Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10119/21.9T8SNT-A.L2-8
Relator: MARIA CARLOS DUARTE DO VALE CALHEIROS
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
CONTRADITÓRIO
EXAME PERICIAL
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (da responsabilidade da Relatora)
I - Na sequência da notificação dos documentos juntos com a contestação assistia à Embargante a faculdade de impugnar a letra ou a assinatura desses documentos nos termos previstos no artigo 444º do C.P.C., bem como de arguir a falta de autenticidade de documento presumido por lei como autêntico, a falsidade do documento, a subscrição de documento particular por pessoa que não sabia ou não podia ler sem a intervenção notarial a que se refere o artigo 373.º do Código Civil, a subtracção de documento particular assinado em branco e a inserção nele de declarações divergentes do ajustado com o signatário, nos termos previstos no artigo 446º do C.P.C., o que a Embargante no entanto não fez.
II - Teve assim a Embargante a possibilidade legal de exercer o contraditório relativamente aos documentos juntos pela Embargada e como tal o tribunal a quo ao considerá-los como meio de prova para formar a sua convicção relativamente a alguns dos factos que julgou provados não violou o princípio do contraditório, nem tão pouco proferiu decisão surpresa (artigos 3º, 413º, 415º e 444º a 449º, do C.P.C. ).
III - Da circunstância de um exame pericial à letra se revelar inconclusivo quanto à autoria da assinatura não se retira que a assinatura não tenha sido efectuada pelo alegado autor da mesma, tudo dependendo da demais prova produzida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Newcoffee - Indústria Torrefatora de Cafés, S.A. instaurou execução ordinária contra I. e P., dando à execução uma letra de câmbio, para deles obter o pagamento do valor nela aposto de €38.312,15, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, e respectivo imposto de selo, até efectivo e integral pagamento.
A executada I. deduziu oposição à execução, mediante embargos, requerendo a extinção da execução.
Para tanto alegou, em síntese, que a Exequente não apresentou a letra a pagamento, que dela não consta a indicação de relação causal subjacente pelo que não consubstancia título executivo, que o requerimento executivo é inepto por falta de alegação da causa de pedir, que a assinatura que consta da letra não foi realizada pelo seu punho, e que, caso a assinatura aí aposta seja sua, “desconhecia, por completo, que assinou uma letra (-) tanto que até aos dias de hoje não sabia o que era uma letra comercial/civil (-) nem tão pouco tinha visto, presencialmente, uma!”.
A Embargada contestou por impugnação, alegando ainda que a letra foi entregue em garantia de um contrato de compra e fornecimento de café que com ela celebrou.
Foi realizada audiência prévia, na qual foi desde logo proferida decisão quanto à alegada falta de título executivo por omissão de indicação de relação causal subjacente, quanto à invocada ineptidão do requerimento executivo por falta de alegação da causa de pedir, e quanto à alegação de que a embargante “desconhecia, por completo, que assinou uma letra (...) tanto que até aos dias de hoje não sabia o que era uma letra comercial/civil (...) nem tão pouco tinha visto, presencialmente, uma! ”, fixando-se o objeto do litígio e enunciando-se os temas de prova, e admitindo-se a prova apresentada pelas partes, após o que se realizou a audiência final, com observância do formalismo legal.
Realizada a audiência final foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar improcedente os presentes embargos e, em consequência, determinar o prosseguimento da execução a que os presentes autos se encontram apensos, e condenar a Embargante no pagamento de uma multa no valor de 10 UC por litigância de má fé.
Inconformada com a decisão a Embargante veio interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
Da decisão surpresa - impugnação dos documentos junto na contestação - omissão pronúncia - nulidade
1. A ora embargada intentou uma execução ordinária contra I. e P., dando à execução uma letra de câmbio, com vista a obter a cobrança do valor nela aposto, de €38.312,15, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, e respectivo imposto de selo, até efectivo e integral pagamento.
2. Citada, deduziu a ora embargante oposição à execução, mediante embargos, para tanto alegando, em síntese, que a exequente não apresentou a letra a pagamento, que dela não consta a indicação de relação causal subjacente, pelo que não consubstancia título executivo, que o requerimento executivo é inepto por falta de alegação da causa de pedir, que a assinatura que consta da letra não foi realizada pelo seu punho, e que, caso a assinatura aí aposta seja sua, "desconhecia, por completo, que assinou uma letra (...) tanto que até aos dias de hoje não sabia o que era uma letra comercial/civil (...) nem tão pouco tinha visto, presencialmente, uma!".
3. Recebidos os embargos, contestou a embargada pugnando pela sua improcedência, alegando que a executada bem sabe que a letra foi entregue em garantia de um contrato de compra e fornecimento de café que com ela celebrou, concluindo pelo pedido de condenação da mesma por litigância de má-fé, no pagamento de multa e de indemnização a seu favor. Procedeu à junção de vários documentos. A embargante impugnou os documentos.
4. Por sentença exarada a 10/07/2022 (referência 138704628) veio o tribunal "a quo" a indeferir a pretensão da recorrente, dando-se por não escrito, por tratar-se de um incidente que não admite articulados para além da oposição e contestação.
5. Foi proferido despacho saneador sentença que julgou os embargos improcedentes, determinando o prosseguimento da execução.
6. Interposto recurso da sentença pela embargante, foi a mesma anulada, por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa (referência 19823999).
7. Realizado exame pericial à assinatura realizada pelo punho da recorrente, foi o seu resultado "não conclusivo".
8. Não obstante o tribunal "a quo" ter desentranhado a impugnação dos documentos junto na contestação pela recorrida, por ser legalmente inadmissível, coarctou desta forma, o direito ao contraditório pela recorrente, decidindo que "(...) existe prova plena (...) fundamentando a sua decisão na análise desses mesmos documentos, não obstante ter fundamentado a sua decisão na lei quando "Os embargos de executado são o meio processual através do qual o executado exerce o contraditório na ação executiva (arts. 728. º a 734.'.
9. A recorrente não teve, desta forma, possibilidade de ser pronunciar sobre a validade, ou não, dos documentos juntos pela recorrida, sendo por isso uma decisão surpresa para a recorrente!
10. Assim sendo a sentença é nula, nulidade que expressamente se requer, conforme o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, porquanto o juiz deixou de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
11. De facto, a recorrente teve apenas oportunidade de se pronunciar, na sua petição de embargos sobre a validade da letra de câmbio.
Nunca se pode pronunciar sobre a validade dos documentos que agora servem de prova plena à sua condenação!
12. Ou seja, quanto á matéria dada como provada, relativa à genuidade da assinatura aposta na face anterior da letra de câmbio dada à execução, a perícia realizada não permitiu concluir que a mesma seja da autoria da embargante.
13. Porém, a sentença em crise é peremptória a afirmar, sem qualquer fundamentação de facto, que "(...) a exequente logrou provar, conforme lhe competia, que tal assinatura foi efectivamente aposta na letra pelo punho da embargante", juntando para o efeito o "print screen" dos vários documentos, junto pela exequente, em sede de contestação à oposição à exequente.
14. Dito de outra forma, o Tribunal "a quo" deu como provados documentos que foram apresentados fora do seu tempo, impedindo a executada de exercer plenamente o seu contraditório, tanto que o requerimento apresentado foi desentranhado com fundamento na sua inadmissibilidade legal.
15. No entanto vem agora aclamar por uma condenação com base em factos sobre os quais não existiu possibilidade de contraditório!
16. Contrariamente à fundamentação da decisão dos factos dados como provados na sentença em crise, mormente os documentos juntos pela exequente em sede de contestação, a mesma é nula, por violação do princípio do contraditório, nos termos do n.º 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil.
17. A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respectivo enquadramento jurídico, nulidade que expressamente se requer.
18. Assim sendo, dando como provado um facto, utilizando meios de prova sobre os quais não foi dado qualquer possibilidade para se exercer o contraditório, é violador do princípio do dever de audição prévia, sendo por isso, igualmente uma decisão surpresa para a recorrente.
19. Deste modo, por o Tribunal "a quo" não ter ordenado a citação da executada para deduzir embargos à execução, sobre os documentos juntos com a contestação, coarctou esta da possibilidade de uso do meio de defesa através da oposição à execução.
20. Nem se poderá vir dizer que a executada teve oportunidade de se pronunciar sobre a falsidade dos documentos, após a notificação da sua junção na contestação, pois o meio próprio era a petição inicial da oposição à execução, tendo a mesma resposta oferecida à contestação pela executada sido mandada desentranhar pelo Tribunal "a quo".
21. Face ao exposto, como questão prévia ao presente recurso, é entendimento da recorrente que a douta sentença violou o disposto no n.º 3 do Código de Processo Civil, integrando a violação do princípio do contraditório o que, salvo melhor opinião consubstancia a prática de uma nulidade processual o que influiu no exame da decisão da causa, por tratar-se de uma decisão surpresa.
22. Na verdade, dispõe o nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil que "o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem".
23. Assim, antes de proferir a decisão o juiz deve conceder às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre todas as questões, ainda que de direito e de conhecimento oficioso, sendo proibidas as decisões surpresas, nomeadamente a possibilidade da recorrente exercer o pleno contraditório dos documentos junto na contestação pela recorrida e tendo esta defesa deduzida na resposta à contestação dos embargos, resposta essa não admitida, ficou a recorrente privada do direito à defesa e sendo, por isso, nulo o processamento dos embargos, devendo ser repetido o prazo para a dedução dos embargos (neste sentido ver Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/01/2004, no âmbito do processo 9073/2003-8, in www.dgsi.pt.)
Da impugnação da matéria de facto - da prova plena - não falsidade da assinatura
24. No caso concreto, não foi validamente produzida mais nenhum meio de prova, para além da prova pericial, no que concerne à validade da letra de câmbio.
25. Os documentos juntos rela recorrida na sua contestação deverão ser declarados nulos, por omissão do princípio do contraditório evitando-se desta forma, decisões surpresa.
26. Assim à luz das regras de experiência comum e dos princípios da lógica, deveria ter-se entendido que a exequente não fez prova bastante e suficiente, conforme lhe competia, de acordo com as regras da repartição do ónus da prova, nos termos do disposto no artigo 374º, n.º 2 do Código Civil — que a assinatura suja autoria era imputada à embargante tenha sido, efectivamente, aposta no verso da livrança pelo seu punho.
27. No caso concreto, sendo nula a junção dos documentos em sede de contestação por falta de contraditório, o tribunal "a quo" inverteu as conclusões da prova pericial ao dar como provado que "(...) discutida a assinatura foi efectivamente aposta na letra pelo punho da embargante".
28. Mais, a sentença chega ao ponto de enfermar num erro grosseiro na sua elaboração ao aludir que "A testemunha inquirida, P., nada soube esclarecer quanto â matéria dos autos", porquanto o Sr. P. é parte no processo e não foi inquirido, desconhecendo-se tão pouco o seu paradeiro
29. Assim, andou mal o tribunal "a quo" ao dar como provado um facto, contestado pela prova pericial e totalmente inexistente em matéria de prova testemunha ou declarações de parte ou depoimento de parte, assente apenas em meras cópias de documentos
30. Como a recorrente não arguiu a falsidade dos documentos junto na contestação, existe prova plena. No entanto, mesmo que a recorrente tivesse arguido tal falsidade, a mesma tinha sido desentranhada, por inadmissibilidade legal. Como veio a ocorrer.
31. Ao contrário, se a recorrente tivesse alegado a falsidade dos documentos no requerimento considerado intempestivo pelo Tribunal "a quo", talvez o mesmo douto Tribunal tivesse considerado como não extemporâneo as alegações da recorrente (Cfr. despacho com a referência 138704628), o que não faz sentido algum!
32. Dito de outra forma, a decisão do Tribunal "a quo" ao admitir os documentos como prova plena, não dando possibilidade à recorrente de os impugnar, por ser legalmente inadmissível, tem como pressuposto uma decisão surpresa e uma nulidade insanável: a falta de contraditório, sem por isso nula, já que a não observância do princípio do contraditório, no sentido de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões que importe conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constituiu uma nulidade processual nos termos do artigo 195º 1 do Código de Processo Civil.
33. Sendo certo que, o resultado da prova pericial veio como "não conclusivo", acrescentando o facto de inexistir mais prova produzida, a consequência jurídica nunca poderia acarretar, nos termos previstos no artigo 374º, n.º 1, parte final do Código Civil, como reconhecimento pleno da autenticidade daquela assinatura.
34. Assim, incumbindo o ónus da prova da veracidade da assinatura à recorrida, nos termos do artigo 374º, n.º 2 do Código Civil, e atenta à inexistência e insuficiência da prova produzida, o juiz deveria ter decidido contra a parte onerada com a prova do facto.
35. Significando, salvo douta opinião em contrário, que deverá ser alterada a conclusão da fundamentação para: não ficou provado que a assinatura aposta na face anterior da letra de câmbio dada à execução é do punho da executada.
Da falta de apresentação da letra a pagamento e do seu preenchimento abusivo
36. Por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa (referência 19823999), o Tribunal "a quo" foi obrigado a admitir a prova requerida pela recorrente, tendo sido identificado um número do Cartão do Cidadão, como pertença de um tal Sr. L., constante do Aviso de Recepção n.º RH660617834RH.
37. Inquirida a testemunha, a mesma afirmou, entre outras situações, que desconhecia por completo a recorrente.
38. Posto isto, a sentença em crise deu, e bem, como não provado que a "(...) exequente tenha apresentado a letra a pagamento (...)".
39. No entanto, andou mal ao concluir pelo não deferimento da oposição à execução e, consequentemente, pela absolvição da executada.
40. Caso não se entenda que os documentos juntos na contestação são falsos, a sentença recorrida sofre dos vícios apontados na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil: O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
41. Sendo a letra dada à execução e tendo sido dado como não provada a sua apresentação, resulta daqui que, a falta de pagamento da letra, por parte da aceitante, e que o seu portador exequente não lhe haja dado efectivo e eficaz conhecimento desse facto, será de concluir que o portador perdeu os seus direitos de acção, tanto por falta de pagamento como por falta de aceite
42. Não valendo a letra como título de crédito, mas como mero quirógrafo e não tendo a exequente alegado qualquer relação subjacente, é o próprio requerimento executivo nulo, por falta de causa de pedir, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 186º, n.º 2, alínea a) e 724º, n.º 1 alínea e), ambos do Código de Processo Civil.
43. A ineptidão do requerimento executivo, por falta de causa de pedir, é de conhecimento oficioso, nos termos do disposto nos artigos 196º, 200º, e 734º, todos do Código de Processo Civil.
44. Mais, num dos documentos (n.º 5) junto pela exequente em sede de contestação aos embargos, no seu ponto II pode ler-se que "o seu vencimento ocorrerá no termo do prazo concedido pela CAFFECEL — Indústria Torrefactora de Cafés, S.A., em carta que esta enviará sob registo e com A.R. ao aceitante, quando entenda necessário, reclamando o pagamento do crédito de que estão seja titular" (doc. 5).
45. Ou seja, tendo sido dado como não provado a apresentação da letra a pagamento, ocorreu o seu preenchimento abusivo, porquanto não foi reclamado o pagamento do crédito, seus montantes, valores em dívida e momento do vencimento da letra, como aliás era decorrente das próprias cláusulas contratuais!
46. O subsequente preenchimento do título, a ocorrer antes sempre da sua apresentação a pagamento, deve ser feito, naturalmente, de harmonia com o convencionado, sob pena de violação ou desrespeito do pacto, gerador do que se designa por preenchimento abusivo.
47. Dito de outra forma, numa execução fundada em título de crédito e sendo a execução instaurada pelo beneficiário de uma letra subscrita e avalizada em branco, e tendo o aceitante intervindo na celebração do pacto de preenchimento, é-lhe possível opor ao beneficiário a excepção material de preenchimento abusivo do título.
48. Aliás este entendimento é também acolhido prevalentemente pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (Cfr. os acórdãos do STJ de 6 de Março de 2007 — 07 A205 — de 14 de Dezembro de2006 — 06 A2589, e de 22.2.2011, in www.dgsi.pt).
49. Perante a clareza do Tribunal "a quo" em dar como provado a assinatura da embargante na letra de câmbio, não se compreende a ininteligibilidade perante a violação do pacto de preenchimento perante a não apresentação da letra a pagamento, violando-se o acordado efectivamente entre as partes.
50. Inexistindo comunicação ao aceitante, por violação do pacto de preenchimento, existe abuso de direito, quer do acto resolutivo, quer do acto interpelativo, sendo a consequência traduzida na circunstância das livranças não poderem ser preenchidas e, tendo-o sido, que ocorra preenchimento abusivo e que os títulos sejam inexequíveis relativamente ao subscritor, devendo os embargos ser declarados procedentes e a execução ser declarada extinta.
51. A nulidade da sentença prevista na alínea c), do n.º 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier a ser expresso, nulidade que expressamente se invoca.
Da litigância de má-fé pela ora recorrente
52. O Tribunal "a quo" decidiu, entre outras situações que "(...) a embargante não arguiu a falsidade do "Contrato de Compra e Fornecimento" e dos documentos contemporâneos da sua celebração que foram juntos com a contestação (...)exequente logrou provar que a assinatura foi efectivamente aposta na letra pelo punho da embargante (...) existe por isso prova plena (...) bem sabendo que para o efeito alegava factos que bem sabia serem falsos (...) consubstanciando-se na demora processual decorrente da tramitação dos embargos, na oneração do Estado com o custo de uma perícia que não pagou em virtude do apoio judiciário de que beneficia, e no trabalho que deu ao Tribunal, ocupado que esteve em diligências processuais e a decidir os presentes embargos, manifestamente improcedentes, quanto tem imensos processos que reclamam a sua atenção e onde se discutem verdadeiros litígios não poderá de deixar de ser condenada como litigante de má-fé (...) na multa de 10 UC'.
53. Com o devido respeito que é muito, a recorrente não pode ser impedida de exercer o contraditório sobre o conteúdo dos documentos apresentados na contestação da ora recorrida, por ser legalmente inadmissível, e em sede de sentença ser condenado como litigante de má-fé, com fundamento na prova exarados desses mesmos documentos!
54. Tanto mais que, em sede de produção de prova, a recorrente impugnou o documento apresentado em sede de petição executiva, e o relatório pericial à sua assinatura, aposta no título executivo, foi dado como "não conclusivo".
55. A recorrente apresentou a sua alegação convencida do seu direito, numa análise que, efectuado o julgamento, parcialmente foi dado como comprovado, e não com o intuito de atrasar os processos que reclamam a atenção do Tribunal "a quo" onde "(...) se reclamam verdadeiros litígios".
55. Entende a recorrente que, tudo ponderado, que os elementos que se descortinam nos autos não permitem concluir pela existência de uma conduta dolosa ou maliciosa, susceptível de se enquadrar na definição de litigância de má-fé.
56. Pelo exposto, e salvo douta opinião dos ilustres Venerandos em sentido contrário, inexistem elementos de facto para que se conclua que a recorrente litigou com má-fé, pelo que se não se poderá determinar a sua condenação enquanto tal.
57. Andou por isso mal a sentença em crise ao condenar a recorrente, em multa, por litigância de má-fé, em 10 UC's.
Pelo exposto, a sentença em crise violou, entre outras, as normas jurídicas dos artigos 3º, n.º 3, 154º, 186º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) e n.º 3, 196º, n.º 1, 547º, 576º, n.º 2, 577º, alínea b), 578º, 607º, n.º 3, 608º, n.º 2, 615º, n.º 1, alínea d), 724º, n.º 3, alínea e) e 725º, n.º 1, alínea d), todos do Código de Processo Civil, bem como o disposto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, pelo que, consequentemente, deverá ser revogada e alterada por outra que dê por procedente os embargos da executada ou, alternativa, permita a tutela jurisdicional efectiva do contraditório face aos documentos junto, pelo exequente, na contestação.
A Recorida não apresentou contra-alegações.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
II – OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões formuladas pelo Recorrente na motivação do recurso em apreciação, estando vedado a este Tribunal conhecer de questões aí não contempladas, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se impõe (artigos 635º, nº 2, 639º, nº1 e nº 2, 663º, nº2 e 608º, nº 2, do C.P.C.)
Deste modo, e considerando as conclusões do recurso interposto, as questões que cumpre apreciar são as seguintes:
- ineptidão do requerimento executivo;
- nulidade por violação do princípio do contraditório;
- nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão;
- impugnação da decisão de facto;
- da falta de apresentação da letra a pagamento e do preenchimento abusivo da letra;
- da condenação como litigante de má-fé.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A)
O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1- Em 15.12.2003, a Caffècel Industria Torrefactora de Cafés, S.A. celebrou com a embargante I. o “Contrato de Compra e Fornecimento” a que foi atribuído o N.º 2003/219 (cuja cópia foi junta com a contestação como Doc. 1 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido), através do qual se obrigou a fornecer a esta, diretamente, ou através de distribuidores por si designados, a quantidade mínima mensal de 50kg de café, lote “BB”, obrigando-se a embargante a comprar àquela essa quantidade mínima de café, até que fosse atingido o total de 3.000kg, para ser revendido no estabelecimento comercial de venda a retalho de bebidas, café e outros produtos alimentares, denominado “CC”, que a embargante explorava na...;
2- Nos termos desse “Contrato de Compra e Fornecimento”, a Caffècel – Indústria Torrefactora de Cafés, S.A. entregou à embargante a quantia de €2.800,00, tendo esta assinado o seguinte documento, que foi junto com a contestação como Doc. 2:
DECLARAÇÃO
A abaixo assinada I.,..., c.f.nº **********, natural da freguesia e concelho de..., residente em..., declara que nesta data recebeu da firma "Caffècel Industria Torrefactora dc Cafés, S.A.", com sede em Carrazedo, Refojos, concelho de Cabeceiras de Basto, pessoa colectiva nº..., a quantia de 2800 (dois mil e oitocentos Euros ), IVA incluído, por força do Contrato de Compra e Fornecimento N.º 2003/219, celebrado entre ambas as partes em 15-12-03.
Paredes, 15 dc Dezembro de 2003
2- A embargante I. assinou também o seguinte documento, que foi junto com a contestação como Doc. 3:
DECLARAÇÃO
A abaixo assinada I.,..., c.f.nº *********, natural da freguesia e concelho de..., residente cm..., declara para os devidos e legais efeitos que, após analise da minuta do contrato de Compra e Fornecimento que lhes foi fornecida pela firma Caffecel S.A., a qual depois de assinada fica a fazer parte integrante desta declaração, autoriza que o referido contrato seja redigido nos mesmos termos, concordando com todas as clausulas insertas no mesmo, as quais lhe foram devidamente explicadas, encontrando-se deste modo interessada em proceder á assinatura do mesmo.
..., 19 de Novembro de 2003
4- Para garantia do cumprimento das obrigações a que a embargante se vinculou através daquele “Contrato de Compra e Fornecimento”, foi entregue à Caffècel – Industria Torrefactora de Cafés, S.A. a “letra” n.º...039, em branco, apenas com a assinatura da embargante no lugar destinado ao “Aceite”, e com a assinatura do executado P. aposta no verso, sob a expressão “Dou o meu aval à aceitante”;
5- Tendo a embargante e o executado P. assinado o seguinte documento, que foi junto com a contestação como Doc. 5:
A abaixo assinada, I.,..., c. f nº *********, natural da freguesia e concelho de..., residente em..., na qualidade de aceitante, e P.,..., c. f nº *********, natural da freguesia de santa Justa, concelho de Lisboa, residente em..., na qualidade de avalista, figuram como intervenientes numa letra comercial em branco entregue nesta data na Empresa " Caffécel - Indústria Torrefactora de Cafés, S. A. ", sociedade anónima com sede no lugar de Canudo, freguesia de Refojos, concelho de Cabeceiras de Basto, pessoa colectiva nº..., matriculada na... sob o nº..., como caução de todos os fornecimentos por esta efectuados ao aceitante bem como para garantia do cumprimento do Contrato de Compra e Fornecimento nº 2003/19 celebrado entre ambas as partes em 15 de Dezembro de 2003.
Pela Presente vem expressamente declarar que autorizam a Caffécel - Indústria Torrefactora de Cafés, S. A. a proceder ao completo preenchimento da letra e apresentá-la a pagamento ou desconta-la, ficando desde já definido que:
I - O seu montante será o que resultar do capital em divida, relativo a fornecimentos anteriores ou posteriores a esta data, acrescido dos juros de mora vencidos e não pagos dou do valor em debito resultante de incumprimento do contrato supra referido.
II - O seu vencimento ocorrerá no termo do prazo concedido pela Caffécel - indústria Torrefactora de Cafés, S. A., em carta que esta enviará sob registo e com A. R ao aceitante, quando entenda necessário, reclamando o pagamento do crédito de que então seja titular.
III - Para dirimir os litígios emergentes da presente letra é competente o foro da comarca de Cabeceiras de Basto, com expressa renuncia a qualquer outro, considerando-se as partes domiciliadas, para efeitos de citação ou notificação. nas mondas supra referidas.
Os abaixo assinados declaram ainda que têm perfeito conhecimento das condições dos fornecimentos e pagamento dos mesmos, atrás referidos, bem como das consequências resultantes de eventual incumprimento do contrato em causa, que reconhecem na sua plenitude, ... 2003/12/15
6- Em 31.12.2015, a exequente Newcoffee - Indústria Torrefatora de Cafés, S.A. incorporou, por fusão, a Caffècel – Indústria Torrefactora de Cafés, S.A. [Insc. 21 - AP. 7/...0...51231:37:33 UTC - FUSÃO(ONLINE)];
7- A exequente Newcoffee - Indústria Torrefatora de Cafés, S.A. procedeu ao preenchimento da “letra”, apondo-lhe a “data de emissão” de 15.12.2003, o “vencimento” em 14.06.2021, e a importância de €38.312,45;
8- Em 25.06.2021, a Newcoffee - Indústria Torrefatora de Cafés, S.A. intentou a execução ordinária a que os presentes autos se mostram apensos, dando à execução aquela “letra”, onde figura como “sacador”, visando obter a cobrança da quantia nela inscrita, acrescida de juros moratórios e respetivo imposto de selo;
9- A embargante bem sabia que a assinatura cuja autoria lhe é imputada, havia sido aposta na “letra” pelo seu punho, em garantia do cumprimento do “Contrato de Compra e Fornecimento” que celebrou com a Caffècel – Industria Torrefactora de Cafés, S.A., tendo deduzido a presente oposição com o objetivo de tentar eximir-se ao pagamento do valor reclamado, que bem sabe ser devido, ou de pelo menos ver protelado ao máximo o seu pagamento.
B)
O Tribunal a quo julgou não provado os seguintes factos:
a. A Exequente apresentou a letra dada à execução a pagamento.
b. A Exequente remeteu à aqui Embargante a carta de resolução que juntou com a contestação.
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Ineptidão do requerimento executivo
Veio a Recorrente em sede de recurso invocar a ineptidão do requerimento executivo por falta de causa de pedir, estribando-se na circunstância de neste requerimento a Exequente não ter alegado a relação subjacente à letra dada à execução.
Sucede que a ineptidão do requerimento executivo, que aliás fora invocada pela Recorrente na petição inicial de embargos, foi apreciada no âmbito do despacho saneador proferido a 28.6.2023.
A esse respeito decidiu o tribunal de 1ª instância:
“Alegou também a executada que o requerimento executivo é inepto por falta de alegação da causa de pedir.
Quanto a esta matéria, resulta do disposto no art.º 724.º, n.º 1, al. e), que, no requerimento executivo, dirigido ao tribunal, o exequente, para além do mais, deve expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo.
A omissão desta obrigação acarreta a recusa do requerimento por parte do agente de execução ou o seu ulterior indeferimento liminar ou rejeição oficiosa, caso o agente de execução não o tenha recusado (arts. 725.º, n.º 1, al. c), 726.º, n.º 1, al. b) e 734.º).
Ocorre que, conforme tem vindo a ser entendido pela jurisprudência maioritária, se a obrigação exequenda for abstracta, como sucede nos títulos de crédito, a causa de pedir da acção executiva é a relação cambiária documentada no título, sendo o título executivo suficiente para fundamentar a execução, mesmo que dele não conste qualquer causa debendi. Já se a obrigação exequenda for uma obrigação causal, a causa de pedir da acção executiva são os factos constitutivos da obrigação, exigindo-se neste caso sempre a alegação da causa debendi (cfr. Acórdão TRL, de 12.07.2006, Proc. 6554/2005-7, disponível in www.dgsi.pt).
No caso, o documento dado à execução é uma letra de câmbio, que contem todos os requisitos essenciais previstos no art.º 1.º da LULL.
E, conforme já se referiu, reveste, enquanto título de crédito, entre outros, os caracteres da literalidade, da abstracção e da autonomia, segundo os quais, o título vale, necessariamente, pelo que nele está escrito e a obrigação cambiária, que nele se incorpora, é independente da relação jurídica subjacente.
Assim, encontrando-se, no caso, o direito de crédito titulado por uma letra, a exequente só teria de apresentar esse título de crédito, uma vez que o mesmo incorpora a relação cambiária que constitui a causa de pedir do pedido executivo, não lhe sendo exigível que alegasse os factos relativos à relação imediata subjacente à emissão daquele título.
Não ocorre por isso a invocada ineptidão. “
Ora a Embargante não recorre desse despacho, e como tal formou-se caso julgado formal sobre essa questão que, por conseguinte, não pode voltar a ser apreciada no âmbito da presente causa (artigo 620º do C.P.C.).
Improcede assim nesta parte o recurso.
Nulidade por violação do princípio do contraditório
A Recorrente veio arguir a violação do princípio do contraditório, que sustenta consubstanciar nulidade processual que influiu no exame e decisão da causa, e simultaneamente nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia.
Para tanto alega que tendo a Recorrida juntado com a sua contestação documentos a Embargante não teve possibilidade de exercer o contraditório sobre esses documentos, e de se pronunciar sobre a validade dos mesmos, e como tal o tribunal a quo ao decidir dar como provados factos utilizando meios de prova sobre os quais não lhe foi dada possibilidade de exercer o contraditório proferiu uma decisão surpresa.
Importa desde logo aferir se a invocada nulidade consubstancia uma nulidade da sentença que integre a previsão do artigo 615º, nº 1, do C.P.C., ou se antes configura uma nulidade processual, à qual é aplicável o regime previsto no artigo 195º, nº 1, do C.P.C..
Efectivamente “não há também que confundir nulidades da sentença (errores in judicando) com nulidades processuais (errores in procedendo)”. (Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume I, 2010., pág. 517)
Assim “ distinguem-se as nulidades de processo das nulidades da sentença, porquanto, às primeiras, subjazem desvios ao formalismo processual prescrito na lei, quer por se praticar um acto proibido, quer por se omitir um acto prescrito na lei, quer por se realizar um acto imposto ou permitido por lei mas sem o formalismo requerido, enquanto que as segundas se traduzem na violação da lei processual por parte do juiz (ou do tribunal)prolator de alguma decisão “.(Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 3ª ed., pág. 449 )
Deste modo as nulidades da sentença “respeitam a vícios de conteúdo “, ao passo que “o vício gerador de nulidade do art.º 195º respeita à própria existência do acto ou às suas formalidades”. (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume1º, 4ª ed., pág. 404)
Com efeito, “ uma coisa é a nulidade processual, por exemplo a omissão de um acto que a lei prescreva, relacionada com um acto de sequência processual, e por isso um vício atinente à sua existência, outra bem diferente é uma nulidade da sentença ou despacho, e por isso um vício de conteúdo do acto, um vício referente aos limites, tão pouco se confundindo a dita nulidade com um erro de julgamento, que se caracteriza por um erro de conteúdo “. (Acórdão da Relação de Coimbra de 3.5.2021, rel. João Moreira do Carmo, disponível em www.dgsi.pt)
Apenas quando foi omitida a realização de uma formalidade essencial, que influiu na decisão da causa, e “ que inquinou de nulidade a sentença proferida por ter decidido de questão de que não podia conhecer e apenas impugnável por via do competente recurso” o vício configurará uma das nulidade da sentença prevista no artigo 615º, nº 1, do C.P.C..(Acórdão da Relação de Lisboa de 8.2.2018,rel. Cristina Neves, disponível em www.dgsi.pt ; no mesmo sentido ver Acórdãos da Relação de Guimarães de 7.4.2022, rel. Paulo Reis, e jurisprudência aí citada e da Relacção de Évora de 17.6.2021, rel. José Lúcio, disponíveis em www.dgsi.pt)
Analisando o caso em análise verifica-se que não foi omitida nenhuma formalidade legalmente prescrita, nem tão pouco foi violado o princípio do contraditório pelo tribunal a quo.
Efectivamente na sequência da notificação dos documentos juntos com a contestação assistia à Embargante a faculdade de impugnar a letra ou a assinatura desses documentos nos termos previstos no artigo 444º do C.P.C., bem como de arguir a falta de autenticidade de documento presumido por lei como autêntico, a falsidade do documento, a subscrição de documento particular por pessoa que não sabia ou não podia ler sem a intervenção notarial a que se refere o artigo 373.º do Código Civil, a subtracção de documento particular assinado em branco e a inserção nele de declarações divergentes do ajustado com o signatário, nos termos previstos no artigo 446º do C.P.C., o que a Embargante no entanto não fez.
Teve assim a Embargante a possibilidade legal de exercer o contraditório relativamente aos documentos juntos pela Embargada e como tal o tribunal a quo ao considerá-los como meio de prova para formar a sua convicção relativamente a alguns dos factos que julgou provados não violou o princípio do contraditório, nem tão pouco proferiu decisão surpresa (artigos 3º, 413º, 415º e 444º a 449º, do C.P.C. ).
Conforme decidido pelo Acórdão do S.T.J. de 8.9.2020, “ só estaremos perante uma decisão surpresa quando, a mesma, comporte uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, quando não era exigível que a houvessem perspectivado no processo”.(rel. Jorge Dias, disponível em www.dgsi.pt)
Como tal, “se estamos perante uma questão relativamente à qual era exigível, no quadro jurídico processual susceptível de ser aplicado à causa, que a parte contasse com a respectiva apreciação, aí já não estamos perante uma decisão surpresa “. (Acórdão da Relação de Lisboa de 20.6.2024, rel. Jorge Almeida Esteves, disponível em www.dgsi.pt)
Assim sucede no caso em apreço, em que a Recorrente, face à junção de documentos por si assinados, reconhecendo a realidade de factos que a desfavorecem, e que não impugnou nos termos previstos nos artigos 444º e 446º do C.P.C., tinha a obrigação de prever a sua utilização como meio de prova de factos invocados em de sede de embargos.
Por outro lado, o que o que foi rejeitado por despacho proferido a 10.7.2022 foi a resposta à contestação apresentada pela Recorrente, não podendo a decisão aí exarada, que a Embargante nem sequer impugnou por via de recurso, justificar a invocação da violação do princípio do contraditório relativamente aos documentos apresentados com a contestação.
Improcede nesta parte o recurso.
Nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão
Veio a Recorrente arguir a nulidade da sentença recorrida por contradição, sustentando que tendo sido dado como não provada a apresentação da letra a pagamento se impunha concluir que a Exequente perdeu o seu direito de accionar essa letra, fazendo apelo ao disposto na alínea c) do nº 1 artigo 615º do C.P.C..
Sentença nula é aquela que padece de algum dos vícios taxativamente enumerados no artigo 615º, nº 1, do C.P.C.., que engloba nas alíneas b) e c) “vícios de estrutura “, e nas alíneas d) e e) “vícios de limites (de pronúncia ou de objecto)”. (Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 3ª ed., pág. 451)
Conforme decidido pelo Acórdão do S.T.J. de 3.3.2021, é “ desde há muito, entendimento pacífico, que as nulidades da decisão não incluem o erro de julgamento seja de facto ou de direito[1]: as nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal[2]; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei[3], consiste num desvio à realidade factual [nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma] ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.” (rel. Leonor Cruz Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt)
Deste modo “o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete um erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afectam o fundo ou o efeito da decisão; os segundos são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua actividade.” (Acórdão do S.T.J. de 3.3.2021, rel. Leonor Cruz Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt)
Dispõe a alínea c) do nº 1 artigo 615º do C.P.C., que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A nulidade “ ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final “, tratando-se de “ situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente “.(Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 738 )
Fazendo-se apelo ao decidido pelo Acórdão da Relação de Guimarães de 2.11.2017, “trata-se, pois, de a conclusão decisória decorrer logicamente das respectivas premissas argumentativas. Assim sendo, existirá violação das regras necessárias à construção lógica da sentença quando os seus fundamentos conduzam logicamente a conclusão oposta ou diferente da que no mesmo resulta enunciada”. (rel. Barroca Penha, disponível em www.dgsi.pt )
Não se confunde assim a nulidade prevista na alínea c), do artigo 615º do C.P.C. “ com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção da hipótese concreta na correspondente fattispecie ou previsão normativa abstracta, vício este só sindicável em sede de recurso jurisdicional “, (Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol, II, 3ª ed, pág.453)
Ora a sentença recorrida não enferma da invocada nulidade, dela não emergindo qualquer contradição entre os respectivos fundamentos e a decisão aí exarada.
Pelo contrário, o que sobressai das conclusões do recurso é que a Recorrente discorda da decisão impugnada, cujo teor entendeu sem margem para dúvidas, estribando-se para o efeito no erro de direito que aponta ao tribunal a quo.
Improcede assim nesta parte o recurso.
Impugnação da decisão de facto
Insurge-se a Recorrente contra a decisão do tribunal a quo de dar como provado que ela assinou a letra dada à execução (ponto 4 dos factos provados), sustentando que não foi feita prova desse facto, e requerendo a revogação da sentença recorrida no sentido de esse facto ser julgado não provado.
Para fundamentar a sua pretensão recursória alega que os documentos juntos com a contestação não podem ser considerados pelo tribunal por violação do princípio do contraditório, e que por conseguinte, não tendo a prova pericial sido conclusiva e inexistindo outra prova desse facto, impõe-se concluir pela inexistência e insuficiência da prova produzida para demonstrar o facto em causa, cujo ónus da prova recaía sobre a Embargada.
A este propósito decidiu o tribunal a quo:
“A convicção do Tribunal quanto aos factos considerados provados fundou-se na análise do teor da letra de câmbio junta ao processo principal, dos documentos juntos com a contestação como Docs. 1, 2, 3 e 5, e da certidão permanente da exequente a que se acedeu eletronicamente.
Impugnou a embargante a genuinidade da assinatura aposta na letra de câmbio dada à execução, cuja autoria lhe era imputada.
Realizado exame pericial a essa assinatura, a mesma foi inconclusiva, conforme do respetivo relatório pericial consta.
Porém, a embargante não arguiu a falsidade do “Contrato de Compra e Fornecimento” e dos documentos contemporâneos da sua celebração que foram juntos com a contestação, por si assinados, e que contêm o reconhecimento de ter recebido a quantia de €2.800,00 a que se alude naquele contrato, de concordância com todas as suas cláusulas, e de ter também assinado e entregue à Caffècel – Industria Torrefactora de Cafés, S.A., entretanto integrada na exequente, a letra de câmbio que foi dada à execução, em garantia do cumprimento do “Contrato de Compra e Fornecimento” que celebrou com aquela sociedade, autorizando-a a proceder ao respetivo preenchimento.
Existe por isso prova plena (arts. 374.0 e 376.0 do Código Civil, e 446.0 do Código de Processo Civil) de que a letra de câmbio foi efetivamente assinada pela embargante e entregue à Caffècel – Industria Torrefactora de Cafés, S.A. para garantir o cumprimento das obrigações que para si decorriam da celebração do “Contrato de Compra e Fornecimento” de café, que se destinava a ser revendido no estabelecimento comercial de venda a retalho de bebidas, café e outros produtos alimentares, denominado “...”, que a embargante explorava. “
Considerando o acima expendido quanto à não verificação de violação do princípio do contraditório nada obsta que os documentos juntos com a contestação sejam considerados meios de prova.
Ora não tendo a Embargante arguido a falsidade da assinatura aposta nos documentos referenciados pelo tribunal a quo na motivação da decisão de facto “ considera-se admitida, por ausência de impugnação, de forma certa e inatacável, a autenticidade da letra e da assinatura, isto é, a sua autoria “, e deste modo “ reconhecida a autenticidade da letra e da assinatura (autoria)nos termos dos arts.373º a 375º do CC, o documento particular faz prova plena “ das “ declarações nele insertas que sejam desfavoráveis aos interesses do declarante “. (Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 3ª ed., págs. 321e 322)
Sucede que no documento por si assinado, cujo teor vem descrito no ponto 5 do segmento Factos Provados da decisão recorrida, a Embargante reconhece na qualidade de aceitante figurar como interveniente numa letra comercial em branco entregue nessa data à Embargada para garantia do cumprimento do Contrato de Compra e Fornecimento nº 2003/19 celebrado entre ambas, expressamente declarando que autoriza a Embargante a proceder ao completo preenchimento da letra e apresentá-la a pagamento ou descontá-la.
Ora do reconhecimento deste facto, conjugado com as regras da experiência comum, decorre a demonstração que a letra a que alude a Embargante na declaração materializada no referido documento é aquela que foi junta ao requerimento executivo.
Com efeito não invocou a Embargante a existência de outra letra por si assinada a que essa declaração se reportasse, e a circunstância do exame pericial à letra ser inconclusivo significa tão só que os peritos não conseguiram concluir nem num sentido, nem no sentido contrário.
Deste modo a prova pericial efectuada nos autos não tem a virtualidade de colocar em crise a prova produzida no sentido de demonstrar que a assinatura aposta na letra foi feita pelo punho da Recorrente.
Da circunstância de um exame pericial à letra se revelar inconclusivo quanto à autoria da assinatura não se retira que a assinatura não tenha sido efectuada pelo alegado autor da mesma, tudo dependendo da demais prova produzida. (neste sentido ver Acórdão da Relação de Évora de 19.5.2015, rel. Ana Brito, disponível em www.dgsi.pt)
A prova pericial é livremente apreciada pelo juiz, tendo-se entendido que “se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz (art.º 489º) já o juízo científico que encerra o parecer pericial só deve ser susceptível de uma crítica material e igualmente científica “. (Acórdão da Relação de Coimbra de 11.12.2024, rel. Fonseca Ramos, disponível em www.dgsi.pt)
No entanto no caso em análise não se verificou a emissão desse juízo científico dado que os peritos consignaram não ser possível obter um resultado conclusivo.
Improcede assim nesta parte o recurso.
Da falta de apresentação da letra a pagamento e do preenchimento abusivo da letra
Sustenta a Recorrente que tendo sido dado como não provada a apresentação da letra a pagamento se impunha concluir que a Exequente perdeu o seu direito de accionar essa letra.
Sobre esta questão decidiu o tribunal a quo:
“Para que o sacado possa pagar a letra é necessário que o portador lha apresente para esse fim. É pela apresentação da letra, no vencimento, que o devedor fica a saber quem é o credor. A letra deve ser apresentada ao sacado (cfr. Abel Delgado, in «Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças», 6.ª Ed., Livraria Petrony, págs. 217 e segs.).
Porém, conforme resulta do disposto no art.º 53.º da LULL, a única consequência que advém da falta de apresentação a pagamento é a perda do direito de ação contra os endossantes, o sacador e os outros co-obrigados, à excepção do aceitante.
Tal significa, portanto, que a eventual falta de apresentação a pagamento não produz qualquer efeito contra o aceitante da letra nem contra o seu avalista (cfr. Abel Delgado, in «ob. cit.», pág. 317).
Da falta de apresentação a pagamento da letra ao aceitante não decorre, pois, qualquer irregularidade que coloque em causa a existência do título. “
Não merece censura a decisão recorrida.
Com efeito constitui entendimento consolidado da jurisprudência que “ a falta de apresentação a pagamento de uma letra ou livrança não acarreta para o portador a perda do seu direito de acção contra o aceitante ou o subscritor “, uma vez que “ o art.º 53º da LILL exceptua do regime de perda dos direitos de acção do portador do título, mesmo tratando-se de letras à vista ou no caso de cláusula sem despesas, o direito contra o aceitante”. (Acórdão da Relação de Lisboa de 20.10.2015, rel. Manuel Ribeiro Marques, disponível em www.dgsi.pt; no mesmo sentido ver Acórdãos do S.T.J. de 14.12011, rel. João Bernardo; do S.T.J. de 24.10.2019, rel. Acácio das Neves: da Relação de Lisboa de 14.9.2017, rel. Pedro Martins; e da Relação de Lisboa de 11.1.2022, rel. Micaela Sousa, todos disponíveis em www.dgsi.pt )
No que respeita ao preenchimento abusivo da letra dada à execução trata-se de questão que não foi invocada pela Embargante em sede de petição inicial e que, por conseguinte, não foi abordada na decisão recorrida.
Trata-se assim de questão nova, cujo conhecimento é vedado ao tribunal de recurso.
Ora “ os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo, e não a pronúncia pelo tribunal a quem sobre questões novas”.(Acórdão do S.T.J de 7.4.2005, rel. Ferreira Girão, disponível em www.dgsi.pt ; no mesmo sentido ver Acórdãos do S.T.J. de 8.10.2020, rel. Ilídio Sacarrão Martins ; da Relação de Guimarães de 8.11.2018, rel. Afonso Cabral de Andrade; da Relação de Coimbra de 15.2.2011, rel. António Beça Pereira; da Relação de Lisboa de 8.2.2000, rel. Ponce Leão ; do S.T.A. de 23.11.2000, rel. Nuno Salgado, todos disponíveis em www.dgsi.pt)
Efectivamente “os recursos são um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões novas, não apreciadas e discutidas nas instâncias, sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso”. (Acórdão da Relação de Coimbra de 15.2.2011, rel. António Beça Pereira, disponível em www.dgsi.pt )
Importa não olvidar que “por definição a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o tribunal recorrido, pois só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário”. (Acórdão da Relação de Guimarães de 8.11.2018, rel. Afonso Cabral de Andrade, disponível em www.dgsi.pt )
Deste modo o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questões que não foram invocadas pelas partes, e que como tal não foram apreciadas e decididas na decisão recorrida, excepto quando a lei assim o determine ou se trate de questão de conhecimento oficioso.
Não sendo este o caso dos autos improcede nesta parte o recurso.
Da condenação como litigante de má-fé
Insurge-se a Recorrente contra a sua condenação como litigante de má-fé sustentando que os factos apurados nos autos não permitem concluir pela existência de uma conduta dolosa ou maliciosa susceptível de se enquadrar na definição de litigância de má-fé.
Dispõe o artigo 542º do C.P.C. que:
1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Há que ter em conta que “o Código de Processo Civil institui uma filosofia de colaboração que consagra o dever de boa fé processual, que tem correspondência na sanção como litigante de má fé de quem o viola, seja com dolo, seja com negligência grave”. (Acórdão da Relação de Lisboa de 8.11.2022, rel. Edgar Taborda Lopes, disponível em www.dgsi.pt )
Ora a Recorrente não impugnou a decisão de facto no que respeita aos factos julgados provados sob o ponto 9 desse segmento da sentença recorrida, dos quais decorre que deduziu pretensão cuja falta de fundamento não ignorava, e que agiu com dolo.
Mostra-se assim preenchida a previsão do artigo 542º do C.P.C., e como tal improcede nesta parte o recurso.
V – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmam a sentença recorrida,
Custas do recurso pela Recorrente (artigo 527º, do C.P.C.).

Lisboa, 27-03-2025
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
Carla Matos
Maria Teresa Lopes Catrola