidade típica e do decurso do acontecimento), sendo ainda indispensável o conhecimento da proibição legal respectiva.

Pode, então, dizer-se que pratica uma contra-ordenação a título doloso todo aquele que, no momento e nas circunstâncias em que age (ora, por acção, ora por omissão), fá-lo com conhecimento e vontade de realização da factualidade material típica, ou seja, da conduta descrita como infracção contra-ordenacional, e com consciência da respectiva proibição.

A negligência é violação do dever objectivo de cuidado ou criação de um risco não permitido e determina-se com recurso a uma dupla averiguação: por um lado, há que procurar saber que comportamento era objectivamente devido em determinada situação em ordem a evitar a violação não querida do direito e, por outro, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais.

Aplicando estes conceitos ao caso concreto, diremos que o arguido teria actuado com dolo se, tendo ingerido bebidas alcoólicas, sabia que estava sob influência do álcool, mais exactamente, que teria (ou admitiu que poderia ter) uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l, e, assim mesmo, quis conduzir o seu veículo automóvel na via pública, conhecendo a proibição legal dessa conduta.

O arguido teria agido negligentemente se, conhecendo a proibição legal da conduta, ponderou deficientemente o facto de, ao iniciar a condução do seu veículo automóvel na via pública, estar sob a influência do álcool (com uma TAS de, pelo menos, 0,5 g/l) por ter ingerido bebidas alcoólicas, ou nem sequer representou esse facto, mas podendo e devendo fazê-lo para evitar a violação daquela proibição, atentas as suas qualidades e capacidades individuais.

Porém, nada disto consta, quer da decisão da autoridade administrativa, quer do despacho recorrido.

É evidente que a prova destes factos subjectivos do ilícito contra-ordenacional que constitui conduzir um veículo automóvel na via pública com uma taxa de álcool no sangue entre 0,5 e 1,2 g/l, não havendo confissão, só por recurso à prova indirecta ou por presunções, recorrendo a juízos de racionalidade, de lógica e da experiência, pode fazer-se.

Mas há que distinguir estes dois planos: por um lado, a prova desses factos e, por outro, uma vez provados, a sua descrição no elenco de factos que, quer a decisão administrativa, quer a decisão judicial hão-de conter.

Ora, o que acontece neste caso é que uma e outra limitam-se a descrever os factos objectivos que materializam o ilícito contra-ordenacional em causa, omitindo completamente os factos que haveriam de preencher o elemento subjectivo do mesmo ilícito.

Resta, então, extrair as consequências dessa omissão.

Como já vimos, nos citados acórdãos da Relação de Lisboa, de 28.04.2004, e da Relação de Évora, de 25.09.2012, entendeu-se que a omissão gera a nulidade da decisão, a suprir pela autoridade administrativa[x].

Bem diversa é a solução propugnada por outra corrente jurisprudencial, defendendo-se a absolvição, pura e simples, do arguido, como no acórdão da Relação de Lisboa, de 17.06.2003 (“Sendo a decisão omissa de factualidade provada quanto ao elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional imputado à ora recorrente, não poderia esta ter sido sancionada, impondo-se a respectiva absolvição”), no acórdão do STJ, de 29.01.2007 (“…não constam da decisão da entidade recorrida quaisquer elementos que permitam imputar os factos a título de dolo ou de negligência, necessários à caracterização e integração do elemento subjectivo, como elemento indispensável à natureza e integração de uma infracção com consequências sancionatórias. Não estando integrados os elementos da tipicidade da contra-ordenação referida pela decisão administrativa a consequência terá de ser a absolvição”) e no acórdão da Relação de Guimarães, de 07.05.2010 (“Se os factos descritos na decisão condenatória da entidade administrativa não constituírem contra-ordenação, ou forem insuficientes para a condenação, então, em caso de recurso de impugnação judicial, será inevitável a absolvição. É que o juiz não pode ir em "socorro" de quem fixou os factos imputados, limando-lhe ou contornando-lhe as deficiências”).

Temos para nós que uma decisão que condena ou, como é o caso, mantém a decisão condenatória da autoridade administrativa, sem que dela constem, como provados, factos necessários à caracterização e integração do elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional está afectada pelo vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada[xi], pois a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, justa e legal.

Tal vício leva ao reenvio do processo para novo julgamento.

O facto de, no caso, a decisão sob recurso ser um despacho (como tal é designado no art.º 64.º do RGC-O) não constituirá obstáculo a essa solução, pois que, do ponto de vista substancial, trata-se de uma verdadeira sentença, um acto decisório que conheceu a final do objecto do processo (cfr. acórdão desta Relação de Lisboa, de 21.04.2009).

Sucede que o tribunal, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, pode declarar a nulidade da decisão administrativa impugnada e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para sanação do vício (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Op. Cit., 263).

Ora, já concluímos que a decisão administrativa é nula e o tribunal recorrido deveria ter declarado essa nulidade e determinado a remessa dos autos à autoridade administrativa para suprir o vício.

Se bem que a propósito do artigo 79.º do RGIT (preceito que, no que para o caso interessa, é idêntico ao artigo 58.º do RGC-O), Simas Santos e Lopes de Sousa (“Contra-ordenações – Anotações ao Regime Geral”, Áreas Editora, 6.ª ed., 2011, pág. 431-432), defendem que “na sequência da declaração de nulidade por falta de requisitos legais de aplicação de coima (…) o processo não é necessariamente extinto, devendo ser praticados os actos necessários para que ela deixe de existir, não impedindo que venha a ser proferida nova decisão, em substituição da anterior (…), desde que a nulidade que afectava a primeira possa ser sanada na nova decisão. O desaparecimento jurídico do acto nulo e dos actos que dele dependam com repetição do acto anulado (se ele não estiver sujeito a prazo que tenha expirado) é a regra generalizada do nosso ordenamento jurídico, como pode ver-se pelos artigos 201.º, n.º 2, e 208.º do C. P. Civil, e artigo 122.º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Penal.

Assim, se a nulidade, referente à parte administrativa do processo contra-ordenacional, é constatada em recurso judicial da decisão de aplicação de coima, não deve ser decidida (d)a absolvição da instância, mas sim a remessa do processo à autoridade administrativa para eventual sanação”.

Ainda que com reservas, acolhemos esta solução porque se nos figura ser aquela que melhor interpreta e aplica as normas jurídicas pertinentes e permite chegar, após a indagação que a autoridade administrativa não fez e devia ter feito, a um juízo seguro de condenação ou de absolvição.

III – Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e declarando nula a decisão da autoridade administrativa, judicialmente impugnada pelo arguido/recorrente, devendo o tribunal recorrido remeter os autos àquela entidade para que profira decisão isenta de vícios que afectem a sua validade, nomeadamente por falta de fundamentação.

Sem tributação.

(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).   

                                                                                       Lisboa, 19.02.2013

                                                                               Neto de Moura

                                                                           Alda Tomé Casimiro


[i] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[ii] Importa, no entanto, sublinhar que o processo de contra-ordenação, mesmo na sua fase inicial (que decorre no âmbito da competente autoridade administrativa) não tem a natureza de um procedimento administrativo no sentido de “sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade da Administração Pública ou à sua execução”.
O processo de contra-ordenacão participa funcionalmente dos mesmos fins do inquérito em processo penal, sendo-lhe subsidiariamente aplicável o normativo processual penal.
Apesar de ser corrente designar as decisões das autoridades administrativas aplicadoras de coimas como “decisões administrativas”, também não suscita controvérsia a afirmação de que o processo de contra-ordenação, mesmo na sua fase administrativa, é uma realidade distinta do processo administrativo.
[iii] Diz-se, p. ex., nos acórdãos da Relação de Coimbra, de 03.10.2012, de 20.06.2012 e de 21.09.2011 que “no processo de contra-ordenação, em sede de fundamentação da decisão administrativa não é de exigir o rigor formal nem a precisão descritiva que se exige numa sentença judicial”, que “a lei não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação que aqui se impõe, mas tem-se entendido que não se impõe aqui uma fundamentação com o rigor e exigência que se impõem para a sentença penal, no art.° 374º, n.º 2, do C. Proc. Penal”, ou que “a matriz subjacente à fundamentação de uma decisão administrativa em processo de contra-ordenação consente um modo sumário de fundamentar do qual se possa concluir: a) que quem decidiu não agiu discricionariamente; b) que a decisão tem virtualidade para convencer os interessados e os cidadãos em geral da sua correcção e justiça; e c) que o controlo da legalidade do decidido, nomeadamente, por via de recurso, não é prejudicado ou inviabilizado pela forma que tomou”.
[iv] Quanto ao exame crítico das provas na decisão da autoridade administrativa, embora prevaleça o entendimento de que tal análise se impõe, não é um entendimento pacífico, argumentando-se a favor da tese oposta que o artigo 58° do RGC-O não a exige expressamente, limitando-se a exigir a indicação das provas, e que a decisão administrativa que aplica uma coima não é uma sentença nem se lhe pode equiparar, pelo que não há que chamar à colação o artigo 374° do Código de Processo Penal.  
[v] Como se faz notar no acórdão desta Relação de Lisboa, de 20.10.2004, a possibilidade de uma fundamentação sumária não pode significar que se permite que se “posterguem os mínimos limiares do cumprimento do dever de convencimento e sindicabilidade estabelecido, maxime, no artigo 205.º da Constituição”. 
[vi] Estão acessíveis em www.dgsi.pt os arestos que aqui se citam sem qualquer outra indicação.
[vii] Usamos aqui o termo “recurso” por comodidade. No entanto, apesar de ser essa a designação que a lei utiliza para a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, em bom rigor, não há nenhum recurso, pois não há (ainda) uma decisão judicial.
[viii] Mas sem prejuízo da proibição da reformatio in pejus.
[ix] Neste sentido, o acórdão do TRC, de 04.10.2006, disponível em www.dgsi.pt;
Aparentemente, em sentido diverso, considerando que o tribunal deve “ter em conta toda a prova já produzida nos autos e a que vier a ser produzida na audiência de julgamento, bem como todos os factos que dela resultem, mesmo que não tenham sido incluídos na decisão administrativa recorrida”, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 918.
[x] No mesmo sentido, os acórdãos da Relação de Évora, de 04.04.2004 e de 03.12.2009, e da Relação de Lisboa, de 14.10.2004.
[xi] Assim, o acórdão desta Relação de Lisboa, de 20.10.2004.


Decisão Texto Integral: