Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9093/2003-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: CONTRATO DE DEPÓSITO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/29/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Sumário: No contrato de depósito, o depositário obriga-se a guardar a coisa entregue pelo depositante, no sentido de providenciar pela sua conservação material, defendendo-a, designadamente, dos perigos de subtracção, destruição ou dano.
Não referindo a lei o critério de diligência que deve presidir a tal actuação, a questão tem de ser solucionada de acordo com o princípio geral fixado nos arts. 487º, nº 2, e 799º, nº 2, do CC, atendendo à diligência do bom pai de família e ao grau normal ou habitual de diligência do devedor.
Não tendo a depositária ilidido a presunção de culpa em relação ao desaparecimento de um motociclo que aceitara guardar na sua garagem, constituiu-se na obrigação de indemnizar o depositante do prejuízo correspondente ao valor da coisa que estava à sua guarda.
Tal indemnização afere-se pelo montante correspondente ao valor comercial do bem tal como este se encontrava quando desapareceu.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

  I – RELATÓRIO

MANUEL  P. intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra C & J LDA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a importância de 6.699,05 - correspondente ao valor comercial base do motociclo desaparecido, acrescido de € 1.212,27, respeitante aos componentes extras nele incluídos - € 2.387,50, respeitante a indemnização pelos danos patrimoniais calculados até 24 de Junho de 2002 e naqueles que desde então se vencerem à razão diária de € 12,50; € 2.865,00 de indemnização pelos danos não patrimoniais calculados até 24 de Junho de 2002 e naqueles que desde então se vencerem à razão diária de € 15,00 diários; indemnização pelos danos futuros que a sua conduta vier a provocar, de natureza patrimonial no valor diário de € 12,50 e de natureza não patrimonial no valor diário de € 15,00, bem como nos juros de mora contados sobre a indemnização pelos danos causados, desde a citação e até integral pagamento.
Fundamenta a sua pretensão no facto de, na qualidade de proprietário do motociclo com a matricula 49-76-GP, em data anterior a 06 de Março de 2000, ter celebrado com a Ré um contrato de depósito destinado à guarda daquele motociclo mediante o pagamento mensal da quantia de Pte. 8.000$00, montante esse que o Autor sempre satisfez. Porém, tendo deixado o motociclo em questão na garagem da Ré em 11 de Novembro de 2001, quando aí se deslocou para o ir buscar em 14 desse mês e ano, verificou que o mesmo tinha desaparecido não tendo a Ré dado qualquer explicação para tal facto. Tendo o Autor solicitado, por diversas vezes à Ré, o pagamento dos prejuízos decorrentes de tal desaparecimento, esta até à data não procedeu ao pagamento de qualquer quantia.
Alega ainda que o Autor que o desaparecimento do motociclo, para além do prejuízo respeitante ao seu valor, acarretou também diversos outros prejuízos, quer de ordem material, quer moral, uma vez que utilizava regularmente aquele motociclo, tanto para o seu lazer pessoal, uma vez que é motocard, como para a sua actividade profissional, atento o facto de ter dois empregos e necessitar de um meio rápido de transporte para cumprir os respectivos horários laborais. A privação de tal motociclo determinou-lhe, pois, para além de stress, tristeza desgosto, um prejuízo monetário decorrente da quebra de produtividade profissional, prejuízos esses que reclama nesta acção.

Em contestação a Ré refere, em súmula, que o Autor retirou o motociclo da garagem no dia 11 de Novembro de 2001, não mais voltando a dar entrada com o mesmo na garagem em questão. Referindo que a garagem em questão tem funcionários 24.00 horas/dia, todos os dias da semana, não poderia o veículo dar entrada naquele local sem que tal facto não fosse objecto de registo. Sendo esta a forma de controle utilizada há mais de vinte anos sem que alguma vez tenha desaparecido qualquer veículo da garagem, entende que o sistema é seguro e, como tal, não correspondem à verdade as afirmações produzidas pelo Autor quanto a ter voltado a entregar o motociclo na garagem no dia 11 de Novembro de 2001. Acrescenta ainda que desconhece os prejuízos alegados pelo Autor sendo certo que, ao valor do motociclo sempre seria de deduzir a importância correspondente ao valor do motor do motociclo em questão, que foi encontrado no âmbito de um inquérito que está a correr termos na GNR de Loures. Conclui, assim, pela sua absolvição do pedido e pela condenação do Autor como litigante de má fé, em multa e indemnização a seu favor, no montante de € 2.500,00, uma vez que invoca factos pessoais que sabe não corresponderem à verdade.

Foram fixados os Factos Assentes e elaborada a Base Instrutória.
Procedeu-se à realização do julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, condenando a Ré a pagar ao A. a quantia global de € 8.712,27 (sendo € 5.712,27 a título de danos patrimoniais e € 3.000,00 a título de danos não patrimoniais), quantia esta que deve ser acrescida de juros de mora legal (actualmente à taxa legal de 7% ou de outros que eventualmente sobrevenham) desde a citação e até integral pagamento. A sentença relegou para execução em liquidação de sentença a apreciação final do valor comercial do motociclo desaparecido na parte que exceder o montante de € 4.500,00, tendo como limite o montante de € 5.000,00. Caso o motor do motociclo venha a ser entregue ao Autor determinou a sentença a sua entrega à Ré, uma vez que a mesma foi já condenada no pagamento integral do valor do mesmo.

  Inconformada, a Ré, recorreu da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:
A) A Mmª Juiz "a quo" fez uma errada interpretação e aplicação das regras de direito relativas à responsabilidade civil contratual (arts 483º e seguintes do CCivil) e do enriquecimento sem causa.
B) Ao relegar para liquidação em execução de sentença o valor da indemnização a arbitrar ao autor, deveria a Senhora Juiz "a quo" ter igualmente tido em consideração o valor do motor do motociclo encontrado pelas autoridades policiais, e não ter determinado a entrega desse mesmo motor à ora Ré.
C) Não tendo decidido do modo atrás descrito permitiu ao lesado um ressarcimento superior ao prejuízo efectivamente sofrido.
D) O montante indemnizatório de € 3.000,00 arbitrado a título de danos morais é manifestamente excessivo face à gravidade da lesão e ao grau de culpa da ré recorrente, justificando-se que tal montante seja fixado em € 1.000,00.

O A. contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
A) A sentença proferida pela Senhora Juiz do Tribunal a quo aplicou e interpretou correctamente as normas relativas à responsabilidade civil contratual e ao enriquecimento sem causa.
B) Não pode ser tido em conta no apuramento da indemnização a arbitrar ao Autor, por danos patrimoniais, o valor do motor encontrado, por o mesmo considerado isoladamente, não ter qualquer valor comercial e sobretudo por ainda não ter sido entregue ao Autor.
C) Não se verifica uma situação de enriquecimento sem causa, pois a mesma pressupõe um enriquecimento do Autor, baseado na recuperação e entrega do motor encontrado, o que até à presente data não se verificou, nem se sabe se algum dia se virá a verificar.
D) Atento os princípios orientadores da fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais, deve ser considerada equitativa a compensação de € 3.000,00 relativa aos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor- Recorrido.

Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir

São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que fundamentalmente importa decidir se:
- A sentença recorrida fez uma errada interpretação e aplicação das regras de direito no que concerne ao cálculo dos danos materiais: esse valor não deve abarcar o do motor do motociclo, que foi encontrado.
- O montante indemnizatório de € 3.000,00, a título de danos morais é excessivo face à gravidade da lesão e ao grau de culpa da ré recorrente, justificando-se que tal montante seja fixado em € 1.000,00.

II – FACTOS PROVADOS

1. O Autor é proprietário de uma viatura motorizada de marca YAMAHA modelo YZF 1000R, com a matrícula -- -- -- (Alínea A) da matéria de facto assente);
2. A Ré dedica-se no âmbito da sua actividade comercial à recolha de viaturas, lavagens, lubrificações e assistência automóvel (Alínea B) da matéria de facto assente);
3. O Autor, no decurso do ano de 2000, em data anterior a 6/3/2000, acordou com a Ré entregar-lhe o seu motociclo para que esta o guardasse na sua garagem, sempre que aquele lho entregasse, e o restituísse quando solicitado (Alínea C) da matéria de facto assente);
4. O Autor e a Ré acordaram que o prazo de duração da guarda motociclo seria feito por períodos mensais, com início em Março de 2000, renovável por iguais períodos de tempo, até que qualquer das partes comunicasse à outra não o pretender renovar (Alínea O) da matéria de facto assente);
5. Autor e Ré acordaram que aquele pagaria a esta pela guarda e vigilância do seu motociclo, a quantia mensal de Pte. 8.000$00 (Alínea E) da matéria de facto assente);
6. A entrega do motociclo era feita sem qualquer formalidade especial, limitando-se o A. a estacionar o seu veículo no lugar que lhe era destinado, sob a vigilância dos funcionários da garagem da Ré (Alínea F) da matéria de facto assente);
7. O Autor desde Março de 2000 até Dezembro de 2001 sempre pagou à Ré, a quantia mensal acordada de Pte. 8.000$00 (Alínea G) da matéria de facto assente);
8. Em 11/11/01 o Autor, por volta das 9 horas da manhã, retirou o seu motociclo da garagem (Alínea H) da matéria de facto assente);
9.Desde Março de 2000 até 14/11/2001, o Autor entregou continuamente na garagem da R. o seu veículo, ocupando o lugar de estacionamento nº 210 (Resposta ao quesito 1º da Base Instrutória);
10. Levando-o todas as semanas por diversas vezes e em todos os fins de semana e aí o voltando a guardar (Resposta ao quesito 20 da Base Instrutória);
11. O Autor, no mesmo dia 11/11/2001 - por volta das 13 horas - voltou à garagem da Ré e aí guardou o seu motociclo (Resposta ao quesito 3º da Base Instrutória);
12. Em 14/11/2001 o Autor deslocou-se até à garagem da Ré para levantar o seu motociclo (Resposta ao quesito 4º da Base Instrutória);
13. E quendo se dirigiu ao lugar nº 210 verificou que o seu motociclo não se encontrava no lugar de estacionamento que lhe estava reservado e onde o havia deixado em 11/11/2001 (Resposta ao quesito 5º da Base Instrutória);
14. Questionado o guarda da garagem que se encontrava de serviço, quanto ao paradeiro do motociclo, este não soube explicar o seu desaparecimento (Resposta ao quesito 6º da Base Instrutória);
15. Nessa mesma data, o Autor participou o desaparecimento do seu motociclo na divisão da Amadora do Comando Metropolitano da Polícia de Segurança Pública (Resposta ao quesito 7º da Base Instrutória);
16. Posteriormente contactado o sócio gerente da Ré o mesmo não soube esclarecer o Autor quanto ao desaparecimento do seu veículo (Resposta ao quesito 8º da Base Instrutória);
17. Por diversas vezes o Autor voltou a pedir esclarecimentos à Ré bem como o pagamento dos prejuízos causados, sendo que até à data a Ré nada disse (Resposta ao quesito 90 da Base Instrutória);
18. Em 15/4/2002 o Autor foi contactado pela GNR de Loures que lhe comunicou que o motor do seu motociclo havia sido encontrado numa garagem em Casal das Silveiras, Odivelas (Resposta ao quesito 10º da Base Instrutória);
19. Bem como o informou que havia fortes suspeitas de que o motociclo havia sido furtado para ser desmantelado e vendido a peças (Resposta ao quesito 11º da Base Instrutória);
20. Nesta sequência foi instaurado procedimento criminal, que se encontra em fase de inquérito e que corre os seus termos nos Serviços do MP de Loures sob o nº 214/02.7GELRS (Resposta ao quesito 12º da Base Instrutória);
21. O motociclo desaparecido era uma mota personalizada em perfeito estado de conservação que em Novembro de 2001 tinha o valor comercial base de € 4.500,00 a € 5.000,00 (Resposta ao quesito 13º da Base Instrutória);
22. O valor dos extras de personalização incluídos no motociclo do Autor era de € 1.212,27, a que correspondia:
- vidro carenagem Ermax, no valor de €129,69 (IVA incluído);
- Cava Roda traseira, no valor de €125,OO, IVA incluído;
- Amortecedor de direcção Ohlins, no valor de €350,00, IVA incluído;
- Escape MIG, no valor de €450,00, IVA incluído;
- Bagster depósito GIVI, no valor de €87,54, IVA incluído;
- Filtro de ar KN no valor de €70,04, IVA incluído (Resposta ao quesito 140 da Base Instrutória);
23. O Autor exerce duas actividades profissionais, sendo que das 8 h às 19 h desempenha funções de vendedor comercial de vinhos, na área da linha de Cascais, e das 20 h às 24 h exerce funções de chefe de vinhos num Reataurante em Paço de Arcos (Resposta ao quesito 150 da Base Instrutória);
24. A sua actividade profissional exige rapidez e mobilidade nas suas deslocações. razão pela qual utilizava frequentemente o seu motociclo para visitar clientes e para se deslocar com maior celeridade entre os dois empregos (Resposta ao quesito 16º da Base Instrutória);
25. Aos fins de semana o Autor participava habitualmente em concentrações de motas de grande cilindrada, deslocando-se por vezes a concentrações fora do perímetro urbano de Lisboa (Resposta ao quesito 17º da Base Instrutória);
26. Pelo facto de se ver privado do seu motociclo o A. sofreu desgosto e stress (Resposta ao quesito 20º da Base Instrutória);
27. A garagem em apreço possui guardas 24 horas semana (Resposta ao quesito 22º da Base Instrutória);
28. Sendo que qualquer veículo que entre ou saia da garagem passa pelo guarda que estiver de serviço e que se encontra na rampa de acesso da entrada principal em frente a uma televisão (Resposta ao quesito 23º da Base Instrutória);

III – O DIREITO

1. Do contrato de depósito
Em concreto, resulta provado que as partes celebraram entre si um contrato de depósito respeitante à guarda e recolha de uma motorizada propriedade do A., mediante a prestação de determinada quantia, a ser satisfeita mensalmente.
O contrato de depósito, uma das modalidade de contrato de prestação de serviços, encontra-se previsto nos arts. 1185º e segs. do CC, sendo certo que, in casu, estamos perante um contrato de depósito oneroso (cfr. Art. 1158º ex vi art. 1186º do CC) e que o A. sempre procedeu pontualmente ao pagamento mensal da quantia acordada.
Como decorre do disposto no art. 1187º do CC, o depositário está obrigado a guardar a coisa depositada, a avisar imediatamente o depositante quando saiba que algum perigo ameaça a coisa em que terceiro se arroga direitos em relação a ela, desde que tal facto seja desconhecido do depositante e a restituir a coisa com os seus frutos.
Neste tipo de contrato, está em causa a natureza infungível do objecto (ao contrário do que sucede no depósito bancário). De facto, um dos traços característicos do contrato de depósito é o da obrigação da restituição da coisa recebida em depósito quando exigida pelo depositante [1].
  Sucede que, entretanto o motociclo desapareceu do interior da garagem onde estava guardado, entre 11/11/2001, data em que o A. aí o deixou, e 14/11/2001, quando o A. se deslocou à garagem para  o levantar.
  Como ficou provado, o Autor, após ter tido conhecimento do desaparecimento do seu motociclo, procedeu à realização de todas as diligências que estavam ao seu alcance com vista à recuperação do mesmo, quer junto da Ré, quer das autoridades policiais, a quem também comunicou aquele desaparecimento.
  A Ré, apesar de várias vezes instada pelo Autor para proceder à reparação dos prejuízos causados com o desaparecimento da motorizada que se encontrava à sua guarda, nunca procedeu a qualquer pagamento.
  O certo é que, no contrato de depósito o depositário obriga-se a guardar a coisa entregue pelo depositante, no sentido de providenciar acerca da sua conservação material, isto é, mantê-la no estado em que foi recebida, defendendo-a dos perigos de subtracção, destruição ou dano.
  In casu, tendo sido celebrado entre as partes um contrato de depósito cujo objectivo imediato foi um motociclo, constata-se que a depositária não ilidiu a presunção de culpa, nos termos do artigo 799º nº 1 do Código Civil, tendo-se por culposo o seu incumprimento.
Não referindo a lei o critério de diligência com que deve ser guardada a coisa depositada, a questão tem de ser solucionada com o princípio geral fixado nos artigos 487º nº 2 e 799º n. 2 do Código Civil que atendem à diligência, em abstracto, do bom pai de família e não à culpa em concreto, ao grau normal ou habitual de diligência do agente ou do devedor.
Por isso, não tendo a aqui depositária ilidido a presunção de culpa no incumprimento, ou cumprimento defeituoso da obrigação de guarda e vigilância do motociclo, por forma a evitar o desaparecimento ocorrido no interior da garagem, constituiu-se na obrigação de indemnizar o depositante do prejuízo correspondente ao valor da coisa que estava à sua guarda [2].
O desaparecimento desta motorizada determinou, como ficou provado, directa e consequentemente, diversos prejuízos para o Autor.

2. Os Danos
A sentença recorrida, considerando que a Ré deve ser responsabilizada pelo pagamento ao A. do valor correspondente ao do motociclo desaparecido e que o seu valor comercial, à data do seu desaparecimento, se situava entre € 4.500,00 e € 5.000,00. Por isso, ao abrigo do disposto no art. 661º, nº 2 do CPC, condenou desde logo a Ré no pagamento da quantia de 4.500,00, ao qual deve acrescer o valor da diferença entre este e o valor mais alto e a liquidar em execução de sentença.
Determinou ainda que, tendo em atenção a condenação da Ré no pagamento correspondente ao valor do motociclo desaparecido da garagem, caso venha a ser entregue ao Autor o motor do motociclo que se encontra à ordem do processo de inquérito em curso, deve o A. fazer a sua entrega à Ré, sob pena de verificar-se uma situação de enriquecimento sem causa.
Entende, porém a Ré/Apelante que não deveria a sentença recorrida deixar de ter em consideração, para efeitos de apuramento do prejuízo material sofrido pelo A., o abatimento do valor correspondente ao motor apreendido, ao invés de determinar a entrega à Ré de um objecto que pertence ao A. Nessa medida, ao relegar para execução de sentença o prejuízo efectivamente sofrido, deveria ter-se ordenado que fosse considerado nesse apuramento final o valor do motor apreendido.

2.1. Dos danos patrimoniais/entrega do motor à Ré
O dano aparece definido, segundo as palavras do Prof. Vaz Serra [3], como todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos de carácter patrimonial ou não.
Para o Prof. Pereira Coelho, "por dano pode entender-se, o prejuízo real que o lesado sofreu in natura, em forma de destruição, subtracção ou deterioração de um certo bem corpóreo ou ideal" [4].
Rege, quanto a estes, como se sabe, em primeira linha, o princípio da reposição natural, expresso no art. 562º do CC. E, quando este não for possível, não for bastante ou não for idóneo (art. 566º nº 1) há que lançar mão da indemnização em dinheiro a fixar de acordo com a teoria da diferença (art. 566º nº 2), em que a indemnização tem como medida, em princípio, a diferença entre a situação patrimonial real do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a situação hipotética que teria, nessa data, se não tivesse ocorrido o facto lesivo gerador do dano.
O dano apresenta várias configurações, segundo a natureza dos bens jurídicos violados. Aquele que é susceptível de avaliação pecuniária, traduzido numa abstracta diminuição do património, designa-se por patrimonial. Aquele que afecta bens não patrimoniais (bens de personalidade) insusceptíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária e cuja reparação só pode alcançar-se por mera compensação, designa-se por não patrimonial.
Com profundas raízes no nosso ordenamento jurídico, o dano patrimonial desdobra-se em duas categorias (art.º 564º, n.º 1, do C. Civil) – o dano emergente ou positivo, caracterizado por uma perda ou desfalque de valores que já constituíram o património do lesado; o lucro ou frustrado, caracterizado pelo corte ou frustração no rendimento ou patrimonial, ou dito de uma maneira mais impressiva, que o lesado tinha, no momento da lesão; um direito ou ganho que se frustrou, ou melhor, a titularidade de uma situação jurídica que, mantendo-se, lhe daria direito a um ganho.
Os danos peticionados indemnizáveis são patrimoniais e não patrimoniais.

Tendo em consideração o acima exposto verifica-se que ficou provado que o motociclo do A. tinha ao tempo do seu desaparecimento, um valor que se situa entre 4.500€ e 5.000€.
Tem por isso o Apelado direito a ser indemnizado em resultado do cumprimento defeituoso da obrigação de guarda e vigilância do motociclo, pelos danos emergentes, isto é, pelo "prejuízo causado nos bens já existentes na titularidade do lesado à data da lesão" [5], sendo certo, de acordo com a matéria provada, esse prejuízo corresponde à perda total do motociclo (que desapareceu).
É certo que, entretanto, o motor do referido motociclo foi encontrado e está à ordem de processo crime (inquérito).
Porém desconhece-se:
- se e quando virá o motor a ser entregue ao A.
- se o mesmo tem algum valor comercial e/ou se o terá à data da eventual entrega.
O que se tem em vista apurar por meio da liquidação é o montante, o quantitativo ou a espécie da obrigação, ou, como diz Alberto dos Reis, “numa palavra, quanto deve o réu[6], visto que já está assente que este é obrigado a indemnizar. Está assente que o réu é devedor.
Para além de se desconhecer se o motor tem algum valor comercial, a verdade é que o A. só estará obrigado a entregar o motor à Ré, se o motor lhe vier a ser entregue - o que se desconhece – fazendo depender a liquidação de um acontecimento futuro e incerto.
Mas, para além disso, como se referiu, vigora o princípio da reposição natural, expresso no art. 562º do CC e só quando tal não for possível (art. 566º nº 1 CC) há que lançar mão da indemnização em dinheiro a fixar de acordo com a teoria da diferença (art. 566º nº 2), em que a indemnização tem como medida, em princípio, a diferença entre a situação patrimonial real do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a situação hipotética que teria, nessa data, se não tivesse ocorrido o facto lesivo gerador do dano.
Sendo assim, o A. tem direito a ser indemnizado pelo montante correspondente ao valor comercial do motociclo (que é diferente do valor das suas peças em separado). O A. tem direito a receber, não o valor de um motociclo sem motor e um motor, mas ao valor do motociclo, tal como este se encontrava quando desapareceu.
Por outro lado, a pretensão da Apelante, faria impender sobre o A. um ónus que efectivamente não pode recair sobre ele - o de diligenciar por obter o motor em causa e finalmente o de arranjar comprador para o mesmo – sendo certo que foi a Ré que incumpriu o contrato de depósito, que incumpriu o dever de cuidado e zelo na guarda do motociclo.
E se assim é, não pode ter-se em conta, para efeitos de liquidação do valor que a Apelante deve pagar ao A., qualquer hipotético abatimento decorrente do hipotético valor de um motor que hipoteticamente pode vir a ser entregue ao A.
Em conformidade não pode proceder, nesta parte, a Apelação.

2.2. Dos danos não patrimoniais
  Não questionando que no caso concreto existe a necessidade de assegurar a tutela do direito para o “desgosto” e o “stress” sofridos pelo A., entende a Apelante que a indemnização arbitrada, a título de danos não patrimoniais é excessiva, não devendo ultrapassar € 1.000,00.
Refere Fernando Pessoa Jorge [7], que a «lei não afirma expressamente que o prejuízo, para ser reparável, tenha de apresentar um mínimo de gravidade ou valor, mas tal conclusão é imposta pelo bom-senso e até pelo princípio da boa-fé: a exigência de reparação de um desses prejuízos só poderia explicar-se pelo propósito de vexar o lesante e, como tal, não merecia a tutela do direito».
  Assim, não merecem tutela os danos, pela sua diminuta gravidade, nem a tutela mediante responsabilidade civil nem outro tipo de tutela jurídica.
  Como bem refere Capelo de Sousa [8], existem «(...) prejuízos insignificantes ou de diminuto significado, cuja compensação pecuniária não se justifica, que todos devem suportar num contexto de adequação social, cuja ressarcibilidade estimularia uma exagerada mania de processar, e que em parte, são pressupostos  pela cada vez mais intensa interactiva vida social hodierna».
  Esse mínimo de gravidade só poderá apreciar-se no caso em concreto.
Seja como for, atendendo ao objecto do recurso, não se questiona a existência de danos morais, mas apenas o seu montante.
Quanto à indemnização dos danos não patrimoniais, esta não se destina a repor as coisas no estado anterior ao sinistro, mas tão só a dar ao lesado uma satisfação ou compensação pelo dano sofrido, proporcionando-lhe momentos de prazer e alegria que neutralizem, quanto possível, a intensidade da dor física ou psíquica [9].
O montante da indemnização deverá ser fixado equitativamente, tendo em atenção em cada caso o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias cuja influência se faz sentir (cfr. art.º 496º n.º 3 e art.º 494º do Código Civil).
Contudo, é sempre difícil determinar a indemnização justa uma vez que é impossível determinar a dor, o desgosto alheios. Tais dificuldades não permitem que se deixe de arbitrar uma indemnização. O objectivo essencial é proporcionar ao lesado uma compensação ou benefício de ordem material, a única possível, que lhe possibilite obter e desfrutar de alguns prazeres ou distracções da vida.
  A norma orientadora fornece elementos suficientes, ao julgador.
  A apreciação equitativa vem a significar que o julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente. Tem a liberdade de subtrair-se a esse enquadramento rígido e proferir a decisão que lhe parecer mais justa, isto é, o juiz funciona como um árbitro ao qual foi conferido o poder de julgar “ex aequo et bono”.
  A equidade funda-se, em suma, em razões de conveniência, de oportunidade e, principalmente, de justiça concreta.
  Do circunstancialismo fáctico apurado verifica-se que em consequência directa e necessária do desaparecimento do motociclo, o A. sofreu desgosto e stress, danos que não teriam existido sem o incumprimento contratual por banda da Ré.
  Tendo presentes estes parâmetros, no caso dos autos, os danos não patrimoniais sofridos pelo lesado podem considerar-se de pouca gravidade.
Os tribunais devem assumir uma verdadeira função pedagógica quando reparam o lesado em termos adequados aos danos não patrimoniais que sofrem. É tendo presente esta função pedagógica sem esquecer a pouca intensidade dos danos não patrimoniais sofridos pelo A. que se entende ser, efectivamente, excessiva a quantia em que a Ré foi condenada – 3.000,00 €.
Assim, merecendo, nesta parte, provimento o recurso, entende-se atribuir ao A. uma compensação monetária, que se crê como adequada e equilibrada, no montante de 1.500,00 €.

IV – DECISÃO

Termos em que se acorda, em conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré a título de danos não patrimoniais, na quantia de 3.000,00€, que em conformidade se substitui, pela condenação da Ré em 1.500,00€, a título de danos não patrimoniais, no mais se mantendo a sentença recorrida.

Custas em ambas as instâncias, por A. e Ré, na proporção dos respectivos decaímentos.

Lisboa, 29 de Janeiro de 2004.
Fátima Galante
Manuel Gonçalves
Urbano Dias
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[1] Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol II, 2ª edição, pág. 676.
[2] Neste sentido o Ac. RL de 20/02/2003 (Salvador da Costa), in www.dgsi.pt

[3] Cfr. BMJ. 84º-8.
[4] "Dano será, por exemplo, a perda ou deterioração de uma certa coisa, o dispêndio de uma certa soma em dinheiro para fazer face a uma despesa tornada necessária, o impedimento da aquisição de um determinado bem, a dor sofrida", in "O Problema da Causa virtual na Responsabilidade Civil”, pp. 250.
[5] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 8ª edição, Almedina, 1994, pag. 610.
[6] Alberto dos Reis, Processo de Execução, 1º vol., Coimbra Ed., 1943, pag. 470.

[7] Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Centro de Estudos Fiscais da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, Ministério da Finanças, 1972, p. 387.
[8] Fernando Pessoa Jorge, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora , 1995, p. 555.
[9] Vaz Serra, BMJ, 278º, p. 182.